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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.34 no.72 Uberlândia set./dez 2020  Epub 03-Fev-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v34n72a2020-51666 

Artigos

A comunidade dos amantes: anacronismo e aforismo em questão em Blanchot e Derrida 1

The lovers community: anachronism and aphorism in question in Blanchot and Derrida

La communauté des amoureux : anacronisme et aphorisme en question chez Blanchot et Derrida

Mayara Joice Dionizio* 
http://orcid.org/0000-0002-8372-9395

Gabriel Bonesi Ferreira** 
http://orcid.org/0000-0002-8081-0243

*Doutoranda em Filosofia na Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: mayaradioniso@hotmail.com

**Doutorando em Filosofia na Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: gabrielbonesiferreira@hotmail.com


Resumo

A reflexão sobre o pensamento da “comunidade”, especificamente no séc. XX e, em especial, por pensadores franceses, é tema de diversas obras. Em torno dessa temática, pensadores como Bataille, Deleuze, Foucault, Blanchot, Jean-Luc Nancy e Derrida deram importantes contribuições. Apesar de Derrida recusar a noção de comunidade colocando em seu lugar a noção de coletividade, as concepções que fundamentam uma experiência de comunidade/coletividade são próximas: alteridade; différance; escritura; acontecimento e presença de uma ausência. Nesse contexto, a possibilidade de uma interseção entre esses conceitos, a partir da obras de Blanchot e Derrida, permite pensar a experiência da comunidade em sua relação com a escritura.

Palavras-chave: Comunidade; Coletividade; Escritura; Alteridade; Acontecimento

Abstract

The reflection about the thought of “community”, specifically in the XX century and, specially, by French thinkers, is the theme of many works. Around this theme, thinkers/intellectuals like Bataille, Deleuze, Foucault, Blanchot, Jean-Luc Nancy and Derrida gave important contributions. Despite Derrida's refusal of the notion of community putting in its place the notion of collectivity, the conceptions that ground an experience of community/collectivity are close: otherness; differance; writing; event and absent presence. In this context, the possibility of an intersection between these concepts, starting from the works of Blanchot and Derrida, allows to think the experience of community in its relation to the writing.

Keywords: Community; Collectivity; Writing; Otherness; Event

Résumé

La réflexion sur la pensée de la “communauté”, spécifiquement au XXe siècle, et particulièrement par les penseurs français, fait l’objet de plusieurs travaux. Autour de ce thème, des penseurs tels que Bataille, Deleuze, Foucault, Blanchot, Jean-Luc Nancy et Derrida ont apporté d'importantes contributions. Bien que Derrida rejette la notion de communauté, en la remplaçant par la notion de collectivité, les conceptions qui fondent une expérience communauté/collectivité sont proches : altérité ; la différance ; écriture ; événement et présence d'une absence. Dans ce contexte, la possibilité d'une intersection de ces concepts, basée sur les travaux de Blanchot et de Derrida, permet de réfléchir à l'expérience de la communauté dans sa relation avec l'écriture.

Mots-clés: Communauté; Collectivité; Écriture; Altérité; Événement

Em La communauté inavouable (1983), Blanchot parte de um importante texto de Jean-Luc Nancy, La communauté désoeuvrée (1980), para pensar as relações estabelecidas entre a “exigência comunista” e a im-possibilidade de uma experiência de comunidade. Ao pensar tais conceitos, comunismo e comunidade, sugere-se já uma certa ideia de pertencimento entre comuns. Conceitos que são conhecidos, primeiramente, em seu “próprio-impróprio abandono” (BLANCHOT, 2013, p. 12) experienciados ao longo da história mediante a frustração em se realizar e que, segundo Blanchot, é o que justamente nos liga a tais conceitos. O que leva inevitavelmente à pergunta: “o que se dá com esta possibilidade que é sempre engajada de uma maneira ou de outra em sua impossibilidade?” (BLANCHOT, 2013, p. 12). Para Blanchot, se o comunismo tem a igualdade enquanto fundamento e, justamente por isso, exclui em um primeiro momento a exigência da comunidade, é porque antes todas as necessidades de todos os homens devem ser satisfeitas igualmente. Dessa forma, a suposição comunista é de uma sociedade imanente, ou seja, uma sociedade transparente que seja realizada por ela mesma, exigência de um homem imanente que reconhece sua origem individual e nos outros homens a si. Portanto, um homem repetido, mortal porque pode se alienar e imortal em sua imanência.

No entanto, se tal relação entre iguais passa a ser pensada não mais como relação do Mesmo com o Mesmo, mas com o Outro, seria possível ainda se pensar em “comunidade”? Para Blanchot, essa alteridade impõe a própria questão sobre o que é uma comunidade. Ou seja, é na relação com o Outro, pela diferença, em que comungo a estranheza com o Outro, portanto, em minha insuficiência que busco algo em comum com este Outro. Não se trata, então, como na concepção de comunismo, de uma imanência, mas sim, de uma necessidade de outrem para se efetuar. Isto não significa que o sujeito busque outro por uma associação visando ser inteiro, mas que quando se coloca em questão a consciência de sua insuficiência aparece ... e, portanto, se expor ao outro é se expor à incompletude. A maneira da insuficiência se realizar é: “ou ele é sozinho, ou ele não se sabe sozinho a não ser se ele não o é” (BLANCHOT, 2013, p. 17). Este é o fundamento da comunidade: a alteridade. É por essa relação de reconhecimento e dissemelhança que surge a força da comunidade, ou seja, por meio de pensamentos que só surgem em conjunto.

O ser busca ser, não ser reconhecido, mas ser contestado: ele vai, para existir, em direção ao outro que o contesta e por vezes o nega, a fim de que ele não comece a ser senão nessa privação que o torna consciente (está aí a origem de sua consciência) da impossibilidade de ser ele mesmo, de insistir como ipse, ou caso se queira, como indivíduo separado: assim, talvez, ele ex-istir-á, provando-se como exterioridade sempre prévia, ou como existência de parte à parte estilhaçada, não se compondo senão ao se decompor, violenta e silenciosamente (BLANCHOT, 2013, p. 17).

Nesse sentido, a relação é sempre fundada sobre a consciência de apelo ao outro que, para Blanchot, tem seu princípio na finitude que condiciona a própria relação com a comunidade, finita, condição própria dos seres que a compõe e da própria condição de toda comunidade. O que não significa dizer que há uma comunhão em busca de uma unidade que em sua “supraindividualidade” se coloca tal como o indivíduo imanente de Nancy, por assim dizer. Para Blanchot, principalmente em defesa de Bataille2, a comunidade não se constitui na experiência de uma fusão, em uma espécie de “folie à plusieurs”, mas sim, de uma posição de existência insuficiente que não pode existir sem esta insuficiência. Assim, a comunidade não é uma unidade, não se afirma nem se nega em suas diferenças, quaisquer desses movimentos decairia em sua anulação. Não se trata também da partilha de uma posição comum: “nada fazer além de manter a partilha de ‘alguma coisa’ que precisamente parece sempre já ter-se subtraído à possibilidade de ser considerada como parte a uma partilha: palavra, silêncio” (BLANCHOT, 2013, p. 19). No entanto, se a experiência da insuficiência é a experiência que fundamenta a comunidade, é necessário delimitar a que se refere esta insuficiência, que em princípio parece de fácil compreensão: “a base de todo o ser”. Mas, tanto para Blanchot quanto para Bataille, a insuficiência não deve ser definida a partir da suficiência, ou seja, a insuficiência se aprofunda quando se realiza, pois não busca se findar, mas antes se preencher de falta que é sua própria realização. Por isso a insuficiência se liga a contestação que é o outro, aquele que com sua existência de diferença, que difere de mim, me contesta sendo outro. A autossuficiência se coloca então como a possibilidade de não se pôr em questão, como recusa da alteridade: “rebaixamento diante de si que assim se supra-eleva” (BLANCHOT, 2013, p. 20).

Portanto, a insuficiência dada, e aprofundada pela alteridade, traz em si outra consciência de suspensão, outra forma de se pôr em questão. Ou seja, se na relação com o outro percebo a minha falta e, por essa falta, me torno consciente de minha insuficiência, essa lucidez se estende também à minha relação comigo sobre a minha possibilidade e determinação de ser finito. Nesse sentido, Blanchot questiona, para além do reconhecimento do outro em sua distancia infindável, o que nos permite violentamente no colocar em causa senão a finitude de outrem? Ao presenciar a morte do outro presencio a única possibilidade de morte possível a mim enquanto vivo, tomo a morte alheia de tal maneira que me desloco de mim para vivenciar o distanciamento do outro e, assim, me abrir à comunhão, à comunidade. Desta forma, ao presenciar a morte de outrem, compartilho a “solidão do evento” sendo, para quem morre, já o incompartilhável. Por isto, a comunidade é fundada a partir da insuficiência atrelada à finitude, ou seja, a consciência sobre a insuficiência também tem sua urgência pelo evento da morte. Desta forma, pode-se dizer que a comunidade se realiza nas diferenças, na separação, contesta o pertencimento pensado a partir da unidade e interioridade e impõe a consciência do Fora. Em sua mortalidade, a comunidade, como diz Nancy: “ela [comunidade] é constitutivamente ordenada à morte daqueles que se chama, talvez de maneira errônea, de seus membros” (NANCY apud BLANCHOT, 2013, p.22).

Trata-se de assumir a própria impossibilidade de comunidade, portanto, impossibilidade de imanência e do sujeito imanente, pois a comunidade se realiza em sua impossibilidade. Por este aspecto, Blanchot, afirma que a comunidade não pode ser uma célula da sociedade, nem uma fusão comunitária, muito menos produzir algo, sua função é o serviço prestado a outrem no momento da morte. Relação na finitude em que ao mesmo tempo em que sou supliciado, suplico àquele que assiste à minha morte e, assim, reafirmo a finitude do outro, quando morro, por meio da angústia sobre a minha morte assistida. A comunidade, então, é o acontecimento dessa ambiguidade, só pode existir na fissura, na existência que abarca a negação da existência, de uma interioridade que só existe enquanto exterioridade. Portanto, que só se realiza em acontecimentos de alteridade e identidade, de palavra sem partilha, já que a própria palavra é a exposição à morte, a linguagem só existe pela diferença, nesse sentido, apesar de minha fala apelar ao outro, eu nunca o afeto, a palavra já existe em uma relação de impossibilidade. A comunidade, dessa maneira, se liga à escritura.

Blanchot reconhece em três grupos a evocação de uma comunidade também relacionada à exigência da escrita: os surrealistas3 que em “todas individualidades ‘desagradam’, permanece sendo uma tentativa notável em sua insuficiência: pertencer a ele é quase imediatamente, formando um contra-grupo, renunciar a ele violentamente” (BLANCHOT, 2013, p.25); Contre- Attaque, movimento que, por meio de panfletos jogados aos ventos de Paris, trazia em sua urgência a necessidade do fora como ação política, luta que, portanto, só podia acontecer na rua, movimento que não se associava a nenhum partido, engajado apenas em insurgir o pensamento de comunidade. Por último, a experiência que se deu com Achéphale (1936 a 1939), para Blanchot, este foi o grupo que permitiu Bataille uma possibilidade extrema de comunidade, sobrepondo-se ao Collège de Sociologie4, manifestação obscura, enigmática onde “cada membro da comunidade não é somente toda a comunidade, mas a encarnação violenta, díspar, estilhaçada, impotente, do conjunto dos seres que, tendendo a existir integralmente, têm por corolário o Nada onde eles já de antemão caíram” (BLANCHOT, 2013, p.26).

Acéphale foi uma experiência na qual, Bataille, colocou à prova o pensamento da comunidade, experiência em que seus membros buscavam a comunidade para se afirmarem na mesma intensidade que buscavam a negação de si. A partir desse absoluto de si, do vazio de si, dessa luta entre a suficiência e a insuficiência, reunida em um membro, mas também em toda a comunidade, é que a possibilidade de relações absolutas entre seres absolutos, de tão absoluta, passa a excluir a possibilidade de relação. Portanto, segundo Blanchot, o sacrifício humano de um membro que desejava morrer com a consciência sobre a morte que a comunidade traz seria, precisamente, assinar essa relação de separação. A comunidade de Acéphale, ao tomar como projeto um sacrifício, assume a impossibilidade da morte em sua possibilidade: recebe-se a morte do sacrificado que só poderia selar o pacto, que fundamenta a comunidade, morrendo, ainda que consensualmente. Desta forma, também se rompe com a própria renúncia da comunidade em não se produzir obra, produz-se obra de morte.

Esses exemplos dados por Blanchot, em grande medida, coadunam com a reflexão derridiana acerca de uma coletividade enquanto acontecimento, a uma democracia cunhada em um por-vir, e de que forma isso se liga à instituição literária, à escritura e à im-possibilidade de tudo dizer. Em Essa estranha instituição chamada literatura (1966), Jacques Derrida, a partir dessa im-possibilidade de dire tout, acena para a problemática da instituição fictícia, ou ainda, para institucionalização da ficção. Ou seja, a prerrogativa literária daria ao escritor uma licença a dizer tudo, com isso estaria protegido da censura religiosa ou política. Nesse contexto, Derrida direciona uma crítica também à concepção de que haveria uma “função crítica” (DERRIDA, 2014, p.52) da literatura que a limitasse a um sentido ou a um ideal regulador. Isso não seria dizer que ela - a literatura - não poderia contribuir à reflexão sobre o que sejam tais ideais críticos, de sentido e reguladores, mas, antes, ressaltar que a função crítica da literatura se liga, no Ocidente, a limitar a censura e a ausência dela, à política e, portanto, à institucionalização da literatura. Nesse sentido, dizer tudo significaria uma abertura para se suspender a lei ou transcendê-la. Tal prerrogativa assinala para outras duas instituições que existem interseccionadas, de modo que uma alimenta a outra seja afirmando ou negando a sua diferença: a instituição do Direito e a instituição política. Ou seja, o direito a tudo dizer e a possibilidade de uma democracia que permitiria tudo ser dito. Esta última, sublinhada como democracia por vir (DERRIDA, 2014, p.51). Sim, democracia que se in-define messianicamente de forma emancipatória, utópica, real estruturalmente, mas que só existe em um por vir. Uma democracia que é tão presente quanto ausente, que existe supondo e ao mesmo tempo aniquilando qualquer forma de predicado de si. Mas o que se colocaria como uma possibilidade de dizer tudo em uma democracia por vir? Derrida rejeita a noção de comunidade5, entretanto, mais próximo da compreensão blanchotiana de uma comunidade enquanto acontecimento, de uma comunidade sem comunidade, sua compreensão nesse sentido se dá também a partir da reflexão literária, da institucionalização da literatura, e dos acontecimentos que se dão por meio da literatura.

A possibilidade de tudo dizer se mostra, no Ocidente, como uma arma política que requer responsabilidade. Ou seja, tal como é pensada, a literatura, em seu poder de transcendência às instituições, pois esperasse que ela diga tudo, traz esse encargo de responsabilidade no que se refere às instituições ideológicas, ao cuidado com o que é dito, com a possibilidade de tudo dizer. Neste contexto, a crítica derridiana consiste nessa noção de responsabilidade: “[e]sse dever de irresponsabilidade, de se recusar a responder por seu pensamento ou por sua escritura diante de poderes constituídos, talvez seja a forma mais elevada de responsabilidade” (DERRIDA, 2014, p.53). É nesta posição de irresponsabilidade responsável em relação à transcendência institucional revolucionária, que só é possível pela experiência da escrita, que se dá o acontecimento de uma comunidade/coletividade. Derrida chama este acontecimento de promessa de um por vir, de uma democracia por vir. Nesse sentido, não se trata de uma democracia que acontecerá, que virá, mas sim, aquela que existe apenas em sua relação com o por vir, em seu caráter indeterminado. A im-possibilidade de uma coletividade em que tudo pode ser dito se confirma, desse modo, em sua indeterminação. A ficção demonstra, então, o adentrar no simulacro da “verdade” e provocar um certo distúrbio por meio da escrita nas instituições e isso se faz possível, ou impossível, justamente como promessa de um dia viver a experiência de dizer tudo e, enfim, o animal encontrar uma morada, uma presença na língua.

Neste contexto, mais próximo de Blanchot, Derrida reconhece no acontecimento literário a coletividade a partir da noção também de hospitalidade. A proximidade ao pensamento blanchotiano advém da mesma compreensão em relação ética da alteridade levinasiana6. Assim, a reflexão derridiana traz os termos de uma hospitalidade ao que é estrangeiro, ao que é outro, portanto, a filosofia primeira é a do acolhimento ao que não sou eu em sua estranheza própria. A relação com outrem é a interrupção que funda a própria relação com o acontecimento: o que advém e não se aloja sob nenhum horizonte explicativo, “vinda do outro como acontecimento [...] mas sem horizonte de expectativa e de prefiguração profética" (DERRIDA, 1996, p. 27). A literatura, neste contexto, se coloca como o espaço do deixar acontecer o pensamento, livre de compromissos com a verdade e o logos, experiência do por vir como estrangeiro, espaço de inapreensão. O que se encena em outra aproximação com o espaço literário blanchotiano: o neutro.

Um acontecimento: isso que, no entanto, não acontece, o campo da não-chegada e, ao mesmo tempo, do que, acontecendo, acontece sem se localizar num ponto qualquer definido ou determinável - o advento do que não se constitui como uma possibilidade una ou de conjunto [...] implicado numa palavra que lhe é exterior (BLANCHOT, 2010a, p. 19).

Neutro, o neutro, como isso soa estranho para mim (BLANCHOT, 2010a, p. 22).

Palavra que busca apreender o inapreensível, mas que só é palavra pelo o que sobra, pelo que apreende, o rastro. Nesse sentido, in-apreensível, pois busca conter o outro, dizer sobre o outro quando, em um movimento duplo, preserva a singularidade e depõe contra a mesma singularidade. Tal ruptura é efetuada pelo neutro, o murmúrio desconhecido. Assim, a escrita perde seus horizontes de transcendentabilidade na medida em que se calca na experiência de alteridade absoluta: toda e qualquer relação de identidade, de transgressão ao que não sou eu, da identidade textual seja de escrita ou leitura se tornam uma relação com o desconhecido, com a diferença. A denúncia em relação ao conceito, portanto, tanto para Blanchot quanto para Derrida, se assenta na im-possibilidade de apreensão do neutro/acontecimento. Portanto, em sua reflexão interseccionada com o espaço literário, a filosofia é convocada a se renovar em seu dizer suspendendo categorias como verdade e certeza, dando lugar a repensar o entre-lugar.

Entretanto, como pensar uma comunidade sobre um lugar ausente, sobre o por vir, como pertencer a uma língua, a uma escritura, sem uma relação de identidade, sem uma apropriação? Em Politiques de l´amitié (1994) Derrida assinala essa condição im-possível sobre a qual se dá o deslocamento necessário à reflexão da desvinculação própria à vinculação, à singularidade solitária dos “membros” de um acontecimento coletivo: [I]ls vous invitent à entrer dans cette communauté de la déliaison sociale, qui n'est pas nécessairement une société secrète, une conjuration, le partage occulte d'un savoir ésotérique ou cryptopoétique7 (DERRIDA, 1994, p. 54).

A ruptura anacrônica da comunidade amorosa

Dessa forma, é proposto o deslocamento, a ruptura como relação, ou seja, a relação como ausência de relação, comunidade ausente de comunidade, palavra indizível. Pensar um coletivo, tanto para Derrida quanto para Blanchot, se daria mediante a “[u]ma coletividade singular e plural, feita de singularidades irredutíveis ao homogêneo ou ao hegemônico, mas que se pense sempre e continuamente desde os fundamentos como sem fundamento único (DERRIDA, 2014, p.39). Ou seja, segundo Derrida, um coletivo poderia acontecer desde que fosse de forma descentrada e não anarquista. Isso significaria que esse coletivo não se constituiria em uma hierarquia, também não se trataria de um coletivo anarquista na medida em que se daria por um esforço reflexivo, uma experiência literária própria à expropriação8, pela demanda não calculada do outro e não por um grupo voluntário.

Neste sentido, duas leituras de Blanchot e Derrida, para além dos movimentos/experiências literárias que orbitaram ao redor de um acontecimento coletivo - tais como o surrealismo, segundo a leitura blanchotiana, ou a coletividade de artistas de Van Gogh, como exemplo derridiano - há duas situações literárias, ficcionais, que ilustram uma relação existente em sua falta, em sua separação: a leitura derridiana de Romeu e Julieta (XVI) e a leitura blanchotiana de Tristão e Isolda (IX).

Em L’aphorisme à contretemps (1987), Derrida apresenta sua leitura do romance shakespeariano Romeu e Julieta, ou melhor, sua leitura incompleta a que chama de aforismo a contratempo e que ilustra a união desunida que é própria ao pensamento da comunidade e que se dá pela ruptura que é a escritura e a ficção. Derrida privilegia, neste contexto, o contratempo e a anacronia que não se dá somente na peça de Romeu e Julieta, mas na própria iterabilidade histórica da obra de Shakespeare: “[i]sso se deve à estrutura de um texto, ao que chamarei, para ser sintético, sua iterabilidade, que, a um só tempo, finca raízes na unidade de um contexto e, imediatamente, abre esse contexto não saturável para uma recontextualização. Tudo isso é histórico do começo ao fim” (DERRIDA, 2014, p. 98). Isso, segundo Derrida, sublinha a própria condição de historicidade que só é possível pela iterabilidade do rastro, o que implica que na própria estrutura anacrônica e de contratempo presente em Romeu e Julieta: o refazimento, a recontextualização da história dos personagens demonstra a iterabilidade desde a escritura shakespeariana destes mesmos personagens. Ou seja, a possibilidade de refazê-los em escritura já é um gesto iterável, pois não havendo uma origem, escrevê-los é repeti-los. Já neste sentido, a im-possibilidade de um lugar de origem dos personagens shakespearianos assinala o eterno deslocamento, o que é próprio à ruptura: comunidade sem comunidade. Ou ainda, a des-historização não é própria ao texto, mas o seu deslocamento iterável é a própria condição de historicidade.

Com isso, Derrida não busca depor contra a unicidade da obra. Ou seja, é importante assinalar que a obra é singular justamente porque é iterável. A obra Romeu e Julieta, por exemplo e em sua iterabilidade, é única pois ela carrega um nome próprio. Entende-se, aqui, o nome próprio como aquilo que é singular a si e, portanto, insubstituível. Deste modo, pensar a composição da obra a partir de sua assinatura em determinado gênero e contexto é próprio à unidade/singularidade e não contrário. Dito de outro modo, apesar de se inserir dentro de uma pertença, ou seja, comum, é na combinação singular do que é comum que a obra se constitui como única. Entende-se a unidade da obra a partir da combinação inefavelmente inédita e imediata. Acontece, por sua vez, entre o dentro e o fora da singularidade e da pertença por se tratar de uma experiência paradoxal em que ao mesmo tempo que é coletiva é única, pois faz uso dos signos comuns de modo exemplarmente único, por isso, iterável. O que lhe garante como obra é sua possibilidade de divisão, de repetição, portanto, se insere em uma estrutura legível: falar e escrever é repetir. Neste movimento, a obra se perde para se fazer legível, para ser compartilhada, é desta forma que Derrida defende que a singularidade nunca é fechada, pois sempre faz parte da “generalidade conceitual do sentido” (DERRIDA, 2014, p. 106). Em sua contingência, a singularidade sabe que a sua condição de existência é a possibilidade, inclusive, de diferir de si mesma para que possa se fazer iterável. Assim, seu campo de abertura possibilita que a repitam, enquanto obra singular, justamente para lhe conferir sua singularidade: uma junção única e partilhável de elementos.

Derrida, a partir do anacronismo iterável, ou da história de contra-tempos e, ainda, do contratempo que é a história, assina, ou contra-assina um texto sobre Romeu e Julieta. A escritura sobre esse texto é a evocação do contra-tempo que se dá na escritura, no jogo da existência: a história de dois amantes que se separam em um contra-tempo por uma carta que não chega. Por não recebê-la, Romeu encontra Julieta sob efeito de um medicamento, em sono profundo, que a faz passar por morta. Não sabendo disto, Romeu acredita que Julieta está morta e toma um pharmákon/veneno e se suicida. Julieta acorda, vê Romeu morto e crava um punhal em seu próprio peito:

[A] interrupção absoluta da história, enquanto desdobramento de uma temporalidade, de uma temporalidade una e organizada. [...] Eu amo porque o outro é outro, porque seu tempo jamais será meu. A duração viva, a própria presença de seu amor permanece [resta] infinitamente afastada da minha, afastada de si mesma no que a estende para a minha, e isso até no que se gostaria de descrever como a euforia amorosa, a comunicação extática, a intuição mística. Só posso amar o outro na paixão desse aforismo. Tal aforismo não advém, nem sobrevêm como a infelicidade, o infortúnio ou a negatividade. Ele tem a forma da afirmação mais amante [amante: que imanta] - é a sorte do desejo. Não cortando apenas no estofo do desejo, espaça. O contratempo diz algo da topologia ou do visível, abrindo o teatro (DERRIDA, 2014, p. 33).

Paixão por aforismo que também acontece em Tristão e Isolda. A lenda celta, primeiramente transcrita em versos pelo escritor francês Béroul por volta de 1170, retrata o romance entre Tristão e Isolda: Tristão era um cavaleiro responsável por buscar a princesa Isolda - descendente de fadas -, para se casar com o rei da Grã-Bretanha, seu tio Marcos. Tristão vai à Irlanda e busca Isolda, na volta, ambos bebem uma poção amorosa e se apaixonam. Isolda acaba por se casar com o rei e mantém encontros amorosos com Tristão que acaba banido do reino e se casa com Isolda das mãos brancas. Tristão é ferido por uma lança, em seu leito de morte pede pela presença de Isolda. Sua esposa - Isolda das mãos brancas - o engana e diz que ela não virá. Ao chegar e encontrá-lo morto, Isolda morre de tristeza. Aforismo que se estabelece como relação infinita em uma inacessibilidade que enseja, em forma de amor impossível, àquilo que a ética levinasiana afirma como uma responsabilidade pelo outro que te torna refém. Neste contexto, Blanchot diz:

[A]inda de que mesmo a reciprocidade da relação de amor, tal como representa a história de Tristão e Isolda, paradigma do amor compartilhado, exclui tanto a simples mutualidade quanto a unidade em que o Outro se fundiria no Mesmo. O que leva novamente a pressentir que a paixão escapa à possibilidade, escapando, para aqueles que são convocados por ela, a seus próprios poderes, à sua decisão e mesmo a seu desejo, nisso a estranheza mesma, não tendo relação nem com aquilo que eles podem nem com aquilo que eles querem, mas os atraindo para o estranho onde eles se tornam estrangeiros para si mesmos, numa intimidade que os torna, também, estrangeiros um para o outro (BLANCHOT, 2013, p. 60).

Tal paradoxo, para Blanchot, simboliza aquilo que se busca chamar de comunidade. Neste contexto, comunidade dos amantes é o que acontece por uma injunção silenciosa, por se dar em meio à morte, que se dobra à exigência do impossível. Assim, a morte, o desaparecimento que se assemelha apenas àquele que se inscreve na escritura e que está sempre em busca daquela palavra por vir que é também a que ressoa por seu, e em seu, desdobramento. Pensar essa comunidade então, em grande medida, é pensar que no desaparecimento, no fim tão espontâneo quanto o começo, como nesses romances, um amor perdido antes que pudesse advir. Dessa forma, para Blanchot, a morte de Tristão e, para Derrida, a morte de Romeu, consagra o fim incerto, o acontecimento, que é a comunidade. Inconfessável, porque a comunidade não se confessa, não se entende como comunidade, “já que cada vez que se falou de sua maneira de ser, pressente-se que não se aprendeu dela senão aquilo que a faz existir por ausência?” (BLANCHOT, 2013, p. 76). Nesse sentido, Blanchot confia ao paradoxo de que, por ser inconfessa, a comunidade se torna confessa: para não se falar da comunidade é preciso já falar.

Trata-se, então, de uma distinção demarcada entre o que consagra a comunidade como eletiva e a comunidade tradicional. Nesse sentido mesmo em que Derrida convoca a coletividade a partir de um reforço reflexivo e expropriativo à pertença. A comunidade tradicional seria, então, aquela que é demarcada por limites culturais e políticos; a eletiva é aquela que se reúne frente à escolha. Contudo, o mesmo que valeria para a diferenciação do amor enquanto comunidade legal - vinculada à lei conjugal - e comunidade que se ausenta de se nomear, pois já implicaria em uma ordinariedade do amor. Neste contexto, Bataille argumenta:

Mas o que se pode dizer desses movimentos ‘convulsivos’ que são chamados a valorizar o mundo? Trata-se do amor (feliz ou infeliz) que forma sociedade na sociedade e recebe desta seu direito a ser conhecido como sociedade legal ou conjugal? Ou então, trata-se de um movimento que não suporta nome algum - nem amor nem desejo - mas que atrai os seres para lança-los uns em direção aos outros (dois a dois ou mais coletivamente), segundo seus corpos ou segundo seus corações e seus pensamentos, arrancando-os à sociedade ordinária? No primeiro caso (definamo-lo de modo simples demais pelo amor conjugal), está claro que a ‘continuidade dos amantes’ atenua sua exigência própria pelo compromisso que ela estabelece com a coletividade que lhe permite durar fazendo-a renunciar àquilo que a caracteriza: seu segredo por trás do qual se furtam ‘execráveis excessos’ (BATAILLE apud BLANCHOT, 2013, p. 66).

Deste modo, a comunidade dos amantes não se restringe a qualquer forma, a qualquer tradição. Ou seja, o problema se torna a instituição, ainda que permissiva, que buscaria legitimar a comunidade a enquadrando, retendo dentro de limites o seu acontecimento. Portanto, a comunidade se mostra como a destruição da sociedade e da autorização para existir como comunidade: é como se dois seres estivessem juntos em celebração do fracasso da promessa de uma união perfeita e, por isso, de uma mentira que se efetiva em seu não acontecimento. Formam uma comunidade justamente por não se fundirem, não comungarem em si, pela contiguidade, a relação que implica em uma não-relação. Assim, esta coletividade comum, posta por Derrida e Blanchot, adianta a soberania do acontecimento da morte - de Romeu e Julieta e de Tristão e Isolda - na medida em que esta partilha não partilhável faz presente, nestes romances, a morte pela qual não se morre. Ou seja, a morte de um assistida por outrem e que se faz sem obra. Dito de outro modo, sem obra porque o sujeito da morte não poderá iterá-la e caberá ao sujeito que assiste, que compartilha da morte de outrem, a inexpressão própria a palavra que possibilite representar, iterar a morte alheia.

Portanto, para Blanchot e Derrida, trata-se de uma busca de exposição ao outro, na esperança de um por vir partilhável entre esses sujeitos, que só expõe a solidão, a condição unitária daqueles que vivem a negatividade da comunidade, a comunidade em sua não existência, em sua unicidade in-compartilhável. Uma espécie de pensamento, de memória por derrisão, própria à comunidade em sua dissolução em que deixa a impressão de nunca ter sido e ainda podendo ser. Esses romances, para Blanchot e Derrida, vêm contra-assinar, por meio da morte, do desaparecimento por meio da escritura, a comunidade que só pode se realizar pelo modo da perda. Ou seja, se realizar já perdendo aquilo que nunca possuiu, aquilo que era promessa, por vir, pois o eu e o Outro são anacrônicos na medida em que são solitários, ainda que juntos, separados por um não “ainda”, por um entre-lugar.

La voile et le voile: o aforismo

Entretanto, pensar a comunidade em sua disjunção, ou a comunidade dos amantes por meio do aforismo anacrônico leva à problematização do que é o aforismo neste sentido. Se Derrida, em Esporas de Nietzsche (1976), utiliza a palavra voile em sua dupla acepção, que pode ser definida a partir do artigo que a antecede9, é porque neste jogo binário, no qual o aforismo se insere, coloca-se uma questão de estilo. Ou seja, propriamente de gênero de escrita e de identidade: pois já a partir da própria escrita - no caso de Derrida a crítica é direcionada ao francês, mas cabe ao português perfeitamente - se dá a exigência de posicionamento a favor de um estilo que se encontra implicado em uma estrutura articulada entre feminino e masculino. Ao pensar a obra aforística de Nietzsche, Derrida argumenta que tal filósofo teria feito uso de todos os gêneros. Portanto, o estilo nietzschiano “pode também, com sua espora, se proteger contra a ameaça terrificante, cega e mortal (do) que se apresenta, se dá a ver com teimosia: a presença, portanto, o conteúdo, a coisa mesma, o sentido, a verdade - a menos que isso não seja o abismo deflorado em todo este desvelamento da diferença” (DERRIDA, 2013, p. 24).

Neste contexto, a espora que Derrida convoca, por meio de uma operação semântica e histórica, é aquela que irrompe a superfície, que perfura o véu do binarismo, seja em quaisquer estruturas que faça uso. Em relação a Nietzsche, Derrida acena para a espora que simboliza a mulher de Nietzsche, mulher que opera à distância e faz Romeu parecer “maternal e doméstico” (DERRIDA, 2013, p. 27). Assim, a mulher é pensada como uma abertura ao que está longe, como aquela que opera, em sua sedução, o seu poder. De acordo com a leitura que Derrida faz de Nietzsche, e do Nieztsche heideggeriano, o que fica em jogo é a relação entre a mulher e o véu, ou melhor, entre a mulher como verdade a ser desvelada, ou ainda, sobre a história da verdade.

Entretanto, a comunidade, em relação aos amantes, se liga à questão do estilo aforístico em Nietzsche a partir de uma heterogeneidade do texto, não dos gêneros. Ou seja, Derrida compreende que a análise nietzschiana se coloca, sobre-tudo, sobre os efeitos dos referentes chamados de mulher, verdade, castração e “efeitos ontológicos de presença ou ausência” (DERRIDA, 2013, p. 69). Com isso, Derrida ressalta que independente do gênero, da verdade ontológica, Nietzsche se ergueu de modo heterogêneo em sua antítese contra o sistema. Para tanto, a leitura derridiana apresenta três posições pelas quais a leitura de Nietzsche deve ser analisadas, provocadas: 1) da total desqualificação da mulher em prol de uma verdade, dos dogmas, da metafísica e do falo; 2) a mulher como castração em uma dupla acepção - verdade e não verdade - mesmo sabendo do desprezo falocêntrico decide se manter por astúcia e ingenuidade no jogo; 3) A mulher é reconhecida, para-além desta dupla negação, afirmada como potência afirmativa, dissimuladora, artista, dionisíaca. Ela não é afirmada pelo homem, mas se afirma ela mesma, nela mesma e no homem (DERRIDA, 2013, p. 71).

Deste modo, Derrida compreende que, a partir destas três posições, resta sentenciar que não há uma mulher em si, uma verdade em si e isso é assinalado na obra nietzschiana em sua assinatura plural de mulheres. Ou seja, a obra nietzschiana apresenta uma tipologia variada de figuras femininas, tais quais como mães, irmãs, esposas, prostitutas, virgens, entre outras. Isso, segundo Derrida, se deve à relação estabelecida entre a pluralidade e a verdade, assim não há uma verdade, mas uma pluralidade de verdades, assim como mulheres: “então, não há verdade em si da diferença sexual em si, do homem ou da mulher em si, ao contrário, toda ontologia pressupõe, esconde esta indecidibilidade da qual é o efeito de arrazoamento, apropriação, identificação, verificação de identidade” (DERRIDA, 2013, p. 76). O texto, nietzschiano aforístico, assume a sua marca irredutivelmente plural e assina a pluralidade das marcas que formam inclusive as categorias de verdade e feminino.

Mas, afinal, o que relaciona a questão da mulher, da verdade e do estilo em Nieztsche com a ruptura da comunidade? Pensando inclusive na indecibilidade própria à ontologia de uma diferenciação entre os gêneros? Para Derrida, a questão colocada, em relação à mulher e à verdade a partir da obra de Nietzsche, coloca em suspenção a oposição entre verdade e não verdade. No que compete à filosofia, a possibilidade de pensar, a partir do que a questão da mulher instaura, possibilita uma não decidibilidade filosófica. Assim, há uma inapreensão hermenêutica do sentido verdadeiro em relação à escritura ou ao pensamento filosófico.... Em relação à escritura, tal questão ascende à abertura do sentido, da verdade e de uma ontologia, de modo que “[os] valores de produção do produto ou de presença do presente - isto que se desencadeia é a questão do estilo como questão da escritura, a questão de uma operação esporeante mais poderosa que todo conteúdo, toda tese e todo sentido” (DERRIDA, 2013, p. 78). Neste contexto, a espora nietzschiana é própria à questão da mulher e à escritura de aforismo - e, assim, própria à comunidade - na medida em que rasga o véu de modo iterável: desfazendo a oposição entre velamento e desvelamento, desfazendo a verdade como produção de interpretação hermenêutica e, por fim, suspendendo toda relação e necessidade de presença. Derrida ainda questiona: “[d]e-limitar, desfazer, desfazer-se, tratando-se do véu, isto não retorna ao mesmo desvelar?” (DERRIDA, 2013, p. 78).

Para Derrida, a problematização entre verdade e mulher, na obra de Nietzsche, não trata da mulher em relação à questão sexual, pois antes de tudo se relaciona com aquilo que o pensamento heideggeriano posicionou à margem: a fabulação da verdade do ser. A reflexão, então, a partir da diferença sexual se submete à questão de uma ontologia geral, fundamental da verdade do ser, uma vez que a diferença sexual, no ponto que interessa à reflexão derrridiana sobre a escritura, nem trata-se de uma questão. O que se afirma também em Blanchot.

Em “Reflexões sobre o niilismo”, Blanchot questiona as interpretações feitas de Nietzsche a partir de um modo decídivel, ou seja, a forma como uma tradição fundamentada na unidade e discurso lógico lê a obra nietzschiana. O véu da verdade, no sentido blanchotiano, é rompido também por uma linguagem de ruptura, pelas palavras espaçadas que servem de alojamento à diferença. Deste modo, Blanchot denuncia que é possível, foi possível em muito pela irmã de Nietzsche, Förster-Nietzsche, que ávida por publicar logo os manuscritos que tinha do irmão, cedeu à pressão das editoras e decidiu organizar a obra nietzschiana, a partir de então, em uma possível ordem. Tal ordem, afirma Blanchot, deu lugar a uma leitura contínua, passível de organização. Entretanto, que leva à própria reinvindicação da comunidade, viva, apenas, em sua própria dispersão e irrealização, não permite reivindicar, uma vez que não há unidade ou conjunto. Contudo, Blanchot reconhece um valor de uma filosofia da interpretação, em que um centro de pensamento em torno dos temas nietzschianos convirjam para uma interpretação unitária deste pensamento. Se faz possível, desta forma, compreender a filosofia nietzschiana a partir de um conjunto em que “[é] possível se perguntar se ela [a filosofia nietzschiana] melhora Kant, se o refuta, o que deve a Hegel, o que lhe toma, se é dialética, se põe um ponto final na metafísica, se a substitui [...] Tudo isso, de certa forma, pertence a Nietzsche” (BLANCHOT, 2007, p. 114).

Porém, seu reconhecimento aforístico revela uma linguagem outra que pertence à pluralidade e ao fragmento, ao pensamento da comunidade. Os aforismos nietzschianos carregam, de acordo com Blanchot, a solidão de um pensamento viajante, a um fragmento que é completo em si, é cheio de sua insuficiência, justamente por não buscar ser completo em sentido. E, em sua forma de fragmento, não busca outros fragmentos para que se juntem em um sistema, ou mesmo em um pensamento por afinidade de conjunto, é antes de tudo a renúncia do todo. Deste modo, o fragmento se coloca fora. Recusar o todo implica, então, recusar a ordem argumentativa e racional do juízo, da dialética, do sistema: como fazê-lo se a filosofia é onde o pensamento de conjunto tem seus direitos? Neste sentido, a filosofia nietzschiana, ao se livrar da Unidade, assume o risco da insuficiência, não por ser insuficiente, mas por não se importar com a contradição. Disse Nietzsche: [p]arece-me importante que nos livremos do Todo, da Unidade, ...é preciso esmigalhar o universo, perder o respeito pelo Todo” (NIETZSCHE apud BLANCHOT, 2007, p. 116). Portanto, a fala nietzschiana não se contrapõe ao todo em seu sentido contraditório, em sua função crítica incide contrariamente aos filósofos da Unidade, entretanto, compreende que sua fala só pode existir a partir da linguagem que recusa. Dito de outro modo, o retorno nietzschiano às palavras é consciente da necessidade de seu pensamento de renúncia que só pode se dar por meio das palavras.

Com isso, o pensamento aforístico só se faz possível mediante o pluralismo. Movimento este que concentra em sua desconcentração uma dupla experiência: a ambígua, da multiplicidade; e aquela experiência que nega o pluralismo, pois pensa o fragmento como fala abundante dizendo a mais quando tudo já foi dito. Este anacronismo, que se dá também no aforismo, traz à experiência do pensamento da comunidade a intermitência, a descontinuidade. Ou seja, a possibilidade de significação, de atribuir sentido já está sempre diferenciada, iterada, por isso impossível ao acontecimento da comunidade. Poderíamos dizer, então, que a possibilidade de sentido do acontecimento/escritura que é a comunidade deveria ser designada pelo entre-lugar, pelo neutro, ou a diferença. Isso também implicaria em dizer que o pensamento da comunidade se constrói com a finalidade de proteger um des-locamento próprio à alteridade que é fonte de toda (não) relação e toda escritura enquanto apelo, enquanto combate a fissura, à separação. E que a comunidade, em seu acontecimento, se identifica com a ruptura, com o deslocamento, alterando-se entre idêntico e não idêntico. Porém, para Blanchot, não poderíamos, deste modo, reconhecer na comunidade apenas uma substituição de uma relação por uma não relação, ou ainda, plenitude por interrupção, uma reunião dispersa, na medida em que o pensamento e a linguagem da comunidade não buscam conter o devir, mas, sim, o provocá-lo ao enigma que lhe pertence. Assim, a comunidade existiria em sua negação do centro, em sua negação originária, em sua negação pela unidade e assemelhamento, em sua afirmação de Eterno Retorno, portanto, iterável.

Referência:

BATAILLE, Georges. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1970-1988, t. I a XII. [ Links ]

BLANCHOT, M. A comunidade inconfessável. Tradução: Eclair Almeida Filho. São Paulo: Lume Editora, 2013. [ Links ]

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DERRIDA, J. Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevista com Jacques Derrida. Tradução: Marileide Dias Esqueda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. [ Links ]

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NANCY, Jean-Luc. La communauté désoeuvrée. Paris: Éditions Galilée, 2014. https://doi.org/10.3917/puf.zarka.2015.01.0481Links ]

1Pesquisa realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

2O termo comunidade foi um dos temas cunhados primeiramente por George Bataille, em especial em sua obra Acéphale, como ressalta Blanchot: “[a] comunidade de Acéphale não podia existir como tal, mas somente como iminência e retirada: a iminência de uma morte mais próxima que toda proximinadade; retirada prévia daquilo que não permitia que ninguém se retirasse dela […] ‘o desencadeamento sem fim [sem lei] das paixões’, só podia se cumprir pelas paixões já desencadeadas, elas mesmas se afimando na incofessável comunidade que sua própria dissolução sancionava” (BLANCHOT, 2013, p. 29).

3“Talvez o futuro do surrealismo esteja ligado a essa exigência de uma pluralidade que escapa à unificação, excedendo o todo (ao mesmo tempo que o supõe e reclama-lhe a realização) e mantendo, diante do Único, incansavelmente a contradição e a ruptura. Aquilo que distinguiria portanto o grupo dos outros grupos - células, seitas religiosas, seminários de estudos, associações literárias ou filosóficas, colégios reunidos em torno de um nome ou de uma tendência ou ainda grupos que se formam apenas para dar lugar momentaneamente a neuroses de grupo e para estudá-las - é bem esse traço: ser muitos, não para realizar alguma coisa, mas sem outra razão (de resto escondida) a não fazer existir a pluralidade dando-lhe um sentido novo. Um sentido que traem todas as palavras pelas quais se indica o movimento de congregar, de reunir: ‘coletividade’, ‘assossiação’, ‘re-ligião’ e, em primeiro lugar, ‘grupo’. Digamos: o surrealismo, não uma afirmação coletiva, mas plural ou ‘múltipla’” (BLANCHOT, 2010b, pp. 182-183).

4Experiência anterior à experiência de Acéphale, o College de Sociologie foi formado em 1930 por Bataille, Leiris e Roger Caillois. Tal associação buscava uma experiência de comunidade em torno das noções de sagrado e sacrifício somada a um forte apelo político, “sociologia sagrada”. Acéphale surgiu nesta, e desta, experiência. Entretanto, é com Acéphale que Bataille aprofunda estas noções.

5Tal como assinala Evando Nascimento no prefácio para Essa estranha instituição chamada literatura: “Derrida em diversos momentos marcou distância em relação à ideia de comunidade. Segundo seu biógrafo, isso começou no momento em que se viu segregado em sua Argélia natal e obrigado a frequentar uma escola exclusiva da chamada comunidade judia”.

6“Pelo livro de Emanuel Levinas, onde me parece que ela [filosofia] nunca falou de maneira tão grave, em nosso tempo, contestando - corretamente - nossas maneiras de pensar e até nossa fácil reverência à ontologia, somos chamados a tornar-nos responsáveis por aquilo que ela essencialemente é, acolhendo com o brilho e a exigência infinita que lhes são próprias, precisamente a ideia doOutro, quer dizer, a relação com outrem. É como um novo ponto de partida da filosofia e um salto que ela e nós mesmos seríamos convocados a dar” (BLANCHOT, 2010a, p. 98); Emanuel Levinas, Totalité et infini. Essai sur l’extériorité (Martinus Nijhoff, La Haye).

7“Eles o convidam a entrar para esta comunidade de desagregação social, que não é necessariamente uma sociedade secreta, uma conjuração, o compartilhamento oculto do conhecimento esotérico ou criptopoético” (tradução minha).

8Donde o anonimato do livro, que não se dirige a ninguém e que, pelas relações com o desconhecido, instaura aquilo que Georges Bataille (pelo menos uma vez) chamará de “A comunidade negativa: comunidade dos que não têm comunidade” (BLANCHOT, 2013, p. 39).

9Voile, antecedida pelo artigo no feminino “La”, indica a vela de um veleiro. Quando antecedida pelo artigo no masculino “Le”, indica um véu, que mantém escondido, oculto. Derrida, neste contexto, trabalha a duplicidade que a palavra assume para ensejar às metáforas de Nietzsche, em um primeiro plano. Em um segundo contexto, a ambiguidade do termo se coloca como questionamento acerca da oposição binária e metafísica entre gêneros como algo suplementado, portanto, a ser descontruido, conforme consta, em nota, em Esporas de Nietzsche ( DERRIDA, 2013, p. 23).

Recebido: 21 de Novembro de 2019; Aceito: 08 de Dezembro de 2020

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