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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.34 no.72 Uberlândia set./dez 2020  Epub 03-Fev-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v34n72a2020-51907 

Artigos

Às voltas com a questão do sujeito: da transparência à encarnação

Facing the issue of the subject: from transparency to incarnation

Face à l'enjeu du sujet: de la transparence à l'incarnation

*Doutorando em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e pela Universidade de Coimbra (UC) (cotutela). E-mail: renatodossantos1@hotmail.com


Resumo

O propósito deste artigo é mostrar a limitação do sujeito cartesiano no que diz respeito ao fenômeno da existência. Concebido como transparente a si mesmo, este sujeito não abarca as contingências do mundo da vida (Lebenswelt), pois se a verdade somente pode ser acessada por meio do pensamento, a dimensão do que escapa à representação não é contemplada. Na filosofia de Merleau-Ponty, buscaremos pensar um sujeito que, diferente de Descartes, não reduz o mundo ao cogito, mas assume sua inessencialidade, sua incompletude. Por fim, veremos emergir um sujeito que somente se sustenta na medida em que afirma o non-sens que lhe atravessa.

Palavras-chave: Merleau-Ponty; Carnalidade; Sujeito; Non-sens

Abstract

The purpose of this article is to show the limitation of the Cartesian subject with regard to the phenomenon of existence. Conceived as transparent to himself, this subject does not include the contingencies of the life world (Lebenswelt), because if the truth can only be accessed through thought, the dimension of what escapes representation is not contemplated. In Merleau-Ponty's philosophy, we will try to think of a subject who, unlike Descartes, does not reduce the world to the cogito, but assumes its inessentiality, its incompleteness. Finally, we will see a subject emerge that can only be sustained insofar as it affirms the non-sens that crosses it.

Key-words: Merleau-Ponty; Carnality; Subject; Non-sens

Résumé

Le but de cet article est montrer la limitation du sujet cartésien par rapport au phénomène de l'existence. Conçu comme transparent pour lui-même, ce sujet ne comprend pas les contingences du monde de la vie (Lebenswelt), car si la vérité ne peut être atteinte que par la pensée, la dimension de ce qui échappe à la représentation n'est pas envisagée. Dans la philosophie de Merleau-Ponty, nous allons essayer de penser à un sujet qui, contrairement à Descartes, ne réduit pas le monde à un cogito, mais assume son inessentialité, son incomplétude. Enfin, nous verrons émerger un sujet qui ne se soutient que dans la mesure où il affirme le non-sens qui le traverse.

Mots-clés: Merleau-Ponty; Carnalité; Sujet; Non-sens

Introdução

La vérité n'habite pas seulement l’«homme intérieur», ou plutôt il n'y a pas d'homme intérieur, l'homme est au monde c'est dans le monde qu’il se connaît (PhP, v).

O estatuto de uma subjetividade que é transparente a si mesma, que detém o mundo ao poder de sua constituição, tem seu ápice na modernidade. O discurso a favor da supremacia da razão fez com que a experiência sensível fosse concebida como passível de erro e engano. Se os sentidos nos dão a impressão das coisas serem ora de um modo, ora de outro, por conta de sua natureza ambígua, não devemos lançar sobre eles devida confiança para se chegar à verdade ou à essência das coisas. Com Descartes, aprendemos que o Eu se define a partir de si mesmo, que ele, por um movimento metódico da razão, independe do mundo para constituir-se. Aliás, é ele quem constitui o mundo e tudo o que nele existe.

Na perspectiva da filosofia cartesiana, o Eu preexiste à experiência. Se o racionalismo fez da consciência o fundamento do conhecimento e tomou o Eu como absoluto, para o empirismo o cenário não é diferente. Ao considerar que o conhecimento tem sua origem nas sensações, o empirismo outorgou à consciência um lugar de mero receptáculo das informações captadas. Fato é que, apesar disso, ainda é um Eu que opera e organiza essas informações. Segundo Merleau-Ponty, a despeito das discordâncias entre as filosofias modernas1, figurava, como pano de fundo, a ideia de que “o ser da alma ou o ser-sujeito não é um ser menor, que talvez seja a forma absoluta do ser” (S, 193)2.

A implicação que uma filosofia fundada no sujeito proporciona, do ponto de vista ontológico, é a separação entre sujeito e objeto ou, conforme a expressão cartesiana, res cogitans e res extensa. Ou existe-se como pensamento, ou como extensão, como ser ou como nada. Trata-se, noutras palavras, para essas filosofias, de desconsiderar o negativo, o inconsciente, o irracional. Ao contrário dessas perspectivas, neste item mostrarei de que maneira a noção de subjetividade encarnada, pensada por Merleau-Ponty em suas obras iniciais, busca superar o dualismo entre sujeito e objeto, consciência e natureza, favorecendo a encarnação do Eu num corpo vivo ou, se quiser, corpo carnal. Contudo, é oportuno trazermos à baila o modelo cartesiano de sujeito, de forma a compreendermos melhor o seu funcionamento.

O olho da razão, ou a transparência do sujeito cartesiano

Na Segunda meditação, de Méditations Métaphysiques, Descartes apresenta como o espírito tem o poder de nos livrar dos equívocos induzidos pelos sentidos, tomando como exemplo a análise de um pedaço de cera recém tirado da colmeia. Suas qualidades sensíveis, tais como a doçura do mel, cor, grandeza e formato, tendem a se modificar conforme a cera é aproximada do fogo. O que nela existia de sabor “exala-se, o odor se esvai, sua cor se modifica, sua figura se altera, sua grandeza aumenta, ele torna-se líquido, esquenta-se, mal o podemos tocar e, embora nele batemos, nenhum som produzirá” (DESCARTES, 1973, p. 104).

Considerando que essas alterações no pedaço de cera fazem dele uma simples extensão, resta perguntar-se, conforme Descartes, o que é, afinal, isso que permite com que eu possa afirmar que a cera, tal como se encontra no estado atual, é a mesma inicialmente experienciada? Certamente não são os próprios sentidos que fornecem tal informação, mas “uma inspeção do espírito” (DESCARTES, 1973, p. 105). É a capacidade de julgar que outorga a legitimidade de inferir que o pedaço de cera de agora é o mesmo de outrora, ou seja, “somente meu entendimento é quem o concebe” (DESCARTES, 1973, p. 105).

A verdadeira cera, como comenta Merleau-Ponty, “não é vista com os olhos. Nós só podemos concebê-la pela inteligência” (C, 13)3. O cogito possui o poder de fornecer a essência dos fenômenos, é ele quem permite distinguir clara e distintamente a verdade do erro. Se o cientista ou o filósofo quiser encontrar o ser das coisas é necessário, portanto, apoiar-se na capacidade da razão para realizar seu intento.

A grande realização de Descartes é a de retirar dos sentidos o fundamento seguro para o conhecimento, e colocar a razão como o centro que mais bem cumpre tal papel. Por esse motivo, a visão e o tato, por exemplo, somente podem estar submetidos ao critério da razão. No texto La Dioptrique (1637), que se ocupa em meditar sobre a óptica, o filósofo esclarece como ocorre o processo responsável por desencadear a visão. Por meio das luzes que se projetam no olho, formando imagens que irão ser recebidas pela retina, tem-se os primeiros elementos pelos quais a visão é formada.

Após detalhar o mecanicismo do olho (Discours III), seus tecidos, músculos e nervos, o filósofo em seguida passa a mostrar a natureza e a função dos sentidos no geral (Discours IV), enfatizando, logo no início, que é a “alma que sente, não o corpo” (DESCARTES, 1963, p. 681-682). Logo adiante, uma afirmação semelhante a esta é escrita quando busca tratar, especificamente, da visão: “primeiramente, é a alma que vê, e não o olho, pois este não vê diretamente, mas apenas por intermédio do cérebro” (DESCARTES, 1963, p. 710). Em outra ocasião, o filósofo reforça sua tese de que é o espírito quem outorga sentido às imagens que o olho vê, mesmo se este estiver diante de um espelho, a imagem que refletirá do espelho somente poderá ser reconhecida pela faculdade do espírito (Cf. DESCARTES, 1973, p. 199)4. Merleau-Ponty, por sua vez, não perde a oportunidade de observar criticamente este exemplo cartesiano.

Um cartesiano não se vê no espelho: ele vê um manequim, um ‘fora’ do qual ele tem todos os motivos para acreditar que os outros o vêem da mesma forma, mas que, para si próprio como para os outros, não é uma carne. Sua ‘imagem’ no espelho é um efeito da mecânica das coisas; se nela se reconhece, se a considera ‘semelhante’, é seu pensamento que tece esse elo, a imagem especular não é nada dele (OE, 39).

O que nos importa destacar destas passagens é a maneira pela qual a filosofia cartesiana concebe a natureza da visão, bem como o estatuto de sujeito pressuposto na estruturação do conhecimento. Conforme nota Merleau-Ponty em La structure du comportement, Descartes tem o mérito de conseguir superar “as coisas extramentais, que o realismo filosófico havia introduzido, para retornar a um inventário, a uma descrição da experiência humana sem nada pressupor que a explique inicialmente de fora” (SC, 210). Todavia, se, por um lado, a filosofia cartesiana retira de cena a causalidade dos objetos extramentais, e dá conta de explicitar o “pensamento de ver”, por outro, ainda segundo Merleau-Ponty, ela não leva em consideração o fato “da visão e o conjunto de conhecimentos existenciais” (SC, 212), os quais são relegados a meras determinações da consciência.

O poder constituinte do cogito, pensado por Descartes, é de tal modo capaz de assegurar a certeza que se possa extrair da própria existência. Para o filósofo, por mais que coloquemos em xeque todas as informações advindas dos sentidos, ou até mesmo o fato de que existimos, não podemos duvidar de que duvidamos, de que pensamos5. Conforme afirma o filósofo na passagem a seguir:

Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, que fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava (DESCARTES, 1973, p. 54).

Esta é a primeira premissa para se conhecer seguramente alguma coisa. A “dúvida metódica” deve levar em consideração não tanto os juízos corriqueiros que todo sujeito em sua cotidianidade é capaz de fazer, mas a capacidade de conseguir analisar por meio da razão, ou da clarividência do cogito, tais elementos. Ou seja, retira-se da existência o conteúdo das vivências para tomá-las enquanto ideias depuradas pela razão. O pensamento de Descartes é de tal maneira que “não quer frequentar o visível e decide reconstruir conforme o modelo que dele se oferece” (OE, 36).

Assim, tem-se o mundo apenas em tese, ou seja, não o mundo enquanto tal, mas tão somente o mundo enquanto ideia. A filosofia de Descartes, assim como a ciência moderna, opera por meio daquilo que Merleau-Ponty designou como “pensamento de sobrevoo”6. Trata-se do pensamento que recusa a encarnação do homem no mundo, como ser-no-mundo, em vez disso, acredita poder abster-se com a razão deste mundo natal. Afasta-se do mundo por acreditar que assim será possível encontrar a essência do mundo por meio da razão, almejando “sobrevoar todas as coisas em um pensamento ‘objetivo’, que, finalmente, não pensa verdadeiramente nada” (S, 192). A ciência, por exemplo, influenciada em grande medida pelo pensamento cartesiano, “manipula as coisas e recusa habitá-las” (OE, 9)7.

Cumpre lembrarmos que, para Descartes, o mundo, e tudo que diz respeito à dimensão sensível, é da ordem da res extensa, do que pode ser dissecado, desmontado. Numa palavra: os objetos. Já a res cogitans refere-se à dimensão da reflexão, do pensamento, do que não é passível de esgotar objetivamente. É daí, como sabemos, que advém a clássica separação entre sujeito e objeto. Ou existe-se no nível de sujeito, ou de objeto, do cogito ou da extensão. O exemplo do pedaço de cera, que mencionamos anteriormente, ilustra isto que estamos a dizer. A cera, por ser da ordem da extensão é, por isso mesmo, passível de ser depurada pelo sujeito - poderíamos nomear aqui o cientista - que está analisando-a, uma vez que a verdade da cera reside na inferência puramente racional do sujeito. Se os sentidos e o sensível são passíveis de erro e engano, o fundamento para se ter acesso à verdade do mundo deve ser o cogito, o qual possui como característica de sua essência o esquecimento de “seus próprios fenômenos e tornar possível assim a constituição das ‘coisas’” (PhP, 71).

Toda ambiguidade dos fenômenos é dissipada pela clarividência do cogito. Segundo Merleau-Ponty, “a atitude reflexiva simultaneamente purifica a noção comum do corpo e da alma definindo o corpo como uma soma de partes sem interior e a alma como um ser todo presente a si mesmo sem distância” (PhP, 231)8. Reduzido o corpo a mero objeto, uma filosofia reflexiva considera o Eu como sendo pura independência. Instalam-se, assim, dois modos puros de existência: “ou existe-se como coisa ou existe-se como consciência” (PhP, 231).

Descartes pensa um sujeito que está fora da relação com o mundo sensível, é um sujeito que se abstém da experiência mesma no mundo. Na perspectiva do sujeito cartesiano, o real estaria dominado pela autossuficiência do cogito. Não há espaço para o real, para o estranho (Unheimliche)9, pois nada escapa da transparência racional de sua existência. Podemos afirmar que não há falta para este sujeito, pois se o cogito me fornece um arcabouço de significações para eu poder definir as coisas que percebo, nada pode figurar-se em meu campo como estranho, sem sentido (non-sens). Conforme escreve Merleau-Ponty, já no prefácio de Phénoménologie de la perception:

A análise reflexiva ignora o problema do outro como o problema do mundo porque ela faz surgir em mim, com o primeiro lampejo de consciência, o poder de dirigir-me a uma verdade de direito universal, e porque sendo o outro também sem ecceidade (eccéité), sem lugar e sem corpo, o Alter e o Ego são um só no mundo verdadeiro, elo dos espíritos (PhP, 17).

Para “um sujeito que nada mais é do que ele pensa ser” (PhP, 231), tudo o que pode apresentar-se por uma face de mistério, é somente uma questão de potencializar o intelecto que logo dissipar-se-á qualquer confusão ocasionada pela percepção. Assim, não há nada que possa haver, fora das vistas do ego, uma intencionalidade própria, nem dos objetos, nem de meus semelhantes. O peso recai sempre na potencialidade do ego em decifrar os paradoxos, sendo apenas uma questão de método para bem conduzir o espírito. Segundo Merleau-Ponty, por muito tempo, “o Cogito desvalorizava a percepção de um outro, ele me ensinava que o Eu só é acessível a si mesmo, já que ele me definia pelo pensamento que tenho de mim mesmo e que sou evidentemente o único a ter, pelo menos nesse sentido último” (PhP, vii).

Na Segunda meditação, de Méditations Métaphysiques, Descartes prossegue o exemplo do pedaço de cera estendendo aquela mesma conclusão - qual seja, que a verdade da cera não reside nela mesma, mas no espírito - para o problema da alteridade. Vejamos o que diz o filósofo:

Se por acaso não olhasse pela janela homens que passam pela rua, à vista dos quais não deixo de dizer que vejo homens da mesma maneira que digo que vejo a cera; e, entretanto, que vejo desta janela, senão chapéus e casacos que podem cobrir espectros ou homens fictícios que se movem apenas por molas? Mas julgo que são homens verdadeiros e assim compreendo, somente pelo poder de julgar que reside em meu espírito, aquilo que acreditava ver com meus olhos (DESCARTES, 1973, p. 105).

Já falamos anteriormente que o ver para Descartes, assim como todos os demais sentidos, estão submetidos ao exame criterioso do cogito. A verdade do percebido não reside nele mesmo, mas na ideia depurada racionalmente pelo sujeito. É este pano de fundo que faz Descartes afirmar, conforme a citação acima, que a garantia de que os homens que passam na rua são realmente homens somente pode ser fornecida pela razão. Afinal, o corpo do outro não é mais do que um mero objeto para eu que sou um espectador absoluto, e que outorga a verdade acerca daquilo que percebo. Sob este prisma, a existência do outro somente pode representar “dificuldade e escândalo (PhP, 401). Afinal, conforme Merleau-Ponty:

O corpo do outro, como meu próprio corpo, não é habitado, ele é objeto diante da consciência que o pensa ou constitui os homens e eu mesmo enquanto ser empírico somos apenas mecanismos que se movem por molas, o verdadeiro sujeito é sem segundo sujeito, esta consciência que se esconderia em um pedaço de carne sangrenta é a mais absurda das qualidades ocultas, e minha consciência, sendo coextensiva àquilo que pode ser para mim, correlativa ao sistema inteiro da experiência, não pode encontrar aqui uma outra consciência que no mesmo instante faria aparecer no mundo o fundo reservado, desconhecido por mim, de seus próprios fenômenos (PhP, 401).

Se o sujeito cartesiano me possibilita extrair por meio do pensamento a evidência de minha existência, possibilitando ser transparente para eu mesmo, também o meu próximo se faz transparente para mim. Eu e o outro formamos uma consistência perfeita, graças ao poder do espírito em retirar de cena qualquer falta ou fissura. Mas esta consistência não passa de uma mera ilusão imaginária, pois se o outro está submetido à minha representação, ele não é mais do que um mero objeto ou um significante forjado por mim. Ou seja, o outro não existe. Considerando que o cogito tem o poder de revelar um modo de “existência que não deve nada ao tempo, se eu me descubro como o constituinte universal de todo ser que é acessível a mim, e um campo transcendental sem dobras e sem exterior” (PhP, 427), é preciso afirmar seguramente que este cogito é “Deus” (Cf. PhP, 427)10, que é “finalmente com Deus que o Cogito me faz coincidir [...], me retira do evento e me estabelece na eternidade” (PhP, 428).

O sujeito cartesiano, assim, é aquele que recusa a contingência da existência, das vicissitudes da vida, numa palavra, da finitude. Como afirma Merleau-Ponty, “nenhuma filosofia pode ignorar o problema da finitude, sob pena de ignorar a si mesma enquanto filosofia” (PhP, 48)11, ou como podemos ler nos Manuscrits inédits: “Nós jamais pensaremos a vida se não pensarmos em nascimento e morte. A impossibilidade de pensá-los em termos do cogito é a condenação do cogito - pelo menos a prova de que ele não é uma fórmula última” (MI, 204)12.

Uma filosofia que não consegue contemplar em seu sistema a problemática da finitude está definitivamente condenada ao fracasso do ponto de vista da facticidade do ser-no-mundo, pois, se for verdade que nascemos e morremos, que temos um corpo, há que se pensar uma filosofia que dê conta das contingências da existência mesma, de um sujeito que enfrenta problemas reais de sua vida, algo que uma filosofia cartesiana não consegue abarcar. Dentre estes problemas, encontra-se a questão da alteridade, a sexualidade, o desejo, o inconsciente, enfim, questões que só fazem sentido sob a perspectiva de um sujeito que não é absoluto, mas marcado desde o início por uma incompletude fundamental. É esta concepção de sujeito que Merleau-Ponty buscará defender, ou seja, não um sujeito isolado do mundo, mas um sujeito encarnado no mundo.

O sujeito encarnado

A análise reflexiva exclui a ambiguidade do corpo na medida em que realiza a separação do que é da ordem do pensamento (atividade) e do que é da ordem da matéria (passividade). Ao passo que deixamos de conceber a separação entre espírito e corpo, passamos a compreender como a existência é marcada por uma ambiguidade fundamental. Se tomarmos como ponto de partida, de acordo com Merleau-Ponty, o fato de que não temos um corpo, mas somos um corpo, veremos que sexualidade, visão, motricidade, liberdade, por exemplo, “não podem estar ligadas entre si e ao mundo exterior por relações de causalidade, todas elas estão confusamente retomadas e envolvidas num drama único” (PhP, 231).

Para Merleau-Ponty, não há como separar-se do corpo para se falar dele, retirar-se para o interior do pensamento de modo a conseguir encontrar uma possível pureza da existência. Afinal, é necessário considerar que:

Quer seja o corpo do outro ou meu próprio corpo, não tenho outro meio de conhecer o corpo humano senão vivê-lo, quer dizer, retomar por minha conta o drama que o transpassa e confundir-me com ele. Portanto, sou meu corpo, exatamente na medida em que tenho um saber adquirido e, reciprocamente, meu corpo é como um sujeito natural, como um esboço provisório de meu ser total. Assim, a experiência do corpo próprio opõe-se ao movimento reflexivo que destaca o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que nos dá apenas o pensamento do corpo ou o corpo em ideia, e não a experiência do corpo ou o corpo em realidade (PhP, 231).

O corpo próprio não se reduz à noção de corpo objeto, conforme pretendido pela filosofia reflexiva. Isso ocorre precisamente porque, na dimensão da experiência, o corpo se revela enquanto corpo-sujeito, como ser-no-mundo. O sujeito somente se constitui13 na medida em que é corpo, suas relações com os outros se dão unicamente pelo fato de que é figurado como corporeidade. Ser um corpo significa, noutras palavras, “estar ligado a um certo mundo, e nosso corpo não está primeiramente no espaço: ele é no espaço” (PhP, 173), ou ainda, “o corpo é um eu natural e como o sujeito da percepção” (PhP, 239)14.

Convém lembrar duas distinções conhecidas na tradição fenomenológica a respeito do corpo, ou seja, o corpo como Körper e Leib. O primeiro refere-se ao corpo da ciência, partes extra partes. O corpo como Leib, por outro lado, diz respeito ao corpo que acabamos de descrever, isto é, o corpo próprio. Em sua ontologia da carne, Merleau-Ponty levará às últimas consequências tal conceito, para pensar a natureza, o entrelaçamento do Eu e do outro, do visível e do invisível. Mas isso veremos mais adiante. Por ora, importa esclarecer que não se trata, para Merleau-Ponty, de ignorar o corpo da ciência (Körper), mas recusar a redução da totalidade do corpo apenas a essa perspectiva.

Assim, o corpo fenomenal “não é uma ideia, é um macrofenômeno, o corpo objetivo é um microfenômeno. Mas a verificação só é obtida se deixarmos de lado a noção de corpo-objeto e de espírito” (N, 278). Deixar de lado significa dizer que o corpo objetivo somente é possível porque, antes, há um corpo que percebe, que está ligado ao mundo não por uma relação de causalidade, mas de estrutura carnal reversível.

É interessante recordar que o espírito e o corpo-objeto não são fundadores do desejo. Entendo, aqui, por desejo, aquilo que faz com que o sujeito busque algo além de si mesmo, como identidade positiva. Somente uma subjetividade que é atravessada por uma falta, ou melhor, por um negativo, que detém a possibilidade de desejar. Conforme Merleau-Ponty, “um espírito não desejaria, assim como não perceberia”. Eis, então, que indaga o filósofo: “Qual é o Eu do desejo?”. A resposta não poderia ser outra: “É evidentemente o corpo” (N, 272)15.

O corpo é sujeito de movimento, pois é sujeito de desejo. Um sujeito cartesiano jamais desejaria, precisamente porque é um sujeito de positividade pura que detém a transparência do mundo por um ato de pensamento. Para desejar, é preciso ser furado, ser ultrapassado por um excesso de mundo e, ao mesmo tempo, ser um corpo encarnado no mundo. A respeito disso, vejamos a passagem em que Barbaras (2011, p. 158) comenta acerca do estatuto do desejo, desde uma fenomenologia da vida:

O desejo é a maneira específica pela qual o ser vivo se relaciona originariamente com uma exterioridade, é a forma primitiva e fundadora da intencionalidade. É enquanto desejo que a vida é capaz de dar origem a uma relação com objetos e, portanto, é como desejo que a percepção enraíza-se originariamente no ser vivo.

A gênese do desejo, como frisamos anteriormente, não reside num cogito, numa consciência constituinte. O desejo é da ordem do pré-reflexivo, de uma intencionalidade operante fundada no corpo próprio, e não de um ego transcendental16. Interessante notar, ainda segundo Barbaras, a distinção entre “desejo” e “necessidade”. Desejo não é vontade, tampouco necessidade. O que caracteriza o desejo é, justamente, o fato de que “o objeto que ele visa aviva-o no momento em que o preenche, de modo que a fonte de satisfação é ao mesmo tempo um motivo de insatisfação” (BARBARAS, 2011, p. 159). Assim, se o desejo é da ordem do originário, do corpo próprio, de uma intencionalidade corpórea, a vontade é do consciente, na medida em que ela é racionalizada e, quando satisfeita, ela cessa.

O desejo, por sua vez, é por natureza da ordem do impossível, da insatisfação, precisamente porque o sujeito é ontologicamente incompleto. Esgotar o desejo (no sentido de satisfação plena) é aniquilar o sujeito, uma vez que “o ser vivo é caracterizado por uma insatisfação que, por definição, não pode ser superada já que ele visa uma totalidade impossível, já que a aparição do objeto da sua ânsia equivale à sua desaparição enquanto sujeito” (BARBARAS, 2011, p. 158).

Com efeito, falar de desejo, como vimos, é falar de algo que caracteriza o ser humano como algo que o faz mover. Destacamos, a partir de Merleau-Ponty, que o Eu do desejo é o corpo, o qual é definido como corpo sujeito. Diante disso, cabe esclarecer qual é o estatuto desse sujeito, isto é, como ele é estruturado. Desde suas primeiras obras, o filósofo procurou uma dimensão que antecede o pensamento, uma dimensão originária na qual nossa existência se apoia, um estofo primordial. Na Phénoménologie de la perception, Merleau-Ponty reencontra como sustentação da existência um cogito pré-reflexivo, inconsciente. Aliás, nas palavras do filósofo, era esse cogito:

Silencioso que Descartes visava ao escrever as Meditações, ele animava e dirigia todas as operações de expressão que, por definição, sempre erram seu alvo já que elas interpõem, entre a existência de Descartes e o conhecimento que dela ele adquire, toda a espessura das aquisições culturais, mas que não seriam nem mesmo tentadas se Descartes não tivesse em primeiro lugar uma visão de sua existência (PhP, 461).

O cogito tácito é, portanto, essa experiência que o sujeito detém enquanto ser no mundo. Esse cogito, porém, não constitui o mundo, mas tão somente percebe as doações de sentido que o mundo o proporciona. A condição de possibilidade de todo conhecimento depende dessa dimensão que antecede qualquer pensamento constituinte da realidade. Nas palavras de Merleau-Ponty, essa subjetividade indeclinável não determina o mundo, senão “adivinha-o em torno de si como um campo que ela não se deu; ela não constitui a palavra, ela fala assim como se canta porque se está feliz; ela não constitui o sentido da palavra, este brota para ela em seu comércio com o mundo e com os outros homens que o habitam” (PhP, 462).

A consciência se instala com base na constituição sensível do sujeito. Quero dizer: ela é uma espécie de desdobramento da estrutura do Eu carnal. Ela opera a partir da tese do mundo, e não pelo próprio mundo em si. Tal é o cogito cartesiano, conforme vimos anteriormente. Para Merleau-Ponty, o verdadeiro cogito deve, necessariamente, considerar o enraizamento da consciência no mundo, isto é, “não é o face a face do pensamento com o pensamento deste pensamento: eles só se encontram através do mundo” (PhP, 344)17.

No curso realizado no Collège de France, intitulado La Nature, Merleau-Ponty radicaliza a ambiguidade via dimensão de uma ontologia radical, evidenciando que entre o vidente e o visível há um fundo de invisibilidade que conta, tal como um fundo de uma figura que está estruturado como Gestalt. Pensado como carne, a natureza deixa de ser concebida como estado de coisas físico-químicas, que se dão por uma relação de causalidade. Quer dizer, no lugar de separar a consciência da natureza, como sujeito e objeto, Merleau-Ponty propõe pensar esta relação como envolvimento de uma dimensão à outra, o que favorece de forma decisiva na superação do dualismo das abordagens clássicas, seja como proposto pelo positivismo quanto pelo racionalismo.

A natureza não é matéria, não é espírito, mas “folha do Ser = como parte desse complexo, reveladora do todo” (N, 266). A questão consiste em pensar o envolvimento do ser humano com a natureza, por uma espécie de entrelaçamento. Já aí podemos perceber uma grande ruptura com o modo de pensar moderno e de uma vasta perspectiva filosófica, segundo a qual a natureza é pura matéria, ou então que o homem é de uma outra substância, entre o homem e a natureza não há parentesco, familiaridade. Inversamente, para Merleau-Ponty, na medida em que compreendemos a natureza é que podemos compreender nós mesmos, ou seja, “é através da carne do mundo que se pode enfim compreender o corpo próprio” (VI, 299)18 e, igualmente, “a carne do corpo nos faz compreender a carne do mundo” (N, 280)19.

Mas o que isto quer dizer exatamente? Afirmar que a carne do corpo nos ajuda a entender a carne do mundo não é de modo algum que entre uma carne e outra haveria uma correspondência linear, sem qualquer diferenciação. O que há, na verdade, é que o vidente, que somos nós, somente consegue ver porque está encarnado no visível: “o sujeito que toca passa ao nível do tocado, descendo às coisas, de sorte que o tocar se faz no meio do mundo e como nelas” (VI, 174). Não é o vidente que faz aparecer o visível, ou seja, não é aquele que percebe que faz surgir o objeto percebido, mas ao contrário, só é possível ver ou perceber porque há, antes, o visível e o percebido. Nesta direção, Barbaras (2011, p. 79) enfatiza que “não é mais o sujeito que toma a iniciativa, mas sim o próprio mundo, já que o sentir está imerso num corpo que está, ele próprio, imerso no mundo”. Por esta razão, Merleau-Ponty afirma que o vidente, estando encarnado no que vê, acaba por ver-se a si mesmo.

Há um narcisismo fundamental de toda visão; daí por que, também ele sofre, por parte das coisas, a visão por ele exercida sobre elas; daí, como disseram muitos pintores, o sentir-me olhado pelas coisas, daí, minha atividade ser identicamente passividade - o que constitui o sentido segundo e mais profundo do narcisismo: não ver de fora, como os outros veem, o contorno de um corpo habitado, mas sobretudo ser visto por eles, existir nele, emigrar pra ele, ser seduzido, captado, alienado pelo fantasma, de sorte que vidente e visível se mutuem reciprocamente, e não mais se saiba quem vê e quem é visto (VI, 181).

O sujeito merleau-pontyano não é aquele que faz do visível um objeto para si, ao contrário, ele depende do visível para se fazer vidente. Mais do que isso: o próprio vidente é feito do mesmo tecido do mundo, da mesma carne. Por isso a ideia de “narcisismo”, pois, em última análise, o que o vidente vê nada mais é do que aquilo do qual ele também é feito. É como se algo que é íntimo do sujeito fosse possível experimentar no exterior. Já aí podemos ver que este sujeito é, desde o início, descentrado, visto que seu poder de vidente não dá conta de abarcar a totalidade.

Por não ser um sujeito absoluto, mas desde sempre atravessado por uma incompletude, uma invisibilidade radical, é que se torna possível falarmos em outros sentidos, outras possibilidades, enfim, outrem: “se pude compreender como nasce em mim esta vaga, como o visível que está acolá é simultaneamente minha paisagem, com mais razão posso compreender que alhures ele também se fecha sobre si mesmo, e que haja outras paisagens além da minha” (VI, 183). Se o visível se apresenta para mim por uma sorte de inacabamento e com a condição de não ser-todo, resguardando sempre um fundo de invisibilidade, torna-se possível manter um campo “aberto para outros Narcisos, para uma intercorporeidade (intercorporéité)” (VI, 183).

Conclusão

Cumpre enfatizarmos que esta intercorporeidade somente é possível porque não há mais um sistema que coloca o sujeito em seu mundo privado, mas um sujeito que se define pela aderência ao mundo sensível e a outrem. Não temos mais a velha aporia colocada pela filosofia reflexiva, que há de se escolher entre ser consciência ou ser objeto. Para Merleau-Ponty, a consciência é perpassada pela dimensão existencial do corpo, isto é, por um campo que antecede seu poder de constituição20. Na dimensão da carne, o que encontramos, na verdade, é uma ambiguidade fundamental, de modo que todo ente é constituído por esse tecido, ou seja, um tecido gestáltico, em que a figura não se sobrepõe ao fundo. Enquanto vidente, sou perpassado por uma invisibilidade, por uma ausência que me constitui sem que eu possa me relacionar diretamente, porquanto sua manifestação se faz sempre por um véu de anonimato.

Retomando a ideia de narcisismo, possibilitado pela encarnação do sujeito no mundo, convém lembrarmos da passagem de L'Œil et l'esprit, em que Merleau-Ponty enfatiza a radicalização do fenômeno da encarnação, ao relatar a experiência de vários pintores que se sentiram olhados pelas coisas que estavam a pintar, a ponto de não saber mais “quem vê e quem é visto, quem pinta e quem é pintado” (OE, 32). Tal tese nos evidencia que a posição do sujeito é de envolvimento, entrelaçado tanto numa dimensão histórica quanto natural. Mas esta posição jamais é de uma centralidade permanente, como no caso do sujeito cartesiano, em que ele detém seu poder de clarividência sobre si mesmo. Na medida em que o sujeito é envolvido por aquilo que ele envolve, isto é, o objeto volta-se para ele, não há mais uma atividade plena, desprendida de passividade.

O movimento que permite com que o eu migre para o exterior, que haja envolvimento do vidente no visível, do invisível no visível, etc., é justamente o fenômeno da reversibilidade. É a reversibilidade que faz com que eu, meu próximo e o mundo estejamos em relação e ao mesmo tempo atravessados por uma distância, por uma não coincidência. Neste contexto é que Merleau-Ponty descreve o despontar do desejo, pois se há uma invisibilidade na carnalidade do mundo, haverá sempre um movimento incessante do sujeito em relação àquilo que lhe escapa, sem que ele consiga apreender-se e coincidir-se, ou seja, a impossibilidade de uma satisfação plena. Este movimento de proximidade e distanciamento, ascensão e queda, o mesmo e o outro, invisível e invisível, somente é possível numa dimensão em que o sujeito é encarnado, no enfrentamento concreto de sua existência no mundo da vida (Lebenswelt).

Referências

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Este artigo foi desenvolvido com financiamento da Bolsa CAPES de doutorado.

1Merleau-Ponty direciona sua crítica não apenas a Descartes e Locke, mas também a Kant: “Descartes e especialmente Kant desataram o sujeito ou a consciência fazendo ver que eu não consigo entender nada como existente se primeiramente eu não me experimentasse existente no ato de apreendê-la; eles fizeram a consciência aparecer, a absoluta certeza de mim para mim, como a condição sem o qual não haveria absolutamente nada, e o ato de ligação como o fundamento do ligado. Sem dúvida, o ato de ligação não é nada sem o espetáculo do mundo que ele liga; a unidade da consciência, em Kant, é exatamente contemporânea da unidade do mundo e, em Descartes, a dúvida metódica não nos faz perder nada, visto que o mundo inteiro, pelo menos a título de experiência nossa, é reintegrado ao Cogito, certo com ele, e apenas afetado pelo índice ‘pensamento de...’” (PhP, iii-iv).

2Todas as traduções das citações em língua estrangeira serão de nossa autoria. Em algumas citações, quando vermos necessidade, citaremos o original em nota de rodapé. Para as obras de Merleau-Ponty, utilizamo-nos das abreviaturas conforme segue: La structure du comportement (SC); La Phénoménologie de la Perception (PhP); Causeries 1948 (C); Signes (S); L'Œil et l'Esprit (OE); Le visible et l'invisible (VI); L'institution/La passivité (IP); Manuscrits inédits (MI).

3La vraie cire ne se voit donc pas par les yeux. On ne peut que la concevoir par l’intelligence. Quand je crois voir la cire de mes yeux, je ne fais que penser à travers les qualités qui tombent sous les sens la cire toute nue et sans qualités qui est leur source commune. Pour Descartes, donc, et cette idée est demeurée longtemps toutepuissante dans la tradition philosophique en France a, la perception n’est qu’un commencement de science encore confuse. Le rapport de la perception à la science est celui de l’apparence à la réalité. Notre dignité est de nous en remettre à l’intelligence qui nous découvrira seule la vérité du monde” (Cf. C, 13-14).

4Em Objeções e respostas, Descartes (1973, p. 199) escreve: “[o] olho que não pode ver-se a si mesmo a não ser num espelho: ao que é fácil responder que não é o olho que se vê a si mesmo, nem o espelho, mas antes o espírito, o qual somente conhece não só o espelho como o olho e a si mesmo”.

5“Fecharei agora os olhos, tamparei meus ouvidos, desviar-me-ei de todos os meus sentidos, apagarei mesmo de meu pensamento todas as imagens de coisas corporais, ou, ao menos, uma vez que mal se pode fazê-lo, reputá-las-ei como vãs e como falsas; e assim, entretendo-me apenas comigo mesmo e considerando meu interior, empreenderei tornar-me pouco a pouco mais conhecido e mais familiar a mim mesmo. Sou uma coisa que pensa” (DESCARTES, 1973, p. 107).

6Merleau-Ponty denomina, também, à essa perspectiva de sobrevoo o termo Kosmotheoros, notadamente, em L’institution/La Passivité, quando refere-se à atitude de Lévi-Strauss de identificar-se a um observador absoluto frente ao social, concebendo este último como objeto. “Ceci veut dire que Lévi-Strauss se donne un observateur absolu, Kosmotheoros, avec lequel il s'identifie, et devant qui le social est objet” (IP, 120). No livro Experiência do Pensamento, Marilena Chaui explica o conceito Kosmotheoros nos seguintes termos: “Perante o observador absoluto, Kosmotheoros que sobrevoa o mundo para contemplá-lo como espetáculo integral e sem poder habitá-lo, não opunha a inexistência da subjetividade, mas indagava porque o sujeito absoluto a dissimulava e anulava” (CHAUI, 2002, p. 7).

7La science manipule les choses et renonce à les habiter. Elle s'en donne des modèles internes et, opérant sur ces indices ou variables les transformations permises par leur définition, ne se confronte que de loin en loin avec le monde actuel. Elle est, elle a toujours été, cet-te pensée admirablement active, ingénieuse, désinvolte, ce parti pris de traiter tout être comme «objet en général», c'est-à-dire a la fois comme s'il ne nous était rien et se trouvait cependant prédestiné à nos artífices” (Cf. OE, 9).

8L'attitude réflexive purifie simultanément la notion commune du corps et celle de l'âme en définissant le corps comme une somme de parties sans intérieur et l'âme comme un être tout présent à lui-même sans distance” (Cf. PhP, 231).

9Sobre o tema do Unheimliche, recomendo o capítulo de minha autoria, publicado no livro que organizei em 2018. Cf. O estranho familiar (Un-heimlich), ou a questão da alteridade em Freud e Merleau-Ponty. In: SANTOS, R.; GUTELVIL, L. (Org.). Ontologia, Política e Psicanálise: Discursos Acerca da Alteridade. Porto Alegre: Editora Fi, 2018. p. 463-483.

10Importante lembrarmos que, para Descartes, é precisamente Deus quem pode iluminar a certeza que eu alcanço pela razão. Ou melhor, Deus é o avalista que me faz ter certeza das essências alcançadas pela razão, questão esta que faz concluir, segundo o filósofo, que Deus existe. “Portanto, resta tão-somente a ideia de Deus, na qual é preciso considerar se há algo que não possa ter provindo de mim mesmo? Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual eu próprio e todas as coisas que são (se é verdade que há coisas que existem) foram criadas e produzidas. Ora, essas vantagens são tão grandes e tão eminentes que, quanto mais atentamente as considero, menos me persuado de que essa ideia possa tirar sua origem de mim tão-somente. E, por conseguinte, é preciso necessariamente concluir, de tudo o que foi dito antes, que Deus existe; pois, ainda que a ideia da substância esteja em mim, pelo próprio fato de ser eu uma substância, eu não teria, todavia, a ideia de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não tivesse sido colocada em mim por alguma substância que fosse verdadeiramente infinita” (DESCARTES, 1973, p. 115). Como lembra Merleau-Ponty, “Deus é a garantia das essências e fundamento de nossa existência” (Dieu est garant des essences et fondement de notre existence) (Cf. S, 181).

11Aucune philosophie ne peut ignorer le problème de la finitude sous peine de s'ignorer elle-même comme philosophie” (Cf. PhP, 48).

12On ne pensera jamais la vie si on ne pense pas la naissance et la mort. L’impossibilité de les penser dans les termes du cogito est la condamnation du cogito - du moins la preuve qu’il n’est pas une formule ultime” (Cf. MI, 204).

13Desenvolvi com maior profundidade a questão da constituição do Eu em Merleau-Ponty no artigo publicado na revista Trans/Form/Ação. Cf. SANTOS, R. A constituição do Eu em Merleau-Ponty e o estatuto da projeção na psicanálise freudiana. Trans/Form/Ação, Marília, v. 41, n. spe, p. 243-268, 2018.

14“[...] le corps est un moi naturel et comme le sujet de la perception” (Cf. PhP, 239).

15Un esprit ne désirerait pas plus qu'il ne percevrait. Quel est le Je du désir? C'est evidemment le corps” (Cf. N, 272).

16Sobre isso, assevera Merleau-Ponty: “La perception érotique n'est pas une cogitatio qui vise un cogitatum; à travers un corps elle vise un autre corps, elle se fait dans le monde et non pas dans une conscience. [...] Il y a une ‘compréhension’ érotique qui n'est pas de l'ordre de l'entendement puisque l'entendement comprend en apercevant une expérience sous une idée, tandis que le désir comprend aveuglément en reliant um corps à um corps” (Cf. PhP, 183).

17Le véritable cogito n'est pas le tête à tête de la pensée avec la pensée de cette pensée: elles ne se rejoignent qu'à travers le monde. La conscience du monde n'est pas fondée sur la conscience de soi, mais elles sont rigoureusement contemporaines il y a pour moi un monde parce que je ne m'ignore pas je suis non dissimulé à moi-même parce que j'ai un monde” (Cf. PhP, 344).

18“[...] la chair du monde qu' on peut en fin de compte comprendre le corps propre” (Cf. VI, 299).

19La chair du corps nous fait comprendre la chair du monde” (Cf. N, 280).

20“O que significa que cada visão monocular, cada palpação de uma única mão, embora tenha seu visível e seu tangível, está ligada à outra visão, à outra palpação, de modo a realizar com elas experiência de um único corpo diante de um único mundo, graças a uma possibilidade de reversão, de reconversão de sua linguagem na delas, possibilidade de reportar e de revirar segundo a qual o pequeno mundo privado de cada um não se justapõe àquele de todos os outros mas é por ele envolvido, colhido dele, constituindo, todos juntos, um Sentiente em geral, diante de um Sensível em geral”. No original: “Ce qui veut dire que chaque vision monoculaire, chaque toucher par une seule main, tout en ayant son visible, son tactile, est liée à chaque autre vision, à chaque autre toucher, de manière à faire avec eux l'expérience d'un seul corps devant un seul monde, par une possibilité de réversion, de reconversion de son langage dans le leur, de report et de renversement, selon laquelle le petit monde privé de chacun est, non pas juxtaposé à celui de tous les autres, mais entouré par lui, prélevé sur lui, et tous ensemble sont un Sentant en général devant un Sensible en general” (Cf. VI, 184).

Recebido: 06 de Dezembro de 2019; Aceito: 16 de Dezembro de 2020

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