O pre(s)ente de um encontro
Em agosto de 2017, desenvolvemos um projeto de Iniciação Científica1 com o objetivo de realizar experiências de cinema num abrigo de idosos e acompanhar as ressonâncias desses encontros para a formação docente, já que as atividades seriam realizadas pelos alunos do curso de Pedagogia e demais licenciandos interessados. O trabalho começou num abrigo que atende cerca de 80 idosos na cidade de São João del-Rei, Minas Gerais (MG), situado ao lado do campus da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), onde lecionamos.
Nesse primeiro projeto, saímos da escola para o “asilo”, ensaiando “fazer escola” em territórios outros, dentro e fora dos edifícios escolares, no pensamento e na vida, como nos inspira Kohan (2013, p. 138), e tomando o cinema como nossa “matéria” a ser compartilhada num encontro intergeracional (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014). O cinema foi nosso elo comum, o elemento do qual partimos, amparados na igualdade das inteligências, sem ensinar um saber sobre o filme, mas convidando cada um a percorrer a própria aventura intelectual e estética, que é ao mesmo tempo também coletiva, o que significa correr o risco dessas descobertas e da imprevisibilidade do encontro com os idosos (RANCIÈRE, 2011).
Dessa primeira iniciativa, foram produzidos alguns textos2 com os “resultados” dessa pesquisa, nos quais focamos os laços que essa experiência tece com a formação de professores, a escola e a infância dentre outras especificidades do campo pedagógico. Apresentamos o trabalho em eventos, ouvimos as impressões dos colegas e, aos poucos, fomos descobrindo o quanto ainda tínhamos para aprender e experimentar com o campo e seus desafios diários.
Assim, resolvemos repetir a experiência (repetir até ficar diferente, como nos ensina Manoel de Barros) num abrigo de idosos na cidade vizinha: Tiradentes, MG. É desse lugar específico que se trata esta escrita. O Lar de Idosos - Abrigo Tiradentes - foi inaugurado em 1954, pelo senhor José Meireles, morador da cidade de Tiradentes, para abrigar idosos e, na época, pessoas em vulnerabilidade, que não possuíam família. Algumas dessas pessoas, as quais chegaram ainda jovens na década de 1970, continuam no Abrigo até os dias atuais. A Instituição, sem fins lucrativos, possui cerca de 20 idosos com idades distintas.
Uma das motivações que nos levou a procurar por essa Instituição é a proximidade da UFSJ com a cidade de Tiradentes e pelo fato de não haver tantos projetos de extensão da Universidade nessa cidade. Outro motivo é porque queríamos continuar atuando com os idosos e, como já tínhamos um projeto acontecendo em São João del-Rei, queríamos estendê-lo para outro Abrigo, acreditando que o cinema poderia ser uma experiência interessante para os idosos desse lugar e para nós da Universidade.
A proximidade com os idosos e as experiências de exibição cinematográfica que tivemos no projeto anterior, na cidade de São João del-Rei, nos forneceram critérios que auxiliaram na curadoria dos filmes a serem exibidos nesta segunda localidade. Por um lado, já tínhamos a sistematização3 de uma curadoria no campo de curta-metragens nacionais infantis de produção independente, por conta de atividades anteriores. A partir desse material, adicionamos outros critérios de escolha que fomos percebendo na relação com os idosos e, dessa forma, outros recortes de seleção foram acontecendo.
Assim, o cuidado com necessidades especiais de escuta, visão ou outra condição sensorial, foram alguns dos critérios que nos ajudaram a selecionar o repertório fílmico, o qual, preferíamos exibir filmes nacionais ou dublados além de sempre atentar para a qualidade técnica desses dispositivos e dos suportes de exibição.
Além disso, tomando as imagens em movimento como co-criadoras de realidades, sonhos e imaginários, atravessando nossas próprias imaginações e rompendo os limites entre o que vivemos, lembramos e fabulamos, acolhíamos também referências cinematográficas que os moradores nos traziam de suas vidas, exibindo filmes de suas preferências e afetos. Este foi sendo um modo delicado e discreto de desenvolvermos conversas e nos conhecermos melhor, aproximando e reinventando novos afetos e memórias juntos.
Neste texto, compartilhamos uma qualidade de olhar que consideramos um pouco mais densa e lenta sobre os acontecimentos dessa experiência específica no Lar de Idosos ‘Abrigo Tiradentes’. Ela tem nos feito pensar para além da educação, na própria vida, num processo de formação que escapa da tarefa pedagógica unidirecional, e nos ajuda a compreender o envelhecimento e a velhice como um processo e modo de pensamento não restrito a uma etapa cronológica da vida, mas um acontecimento que pode nos atravessar, transformar e afetar a qualquer tempo.
Aconteceu: chegar a um abrigo de idosos
A entrada no abrigo representa para muitos idosos o fim de uma vida, mas é também, paradoxalmente, o início de outra se entendemos que a vida se estende em sucessões de mortes parciais (DELEUZE, 2013b). O que acontece neste intervalo entre um passado vivido e um presente por vezes dolorido, que faz força para atualizar-se, diante do qual, muitas vezes, os idosos resistem, tentando, literalmente, fugir, escapar, negar?
Começamos este texto compartilhando reflexões sobre a chegada dos idosos ao Lar de Idosos - Abrigo Tiradentes - como um “acontecimento”, uma experiência, cujos sentidos que se abrem entre um fim e um começo estão à espreita de serem significados. O “acontecimento” não se resume ao fato em si da entrada do idoso no abrigo (e às implicações psicossociais, políticas, afetivas etc.), mas ao que escapa a esse fato: “Como se o acontecimento nascesse dentro da própria impossibilidade da linguagem dizer dos sentidos dos encontros corpóreos, uma fissura comunicativa que movimenta a criação de sentidos que não se fixam” (WUNDER, 2008, p. 79).
Os sentidos para essa chegada são instáveis como um inverno que ainda é ao mesmo tempo em que a primavera está para chegar, quase chegando, à espera, mas ainda não é. Dias quentes, ventos frios. Céu azul, chuva fina. O inverno parece não ter ido embora, mas também já não está mais. As flores se abrem, mas ainda não é primavera. É nesse limiar que o acontecimento emerge, “no estranho local de um ainda-aqui-e-já-passado, ainda-por-vir-e-já-presente” (ZOURABICHVILI, 2009, p. 19).
Que vidas são possíveis nesse intervalo entre vidas, ou entre mortes, que começa dentro do Abrigo? O que morre e o que nasce? Como o cinema pode gerar e multiplicar sentidos nesse (entre)lugar, sendo imagem que se inventa em fricção com a vida, arte do inexprimível e do enunciável? (DELEUZE, 2013b).
Há pessoas que chegaram muito novas, cresceram com a história do Abrigo e, fazendo do espaço um lar, tornaram-se felizes moradores. Outras acabaram de chegar e ainda estranham as perdas de referências. Há aqueles saudosos de casa, dos filhos e dos familiares. Os caminhos, para se chegar lá, traçaram diversas trajetórias, multiplicaram diferentes e contraditórios sentidos.
Há idosos, nem tão idosos, que mantêm acesas as lembranças das relações passadas e a esperança de retomá-las. Há aqueles, cuja toda lembrança pertence à vida vivida naquele Abrigo. Alguns nos desafiam a entender sua própria linguagem. Outros nos provocam a participar de seus silêncios, de seus olhares.
Ao desconhecermos o passado dessas pessoas, podemos construir com elas uma nova memória, um novo “presente”, e compartilhar, assim, desse “acontecimento”, “como a emergência de algo novo, uma rachadura, linha do sentido rasgada, desfiada, triturada, esmigalhada que abre forças de pensamento” (WUNDER, 2008, p. 83). Criar a possibilidade de uma sessão de cinema, estando com os idosos num “pre(s)-ente”, é coabitar junto um instante prévio, interrompido e indefinido, que está por vir, que está sempre à espreita para existir e desaparecer, como é a própria vida, como são as imagens de um filme projetado sobre a parede, apoiados na potência do cinema em ampliar paisagens, gerar pensamentos, multiplicar sentidos.
Ali, quem está conosco é o Nonato, que gosta de assistir aos filmes, que sente saudade da sua casa, dos seus amigos e do seu filho e sempre se lembra de algum outro filme que já conhecia relacionado àquele a que está assistindo. Interessa-nos promover momentos nos quais os moradores do Abrigo possam se relacionar com outro tipo de produção (diferente da televisiva), que estabeleçam suas conexões, cada um ao seu modo. Não importa como cuidaram de si e do(s) outro(s). Importa a relação que emerge do nosso encontro, a qual, acreditamos ter a potência de gerar uma nova rede de afetos.
Assim, procuramos construir uma relação com os moradores que escapasse do cuidado como gesto de caridade e dependência. Desse modo, não “levamos cultura” e distração com o cinema; não nos amparamos na imagem de uma velhice institucionalizada, dependente e frágil. Se em algum momento tais características emergem, nós a tomamos como singularidades próprias a toda vida humana, fruto do território que criamos ao estarmos juntos. Em nosso modo de “abrigar”, portanto, vislumbramos outras estéticas para o cuidado, amparados no encontro como instante em que um outro campo intersubjetivo se cria, porque abre em nós um outro que desconhecíamos, mas, que, de algum modo, sempre esteve virtualmente presente e possível (CHERIX; COELHO JUNIOR, 2017; ORLANDI, 2014).
Ambientação e ritmo: o espaço/lugar para o acontecimento
Às 15 horas da quarta-feira é hora de pegar a estrada a caminho do ‘Abrigo Tiradentes’. Lá, chegamos por volta de 15h30 e começamos a arrumar a grande sala, onde ficam os moradores. Sempre trabalhamos em duplas ou trios, pois há muito o que fazer: montar o equipamento, retirar o aparelho de televisão do lugar para dar espaço à projeção, colocar cortinas de tnt pretas para escurecer o ambiente, pois há muitas janelas e portas de vidro no local, organizar as poltronas e sofás para ficarem numa posição melhor, selecionar o filme, testar a caixa de som, convidar os moradores a nos ajudarem a escolher o que iremos ver (embora já tenhamos feito uma pré-seleção) etc. Esse ritual é repetido todas as vezes.
Em meio a essa montagem e criação de uma ambiência para o cinema acontecer, damos atenção, na medida do possível, para as perguntas e para ouvir histórias que alguns dos moradores querem nos contar. Mas não é apenas o excesso de luz que é filtrado pelo tnt, não é só a televisão que dá lugar à projeção colorida ou preta e branca, não é só o diálogo do telejornal ou telenovela que é substituído por caixas de som, não é só uma parede branca que ganha texturas, contornos, profundidade, cores. A repetição semanal desses gestos cria um ritmo e um espaço para a nossa chegada e a do cinema e cria, também, expectativa nos moradores, instaurando um outro ritmo no ambiente físico e subjetivo, um novo espaço/lugar, na sala conhecida.
O Abrigo, portanto, não é, apenas, um lugar material demarcado pelas paredes, janelas, poltronas, televisão e móveis que regulamentam a rotina da vida comum. Lugares são também redes de relações, lugares de encontro, adornados por dispositivos de afetos, comportamentos, subjetividades, sempre provisórios.
Para Oliveira Junior (2009, p. 23):
[...] o lugar não é um dado em si, mas produto das tensões e das disputas entre as muitas práticas e narrativas que se dobram sobre ele, concluiremos também que, nos dias que correm, conhecer o espaço é também pensar sobre como ele é inventado diariamente diante de nós pelas câmeras fotográficas e pelas narrativas da tevê, e sobre como ele é criado em nossas próprias práticas educativas, onde aparecem muitos mapas, fotografias, filmes, pinturas e outras tantas imagens.
A ambientação necessária para que o cinema possa acontecer nesse lugar parece criar um outro lugar. Por isso, inventamos um ambiente-cinema numa sala de estar, criamos uma prática (educativa, de espectador, de cinema) naquele espaço, transformando-o em outra coisa. E fazemos essa transformação não só do espaço, mas também o transformamos com o discurso, com a narrativa que fazemos sobre esse espaço: agora, é cinema!
A primeira sessão de cinema - encontro, generosidade, acontecimento
Chegamos ao Abrigo para a primeira sessão de cinema na semana seguinte a uma Festa de Aniversário dos moradores daquele mês. Nessa ocasião, havia comes e bebes, e música. Os moradores estavam muito felizes e havia bastante gente entre amigos e familiares.
A nova instalação, construída nos fundos de uma casa antiga onde a Instituição funcionou por mais de 60 anos, está cercada de algumas árvores frutíferas e uma horta bem cuidada. Sua arquitetura quadrangular comporta um jardim ao centro, com aconchegantes janelas de madeira e uma porta de vidro transparente, que une o fora e o dentro: o salão principal onde os idosos passam a maior parte do dia juntos e o jardim externo por onde chegam as visitas.
Dona Abóbora, Adeodata e Nelson nos viram aproximar e abriram portas e sorrisos. “Vocês vieram conversar com a gente?”, perguntavam entusiasmados, e Nelson segurava em nossos braços para falar nos nossos ouvidos: “Você traz fumo sabiá pra mim?”, pedido que ele faz insistentemente. Surpreendemo-nos. Não foi uma recepção usual. Afinal, o encontro entre “desconhecidos” costuma causar certo estranhamento, desconfiança, receio e medo.
No texto Um gosto pelos encontros, Orlandi (2014) nos leva a pensar no outro, um outrem, como um “fora” que vibra e abre mundos possíveis em nós, colocando em jogo outra experiência de sentir, memorar, imaginar e pensar, que desestabiliza eixos e provoca rachaduras no eu. Quando isso acontece, vivemos um “encontro intensivo”, que pode ser aberto por pessoas, textos, obras; pelo cinema.
Nessa qualidade de encontro, o outro não é motivo de fuga ou medo, mas condição para o próprio “encontro”, que, por sua vez, é condição ainda para o sentir e o pensar. “O sentir e pensar são afetados por conexões diferenciais que se lhes impõem de fora, justamente como acontece nesse conceito de outrem como abertura de mundos possíveis” (ORLANDI, 2014, p. 7).
Pelo acolhimento incondicional que ofereceram aos que chegavam de “fora”, sejam nós, o cinema, nossa presença/alteridade, pensamos que nesse primeiro dia os moradores do Abrigo nos possibilitaram um “encontro intensivo”. Mesmo nos conhecendo tão pouco, demonstraram mais desejo de contato do que de distância, como se estivessem à espreita dessa experiência.
Havíamos planejado exibir o filme A música segundo Tom Jobim, de Nelson Pereira dos Santos (2012), nesse primeiro dia, mas tivemos problemas técnicos, os quais impediram a sua projeção, o que gerou uma frustação em todo o grupo. Diante da impossibilidade de realizarmos a primeira sessão, não escondemos nosso lamento e compartilhamos com o grupo que fizemos de tudo para tentar rodar o filme, porém sem sucesso. A generosidade com que fomos compreendidos e acolhidos em nosso fracasso reforça nossa compreensão acerca da abertura dos idosos em compor um território conosco: a generosidade como acontecimento.
Esse modo como fomos recebidos nos remeteu ao conceito de “hospitalidade”, que Gallo (2015b, p. 5) apresenta a partir da obra de René Schérer. Buscando fazer frente à xenofobia francesa dos anos 1980 e 1990, o filósofo defendia o cultivo de uma virtude de hospitalidade para com o estrangeiro.
Para Gallo (2015b), havia em Schérer um sentimento utópico de que a globalização permitiria uma desterritorialização capaz de nos universalizar para além dos territórios patrióticos, fazendo de todos nós, hóspedes do mundo e, por consequência, hóspedes uns dos outros. Talvez, as tantas vidas já deixadas para trás por cada um dos moradores, e as novas vidas que se reiniciam ao chegar ao Abrigo, criem condições para uma vida sem limite de casas, pátrias, laços. É como se no Abrigo todos fossem estrangeiros de suas próprias vidas.
O cinema, os encontros, os gestos - acontecimentos
O que pode o cinema num Abrigo de Idosos? O que esses moradores experimentam com os filmes? O que pode acontecer nesse espaço/lugar/tempo?
Um ambiente é modificado, criado, inventado para dar lugar a uma “sala de cinema”. Filmes são vistos, revistos e avaliados para entrarem ou não na lista dos filmes para o Abrigo. Uma pequena curadoria é feita. Na “curadoria” dos filmes que levaríamos para o ‘Abrigo Tiradentes’, procuramos selecionar aqueles que, de alguma forma, pudessem ser interessantes para a diversidade de pessoas que compõem aquele grupo. A experiência em outro Abrigo (FERREIRA; OMELCZUK, 2018) nos auxiliou nessa tarefa. Filmes curta e média metragens nos parecem mais interessantes pela possibilidade de assistir, conversar e, se quiser, assistir de novo. Além disso, há a possibilidade de assistir a mais de um filme num único dia.
A luz intensa também auxiliou na escolha. Filmes coloridos são melhores dos que os em preto em branco para a primeira exibição da tarde quando o Sol adentra por uma porta lateral. Mas depois que o Sol não se faz presente, os filmes em preto e branco ficam muito bons. Os filmes com poucas falas também nos pareceram valiosos, pois algumas pessoas ouvem com dificuldade e a relação com o filme se dá muito mais pelas imagens do que pelo som. Filmes com legendas, não são adequados.
Assim, criamos a possibilidade do encontro dos moradores com os filmes e, por que não, do nosso encontro com os moradores e com os filmes também, numa nova relação, contaminados pelo local e pelas pessoas com quem compartilhamos a sessão; o encontro como acontecimento.
Alguns moradores já viram muitos filmes. Têm mais repertório, como é o caso de um senhor, que quase não conversa. Perguntamos se ele gostava de cinema e ele respondeu: “Gosto, mas já assisti muito. Eu trabalhava no cinema em Belo Horizonte, muitos anos”. Naquele dia, havíamos levado Mazzaroppi e, como ele estava numa posição que não dava para ver a projeção, perguntamos se ele não queria assistir. Ele respondeu que não, porque achava “muito bobo”. Então, insistimos se ele gostaria de assistir a algum outro que ainda não teria visto ou se gostaria de rever algum, e ele disse: “Não, já assisti muita coisa”.
Numa outra sessão, exibimos o filme Up - Altas aventuras! O Abrigo estava barulhento, as pessoas estavam agitadas, uma panela de pressão girava e produzia mais ruído. O cotidiano foge ao planejamento, escapa. Mesmo assim, os personagens atraíram a atenção dos moradores. Uns riam, outros se lembraram do padre do balão “voando”, comentaram sobre a disposição do “velhinho”, da “falação” do menino, e disseram que o filme era muito bom.
Percebemos, nessa ocasião, alguns gestos que destacamos: um morador, mais contido, gargalhou em alguns momentos; um senhor, bem debilitado, cobriu a cabeça com um lençol; uma moradora “pediu” se poderia ir ao banheiro no meio da sessão; uma senhora, que é muito inquieta, ficou o tempo todo sentada; uma moradora, que havia acabado de se mudar para o Abrigo, sentou-se no chão chupando “bico” (chupeta) no início do filme; depois, levantou-se e saiu; voltou e perguntou se era a Masha. Em seguida, achou que uma aluna, voluntária do projeto, havia rido dela, porque ela chupa “bico”, e ficou brava.
Uma única sessão, um único dia, um único filme são aberturas para o acontecimento, para o devir, para o encontro dos moradores com os filmes, conosco, com eles mesmos. Esses gestos irrompem do silêncio, de um cotidiano aparentemente dado, aparentemente sem muitas surpresas. Gestos que poderiam ser lidos com Daniel Lins (2012, p. 19) de que a vida “demanda a ser reinventada. Agente primordial, sem o qual a vida seria uma imensa repetição; o homem é o artista de sua própria vida”.
Devir entre gestos e linguagens dos idosos, do cinema
Concordando com Deleuze e Guattari (2012, p. 129) de que “O fator T, fator territorializante, deve ser buscado em outro lugar: precisamente no devir-expressivo do ritmo ou da melodia, isto é, na emergência de qualidades próprias (cor, odor, som, silhueta...)”, suspeitamos que o cinema no Abrigo reconfigura a cena, desloca e abre processos subjetivos ainda não codificados. Desterritorializa o cinema, os moradores, nós mesmos.
No entanto, reterritorializamos esse espaço num lugar comum para o nosso encontro às quartas-feiras. Ambientação, ritmo, velocidade, tempo, imagens diferentes para eles e para nós também, um acontecimento que poderíamos pensar com Deleuze e Guattari (2012, p. 51) como do tipo
Aion, que é o tempo indefinido do acontecimento, a linha flutuante que só conhece velocidades, e ao mesmo tempo não para de dividir o que acontece num já-aí e um ainda-não-aí, num tarde demais e um cedo demais simultâneos, um algo que ao mesmo tempo vai se passar e acaba de se passar.
Mas esse tempo tem relação com o tempo Cronos, que, ao contrário do Aion, é o tempo da medida, das fixações. A relação se dá com o agendamento de uma data, de um dia da semana e em um determinado horário: das 15h30 às 17h00. Mas, talvez, pare por aí a relação com Cronos, porque o que irá se passar dali por diante é da ordem do Aion.
Nesse sentido, perguntamo-nos, por exemplo, onde os idosos “estão” quando estão vendo um filme? Vários moradores não olham para a projeção, outros não se importam em sentar-se numa cadeira de onde não podem ver a “tela” e há ainda aqueles que se levantam e saem a qualquer momento do filme. Gestos que alteram a ordem e o tempo Cronos previsto da sessão.
Assim, os idosos realizam uma composição própria com o cinema, da ordem de Aion, que não se fixa na relação com o filme em si, mas como um acontecimento que se dá no “meio”, entre eles e o cinema. Numa perspectiva Cronos, talvez identificássemos essa postura como um desinteresse ou rebeldia. Entretanto, se pensamos que “Uma linha de devir não se define nem por pontos que ela liga nem por pontos que a compõem: ao contrário, ela passa entre os pontos, ela só cresce pelo meio” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 95, grifo nosso), ampliamos nossa compreensão sobre os gestos e acontecimentos possíveis com o cinema no Abrigo.
Nosso desafio é estar com os idosos neste tempo Aion que habitam ao invés de querer chamá-los a estar conosco em nosso tempo e linguagem. Quando um idoso permanece na sala de projeção, porém de costas, podendo sair se quiser, mas seu gesto é ficar, há algo que o i-move a estar com o grupo, que não é racional, que não é explicado, que está para além ou para antes da relação com o filme. O que “i-move” esses gestos, que estão antes da linguagem, e tantos outros que descrevemos: um lençol sobre a cabeça, uma chupeta, uma gargalhada intempestiva?
Viemos aprendendo com Deligny (2018) a não forçar que os idosos retornem à condição da racionalidade e coerência da “linguagem perdida”, normatizadora, conhecida e compartilhada entre nós, como numa imposição que visa a semelhantizar o outro. Em seu trabalho com crianças autistas, Deligny (2018, p. 141) não visava a inculcar-lhes uma linguagem, mas a aprender com elas mais sobre nós mesmos: “Qual é nossa busca? Apontar o reparável - outra estrutura, não a que sustenta a linguagem -, a que permite o agir da iniciativa”, diz ele. Seu objetivo não era fazer as crianças falarem, mas descrever e acompanhar o que move esses gestos primordiais e, assim, aprender o que impulsiona também as nossas ações antes da linguagem aparecer e significar as coisas.
Entendemos que os idosos, assim como as crianças autistas, estão na “vacância” da linguagem. Estas, talvez, nunca tenham chegado a ela e os idosos estão a perdê-la. Em ambos os casos, o objetivo não é (re) inseri-los no simbólico, mas criar oportunidade para uma vida comum, que se traduza num “encontro/acontecimento”, que afirma e acolhe esses gestos, uma singularidade, um modo de vida e subjetividade outra, muitos modos de viver a velhice num abrigo, de se relacionar com imagens em movimento sobre uma parede (DELIGNY, 2018).
Retomando alguns pressupostos iniciais, com o cinema não pretendemos “ajudar” os idosos a resgatar uma memória ou recuperar uma estrutura de linguagem: “Saber envelhecer não é permanecer jovem, é extrair de sua idade as partículas, as velocidades e lentidões, os fluxos que constituem a juventude desta idade” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 73, grifo nosso).
Entendemos, com Deleuze e Guattari (2012, p. 67), que essa “juventude” é atualizar-se num modo singular de velhice, é o próprio “devir”, que parte das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche: os gestos num tempo Aion, um ritmo e racionalidade às margens da modernidade, sem a linguagem como única estrutura da existência.
O “acontecimento” de chegada no Abrigo rompe com a égide arbórea da família e dá lugar para a construção de uma vida em rede e de um território comum, condição fundamental de todo homem, que, “em qualquer lugar ou época, é ser de rede, isto não significa uma universalidade do coletivo, nem sequer da comunidade no sentido de um circuito fechado, mas a necessidade de uma ‘saída’” (PELBART, 2016, p. 302). Pensamos que esse território comum é criado com os idosos na experimentação do cinema, onde emergem gestos sem finalidade, gestos/fluxos de “saída”, “distância daquilo que sufoca” e determina ser “velho”, ser humano.
Não se trata, portanto, de usar o cinema para reintegrá-los na trama social, resgatar uma memória perdida e facilitar a linguagem, mas de acolher gestos, facilitar encontros. Temos a impressão de que o cinema e os idosos compartilham algo em comum... Entre cinema e idosos, opera-se um encontro, um acontecimento.
O cinema é vizinho da velhice nesse tempo lugar que é (e não é) fim e começo ao mesmo tempo, argila modelável antes de ser forma, o enunciável. O humano não se define pela normatividade da linguagem, pelo fazer, intenção e coerência dos gestos, ou pela criação de sentidos em causa e efeito. Os idosos no Abrigo não nos deixam esquecer disso. O cinema, por sua vez, não é circunscrito ao filme, nem limitado à história contada ou à narrativa desencadeada. Ele é matéria inteligível não linguisticamente formada, e por isso compõe com os gestos dos idosos em “devir” (DELEUZE, 2013a).
O cinema no Abrigo força um novo espaço/tempo, no espaço/tempo mesmo, para fazer uma analogia com Gallo (2015a). Nesse nosso território, os encontros, os gestos, a linguagem e o próprio cinema são reinventados, reconfigurados, fugindo às expectativas, a uma lógica posta. Há espaço para a invenção, para o acolhimento, para os afetos, para as generosidades, para os acontecimentos.