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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.34 no.72 Uberlândia set./dez 2020  Epub 03-Fev-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v34n72a2020-53130 

Artigos

Educação e experiência

Education and experience

Educación y experiencia

Rainri Back dos Santos* 
http://orcid.org/0000-0002-4015-3859

*Doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor na Universidade de Brasília (UnB). E-mail: rainri.back@yahoo.com.br


Resumo

Este artigo visa aprofundar o conceito de experiência tal como Hegel o concebe na Fenomenologia do Espírito. Para tanto, me basearei nas interpretações de Jean Hyppolite e, sobretudo, de Heidegger. Ela, a experiência, será compreendida como aspecto determinante de uma concepção filosófica de educação. O artigo se divide em seis sessões. Primeiro, justifico por que a experiência, como Hegel a compreende, contribui para a elaboração de uma concepção filosófica de educação. Depois, abordo aspectos básicos da consciência, que são a condição de possibilidade da experiência. Em seguida, apresento os dois aspectos ontológicos pelos quais algo se manifesta no horizonte de inteligibilidade da consciência, “ser para” e “ser em si”. Então, preparo as condições para determinar o que significa “experimentar”, erfahren. Enfim, abordo o último aspecto da experiência: o surgimento de um novo objeto. Para concluir, dedico a última sessão às considerações finais onde destaco o sentido formativo da experiência.

Palavras-chave: experiência; educação; consciência; ser; fenomenologia

Abstract

This article aims to develop the concept of experience as Hegel conceives it in Phenomenology of the Spirit. For this purpose, my account will be supported by Jean Hyppolite’s and, specially, Heidegger’s interpretation of experience. Experience will be understood here as a determining aspect of a philosophical conception of education. The article is divided into six parts. First, I justify why experience, as Hegel understands it, contributes to elaborate a philosophical conception of education. Then I address the most basic aspects of consciousness, which are the condition of possibility of experience. Next, I present the two ontological aspects according to which anything manifests itself in the horizon of consciousness’s intelligibility, “being for” and “being in itself”. Then I prepare the conditions to determine what it means “to experiment”, erfahren. Finally, I approach the last aspect of experience: the appearing of a new object. To conclude, I dedicate the last session to the final considerations where I highlight the formative sense of experience.

Keywords: experience; education; consciousness; being; phenomenology

Resumen

Este artículo tiene como objetivo profundizar el concepto de experiencia tal como lo concibe Hegel en la Fenomenología del espíritu. Para ello, confiaré en las interpretaciones de Jean Hyppolite y, sobre todo, de Heidegger. La experiencia se entenderá como un aspecto determinante de una concepción filosófica de la educación. El artículo está dividido en seis secciones. Primero, justifico por qué la experiencia, tal como la entiende Hegel, contribuye a la elaboración de una concepción filosófica de la educación. Luego, abordo aspectos básicos de la conciencia, que son la condición para la posibilidad de la experiencia. Luego, presento los dos aspectos ontológicos por los cuales algo se manifiesta en el horizonte de inteligibilidad de la conciencia, "ser para" y "ser en sí". Luego, preparo las condiciones para determinar qué significa "experimentar", erfahren. Finalmente, abordo el último aspecto de la experiencia: la aparición de un nuevo objeto. Para concluir, dedico la última sesión a las consideraciones finales donde destaco el sentido formativo de la experiencia.

Palabras llave: experiencia; educación; conciencia; ser; fenomenología

Neste ensaio, examino o aspecto fundamental de certa compreensão da educação: a experiência. Aqui, pressuponho a diferença entre duas concepções possíveis de educação. Uma delas, eu a chamo de concepção escolar, pois ela se restringe a conceber a educação a partir da relação entre professor/a e estudantes. A outra, eu a chamo de concepção filosófica, porque ela concebe a educação da maneira mais universal possível. Nesta última, o que define a educação são as experiências graças às quais alguém se torna o que ainda pode ser. É uma concepção evidentemente mais universal, creio, do que a relação específica entre professor e estudantes. Exemplos de concepções escolares da educação são Mazzotti (GHIRALDELLI, 2002, p. 185ss), Flickinger (2010, p. 99) e Rebol (2017, p. 29ss). Para elas, caberia à filosofia da educação refletir sobre e propor alternativas para os problemas da prática pedagógica.

Aqui, ao contrário, a filosofia da educação precisa lidar com questões tradicionais da ontologia, tais como a relação entre experiência e ser, entre ser e devir. Na Propedêutica filosófica, na parte intitulada “Deveres para consigo mesmo”, Hegel (1989, p. 310) apresenta os fundamentos da formação humana. No primeiro parágrafo, ele parte da pressuposição segundo a qual o ser humano revela um “duplo aspecto” (loc. cit.). E cada um impõe um dever específico para consigo mesmo. Por um lado, ele é um “ser natural”, o que lhe impõe o dever de se preservar fisicamente. Mas, por outro lado, ele também é um “ser racional”, o que lhe impõe o dever de se formar (sich zu bilden). Assim, Hegel (loc. cit.) conclui: o ser humano, ao contrário dos animais, “não é por natureza o que deve ser”. Em suma, o ser especificamente humano deve ser realizado.

Ora, a realização do ser do ente1 chamado “humano” ocorre por meio de experiências! Daí a importância de tal conceito para elaborar uma concepção filosófica de educação. Caberia uma justificativa, mesmo breve, sobre a razão de eu não me basear, por exemplo, no conceito de experiência da tradição empirista. Filósofos como Locke, Hume e até mesmo Dewey partem de uma compreensão de experiência demasiado, diria, “empírica”. Em geral, eles pensam a experiência como a relação do ser humano com algo, qualquer coisa, a partir da sensibilidade. Hegel, ao contrário, concebe a experiência como a relação do ser humano com algo a partir da estrutura especulativa da consciência. Daí deriva uma compreensão filosófica de educação bem mais rica em consequências. É o que este ensaio pretende colher a partir de agora.

I

Primeiro, é imprescindível verificar se a maneira como Hegel compreende a experiência pode realmente contribuir com o propósito fundamental deste ensaio de elaborar uma compreensão filosófica de educação. Ora, em Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel, já no primeiro capítulo, Jean Hyppolite (2003, p. 19) destaca algumas vezes a “significação pedagógica” da Fenomenologia do Espírito. Segundo ele (HYPPOLYTE, 2003 p. 27), Hegel sofreu uma influência profunda dos “‘romances de formação’ da época” e, em particular, do Emílio, de Rousseau,2 de modo que a Fenomenologia poderia até ser considerada um “romance de formação filosófica” (ibid., p. 28). Um aspecto fundamental dos romances de formação, conforme Hyppolite esclarece, se encontra no apego inicial do personagem protagonista a alguma convicção importante que, todavia, depois de uma série de experiências, se lhe revelará ilusória.

Por conseguinte, o que a Fenomenologia compartilha em comum com os romances de formação é a posição prévia segundo a qual a experiência é essencialmente formadora. Hegel, na Fenomenologia, “segue o desenvolvimento da consciência, que, renunciando às suas convicções primeiras, atinge através de suas experiências o ponto de vista propriamente filosófico” (HYPPOLITE, 2003, p. 28, grifo meu). Exatamente aí, na natureza formadora da experiência, se funda a “significação pedagógica” da Fenomenologia e, assim, a possibilidade de ela contribuir na elaboração de uma compreensão filosófica da educação. E não é arbitrária a pressuposição, de onde parte Hyppolite, segundo a qual a experiência define a significação geral da Fenomenologia. Ela, a experiência, realmente estrutura toda a obra, como Heidegger ressalta em um ensaio longo, intitulado O conceito de experiência de Hegel:

“Ciência da Experiência da Consciência” reza o título que Hegel coloca no frontispício da obra quando da publicação da Fenomenologia do Espírito no ano de 1807. A palavra experiência encontra-se no meio, em letras gordas, entre as duas outras palavras. “A experiência” designa o que “a fenomenologia” é. (HEIDEGGER, 2002, p. 141, grifo do autor).

II

Enfim, a experiência é o cerne da formação da consciência e, assim, justifica a “significação pedagógica” da Fenomenologia, o que pode ser mais bem demonstrado se eu me detiver na essência da experiência. Eis o que me cabe agora. Em uma perspectiva mais geral possível, o que possibilita a experiência é uma característica fundamental da consciência, graças à qual, inclusive, a vida humana se diferencia da vida animal. É-lhe próprio tanto ser consciência de uma coisa quanto ser consciência de si mesma, e de tal maneira que ambos os aspectos “radicam” na própria consciência. “Não se pode separar a consciência”, diz Hyppolite (2003, p. 39), “daquilo que para ela é seu objeto [...]; porém, se a consciência é consciência do objeto, é também consciência de si mesma. [...] Ambos os momentos radicam nela e são diferentes”.

Cada momento da consciência se caracteriza, por sua vez, por um aspecto mais específico. Ela, a consciência, “[...] é consciência do que é verdadeiro para ela”, diz Hegel (2003, p. 79), “e consciência de seu saber da verdade”. Convém esmiuçar aqui tão bem quanto possível o sentido de tal proposição. Quando a consciência distingue algo de si para se tornar consciente dele, a maneira pela qual a coisa é para a consciência recebe um nome bastante caro à filosofia: “verdade”. Concomitantemente, quando a consciência se volta para o que ela mesma elabora sobre a verdade manifestada pelo ser da coisa, este momento se chama “saber”, palavra igualmente cara à filosofia. Em suma, ser consciente de algo, quando a coisa se manifesta para a consciência, significa ser consciente da verdade; ser consciente de si, quando a consciência se volta para o modo como ela apreende a verdade, significa ser consciente do saber.

Mas há um aspecto sutil e aparentemente desimportante entre os dois momentos: “[...] a consciência distingue algo de si”, diz Hegel (HEGEL, 2003, p. 77, grifo do autor), “e ao mesmo tempo se relaciona com ele”. Em uma primeira aproximação, o que define a experiência é exatamente a maneira como se relacionam a verdade da coisa e o saber da consciência a respeito de tal verdade. Nas palavras de Hyppolite (2003, p. 39, grifo do autor), “[...] ambos os momentos”, ou seja, a consciência de algo e a consciência de si, “relacionam-se um com o outro e este relacionamento é precisamente o que se denomina a experiência”. Para que se revele a natureza da relação de ambos os momentos, é necessário aprofundar fenomenologicamente na estrutura mesma da consciência, a fim de determinar o que significa “ser consciente”.

Heidegger (2002, p. 195) define: “Ser-consciente [Bewusst-sein] quer dizer [...] há algo no estado do sabido”. Mas o que significa a expressão “algo no estado do sabido”? A tradução portuguesa acertou quando, depois de “ser-consciente”, resolveu mencionar entre colchetes a palavra original em alemão, Bewusst-sein, pois assim ela remeteu ao que pode ser compreendido a partir da língua alemã. Bewusst- remonta etimologicamente a bewūst, particípio obsoleto de bewissen, em alemão medieval, que significa resumidamente: “saber avaliar, superar as condições adversas de algo estranho - uma situação, uma atividade etc.”. Porque se define por uma espécie de saber, bewusst- está no campo semântico de um verbo do alemão moderno, wissen, em português, ‘saber’. Ora, Heidegger, eis o ponto importante, recorre ao particípio de wissen (gewusst) ao definir Bewusst-sein como “há algo no estado do sabido [Gewussten]”.3

Em sua origem etimológica, Bewusst-sein significa acolher algo segundo a possibilidade da consciência chamada “saber” [wissen], de sorte que ela saiba, esteja ciente da presença de tal coisa. Em suma, “sabido” - ênfase na forma verbal no particípio - é o modo de ser de qualquer coisa que tenha sido apreendida no horizonte de inteligibilidade da consciência. Se me permitem, uma breve teatralização em meio à aridez técnica do linguajar filosófico. Tudo se passa como se a coisa dissesse assim para a consciência: “A partir de agora, você está ciente de mim, sou sabida por você; a partir de agora, me encontro no estado de ser sabida”. “Mas o sabido é no saber e é enquanto um saber. O sabido é aquilo ao qual a consciência se refere no modo do saber. O que se encontra na referência é o sabido” (HEIDEGGER, 2002, p. 195, grifo meu).

Qualquer coisa presente no horizonte da consciência precisa ser determinada a partir do “ato intelectivo”, por assim dizer, chamado “saber” e se tornar, assim, algo sabido. Então ambos os momentos da consciência - consciência de algo e consciência de si, Verdade e saber - se encontram na mesma condição. A preposição ‘de’, em “consciência de...”, designa uma atividade pela qual o modo de ser de tudo o que se manifesta em seu âmbito se torna inteligível quando se encontra no estado de algo sabido. Portanto, a generalidade daquele “algo” do qual a consciência se distingue e daquele “si” relativo à própria consciência não é suficiente para eximi-los da condição de serem também algo sabido. Ela só pode ser consciente de algo e de si, porque sabe da diferença entre ela e algo do qual se distingue para considerá-lo verdadeiro e porque sabe de si mesma enquanto consciência sabedora de tal verdade.

Eis o sentido, creio, da seguinte observação de Heidegger:

A consciência natural é saber imediato do objecto que ela considera como o verdadeiro. A consciência natural é, simultaneamente, um saber do seu saber do objecto, mesmo quando não se volta expressamente para este saber. A consciência do objecto e a consciência do saber são a mesma [consciência], para a qual ambos, objecto e saber, são algo sabido. Objecto e saber “são para a mesma”. Para a mesma, a consciência mesma, é simultaneamente um e outro. (HEIDEGGER, 2002, p. 202, grifo meu).

III

Há ainda duas últimas características ontológicas4 dos dois momentos da consciência. De uma perspectiva geral, aquele “algo” e aquele “si” ou, para resumi-los, Verdade e saber - ambos são para a consciência, já que não podem se furtar da condição geral de “algo sabido”. De uma perspectiva igualmente geral, quando a consciência distingue de si aquilo de que está sendo consciente, seja a verdade, seja ela mesma, ela passa a compreendê-lo como algo cuja subsistência repousa em si mesmo. Portanto, a condição ontológica geral de ser “algo sabido”, sob a qual se encontra tudo aquilo de que a consciência é consciente, se diferencia em “ser para” e “ser em si”. A depender da perspectiva fenomenológica, ambos definem um modo de ser para “algo” e para “si”, dos quais a consciência se distingue e com os quais ela também se relaciona.

É o que Heidegger procura mostrar na seguinte passagem, difícil de interpretar, cujo desfecho é o que lhe confere um sentido geral:

O sabido é aquilo ao qual a consciência se refere no modo do saber. [...] É-o na medida em que o éparaa consciência. Um tal ente é no modo do “ser para...”. Mas “ser para” é um modo de saber. Neste modo, algo é “para o mesmo”, designadamente para a consciência, para a qual ele é todavia, enquanto o sabido, um outro. No saber, enquanto “ser para”, é algo uma e outra coisa “para o mesmo”. Contudo, no saber, o sabido não só é representado em geral, como este representar visa [meint] o sabido como um ente que é em si [...]. Este ser em si do sabido chama-se verdade. Também a verdade é uma coisa (algo representado) e outra (um ente em si) “para o mesmo”, para a consciência. Ambas as determinações da consciência, o saber e a verdade, se diferenciam como oser parae oser em si”. (HEIDEGGER, 2002, p. 195, grifo meu).

Dada a condição de ambos os momentos, Verdade e saber, serem para e serem em si, Heidegger, com justeza, define a consciência como algo ambíguo por essência, razão pela qual ela pode parecer incompreensível à luz dos princípios da lógica clássica. “A consciência”, diz ele (HEIDEGGER, 2002), “separa, representando, algo de si, acrescenta, porém, a si, o separado. A consciência é em si mesma um diferenciar que o não é”. Pode parecer um paradoxo, mas tal ambiguidade é o que determina mais especificamente aquela relação entre ambos os momentos da consciência pela qual se define a experiência. E tal relação se estabelece na forma de uma comparação do que a consciência sabe com o que a coisa lhe impõe como verdade; comparação cuja complexidade fenomenológica se deve ao fato de a consciência ser ambígua, de ela distinguir e, ao mesmo tempo, sob outra perspectiva, não distinguir algo de si.

Mediante tal comparação, a consciência se põe à prova, pois assim verifica se o que ela sabe sobre a coisa vale apenas para ela ou corresponde efetivamente à coisa considerada em si mesma. Pois bem. Não deveria interessar à consciência saber o que algo é apenas para ela, mas, ao contrário, o que algo é em si mesmo, para além de qualquer possível equívoco que ela possa cometer. Portanto, das duas modalidades ontológicas, ser para e ser em si, ela espontaneamente tende a eleger o modo de ser “em si” como o aspecto ontológico com base no qual ela pretende orientar a relação com aquilo de que está ciente. A consciência busca uma correspondência perfeita entre o que ela sabe e o que a coisa é em si mesma, pois aí, na coisa em si, se encontra o critério ao qual ela está se submetendo. Quando tal possibilidade se frustra, o que se mostrava verdadeiro em si revela sê-lo apenas para ela. Tal “rebaixamento ontológico” leva consigo o que a consciência sabia, que também passa a ser verdadeiro apenas para ela.

É oportuno introduzir uma diferença implícita em um breve comentário de Hyppolite (2002, p. 38): “[...] a consciência sabe alguma coisa, tem uma certeza, e aspira a uma Verdade que é independente de sua certeza”. Digno de nota: Hyppolite pressupõe uma aspiração fundamental da consciência, qual seja, a busca da Verdade. Ora, a Verdade se constitui quando a consciência identifica em algo a condição de ser em si mesmo, de sorte que tal coisa se apresenta como algo outro, distinto da consciência. Já a certeza pode ser definida como o grau de adesão da consciência ao modo pelo qual algo se manifesta para ela, adesão, portanto, sujeita a arbitrariedades.5 Assim, a experiência não é apenas a relação pela qual a consciência compara o saber com a Verdade; mais especificamente, é a relação pela qual ela os compara baseada em uma desigualdade fundamental entre Verdade e saber, ou ainda, entre Verdade e certeza.

IV

Pois bem. Em certo momento da “Introdução” à Fenomenologia, Hegel apresenta o que, à primeira vista, poderia ser considerado “um jogo esquisito com meras palavras”, conforme Heidegger (2002, p. 200) chama a atenção:

Se chamarmos o saber, conceito; e se a essência ou o verdadeiro chamarmos essente ou objeto, então o exame consiste em ver se o conceito corresponde ao objeto. Mas chamando a essência ou o Em-si do objeto, conceito, e ao contrário, entendendo por objeto o conceito enquanto objeto - a saber como é para um Outro - então o exame consiste em ver se o objeto corresponde ao seu conceito. Bem se vê que as duas coisas são o mesmo [...]. (HEGEL, 2003, p. 78, grifo do autor).

A desigualdade de condição entre Verdade e saber parece ter sido contrariada quando Hegel iguala “as duas coisas”, a correspondência do conceito ao objeto e a correspondência do objeto ao conceito. Afinal, “as duas coisas são o mesmo”, como conclui Hegel: se o conceito corresponde ao objeto ou se o objeto corresponde ao conceito. Para interpretar corretamente a passagem, sem se ludibriar, é fundamental notar uma coisa. “Conceito” e “objeto” são aqui adjetivações pelas quais é possível qualificar saber e Verdade, conforme a perspectiva a partir de onde eles, saber e Verdade, podem ser compreendidos. Sim, a Fenomenologia comporta duas perspectivas. A perspectiva pela qual a própria consciência experimenta as coisas e a perspectiva pela qual o filósofo a acompanha. Apesar de distintas, ambas concernem às transformações do que Hegel (ibid., p. 74) chama de “saber fenomenal” ou “consciência natural”.

Não por acaso, frequentemente, Hegel recorre às expressões “para nós” e “para ela”. Em tais momentos, o pronome “nós” designa simplesmente nós, os filósofos, enquanto o pronome “ela” designa a consciência natural. “Nós”, os filósofos, observamos ao longo da Fenomenologia do Espírito, a “consciência natural” em seu percurso. Portanto, “conceito” e “objeto” não devem ser interpretados como adjetivações absolutas, mas sim relativas, conforme a perspectiva adotada. Da perspectiva da consciência, “conceito” é o que ela elabora em seu saber; da nossa perspectiva, enquanto filósofos, “conceito” corresponde à Verdade da coisa já elaborada filosoficamente. Da perspectiva da consciência, “objeto” é a Verdade da coisa destituída, porém, de elaboração conceitual, filosófica; da nossa perspectiva, “objeto” designa a consciência natural, observada em seu percurso pela Fenomenologia do Espírito.

Seria impraticável e, sobretudo, desnecessário, indicar passagem por passagem, na Fenomenologia, onde ocorre tal diferenciação de perspectiva. Para evidenciá-la, suponho, basta indicar algumas passagens. A princípio, naturalmente, convém citar onde, pela primeira vez, ainda no “Prefácio”, Hegel chama a atenção para o fato de a consciência natural ser “nosso objeto”. Ele (HEGEL, 2003, p. 78) afirma: “Se investigarmos agora a verdade do saber, parece que estamos investigando o que o saber é em si. Só que nesta investigação ele [o saber da consciência] é nosso objeto; é para nós”. Logo depois, aí sim, Hegel elabora explicitamente a diferença de perspectiva entre o que ocorre com a consciência e o que ocorre conosco enquanto a observamos:

É assim que o processo aqui se desenvolve: quando o que se apresentava primeiro à consciência como objeto, para ela se rebaixa a saber do objeto [...], esse é o novo objeto, e com ele surge também uma nova figura da consciência, para a qual a essência é algo outro do que era para a figura precedente. É essa situação que conduz a série completa das figuras da consciência em sua necessidade. Só essa necessidade mesma [...] se apresenta à consciência sem que ela saiba como lhe acontece [grifo meu]. Para nós [ou seja, os filósofos; grifo meu],6 é como se isso lhe [ou seja, à consciência] transcorresse por trás das costas.7 Portanto, no movimento da consciência ocorre um momento do ser-em-si ou do ser-para-nós [grifo do autor], que não se apresenta à consciência [grifo meu], pois ela mesma está compreendida na experiência. Mas o conteúdo [grifo do autor] do que para nós [grifo meu] vem surgindo é para a consciência [grifo do autor]: nós compreendemos apenas seu [aspecto] formal, ou seu surgir puro. Para ela [grifo do autor], o que surge só é como objeto; para nós [grifo do autor], é igualmente como movimento e vir-a-ser. (HEGEL, 2003, p. 81).

Portanto, trata-se de um aspecto estrutural da exposição da Fenomenologia do Espírito. Há um bom exemplo de como Hegel retoma a diferença entre a perspectiva da consciência e a perspectiva dos filósofos. Assim, ele situa o estágio onde se encontra o percurso da Fenomenologia. Trata-se do último parágrafo da parte intitulada “Consciência”, na passagem para a “Consciência-de-si”:

O processo necessário [grifo do autor] das figuras anteriores da consciência - cuja verdade era uma coisa, um Outro que elas mesmas - exprime exatamente não apenas que a consciência da coisa só é possível para a consciência-de-si, mas também que só ela é a verdade daquelas figuras. Contudo é só para nós [ou seja, os filósofos a observar a consciência; grifo meu] que essa verdade está presente: não ainda para a consciência. Pois a consciência-de-si veio-a-ser somente para si [grifo do autor], mas ainda não como unidade [grifo do autor] com a consciência em geral. (HEGEL, 2003, p. 132).

Pois bem. Convém retomar agora a razão de tais esclarecimentos sobre a diferença de perspectiva presente na Fenomenologia. Como dizia Heidegger (2002, p. 200), em certo ponto do “Prefácio”, Hegel recorre a “um jogo esquisito” de palavras. Segundo Hegel, tanto faz se o conceito corresponde ao objeto ou se o objeto, ao conceito. Por quê? Porque, estruturalmente, a correspondência é sempre uma só: o saber buscando corresponder à Verdade. Muda apenas a perspectiva! Da perspectiva da “consciência natural”, o exame consiste em verificar se o conceito, elaborado no saber, corresponde ao objeto, à Verdade da coisa. Da perspectiva dos filósofos, o que era conceito, o saber da consciência, passa a ser objeto. Mas a correspondência se mantém. O exame consiste em verificar se o objeto - “para nós”, o saber da consciência - corresponde ao conceito - “para nós”, a Verdade da coisa já elaborada filosoficamente.8

É o que Heidegger esclarece na seguinte passagem:

Quando se chama objecto ao verdadeiro representado na consciência natural, então este é o objecto “para ela”, a consciência natural. Mas quando se chama objecto ao saber, então é o saber [...] que é objecto “para nós”, os que observamos o que aparece em vista do seu aparecer. Quando o saber, pelo qual a consciência natural representa o sabido, se chama conceito, então o conceber é o representar algo enquanto algo. A palavra “conceito” é tomada no sentido da lógica tradicional. Se, ao contrário, chamarmos conceito ao verdadeiro representado na consciência, no qual se mede o saber enquanto objecto para nós, então o conceito é a verdade do verdadeiro, o aparecer, em que o saber que aparece é trazido a si mesmo. [...]

O verdadeiro é o objecto “para ela” [a consciência]. A verdade é o objecto “para nós” [os filósofos]. (HEIDEGGER, 2002, p. 200-201).

O que realmente importa aí, em tal “jogo de palavras”, são duas coisas. Primeiro, a consciência “fornece, em si mesma, sua própria medida”, nas palavras de Hegel (2003, p. 78), e “a investigação se torna uma comparação de si consigo mesma”. Afinal, a distinção entre consciência de algo e consciência de si, entre Verdade e saber, “radica nela”, na própria consciência, como adverte Hyppolite (2003, p. 39). Trata-se de mais um desdobramento da ambiguidade da consciência. Assim, a maneira como Hegel interpreta a consciência contraria frontalmente a interpretação então vigente de uma situação em que algo precisa ser submetido à prova. Para a tradição, ela, a prova, se faz necessária quando algo não pode evidenciar por si mesmo a posse efetiva de certa qualidade. Assim ele exigiria o recurso a outra coisa, considerada critério suficiente pelo qual, aí sim, seria possível constatar a posse efetiva daquela qualidade.

Segundo, a ambiguidade só não se torna uma contradição, porque, embora dê a si mesma o critério para medir seu saber, ela não o dá “diretamente”, pontua Heidegger (2002, p. 199). Assim ela o dá e, “simultaneamente, não o dá”. “[...] há para a consciência ainda alguma coisa em direção à qual tem de ir, em direção à qual se tem ainda de abrir”, diz Heidegger (ibid., p. 203). “Abrir-se, significa, aqui, abrir-se para... e pôr-se a caminho de...”. A tradução portuguesa do ensaio de Heidegger destaca: “o significado originário de fahren”, em erfahren (experimentar), designa um movimento de “‘ir procurando’ aquilo que se quer agarrar ou capturar no conceito” (ibid., p. 214, nota 11). Mas a consciência não dá diretamente para si mesma aquilo para que ela se encaminha, Heidegger advertiu. Para ela, se faz objeto apenas o que é “verdadeiro”, ao passo que a “verdade do verdadeiro” só se faz objeto para nós, “os que conhecemos absolutamente”, conforme adendo de Heidegger (2002, p. 201) a Hegel.

Se a “verdade” já está inscrita indiretamente no que se mostra “verdadeiro” para a consciência, ela se encontra na condição ambígua de já conter em si o critério em virtude do qual lhe é possível ir além de si mesma. Por si mesma, ela acaba sendo impelida a “uma perpétua transcendência”, na expressão de Hyppolite (2003, p. 33). A desigualdade entre saber e Verdade é um fardo graças ao qual a consciência precisa se suprassumir,9 constantemente transformar o que sabe ao constatar sua inadequação à Verdade. Não por acaso, o caminho da experiência descrito na Fenomenologia, pelo qual “consciência natural” prossegue paulatinamente em direção à ciência, Hegel (2003, p. 74, 76) o caracteriza como o “caminho da dúvida”. Nas palavras de Heidegger (2002, p. 178), “[...] a apresentação [a exposição de Hegel na Fenomenologia] sacode reiteradamente o que, para [a consciência natural], é válido como verdadeiro”.

De novo, a etimologia do verbo erfahren (experimentar) é importante para mostrar como não é mera arbitrariedade a experiência (Erfahrung) apresentar os traços de um movimento peculiar. “[...] fahren [ir, orientando-se em uma determinada direção] integra a palavra erfahren [experienciar], tendo nesta o sentido originário do mover[-se] para”, diz Heidegger (2002, p. 214-215). “O ir a é um conduzir até chegar a: o pastor vai com o rebanho, conduzindo-o ao monte. O experienciar é o conseguir chegar estendendo-se para e alcançando [...]” (HEIDDEGER, 2002, p. 215). A palavra latina ‘experiência’ remete etimologicamente a uma significação muito similar. “A experiência é um passo, uma passagem”, diz Larrosa (2009, p. 57, grifo meu). “Contém o ‘ex’ do exterior, do exílio, do estranho [...]. Contém também operde percurso, dopassar através’, da viagem, de uma viagem na qual o sujeito da experiência se prova e se ensaia a si mesmo”.

Enfim, dada a ambiguidade em virtude da qual a consciência diferencia e não diferencia algo de si, o movimento da experiência é intrinsecamente dialético. Logo, “Hegel não concebe a experiência dialeticamente”, adverte Heidegger (2002, p. 214), “pensa, sim, o dialético a partir da essência da experiência”. Ao invés de um método, a dialética é o aspecto essencial da experiência. Entre o que é “verdadeiro” e a reivindicação da “verdade”, “entre (δια) um e outro”, esclarece Heidegger (2002, p. 213, grifo do autor), “encontra-se um λέγειν”, “[...] o falar [Sprechen] destas reivindicações”.10 Porque a reivindicação da “verdade” se traduz em uma fala (λέγειν), a dialética resulta em um diálogo entre ambos os momentos da consciência. “[...] Mas o diálogo não fica parado numa figura da consciência. Percorre [...] todo o domínio das figuras da consciência [...]. Neste trajecto, reúne-se na verdade da sua essência” (loc. cit.).

V

Finalmente, toda a exposição feita até aqui buscou preparar a apresentação de um último aspecto da experiência, mais difícil de compreender. Segundo Hegel (2003, p. 80, grifo do autor), ela é um “movimento dialético que a consciência exercita em si mesma, tanto em seu saber quanto em seu objeto, enquanto dele surge o novo objeto verdadeiro para a consciência [...]”. Antes dessa passagem, Hegel (2003, P. 80, grifo meu) destaca a seguinte proposição: “O exame não é só um exame do saber, mas também de seu padrão de medida”, para dizê-lo mais claramente, é um exame do próprio Em-si da coisa! Parece-me importante enfatizá-lo, porque, para o senso comum, apenas o que sabe a consciência deveria ser suscetível de transformações, enquanto o objeto, por subsistir “objetivamen te”, permanece incólume, tal qual tem sido.

Eis então o aspecto mais essencial da experiência, cuja abordagem Hegel começa na seguinte passagem, repleta de sutilezas:

Caso os dois momentos [da consciência, Verdade e saber,] não se correspondam nessa comparação, parece que a consciência deve então mudar seu saber para adequá-lo ao objeto. Porém, na mudança do saber, de fato se muda também para ele o objeto, pois o saber presente era essencialmente um saber do objeto; junto com o saber, o objeto se torna também um outro, pois pertencia essencialmente a esse saber. (HEGEL, 2003, p. 79).

O que é digno de interrogação é a sugestão segundo a qual a mudança no objeto ocorre em virtude da mudança no saber, já que o objeto “pertencia essencialmente a esse saber” (HEGEL, 2003, grifo meu). Precisamente este último trecho requer um aprofundamento. Ora, como o saber da consciência poderia alterar algo cuja subsistência mesma supostamente deveria independer do que a consciência sabe a respeito dele? Hyppolite, por sua vez, não ajuda muito a esclarecê-la, visto que ele se resume a parafrasear a passagem supracitada da Fenomenologia. “[...] visto que o saber tornou-se outro, também outro tornou-se o objeto”, eis tudo o que diz ele (HYPPOLYTE, 2003, p. 40, grifo meu). O significado explicativo da conjunção “visto que” induz quem o interpreta a estabelecer entre saber e objeto uma relação específica - talvez até uma relação “causal” - em que o saber deve ser considerado aquilo em virtude do qual ocorre a alteração no objeto!

Todavia, em outra passagem, mais adiante na Fenomenologia, que não parece ter sido digna da atenção de Hyppolite, nem mesmo do escrutínio de Heidegger, Hegel faz uma observação discreta, aparentemente sem importância:

Nessa apresentação do curso da experiência há um momento em que ela não parece corresponder ao que se costuma entender por experiência: justamente a transição do primeiro objeto e do seu saber ao outro objeto no qual se diz que a experiência foi feita. Apresentou-se como se o saber do primeiro objeto - ou o para-a-consciência do primeiro Em-si - devesse tornar-se, ele mesmo, o segundo objeto. Mas, ao contrário, parece que nós fazemos a experiencia da inverdade do nosso primeiro conceito, em um outro objeto, que encontramos de modo um tanto casual e extrínseco. (HEGEL, 2003, p. 80, grifo do autor).

Em sua interpretação do “Prefácio” da Fenomenologia, tal passagem não passa despercebida a Marcos Nobre (NOBRE, 2018). Como Hegel pontua, há uma discordância entre o que a Fenomenologia compreende e “o que se costuma” compreender por experiência. Na Fenomenologia, Nobre (2018, p. 209) esclarece, “só se pode falar de experiência quando o movimento é compreendido pela consciência em sua concatenação necessária”; ou ainda, “quando o novo saber e o novo objeto contêm a verdade da figura anterior”. Para “o que se costuma entender por experiência”, ao contrário, o “outro objeto” surge de modo “causal e extrínseco”, como diz Hegel. É o que ocorre com o ceticismo, para quem, graças a uma “eventualidade”, um novo objeto surge sempre “exteriormente” enquanto um “objeto novo” (NOBRE, 2018, p. 210). Para Hegel, porém, o novo objeto consiste na “renovação do objeto anteriormente posto” (HEGEL, 2003).

Esclarecido o sentido da passagem, ainda é necessário compreender como ocorre a transição de um objeto, e seu respectivo saber, a outro objeto. Afinal, aí se encontra o cerne da experiência. Para tanto, é importante uma consideração preliminar sobre o que acontece quando duas coisas discordam uma da outra. Uma delas pode ser a referência com base na qual deve se determinar a relação de concordância. Assim, uma coisa pode se encontrar na posição, diria, “privilegiada” de exigir da outra a tarefa de concordar com ela. No caso da relação entre saber e objeto, caberia perguntar qual deles ocupa tal posição, se o saber é o que deve concordar com o objeto, ou vice-versa. Tal pergunta procede, porque, para o senso comum, seria mais plausível considerar o objeto como aquilo com o qual o saber deve concordar. Mas já não parece tão intuitivo considerar o saber como aquilo com o qual caberia ao objeto concordar.

Na passagem citada antes, Hegel (2003, p. 79) diz primeiro: “[...] a consciência deve então mudar seu saber para adequá-lo ao objeto”. Ora, cabe ao saber se adequar ao objeto, ao invés do contrário! Portanto, em um primeiro momento, Hegel confere claramente ao objeto a posição privilegiada de ser aquilo com o qual o saber deve concordar. E só parece haver uma razão para a consciência se sentir impelida a mudar o que sabe. - Caso o objeto passe a se manifestar para ela de outra maneira, diferente daquela pela qual ele vinha se mostrando e à qual o saber da consciência vinha correspondendo satisfatoriamente. Por conseguinte, e contra a intuição básica pela qual se guia a epistemologia realista do senso comum, não parece ser um contrassenso pressupor a possibilidade de o objeto em si mesmo mudar para a consciência.

Ao contrário! Pois, se ele não pudesse mudar, a consciência jamais se depararia com a necessidade de rever o que sabe; não haveria, consequentemente, sequer a necessidade de adequação entre saber e objeto! Eis a conclusão importante. A possibilidade de mudança no objeto não contradiz a condição de ele “ser em si”. Antes, a possibilidade de ele se manifestar de outra maneira é, na realidade, uma afirmação do Em-si do objeto. A força da expressão não deve induzir a equívocos. “Em-si”, convém observar, não significa aqui “estar desvinculado da consciência”. Embora se imponha em sua alteridade, o Em-si do objeto não deixa de ser um momento da consciência. Senão, lhe restaria apenas ser para a consciência, com a qual jamais poderia discordar; senão, nas palavras de Nobre (2018, p. 212), a consciência se reduziria “a uma reflexão solitária sobre si mesma, [...] aos estreitos limites de sua interioridade”.

Ainda resta a sequência da passagem supracitada da Fenomenologia, onde Hegel prossegue: “Porém, na mudança do saber, de fato se muda também para ele o objeto [...]” (loc. cit.). Mais um contrassenso aparente: como compreender a relação de consequência segundo a qual, conforme Hegel, a mudança no objeto se deve a mudança no saber? Todavia, é bom lembrar, tal questão está sendo apresentada no contexto da exposição sobre a passagem anterior. Em um primeiro momento, a consciência apenas se depara com a inadequação do que ela sabe em virtude da alteração do objeto. Em consequência, o objeto provoca na consciência certo estranhamento pelo qual ele exprime sua alteridade. Para fazer jus à diferença em relação ao que o objeto vinha sendo até então, a consciência deve atender à exigência de reelaborar o que ela sabia.

Ora, quando alguém muda o que sabe sobre algo, muda também a perspectiva a partir de onde o vê e, por consequência, a própria coisa se afigura diferente; à luz de um novo saber, o objeto acaba revelando aspectos outrora desconhecidos. E não importa se ele se encontra na posição privilegiada de exigir a adequação da consciência. A alteridade mesma da alteração do objeto necessita da reelaboração do saber para ser plenamente “reconhecido”, por assim dizer, em sua alteridade. Do contrário, sem um saber correspondentemente alterado, a mudança não se consumaria fenomenologica mente e o objeto permaneceria na condição intermediária de algo estranho. Novamente, não há contrassenso algum aqui. Embora imponha seu Em-si, ele não deixa de ser, vale lembrar, um momento da consciência enquantoalgo sabido”.

VI

A experiência não se restringe a uma relação estritamente teorética da consciência com o objeto. Ela envolve, nas palavras de Hyppolite (2003, p. 24), a “experiência ética, jurídica, religiosa”. “Trata-se de considerar a vida da consciência”, diz ele (2003, p. 26), “tanto ao conhecer o mundo como objeto da ciência quanto ao conhecer-se a si mesma como vida, ou ainda quando ela se propõe uma meta”. Quando algo se revela verdadeiro apenas para a consciência, ela “não perde somente aquilo que, do ponto de vista teorético, tomava como verdade”; ela “perde ainda sua própria visão da vida e do ser, sua intuição do mundo” (2003, p. 29). “A experiência não conduz somente ao saber no sentido estrito do termo, mas à concepção da existência”, conforme conclui Hyppolite (2003, p. 29). Portanto, como diz Hegel (2003, p. 74), ao invés de “caminho da dúvida”, a experiência é muito mais um “caminho do desespero”.

A propósito, é fundamental considerar uma observação de Gadamer, em Verdade e método. “[...] a experiência é em primeiro lugar”, ele destaca (2003, p. 464), “sempre experiência de negatividade (Nichtigkeit)”. Afinal, como a exposição feita mostrou, ela consiste na alteração das “duas coisas”, do saber e, inclusive, do objeto. Uma vez feita a experiência, a consciência sabe “outra coisa” e o sabe “melhor”. “O próprio objeto ‘não se sustenta’”, Gadamer (2003, p. 464) prossegue, e “o novo objeto contém a verdade do anterior”. Assim, “a verdade da experiência contém sempre a referência a novas experiências” (2003, p. 465). Então, uma pessoa “experimentada” se caracteriza não só por ser quem é graças à variedade de experiências pelas quais passou mas também por estar aberta a outras experiências. Portanto, ao invés de culminar em uma sabedoria conclusiva, a abertura é o que define ontologicamente a experiência.

Para concluir, depois de abordar todos os aspectos da experiência importantes para o propósito deste ensaio, convém destacar sua qualidade formativa. Primeiramente, não é difícil mostrar como a “significação pedagógica” da Fenomenologia se funda na experiência. Afinal, a Fenomenologia, conforme o mostram Hyppolite e Heidegger, se resume em uma descrição do “desenvolvimento da consciência”, cujo motriz é a experiência. Logo, para que a Fenomenologia possa apresentar uma “significação pedagógica”, ela deveria se ocupar com a descrição da formação de algo, a saber, a consciência. E o que, na consciência, a caracteriza como algo em formação? Ora, a necessidade de a consciência suprassumir o que ela sabia em favor de novas “concepções de existência”, de novas “intuições do mundo”.

Dada a generalidade pela qual ela define a relação da consciência consigo mesma e com outras coisas, não importa qual seja a especificidade da experiência. Ética, religiosa, jurídica, estética e assim por diante - a experiência forma quando suprassume certa compreensão de bem, de fé, de direito, de belo, em favor de outra. - E a possibilidade de a experiência formar jamais se conclui. Qualquer “concepção de existência”, qualquer “intuição do mundo”, jamais pode arrogar para si o estatuto de sabedoria conclusiva. Não por acaso, a educação está sendo compreendida aqui como as experiências pelas quais alguém se torna o que ainda pode ser, o que ainda não é. A negatividade expressa em “o que ainda pode ser”, “o que ainda não é”, se deve à abertura da experiência. Porém, tal negatividade não pode induzir a erro. As experiências posteriores não negam, mas preservam11 em si as experiências feitas anteriormente.

Enfim, a filosofia da educação, ao herdar de certas ciências uma concepção “escolar” de educação, acaba abdicando de sua condição de filosofia. Pois ela deixa de elaborar filosoficamente a coisa mesma que, por sua vez, dela espera uma elaboração filosófica. Não cabe à filosofia herdar conceitos alheios. Antes, como defendi em outro ensaio (BACK, 2019), inspirado em Heidegger (1999), o que a move é a perplexidade (thaumázein) que uma coisa lhe provoca pelo simples fato de ser o que é. Assim, a coisa convoca a filosofia a pensá-la. - “Que é isto?”, a filosofia se pergunta, perplexa. “Que” deriva do latim quid e, originariamente, designa a quididade, a essência da coisa. “Isto” pode ser qualquer coisa - a beleza, a linguagem ou a virtude. Daí a filosofia da arte, a filosofia da linguagem, a filosofia ética, respectivamente.

Ora, por que seria diferente quando se trata da educação? Por que a filosofia repentinamente se esquece do que a define e, assim, se transforma em uma espécie de “pedagogia filosófica”? Enfim, para respeitar sua condição de filosofia, é necessário retomar a pergunta: “Que é isto - a educação?”. No ensaio supracitado, eu (BACK, 2019, p. 13) respondo: em seu quid, a educação é fundamentalmente experiência. E aqui, neste ensaio, eu procuro desenvolver o que lá apenas havia sugerido. Em sua concepção escolar, a educação jamais se revelaria em sua universalidade como experiência. Só a filosofia, quando se afirma como tal, pode concebê-la assim. Dada sua universalidade, a educação, enquanto experiência, reúne em si o que distingue, inclusive, a vida humana da vida animal. Logo, Kant (2012, p. 9) não poderia ter aberto Sobre a pedagogia com outra proposição: “O homem é a única criatura que tem de ser educada”.

Referências

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1Digo “ser do ente”, porque pressuponho a diferença entre ser e ente, chamada “diferença ontológica”, tal como Heidegger a defende.

2Interpretado estritamente, Hyppolite parece considerar Emílio um romance de formação. “Igualmente importante, porém, nos parece ter sido a influência dos ‘romances de formação’ da época”, ele diz. No período imediatamente seguinte, sem qualquer observação, ele continua: “Hegel lera o Emílio de Rousseau em Tübigen: nesta obra encontrara a primeira história da consciência natural [...]”. Para evitar questionamentos sobre a possibilidade de classificar Emílio como um romance de formação, uma precaução simples. Basta separar, por meio da conjunção ‘e’, a obra de Rousseau e a expressão “romances de formação”.

3Cf. no original em alemão HEIDEGGER, 1977, p. 166. Para Heidegger, tais considerações sobre o que significam originalmente as palavras não são simples demonstrações vaidosas de erudição, mas sim um esforço genuíno para resgatar a experiência em razão da qual certa vez foi necessário cunhá-las. A linguagem não é um conjunto palavras resultantes da combinação casual de unidades fonéticas e organizadas arbitrariamente mediante convenções gramaticais. Como diz em Carta sobre o humanismo (id., 1991, p. 1, 6), “a linguagem é a casa do ser”; é o “recinto” pelo qual é necessário passar para chegar às coisas. Cf. também Para quê poetas? (id., 2002, p. 356).

4Digo “ontológicas”, porque, em última instância, se trata de examinar o ser mesmo da consciência e o ser mesmo daquilo de que a consciência é ciente. Entendo a ontologia como uma investigação dedicada ao fenômeno mais universal com que o ser humano pode lidar: o ser. Assim, qualquer outro fenômeno e sua respectiva investigação, por exemplo, a epistemologia, se encontra no âmbito mais abrangente da ontologia.

5Cf. HYPPOLITE, 2002, p. 32: “[...] toda consciência é mais do que acredita ser, e isso é o que faz com que seu saber se divida. Ele é a certeza (subjetiva) e, enquanto tal, opõe a uma verdade (objetiva)”.

6Para reforçar, Marcos Nobre (2018, p. 18), em Como nasce o novo, outro excelente comentário à Fenomenologia do Espírito, pontua inequivocamente: “Esse ‘nós’ designa aqui ‘a consciência filosófica’”. Há outro significado do pronome ‘nós’ na Fenomenologia. Para distingui-los, Nobre (ibid., p. 249) elaborou o que ele chama de “quadro sinótico”, um instrumento bastante útil.

7Quanto ao sentido da expressão “por trás das costas”, Marcos Nobre (loc. cit.) observa: “O fato de a consciência comum fazer a experiência, mas, ao mesmo tempo, não conseguir compreendê-la em sua inteireza não deve ser entendido como resultado de ela estar apartada do ‘sistema filosófico’ que já estaria ‘às costas’ da Fenomenologia e que lhe daria, tudo somado, seu autêntico sentido. Essa caracterização da experiência fenomenológica está, ao invés, ligada, como diz o texto do Prefácio, à emergência de uma nova época na história da humanidade”.

8

Michael Inwood (1997), em alguns pontos de seu Dicionário Hegel, também destaca a diferença de perspectiva em que se estrutura a narrativa da Fenomenologia do Espírito. “[...] a experiência da consciência não é especificamente empírica: Erfahrung não contrasta com ‘pensamento’ [...], mas indica aquilo por que passa a consciência ou o que descobre por si mesma, em contraste com o que nós, espectadores, conhecemos a seu respeito” (ibid., p. 130, grifo meu). Mas ainda seria possível insistir: quem são tais “espectadores”? Inwood esclarece: “[...] Hegel usa frequentemente a expressão an sich oder für uns (“em si ou para nós”) a fim de indicar que alguma coisa que só o é potencialmente e desconhecida para si mesma, é conhecida para nós, filósofos ou observadores de fora” (ibid., p. 110, grifo meu).

Para reforçar, eu posso mencionar também a seguinte observação de Paulo Meneses (1992, p. 33, grifo meu): “A consciência fenomenal não se dá conta do processo; parece-lhe ter passado de um objeto para outro porque achou, de maneira contingente, outro objeto que a fez mudar. Entretanto, o filósofo sabe que esta dialética se desenrola por uma necessidade interna [...]”.

9Paulo Meneses (HEGEL, 2003, p. 09) traduz aufheben por suprassumir e Aufhebung por suprassunção. A palavra designa o movimento pelo qual a consciência “supera” sucessivamente e preserva, portanto, sem anulá-las, suas “figurações”. “Figuração”, por sua vez, é a tradução de Marcos Nobre (2018, p. 253) para Gestaltung(en), a saber, as “formas” da consciência ao longo do percurso em que ela suprassume sucessivamente suas diversas intuições de mundo.

10Aqui, Heidegger desenvolve uma interpretação etimológica da palavra ‘dialética’, baseado na significação original de uma palavra da língua grega antiga, διαλέγειν. Assim, ‘dia-’, em ‘dialética’, corresponde à partícula grega δια, que Heidegger traduz por ‘entre’, enquanto ‘-lética’ corresponde a λέγειν, que, para Heidegger, é a origem etimológica de lógos, “discurso”, “fala”. Por tal razão, na passagem citada, ele associa “falar” com λέγειν e, posteriormente, ‘dialética’ com “diálogo”, já que ambas estas palavras, ‘dialética’ e ‘diálogo’, apresentam a mesma estrutura etimológica.

11Ou seja, suprassumem. Vide nota 9 a respeito do conceito de suprassunção (Aufhebung).

Recebido: 12 de Março de 2020; Aceito: 13 de Outubro de 2020

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