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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.34 no.72 Uberlândia set./dez 2020  Epub 03-Fev-2022

https://doi.org/10.14393/revedfil.v34n72a2020-56590 

Artigos

Filosofia, linguagem e formação: algumas observações de inspiração wittgensteiniana

Philosophy, language and education: some remarks from a Wittgensteinian perspective

Filosofía, lenguaje y educación: algunos comentários inspirados em uma perspectiva wittgensteiniana

*Doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor na Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP). E-mail: edermarx@usp.br


Resumo

Neste artigo, pretendemos destacar, a partir das indicações do segundo Wittgenstein, a vinculação entre problemas presentes na origem da tradição filosófica e determinadas imagens (Bilder) da significação linguística. Em particular, procuraremos nos deter no problema da relação entre discurso e identidade do Ser, tópico emblemático da discussão travada entre Parmênides, alguns sofistas e Platão e decisivo na conformação da tradição do pensamento filosófico. Assumindo o fundo pedagógico presente nas origens da filosofia, procuraremos igualmente destacar o papel reservado à aprendizagem da linguagem - ou de certo uso da linguagem - na forma de conhecimento filosófico. Discutiremos finalmente como a filosofia pode ser entendida como uma atividade formativa de esclarecimento conceitual a partir e por meio da linguagem - um exercício que tenta remeter a obra tardia de Wittgenstein à tradição de pensamento que, direta ou indiretamente, representava o enfeitiçamento contra o qual o filósofo se debateu ao longo da vida.

Palavras-chave: Filosofia da linguagem; Wittgenstein; Formação; Ontologia; Paideia

Abstract

Acordding to some remarks from late Wittgenstein, the article stresses the link between problems present at the origin of the philosophical tradition and certain images (Bilder) of linguistic meaning. In particular, we focus on the relation between language and identity of Being, one matter upon wich Parmenides, Sophists and Plato disagreed, and decisive for the tradition of philosophy. Assuming the educational relevance of this ancient philosophical debates, we will also seek to highlight the role reserved for language learning - or a certain use of language - in the form of philosophical knowledge. We will finally discuss how philosophy can be understood as a formative activity of conceptual elucidation by means of language, an exercise that attempts to refer Wittgenstein's late work to the tradition of thought that, directly or indirectly, represented the bewitchment against which the philosopher struggled throughout his life.

Keywords: Philosophy of language; Wittgenstein; Education; Ontology; Paideia

Resumen

De acuerdo con algunas observaciones del último Wittgenstein, el artículo enfatiza el vínculo entre los problemas presentes en el origen de la tradición filosófica y ciertas imágenes (Bilder) de significado lingüístico. En particular, nos centramos en la relación entre lenguaje e identidad del ser, tema en el que Parménides, sofistas y Platón discreparon, y decisivo para la tradición de la filosofía. Asumiendo la relevancia educativa de estos debates filosóficos antiguos, también buscaremos resaltar el papel reservado al aprendizaje de la lenguaje - o un cierto uso del linguaje - en forma de conocimiento filosófico. Finalmente discutiremos cómo la filosofía puede entenderse como una actividad formativa de elucidación conceptual por medio del lenguaje, ejercicio que intenta remitir la obra tardía de Wittgenstein a la tradición del pensamiento que, directa o indirectamente, representó el hechizo contra lo que el filósofo luchó a lo largo de todo su vida.

Palabras Clave: Filosofía del linguaje; Wittgenstein; Educación; Ontología; Paideia

A filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento de nosso entendimento pelos meios de nossa linguagem.

Wittgenstein

Ouve-se com frequência a observação de que a filosofia não faz progressos, de que os mesmos problemas de que os gregos se ocupavam ainda nos ocupam. Quem diz isso, porém, não sabe o motivo por que deve ser assim. É que nossa linguagem permaneceu a mesma e nos conduz às mesmas questões. Enquanto houver um verbo “ser”, que parece funcionar como “comer” e “beber”; enquanto houver adjetivos tais como “idêntico”, “verdadeiro”, “falso”, “possível”; enquanto falarmos de um fluxo do tempo ou da extensão do espaço, etc., etc., os homens vão se deparar com as mesmas dificuldades misteriosas e se ater àquilo que nenhuma explicação parece capaz de superar (WITTGENSTEIN, 1980, p. 15)1

O excerto acima integra o extenso conjunto de anotações datilografadas a pedido de Wittgenstein após seu retorno a Cambridge em 1929. Depois de concluir sua única obra publicada em vida, o Tractatus Logico-Philosophicus (1921), o filósofo austríaco abandonara a academia na suposição de que havia, de uma vez por todas, resolvido todos os problemas filosóficos. Nesse ínterim, dedicara-se, entre outras coisas, ao serviço de jardinagem num mosteiro e ao ensino numa escola primária numa aldeia no interior da Áustria. No fim da década de 1920, porém, o autor do Tractatus é forçado a voltar a Cambridge e às questões filosóficas que o haviam inquietado anos antes - e não apenas pela necessidade de uma ocupação. De fato, os problemas que antes lhe pareceram definitivamente solucionados ressurgiam com força suficiente para motivá-lo a pôr em questão o que havia afirmado sobre a linguagem e o significado. A filosofia não havia feito nenhum progresso.

Não pretendemos discutir neste artigo as mutações das ideias de Wittgenstein a partir da publicação do Tractatus, tarefa impossível para os limites deste texto. Tampouco temos a pretensão de apresentar uma visão panorâmica da origem dos problemas filosóficos a partir dos nossos modos de expressão. Sem ignorar a relação entre linguagem e filosofia, pretendemos mais modestamente destacar, a partir das indicações do segundo Wittgenstein, a vinculação entre problemas presentes na origem da tradição filosófica e determinadas imagens (Bilder) da significação linguística2. Em particular, procuraremos nos deter no problema da relação entre discurso e Ser, tópico num certo sentido emblemático da discussão travada entre Parmênides, alguns sofistas e Platão e decisivo na conformação da tradição do pensamento filosófico. Não desprezamos a complexidade da proposta, nem mesmo temos a esperança de apresentar uma descrição completa desse episódio solene da história da filosofia. Trata-se simplesmente de apontar, de um ponto de vista inspirado na obra wittgensteiniana, as questões gramaticais envolvidas na formulação de problemas filosóficos clássicos, questões essas já entrevistas na referência ao funcionamento do verbo “ser” registrada no comentário de nosso filósofo.

Outra questão complementar, porém, demarca o escopo de nosso trabalho. Se levarmos a sério a observação de Colli, segundo a qual já em seu batismo a “filosofia”, essa “busca” amorosa pela sabedoria, traduz-se numa “atividade educativa”, não podemos isolar os termos do debate puramente filosófico, por assim dizer, de suas conotações paidêuticas ou formativas (COLLI, 1992, p. 9). Dito de outro modo, assumindo o fundo pedagógico presente nas origens da filosofia, procuraremos igualmente destacar o papel reservado à aprendizagem da linguagem - ou de certo uso da linguagem - nas formas de conhecimento filosófico. Por fim, pretendemos mostrar como a filosofia pode ser entendida como uma atividade formativa de esclarecimento conceitual a partir e por meio da linguagem - um exercício que tenta remeter a obra tardia de Wittgenstein à tradição de pensamento que, direta ou indiretamente, representava o enfeitiçamento contra o qual o filósofo se debateu ao longo da vida.

Ser e discurso no nascimento da filosofia

Não é preciso muito esforço para perceber o nexo fundamental entre discurso e conhecimento do ser na origem da filosofia. Não por acaso, as posições contraditórias assumidas por sofistas ou representantes da tradição metafísica inaugurada por Parmênides correspondiam a diferentes interpretações do logos e da (im)possibilidade de expressão daquilo que é. Para os nossos propósitos, é suficiente observar, de maneira reconhecidamente grosseira, que uma questão essencial para os primeiros filósofos dizia respeito às condições de o discurso dizer (ou pensar) aquilo que é. Como nos lembra Heidegger em seu clássico texto sobre o que é a filosofia,

Um anèr philósophos é aquele hòs philei tá sophón; philein, que ama a sophón significa aqui, no sentido de Heráclito: homologein, falar assim como o Lógos fala, quer dizer, corresponder ao Lógos. Este corresponder está em acordo com o sophón. Acordo é harmonia. O elemento específico de philein, do amor, pensado por Heráclito, é a harmonia que se revela na recíproca integração de dois seres, nos laços que os unem originariamente numa disponibilidade de um para com o outro (HEIDEGGER, 1984, p. 215).

Ainda que amputado de seu contexto original, o comentário dá indicações de que o falar harmônico, a correspondência ao ser mediante o logos oferece o impulso para a busca que, mais tarde, constituirá o princípio da indagação característica da filosofia: o que é isto que é? O que é o ser do que é? Segundo a interpretação de Heidegger, o “espanto” provocado pela revelação de que “tudo é Um”, isto é, de que as coisas são e, sendo, permaneçam “recolhidas no ser, que no fenômeno do ser se manifeste o ente” pavimentou o caminho originário para os esforços filosóficos de corresponder ao ser, de dizer e pensar conforme o ser (HEIDEGGER, 1984, p. 215). Em suma, o discurso filosófico “procura o que é o ente enquanto é (...) está a caminho do ser do ente, quer dizer, a caminho do ente sob o ponto de vista do ser” (HEIDEGGER, 1984, p. 216).

A julgar pela interpretação do nascimento da filosofia proposta por Colli, porém, o problema das relações entre linguagem e ser remontam a um tempo mais primordial do pensamento grego, anterior mesmo aos fragmentos de Heráclito (COLLI, 1992). Com efeito, para Colli, o que hoje conhecemos por filosofia corresponde a uma tradição literária específica inaugurada por Platão, que, retrospectivamente, estabelece uma continuidade entre os antigos “sábios” - da tradição jônica e de tempos anteriores - e sua própria obra, inspirada pelo propósito de emulação ou busca da sabedoria. Já antes de Platão as inquietações envolvendo a linguagem e o conhecimento apareciam na cultura religiosa arcaica grega sob a forma do problema da comunicabilidade entre deuses e mortais.

Numa interpretação heterodoxa do culto apolíneo, Colli chama a atenção para a importância da “mania” ou loucura como “fonte da sabedoria” (COLLI, 1992, p. 9). Era por meio de tal êxtase arrebatador provocado pela manifestação de Apolo que o oráculo - o esclarecimento do que permanecia obscuro - apresentava-se aos mortais na forma de enigmas, como os inscritos no templo de Delfos. A ambiguidade característica do enigma constituía prova da “heterogeneidade” metafísica que separava a realidade divina e o discurso humano. A palavra humana só podia formular a verdade revelada pelo deus a custo de sua deformação:

O sinal da passagem da esfera divina à humana é a obscuridade do vaticínio, isto é, o ponto em que a palavra, manifestando-se como enigmática, trai sua proveniência de um mundo desconhecido. Essa ambiguidade é uma alusão à ruptura metafísica, manifesta a heterogeneidade entre a sabedoria divina e sua expressão em palavras (COLLI, 1992, p. 35).

Pressupõe-se, pois, uma condição mística, em que determinada experiência mostra-se inexprimível: neste caso, o enigma é a manifestação, na palavra, daquilo que é divino, oculto, uma interioridade indizível. A palavra é heterogênea em relação àquilo que é entendido por quem fala, logo, é necessariamente obscura (COLLI, 1992, p. 45-46).

Não precisamos estender nossa discussão do enigma e de seu papel na sabedoria grega. A partir das referências apresentadas por Colli, já temos condições de sublinhar a importância atribuída ao discurso na revelação divina que ilumina a obscuridade do mundo humano. A mensagem da divindade convoca o sábio para a correta tradução do enigma para um discurso compreensível para os homens. De maneira semelhante, a filosofia, herdeira da sabedoria, nasce inspirada pelo anseio de expressar, por meio do pensamento e do discurso, aquilo que é - de co-responder harmonicamente ao ser do ente, para usar os termos heideggerianos. Em ambos os casos, a enunciação é uma tarefa que requer esforços grandiosos. Em ambos os casos a linguagem ordinária usada pelos homens não parece capaz do empreendimento: os verdadeiros sábios e filósofos parecem elevar-se acima dos mortais, aproximando-se da esfera divina. Não por acaso, o poema de Parmênides, expoente da transição da sabedoria para a filosofia, discorre sobre o que viria a se consolidar na tradição filosófica como os princípios da identidade e da não-contradição como se estivesse comunicando uma revelação apresentada pela deusa da Justiça por ocasião de um êxtase místico (KAHN, 2007, p. 45): “vamos, vou dizer-te - e tu escuta e fixa o relato que ouviste - quais os únicos caminhos de investigação que há para pensar: um que é, que não é para não ser; (...) um outro que não é, que tem de não ser” (PARMÊNIDES, 2002, B2).

As dificuldades em se dizer o ser: Parmênides e os sofistas

O caso de Parmênides exige maior atenção. Na tradição, os fragmentos de seu poema Da Natureza são reconhecidos por identificar ser e pensar, ser e discurso: “pois o mesmo é pensar e ser (...) é necessário que o dizer e pensar que é sejam; pois podem ser, enquanto nada não é” (PARMÊNIDES, 2002, B3; B6). Em outras palavras, o pensamento e o discurso devem se referir àquilo que é. Aquilo que é objeto de discurso deve necessariamente ser: não há como pensar o que não é. Se pensamos num triângulo de três lados é porque, de algum modo, esse triângulo é. Num certo sentido, nessa operação intelectual de grandes consequências para o pensamento filosófico, Parmênides explicita a pressuposição de que o discurso e o pensamento correspondem a algo fora de si mesmo, que aderem à essência das coisas. Giannotti observa que, na esteira de Parmênides, mesmo o sofista Antístenes, provável discípulo de Górgias, “tirará as consequências mais fortes dessa aderência”. Giannotti refere-se ao relato de Proclo, filósofo do século VI d.C., que afirmava que o sofista costumava ensinar que “todo discurso está no verdadeiro, pois aquele que fala diz algo; ora, aquele que diz algo diz o ser e aquele que diz o ser está no verdadeiro” (GIANNOTTI, 2011, p. 40).

O princípio de Parmênides, porém, conduz a conhecidas aporias. Em seu poema, Parmênides afirmara que o que é é, não podendo deixar de ser. O ser é ‘incriado”, sempre idêntico a si mesmo, e sua identidade consigo não é passível de alterações. Nessas condições, as mudanças das coisas no mundo, o devir dos seres, o nascimento e a morte dos entes não passam de ilusões provocadas pelas aparências e percebidas pelos sentidos. Para salvar a identidade do ser, Parmênides sacrificava os fenômenos cambiantes. No fundo, o ser, na condição de totalidade absoluta e idêntica a si mesma, criava grandes dificuldades para a concepção do movimento e do próprio discurso. Se tudo o que é pensado é, como pensar o devir - ou seja, aqueles fenômenos que são e deixam de ser? Como pensar e falar a respeito de Sócrates quando este se senta? Se, ao sentar, Sócrates está se determinando de maneira diferente do que era - portanto, sendo e não sendo mais Sócrates -, como produzir qualquer discurso verdadeiro a respeito do mestre de Platão? Nessas circunstâncias, o discurso ou se torna uma simples “fieira” de nomes, numa relação unívoca de associação entre palavra e ente, ou é condenado ao silêncio, sob pena de incorrer nas sendas enganosas do caminho do que não é (GIANNOTTI, 2011, p. 67).

É justamente esse impasse produzido pela fixidez do ser que será explorado pelos sofistas. Embora aparentemente pouco preocupados com questões doutrinárias, os sofistas não deixavam de assumir o pressuposto de que o discurso remetia ao ser, embora tirassem desse postulado conclusões muito diferentes daquelas de Parmênides (MARROU, 1966, p. 85). Como dirá Górgias, “se, com efeito, o não-ser é não-ser, o-que-não-é em nada seria menos que o-que-é. Pois, tanto o-que-não-é é algo-que-não-é, quanto o-que-é [é] algo-que-é, de modo que as coisas em nada mais são do que não são (GÓRGIAS, 2008, p.199). Se resistirmos à vertigem provocada pela repetição do verbo ser, é possível perceber que o pressuposto de Parmênides é retomado e subvertido por Górgias. Trata-se de uma prova baseada na redução ao absurdo: se discurso e ser são idênticos e é possível dizer que o não-ser é, logo ele passa a ser, tal qual o ser. Daí a conclusão necessária de que “nenhuma coisa é: se é, é incognoscível: se tanto é quanto [é] cognoscível, não é, no entanto, [comunicável] a outros” (GÓRGIAS, 2008, p. 201).

Num certo sentido, os chamados sofistas serão responsáveis por uma verdadeira torção da correspondência entre discurso e ser. Enquanto Parmênides preocupara-se em afinar o discurso ao ser e evitar seu desvio nas aparências do que não é, figuras como Górgias, Protágoras e Isócrates dedicam-se cada um à sua maneira a explorar os prodígios do discurso, nem que para isso ponham em questão o princípio da identidade e da não-contradição. Eis o espírito do dito proverbial atribuído a Protágoras, segundo o qual é sempre possível ao discurso humano provar que tanto uma tese quanto sua antítese são verdadeiras: o homem é a medida de todas as coisas. Dito de outro modo, os homens não podem dispor de um critério universal, ancorado no ser, por meio do qual possam decidir a respeito da verdade ou falsidade de cada afirmação particular - isto é, sua identidade, ou não, àquilo que verdadeiramente é. O mundo humano é a realidade móvel do discurso.

O caso de Isócrates é particularmente interessante. Em um de seus discursos cipriotas, endereçado à leitura do soberano Nícocles, o sofista compõe um franco elogio das virtudes do logos, “co-arquiteto” de todos os bens humanos. Nas palavras de Isócrates, o discurso

determinou as regras que balizam o que é o justo e o que é injusto, o que é indecoroso e o que é decoroso” (...) graças a ele [ao discurso] debatemos os assuntos disputados e perquirimos sobre o que é ignorado, visto que ao deliberar nos servimos das opiniões mediante as quais convencemos os outros quando falamos (...) a expressão apropriada é o maior sinal da boa intelecção, e o discurso verdadeiro, legítimo e justo é o reflexo de uma alma boa e pia (ISÓCRATES, 2010, p. 7-8).

O ponto essencial do elogio de Isócrates, cujos termos evocam certa divinização do logos, reside em que as virtudes ou valores expressos pelos discursos dos homens - o justo, a boa intelecção, etc. - não tem por fundamento a suposta identidade ou correspondência com o ser do que é justo ou do que é o conhecimento. Isócrates não procura uma regra universal - a Justiça - como paradigma de comparação com casos particulares do justo expressos nos discursos, a exemplo do que fazia Sócrates em seus exercícios dialéticos. Tampouco indaga se valores como a justiça aderem ao que é ou se se perdem nas ilusões do não-ser, à moda de Parmênides. O justo e o injusto, a boa deliberação manifestam-se no discurso e não apontam para uma realidade transcendente de onde retirariam sua força. O justo se faz presente pelo discurso humano, é instituído por ele. Isso não quer dizer, entretanto, que uma deliberação justa ou injusta, para Isócrates, sejam equivalentes ou impossíveis de distinguir. Como sublinha Barros, Isócrates apela à ideia de uma certa “natureza humana”, associada aos valores culturais gregos, como fundamento mínimo do artificialismo criado pelo discurso humano. O fato, porém, é que essa natureza não existe independentemente do discurso humano. Pelo contrário, o humanismo isocrático só existe por meio do discurso: “só o logos pode converter essa natureza em algo atual” (MACIEL DE BARROS, 1976, p. 13).

Desse modo, Isócrates, a exemplo de outros mestres da arte retórica, atraía interessados em privar de sua companhia para se tornarem filósofos, de acordo com sua concepção própria de sabedoria:

Só me resta considerar sábios, por um lado, aqueles homens que são capazes de, através de opiniões [doxai], descobrir na maior parte dos casos aquilo que é melhor e filósofos, por outro lado, aqueles que se ocupam com aquilo por meio do que adquirirão tal tipo de inteligência o mais rápido possível (ISÓCRATES, 2016, p. 198).

Embora, nessa tarefa, atribuísse papel decisivo à natureza de cada um, Isócrates não deixa de valorizar o exemplo e o exercício como expedientes relevantes na formação do filósofo. É certo que aqueles que nasceram sem nenhum traço de virtude filosófica, tal como entendida por ele, jamais seriam capazes de refletir de maneira sensata a respeito dos problemas da cidade ou de emitir regularmente opinião razoável a seu respeito. Por outro lado, aqueles discípulos que apresentassem algum pendor para a formulação de discursos sensatos, ainda que limitado, poderiam alcançar a excelência caso se dedicassem a emular bons exemplos por meio dos exercícios e da prática - o que os podia aproximar daqueles que possuíam a excelência por natureza. Nessas condições, Isócrates destacará a necessidade de exposição dos jovens interessados no modo de vida filosófico à impregnação dos valores veiculados pelos bons discursos que ecoavam na polis, aproximando a filosofia da opinião, por assim dizer. Em outros termos, a aprendizagem da verdadeira filosofia passava pela iniciação em práticas linguísticas mais ou menos familiares ao cidadão livre da polis democrática. A chave da sabedoria estava no discurso: a sabedoria era linguagem.

Platão: Formas como fundamento da linguagem

Nada mais distante do universo de Platão, para quem a linguagem era objeto de suspeitas. Isso, no entanto, não quer dizer que o filósofo não se interessasse pela relação entre linguagem e identidade do ser. Embora precário, o discurso não deixava de constituir uma fonte de conhecimento. Basta lembrar que nos diálogos platônicos a procura socrática pelas coisas em si, independentes das predicações ou qualidades atribuídas pelo discurso, partia no mais das vezes da indagação pela identidade supostamente oculta por trás das manifestações particulares e sugerida por um nome. Assim, Sócrates não procurava exemplos de uma ou outra ação virtuosa, mas sondava a Virtude. O nome, nesse sentido, é indício de algo que deve existir em si, para além da linguagem. A teoria das Formas ou Ideias pode ser interpretada como uma resposta ao fundo idêntico supostamente implícito na comunidade de nomes. Para que um nome possa ser dado a alguma coisa, essa coisa deve partilhar de algo comum a coisas de mesmo nome. Daí que nos diálogos platônicos a tarefa de Sócrates consista em mostrar que os interlocutores não possuem o conhecimento da Ideia que justifica a nomeação que eles insistem em usar. Em termos gerais, a marcha do jogo de perguntas e respostas se encaminha para a busca pela definição geral do nome ou, melhor dizendo, da essência que ele sugere: O que é a Justiça? O que é Conhecimento? O que é a Virtude?

Como sabemos, Platão não escolheu o silêncio; se continuou a escrever diálogos é porque reconhecia em sua linguagem alguma utilidade filosófica. De fato, Platão elaborou uma solução muito original ao complexo problema da relação entre discurso e ser, cuja descrição pormenorizada escapa ao propósito do nosso texto. Para nossos fins, basta sublinhar que o ponto essencial de sua inovação corresponde à introdução da alteridade como referente do discurso na figura da Forma-Outro. Dito de outro modo, Platão prevê a possibilidade de o discurso se referir e pensar algo sem postular que o ser fosse uma unidade absoluta sempre idêntica a si mesmo, como queria Parmênides. Graças a essa operação, seria possível conceber o ser de algo em sua mobilidade, sem a exigência da fixidez - sendo e não sendo idêntico a si ao mesmo tempo.

No fundo, Platão mantém o pressuposto de Parmênides de que pensamento e ser coincidem, mas lhe faz um sofisticado reparo. Se, com o olho do espírito, podemos enxergar uma imagem que nos evoca um triângulo perfeito é porque vemos não apenas a Forma do triângulo, idêntica a si mesmo. Vemos, além disso, a Forma do Mesmo - o triângulo idêntico a si mesmo -, bem como a forma de sua alteridade em relação a outras figuras - Forma do Outro -, sem falar de outras formas matriciais, como a do movimento e do repouso. A Forma triângulo é idêntica a si mesma, mas é Outra em relação, por exemplo, à Forma do quadrado. Nesses termos, o deslocamento produzido por Platão consiste em reconhecer o ser não em sua unidade monista, como fizera Parmênides, mas enquadrá-lo nas relações e fricções que as Formas mantêm entre si na geração do real. Um ente, portanto, não é a projeção unilateral de uma Forma, mas participa de diferentes Formas em suas relações recíprocas. O não-ser, nesse novo contexto, deixa de ser o nada, a negação pura do ser, para se converter em sua alteridade, em sua transformação em algo diferente já inscrito em sua Forma.

Essa descrição já sugere o caminho a ser percorrido pelos interessados em aprender a filosofar à maneira de Platão. Como as Formas participam entre si, aqueles que buscam a verdade precisam se enfronhar em suas relações e, num movimento dialético de perguntas e respostas, divisões e sínteses, ascender à visão do Bem que abrange e liga as Formas umas às outras. Essa característica dinâmica do método platônico justifica por que Platão decidiu escrever diálogos. Nesse tipo de intercâmbio, cada argumento adquire um significado distinto a depender do lugar que ocupa na progressão da investigação. Nesse sentido, as afirmações dos debatedores não podem ser reduzidas a partes hierarquicamente iguais de um único argumento previamente formulado. O diálogo é o próprio movimento de construção do argumento, de aproximação em relação às Formas.

Platão refere-se a tal método com mais detalhe em sua Carta VII (PLATÃO, 2008). Segundo ele, existiriam cinco elementos nos seres a partir dos quais o “saber deve surgir”, sendo o último a própria Forma do ser considerado, sua identidade consigo mesmo. A investigação começa com a enunciação do nome do que é perquirido - por exemplo, a de um “círculo”. Em segundo lugar, a pesquisa avança para a definição do nome proposto, isto é, para a associação de palavras por meio da adição de verbos e predicados ao objeto nomeado - “círculo é uma figura cujas todas extremidades são equidistantes em relação a seu centro” (PLATÃO, 2008, p. 91). Diante da possibilidade de formulação de diferentes definições para o mesmo nome, passa-se para a terceira fonte do conhecimento: a imagem que antecipa a Forma, a intuição do desenho do círculo que sugere sua identidade. Num quarto momento, chegamos ao conhecimento do círculo, à manifestação de pensamentos que participam do objeto em questão na alma do investigador. Por fim, atinge-se à Forma mesma do Círculo, o círculo em si mesmo. É interessante notar que o caminho percorrido pressupõe a separação e divisão das etapas em relação aos outros do círculo na distinção de nomes, definições, etc - o círculo é uma figura geométrica, mas é distinto do quadrado; é definido de tal maneira e não de outra, e assim por diante. Nas palavras de Platão, os debatedores discorrem “forçando uns contra os outros nomes e definições, visões e percepções, refutando com refutações cordiais” (PLATÃO, 2008, p. 95).

Essa descrição, contudo, pode sugerir a falsa ideia de que o caminho dialético represente garantia da contemplação da Forma. Em primeiro lugar, Platão, a exemplo de Isócrates, adverte que a natureza individual é condição necessária para o êxito da pesquisa filosófica, de modo que “quem não tem afinidade com o assunto não compreenderá nem pela facilidade, nem pela memória, pois por princípio este [o conhecimento] não nasce em condições adversas”. O conhecimento é assim reservado àqueles “de natureza afim e familiares das coisas justas e de outras quantas belas” (2008, p. 95). Há ainda outra razão, ligada à própria natureza da atividade dialógica, que afasta o otimismo numa suposta didática platônica. De fato, na mesma Carta VII, Platão reconhece que aquele que se fia nos diálogos que escreveu como sendo uma súmula de sua filosofia não entendeu nada dos assuntos mais sérios: “não há obra minha escrita sobre o assunto, nem poderá haver, pois de modo algum se pode falar disso, como [se fala] de outras disciplinas”. Isso porque o conhecimento só pode nascer depois de “muitas tentativas, com a convivência gerada pela intimidade, como um relâmpago brota uma luz que nasce na alma e se alimenta a si própria” (2008, p. 89).

É possível reconhecer nessas palavras as suspeitas de Platão quanto à fragilidade do discurso: “ninguém que tenha juízo ousará expor pela linguagem o seu pensamento, por causa de sua fragilidade” (2008, p. 93). A fragilidade dos nomes decorre do fato de que são meramente convencionais e contingentes, de modo que “nada impede que o que se chama agora redondo tenha sido chamado reto”. Por extensão, pode-se dizer a “mesma coisa” da definição: “uma vez que se compõe de nomes e verbos, nenhuma é segura o bastante” (2008, p.93). Em termos opostos aos de Isócrates, para quem a sabedoria manifestava-se no discurso, Platão concebe o verdadeiro filósofo como aquele capaz de transcender a opinião e elevar-se à contemplação da Forma, refratária a qualquer linguagem. Nessa jornada, a convivência íntima e a frequentação dos diálogos cumprem papel propiciatório a uma visão interior e racional que escapa a qualquer articulação linguística. Na centelha racional da filosofia, inventada por Platão, reluz finalmente a mania da sabedoria divina de Apolo.

Wittgenstein e a terapia das Imagens: alguns exemplos

A esta altura, esperamos ter destacado a relação entre discurso (lógos) e conhecimento do ser no início da tradição filosófica. Vistos sob esse aspecto, os debates entre Parmênides, sofistas e Platão giram em torno de questões ligadas ao estatuto do pensamento e da linguagem relativamente ao conhecimento daquilo que é. Nesses termos, as questões filosóficas originárias podem ser vistas, de um ponto de vista wittgensteiniano, como problemas ligados às condições de significação, isto é, como impasses e espantos que têm origem nos esforços de dar sentido à experiência que temos do mundo. Nas palavras do filósofo austríaco, essas questões profundas - tais como “o que é o que é?”, “o ser é?”, “o que é a identidade do ser?”, entre outras emblemáticas daquilo que reconhecemos como problemas filosóficos - refletem a profundidade de nossa gramática, isto é, das regras de uso dos conceitos que constituem a significação daquilo que dizemos e pensamos (IF, §111)3.

Já mencionamos que um pressuposto geral do discurso filosófico tradicional, evidente nos comentários de Parmênides e Antístenes, é que o discurso de algum modo adere ao ser, refere-se a um algo fora da própria linguagem. À diferença dos assim chamados retóricos, como Isócrates, que davam maior atenção à capacidade do discurso de criar valores ou afecções, a tradição de autores que mereceram o título de filósofos esforçou-se por atingir o ser, o real, por meio ou de sua expressão ou de sua contemplação. Mesmo para Platão, que guardava sérias suspeitas em relação à linguagem, a contemplação das Formas que supera o discurso humano é sugerida por meio dos nomes e dos problemas ligados à sua definição. Numa palavra, a busca amorosa pela sabedoria que marca a filosofia esteve estreitamente vinculada à busca do ser a que a linguagem parece se referir. E os sons e figuras produzidos pela fala e pelo pensamento humano parecem tirar seu sentido e sua vida de algo fora deles, sem o que não passariam de meros grunhidos e visões sem sentido.

Eis então um exemplo daquilo que o segundo Wittgenstein denomina imagem (Bild), responsável pelas confusões e problemas profundos que movem a filosofia. No caso, trata-se da imagem referencial da significação, segundo a qual o significado do que dizemos ou pensamos é algo que de algum modo substitui os objetos referidos no discurso ou no pensamento. Como observa Wittgenstein logo no início de suas Investigações Filosóficas, “nessa imagem da linguagem encontramos as raízes da ideia: toda palavra tem um significado. Este significado é correlacionado à palavra. Ele é o objeto que a palavra substitui” (IF §1). Nesses termos, para adquirir algum sentido, todo pensamento ou enunciado linguístico deve de um modo peculiar e misterioso referir-se a algum objeto fora da linguagem, seja ele físico ou de outra natureza, como as faculdades da alma ou princípios transcendentes - como o ser do que é. Aparentemente, sem tal remissão para fora da linguagem parece difícil imaginar que a mera convenção em torno de sons ou figuras tenha algum significado (IF, §173). Nessa imagem, a linguagem deve funcionar assim: é realmente difícil conceber coisa diferente.

De fato, como reconhece Wittgenstein, a força da necessidade é uma das marcas das imagens. As imagens são referenciais com o que comparamos objetos, formas de organizar os elementos da experiência de tal forma constritivas de nosso pensamento que, uma vez aplicadas, parece difícil imaginar o contrário daquilo que indicam (MORENO, 1993, p. 37). A atividade filosófica do segundo Wittgenstein consiste justamente em fazer a terapia do pensamento acometido por imagens que o levam a supor que as afirmações filosóficas como as discutidas acima constituem descrições necessárias do real. No fundo, sua tarefa é persuadir o filósofo de que os objetos extralinguísticos que sua linguagem parece meramente descrever ou constatar não passam de lances já linguísticos relativos a um jogo de linguagem determinado (IF §7) - ou, pelo contrário, afastado de jogos habituais.

Retomemos então a imagem referencial da significação para, em seguida, indicar brevemente a maneira como Wittgenstein encaminha seu tratamento. Como vimos, tal imagem postula que o significado de um termo é algo extralinguístico evocado pela palavra. Para usar um exemplo célebre de emprego dessa imagem, Platão distingue no Crátilo os nomes bem estabelecidos como aqueles que tem correspondência com as coisas (PLATÃO, 2014). O filósofo retoma a fragilidade dos nomes e do problema representado por seu convencionalismo, a exemplo do que faz na Carta VII. Segundo a argumentação de Sócrates, a convenção não pode bastar para dar conta do significado do termo, uma vez que, se todos os nomes se reduzissem a simples signos acordados, “não faz diferença se alguém faz a convenção como ela está estabelecida agora ou seu contrário”, de modo que “o que agora é chamado de ‘pequeno’ poderá ser chamado de ‘grande’, e o ‘grande’ de ‘pequeno’. Desse modo, o significado do nome deve dar algum indício a respeito da coisa mesma, não podendo ser empregado indiscriminadamente.

Se o nome vai ser igual à coisa, será naturalmente necessário que os elementos, dos quais os nomes primários são um composto, sejam iguais àqueles das coisas. Estou falando o seguinte: seria impossível alguém compor um retrato igual a algo que existe [...] se ele não seguir a natureza ao começar a composição do retrato pela mesma pigmentação que aquela daquilo que a pintura vai imitar. (PLATÃO, 2014, 433e-434b).

Nesses termos, os nomes são representações das coisas. O critério para sua correção é a correspondência àquilo que procura representar. A linguagem é composta por um encadeamento de nomes que representam, tal como um retrato, a realidade que ela denota. É certo, porém, que, para Platão, mesmo quando bem estabelecidos, os nomes não bastam para o conhecimento do real: “não é a partir dos nomes, mas sim a partir das coisas que convém aprender e investigar elas mesmas ou os seus nomes” (439b). Não obstante, os nomes mantêm ainda alguma relação com as coisas, sem o que sua referência seria interditada. O significado do nome - e da linguagem em geral - provêm de seu fundamento nas coisas em si, em sua capacidade de refleti-las. O qualificativo “justo” atribuído a diferentes manifestações da justiça deve remeter a algo essencial compartilhado por todas elas: à Justiça em si, à Forma-Justiça. De outro modo, como poderíamos predicar eventos tão distintos com esse mesmo punhado de letras?

Wittgenstein não aborda exatamente esses comentários de Platão no Crátilo. Na verdade, as observações do segundo Wittgenstein raramente se endereçam de maneira explícita a argumentos ou problemas filosóficos consagrados. As razões para essa recusa devem ficar mais claras quando tratarmos de sua concepção de filosofia como atividade na última parte do artigo. Por ora, basta sublinhar que as Investigações Filosóficas põem em questão “como a teorização filosófica começa, não as teorias filosóficas polidas que filósofos profissionais normalmente produzem” (STERN, 2004, p. 55). Nesses termos, a própria forma inusitada de tratamento dos problemas - um conjunto de observações aparentemente fragmentárias sobre situações variadas de uso da linguagem - não pode ser resumida numa doutrina definida e contraposta a teorias filosóficas presumidamente rivais. Os problemas filosóficos ou as inquietações provocadas pelo uso das palavras quando filosofamos não deixam de ser caros a Wittgenstein, mas somente na medida em que representam a matéria-prima ou objeto da terapia filósofica, expressões do pensamento acometido por imagens que impedem a visão geral da diversidade dos usos de nossos conceitos.

Desse modo, a terapia do pensamento aprisionado pela imagem referencial da significação é encaminhada não pela arguição de teses filosóficas a respeito da linguagem e do significado, mas pela introdução de múltiplos exemplos de uso dos conceitos capazes de interromper a “dieta unilateral” característica do dogmatismo (IF §593). Esse é o papel dos “jogos de linguagem” organizados ou inventados por Wittgenstein como “objetos de comparação” (IF §130). Trata-se de situações de uso da linguagem rememoradas ou mesmo inventadas pelo filósofo para descrever semelhanças e diferenças no emprego de expressões e conceitos no âmbito de diversas atividades, como a nomeação, a realização de ordens, a percepção de cores, a descrição de gestos, etc. (IF §7; §23). Essas circunstâncias “primitivas” e simplificadas de emprego da linguagem constituem modelos que, por meio do contraste e da comparação, oferecem uma visão ampla e clara da variedade de objetivos e modos de funcionamento das palavras (IF §5). Pretende-se, assim, dissolver a “névoa” que envolve o conceito referencial de “significado”, entendido em geral como uma espécie uniforme de “batismo” por meio do qual signos inertes passam, de maneira misteriosa, a designar realidades extralinguísticas e evocar sua imagem (IF §38).

Wittgenstein descreveu certa vez sua atividade filosófica como oposta à do Sócrates platônico, ocupado em investigar a essência comum supostamente subjacente às ocorrências particulares, isto é, a Forma que serve de fundamento à significação geral dos exemplos de virtude ou de conhecimento. “Se me perguntassem o que é conhecimento”, diz Wittgenstein, “eu listaria casos de conhecimento e adicionaria ‘e coisas do tipo’. Não há um elemento comum a ser encontrado em todos eles porque não há nada em comum” (WITTGENSTEIN apud STERN, 2004, p. 14). De fato, a tradicional busca filosófica pelo ser em si por trás do significado dos nomes expressa a inclinação de conceber o uso da linguagem em geral como uma espécie de “etiquetagem” de essências por meio de palavras (IF, §26). Os signos ou representações usados para se referir às coisas procuram simplesmente identificar ou expor - sem sucesso, aliás - entidades de uma natureza especial inteligidas ou contempladas antes e independentemente das palavras. O significado teria a ver sempre com tal remissão da palavra à coisa, como se os signos simplesmente evocassem realidades antes conhecidas sem a mediação de palavras - em si mesmas. O pressuposto é de que a linguagem funciona de maneira uniforme, nomeando imediatamente objetos sobre os quais falamos. Assim, somos tentados a dizer que, ao usar a linguagem, invariavelmente “‘nomeamos as coisas e podemos então falar sobre elas: nos referirmos a ela em discurso’. - Como se, com o ato de nomeação, já estivesse dado o que faríamos depois. Como se existisse apenas uma coisa chamada ‘falar sobre as coisas’” (IF §27).

A terapia wittgensteiniana incide justamente sobre tais pontos da imagem referencial da significação: a postulação de um modo uniforme de relacionamento entre signos e objetos e a ideia de uma relação imediata entre palavras e coisas (MORENO, 1993). Vejamos primeiro uma comparação entre jogos de linguagem proposta por Wittgenstein para relativizar a ideia de que a linguagem “funciona sempre de um modo, serve sempre ao mesmo propósito” (IF §304). O modo uniforme de funcionamento das palavras é justamente aquele da nomeação, generalizado como uma imagem segundo a qual todos os usos da linguagem devem corresponder. Essa forma “primitiva” de representar a linguagem corresponde a um uso semelhante ao praticado no ensino ostensivo de palavras (hinweisendes Lehren der Wörter), por meio do qual uma criança aprende a associar nomes e objetos. Esse é o caso, por exemplo, da situação imaginada por Wittgenstein na seção 6 das Investigações Filosóficas, em que um instrutor ensina os nomes de determinados objetos usados na construção de edifícios numa comunidade de construtores:

Uma parte importante do treinamento [Abrichtung] consistirá nisso: aquele que ensina aponta para o objeto, chama a atenção da criança para ele e, ao mesmo tempo, pronuncia uma palavra; por exemplo, a palavra “lajota” enquanto mostra essa forma. (...) Pode-se dizer que esse ensino ostensivo das palavras estabelece uma conexão associativa entre a palavra e a coisa. Mas o que isso significa? Ora, isso pode significar várias coisas; mas é provável que se pense em primeiro lugar que uma imagem do objeto aparece à alma da criança quando ele ouve a palavra. Mas se isso acontece, - é esse o propósito da palavra? Sim, esse pode ser o propósito da palavra. - Eu posso imaginar tal uso das palavras (sequência de sons). (A pronúncia de uma palavra como um toque no teclado da representação mental [Vorstellung]) (PU IF §6)

Esse jogo de linguagem “primitivo” exposto por Wittgenstein estabelece uma ligação de sentido entre um som falado ou um signo escrito (“lajota”) e um objeto correspondente. Nessa forma simples de linguagem, poderíamos talvez dizer que essa expressão sonora ou gráfica convencionada entre os construtores realmente designa um objeto, sendo seu significado a referência à coisa. A associação entre palavra e objeto pode até mesmo ser acompanhada da ocorrência de uma imagem mental que é provocada na criança ao ouvir determinado som. Desse modo, estamos diante de um caso que parece se ajustar perfeitamente à representação do funcionamento da linguagem prevista pela concepção referencial da significação: a palavra tem um significado, designa alguma coisa.

Comparemos agora esse jogo com a situação seguinte:

A linguagem deve servir de comunicação entre um construtor A e um ajudante B. A executa uma edificação com blocos de construção; há disponíveis blocos, colunas, lajotas e vigas. B tem que lhe alcançar os blocos de construção na sequência em que A deles precisa. Para esta finalidade, eles se servem de uma língua que consiste das palavras: “bloco”, “coluna”, “lajota”, “viga”. A chama as palavras; - B traz a peça que aprendeu a trazer para este chamado (IF §2).

Nesse jogo, o vocabulário de nomes relacionado às pedras utilizadas na construção representa a totalidade da linguagem conhecida por esse povo imaginário. Nessa forma de vida, quando o construtor A profere determinada palavra, o ajudante B lhe entrega o material correspondente. Assim, por exemplo, ao dizer “lajota”, o construtor A anuncia a pedra que o ajudante B deve lhe entregar para dar continuidade à construção do edifício. Nesse exemplo, podemos ainda dizer que a palavra “lajota” tem o mesmo significado que o verificado no jogo preparatório do ensino ostensivo? Se sim, como B sabia o que fazer com a peça? A referência da palavra então é a ação ou a peça? Podemos ainda sustentar que o significado do enunciado de A é compreendido se, em vez de buscar a pedra, o ajudante se perder em pensamentos com a imagem mental do objeto? Ora, essas e outras perguntas deixam claro que o jogo introduzido por Wittgenstein mostra, por contraste, que mesmo a simples designação de uma coisa por meio de um nome presta-se a diferentes significados dependendo das circunstâncias (Umstände) em que a palavra é proferida. Nesse exemplo, ao dizer “lajota” para um ajudante B, o construtor A na verdade realiza um comando, segundo o qual o ajudante traz a pedra para continuar a construção. A despeito da evidente semelhança com o jogo da simples nomeação no ensino ostensivo, o uso do nome do objeto no jogo dos construtores não serve simplesmente à designação de uma coisa: a introdução de tais palavras aqui consiste numa ordem.

Nesses termos, tendo em conta os diferentes usos que podemos fazer das palavras em diferentes formas de vida - como nomear coisas, dar ordens, narrar histórias, descrever um objeto, traduzir e inúmeras outras - “quando dizemos que ‘toda palavra da linguagem designa alguma coisa’, com isso não se disse por enquanto absolutamente nada” (IF §13). Dito de outro modo, a referência das palavras às coisas não tem em si significado: o significado não é uma propriedade misteriosa advinda da aderência ou correspondência do nome à coisa nomeada. A relação entre signos e mundo, entre nome e coisas não é imediata, mas sempre mediada por práticas linguísticas variadas que constituem aquilo que Wittgenstein denomina domínio do gramatical. Não se trata obviamente da gramática definida como o conjunto de regras ortográficas ou sintáticas que regulam o uso correto de uma língua. A gramática profunda a que se refere Wittgenstein tem a ver com um conjunto de práticas, objetos, amostras que exercem uma função normativa e constitutiva do significado do uso dos conceitos em suas diferentes aplicações (IF §664). No primeiro caso de uso de “lajota” - aquele do ensino ostensivo por meio do qual as palavras são usadas em associação a objetos -, a gramática do jogo estipulava um uso para a nomeação claramente distinto daquele que caracteriza o jogo dos construtores, em que o termo tem outro lugar e função. O ponto essencial é que não é um ato mental específico, uma suposta intencionalidade ou uma referência oculta na própria elocução das palavras que diferenciam os dois usos. São as circunstâncias envolvidas nos jogos, em que palavras, atividades e objetos se articulam, que constituem o significado possível das palavras numa forma de vida.

Essa simples gota de observação gramatical a respeito de uma palavra banal como “lajota” condensa uma nuvem de reflexão filosófica. De fato, ao chamar nossa atenção para o papel constitutivo da gramática e das circunstâncias de uso de uma palavra, Wittgenstein afasta a tentação filosófica de procurar pela essência extralinguística que deve fundamentar o significado geral de uma expressão. Como ressalta Moreno, um dos resultados da descrição dos variados jogos de linguagem é a observação da função linguística exercida por objetos que de outra maneira tenderíamos a ver como exteriores à linguagem (MORENO, 1993, p.22). A clareza quanto às técnicas de introdução de paradigmas na linguagem evita confusões como as que estão na base da indagação filosófica pela relação presumidamente misteriosa entre o discurso e o que é. Ora, mesmo no jogo do ensino ostensivo de uma palavra como “lajota”, citado acima, o próprio objeto usado pelo construtor e referido pelo termo é elaborado como amostra ou paradigma de uso da palavra. Dito de outro modo, o objeto deixa de ser simples elemento exterior ao jogo de linguagem para ser organizado já como instrumento linguístico, isto é, como amostra de aplicação de uma palavra no contexto da prática linguística de nomeação. Nessa condição, torna-se uma regra de uso dessa palavra nessas circunstâncias: “lajota”, nesse jogo, são coisas no mundo semelhantes a tais objetos. Não se trata mais, portanto, de algo exterior à linguagem, mas de um aspecto do empírico que exerce uma função paradigmática no interior de uma linguagem.

Essa observação sobre o funcionamento de nossa linguagem cotidiana, embora flagrantemente trivial, não deixa de apresentar grande alcance para o esclarecimento da questão que incomodava os primeiros filósofos, a saber, a da relação entre ser e linguagem. Ao escolher ver o modo como usamos as palavras em variados jogos, o filósofo terapeuta acena para a autonomia de nossa linguagem em relação ao mundo. Nossos conceitos não se limitam a descrever ou intuir objetos existentes antes e independentemente da linguagem. Pelo contrário, fragmentos empíricos do mundo são ligados a conceitos por meio de técnicas linguísticas como a do ensino ostensivo de palavras, constituindo paradigmas de uso de certos termos em determinadas circunstâncias. Um mesmo objeto pode ser elaborado como instrumento linguístico de diversas maneiras a depender do jogo de linguagem em questão. Apenas no interior de uma prática linguística um objeto pode ser visto como tal: a gramática diz o que é um objeto (IF §373). Por ser autônoma em relação ao mundo, o domínio do gramatical é também arbitrário, isto é, não se trata de um efeito necessário de causas últimas. Os jogos que praticamos com nossa linguagem (nomear, dar ordens, oferecer uma definição, etc.) não descrevem ou referem entidades alheias ao nosso discurso, mas antes as articulam segundo regras tão convencionais quanto arraigadas numa forma de vida. Fosse outra a forma de vida, seriam outros nossos jogos, outra a nossa linguagem, outros nossos sentidos, outra a representação do que estamos dispostos a chamar de “linguagem”, “mundo” ou “ser”.

A terapia filosófica como atividade formativa

Como vemos, Wittgenstein não tem muita coisa a dizer, de maneira assertiva, a respeito do problema da identidade ser. Isso porque concebia a filosofia como uma atividade, não como um repertório de teses ou conceitos acerca de objetos variados. Em coerência com essa concepção, os escritos do segundo Wittgenstein poderiam ser descritos como exercícios de pensamento. Como sublinha um de seus comentadores, as Investigações Filosóficas são caracterizadas, desde sua composição estilística, pela convivência nem sempre discernível de múltiplas vozes, nenhuma das quais facilmente identificável a um autor (STERN, 2004, p.55). Não se encontram ali, à maneira dos diálogos filosóficos tradicionais, figuras encarnando pontos de vistas fixos. A polifonia wittgensteiniana não se reduz ao movimento da ordem das razões ou à marcha da exposição progressiva e totalizante de determinada ideia. Os múltiplos diálogos, interrogações, observações marginais, metáforas e travessões são simplesmente formas de pôr em jogo pontos de vista múltiplos sobre o uso de conceitos. Nesses jogos, o objetivo não é exatamente descobrir qual núcleo conceitual se oculta por trás desses recursos narrativos supostamente exteriores. Isso porque a proposta da obra é justamente engajar a vontade e o pensamento do leitor num drama vertiginoso, enredá-lo numa tarefa de esclarecimento a respeito das múltiplas possibilidades de sentido. O estilo, nesse caso, é a própria filosofia. Como prenuncia o autor no prefácio das Investigações Filosóficas, “com meu escrito não pretendo poupar aos outros o pensar. Porém, se for possível, incitar alguém aos próprios pensamentos”. (WITTGENSTEIN, 2009, p.4). Nesses termos, as marcas de estilo do texto wittgensteiniano revelam o propósito formativo da terapia filosófica. Como observa Almeida, a compreensão do que está em jogo nas investigações depende da atenção do leitor à forma de apresentação dos problemas, não somente ao conteúdo expresso pelas afirmações tópicas de vozes frequentemente anônimas (ALMEIDA, 2015, p. 44). Às proposições dogmáticas que veiculam imagens como a concepção referencial da significação, o autor contrapõe situações e observações pontuais como as mencionadas acima, voltadas a modificar nosso olhar e mostrar o caráter gramatical - portanto, convencional - de nossos conceitos. Daí a ambiguidade característica da frase escolhida como epígrafe deste trabalho: a mesma linguagem que nos leva a construir castelos de ar sob influência da imagem referencial é o meio empregado para a persuasão do leitor a respeito do caráter linguístico de nossa inquietação (IF §118). O feitiço da linguagem é tratado pela própria linguagem, organizada de modo terapêutico.

Esse papel formativo da terapia pode ser resumido na complexa noção de apresentação panorâmica ou sinóptica (übersichtliche Darstellung). Em linhas gerais, trata-se de mostrar exemplos de usos efetivos ou meramente possíveis das palavras em diferentes jogos de linguagem, reais ou imaginários, de modo a dissolver a inclinação filosófica pela procura de fundamentos absolutos ou objetos especiais capazes de ancorar o significado do que dizemos ou pensamos (como o “ser”, a faculdade da “compreensão”, o “significado”, a “identidade”). O uso de nomes discutido acima é apenas um desses casos: ao percebermos que, a depender das circunstâncias e da gramática do jogo, um nome pode significar coisas diferentes, somos persuadidos a rever a pressuposição aparentemente necessária de que o significado “corresponde” sempre da mesma maneira à coisa nomeada. Se nos dispusermos a reconhecer a multiplicidade dos usos de nossa linguagem, podemos evitar o reducionismo eventualmente presente nas tentativas tipicamente filosóficas de caracterizar a relação geral entre ser e linguagem. O efeito visado pela apresentação panorâmica dos incontáveis jogos que compõem o caleidoscópio da nossa linguagem é descrito nos seguintes termos por Wittgenstein:

Eu gostaria que você dissesse: “Sim, é verdade, pode-se também pensar nisso, isso pode mesmo acontecer”. - Mas eu queria então chamar a atenção de alguém para o fato de que ele está em condições de imaginar isso? - Eu queria por essa imagem diante de seus olhos, e seu reconhecimento dessa imagem consiste em que ele agora está disposto a considerar um caso dado de outro modo: ou seja, compará-lo com essa série de imagens. Eu modifiquei seu modo de olhar. [Matemáticos indianos: “Veja isto!”] (PU, §144)

Em outras palavras, a filosofia, segundo Wittgenstein, deixa “tudo como está” e não deve “explicar ou deduzir” coisa alguma. Cabe a essa atividade apenas pôr diante dos olhos daquele que padece da perplexidade filosófica alguns casos de uso da linguagem rememorados para propósitos determinados (IF §124-127). A ideia é descrever as confusões geradas no próprio uso das palavras e que acabam por animar determinados problemas filosóficos. Tal descrição não pretende cavar mais fundo ou ir além da aparência dos problemas, mas antes mostrá-los de outro ângulo, iluminá-los de outra perspectiva, compará-los e distingui-los de outros usos possíveis da linguagem. Trata-se de um exercício prioritariamente formal ou estilístico. Não parece ser outra a razão, afinal, que levou Wittgenstein a resumir sua atividade filosófica à imagem da composição poética ou valorizar o potencial instrutivo de poetas e músicos. Nessas atividades, o significado das respectivas obras não se baseia numa suposta mensagem doutrinária, mas na forma de apresentação, no modo de relacionamento interno de seu material (WITTGENSTEIN, 1980, p. 24 e 36).

Seria isso, como diz Deleuze no Abecedário, o “assassinato da filosofia”? (1996)4 Não nos parece. Wittgenstein comentou certa vez que as inúmeras anotações de seu espólio, que servem de base para toda sua obra tardia, eram conversas que mantinha consigo mesmo sobre problemas que o afligiam ou “meios” que encontrou para tratar suas próprias dores de estômago (ALMEIDA, 2015, p. 158). Ao destacar a importância do estado de intranquilidade provocado pelos dilemas filosóficos e pelos labirintos linguísticos correspondentes, Wittgenstein parece contar com o envolvimento do leitor na terapia proposta, isto é, com sua participação no exame de seus próprios pressupostos conceituais, na observação daquilo que seu próprio pensamento está inclinado a conceber sob a força das imagens (ALMEIDA, 2015, p. 31). Dito de outro modo, o reconhecimento dos jogos propostos nas sinuosas investigações pressupõe a familiaridade do leitor com a forma de vida filosófica em que as imagens podem emergir. Como se lê na seção 340, “não se pode adivinhar como uma palavra funciona. Deve-se olhar para sua aplicação e aprender com isso. A dificuldade, porém, é remover o preconceito (Vorurteil) que impede esse aprendizado. Não se trata de um preconceito estúpido” (IF §340, grifos nossos)

A dignidade atribuída ao preconceito filosófico, representado pelas imagens, encontra justificativa no fato de que deita raízes em nossa própria linguagem e pode ter grande importância em nossa forma de vida. Justamente por ser enraizado em nossos usos cotidianos da linguagem não é fácil notá-lo ou relativizá-lo. Significativamente, as Investigações Filosóficas são abertas com a citação de um trecho das Confissões em que Agostinho relata o modo como teria aprendido a usar a linguagem natural a partir da observação dos adultos. O tratamento dado à passagem, porém, frustra o leitor familiarizado com a arguição filosófica tradicional. A rigor, Wittgenstein não se interessa pelos eventuais argumentos especializados literalmente expressos pelo bispo de Hipona. Seus comentários referem-se antes àquilo que Agostinho, se indagado, parece inclinado a dizer, isto é, às “raízes” familiares a todos os falantes da linguagem cotidiana que podem eventualmente se prolongar nos ramos acabados do discurso filosófico (PU IF §1). Essas raízes ou imagens que condicionam a expressão do filósofo emergem de nossa linguagem comum e sua rede intricada de regras e técnicas correspondentes ao domínio do gramatical: técnicas como o ensino ostensivo de palavras, a introdução de paradigmas na linguagem, o domínio convencional do jogo da nomeação ou da enunciação e execução de ordens, a conversão de um objeto como amostra e regra de uso de uma palavra, etc. O risco a que está sujeito o filósofo ao exercer seu ofício é justamente o de esquecer ou ignorar que os conceitos com que opera são construídos nessas convenções gramaticais de nossa forma de vida. Não raro a filosofia tradicional representa, aos olhos de Wittgenstein, uma tentativa de transcender essa linguagem aparentemente chã em busca de fundamentos transcendentes. Como resultado, o filósofo colide com verdadeiros nonsenses e acumula machucados na tentativa de lançar seu entendimento para além das fronteiras da linguagem (IF §119). Ao negligenciar a diversidade de usos comuns de nossos conceitos e proceder à investigação de objetos de uma natureza especial, o filósofo é enredado no emaranhado de regras da própria linguagem - que, afinal de contas, constitui o meio e o instrumento de sua atividade (§125). Como vimos, a imagem que o faz cativo é geralmente a oferecida pelo modelo referencial, que o leva à procura pela forma geral da proposição ou pelo modo geral de relacionamento entre linguagem e mundo. Daí que a cura do pensamento acometido pelas imagens seja realizada pela comparação de usos de nossa linguagem com as confusões que antecipam argumentos filosóficos acabados:

O que nós, nesse caso, ‘somos tentados a dizer’, não é, naturalmente, filosofia; mas isso é a sua matéria-prima. Assim, o que um matemático, por exemplo, está inclinado a dizer sobre a objetividade e a realidade dos fatos matemáticos não é uma filosofia da matemática, mas algo que a filosofia teria que tratar (PU IF §254).

O aspecto formativo da filosofia do segundo Wittgenstein reside justamente no fato de relembrar banalidades sobre nossos usos da linguagem que, justamente por estarem diante de nós, parecemos incapazes de compreender: “afirmações das quais ninguém duvidou, e que só deixam de ser observadas porque estão continuamente diante de nossos olhos” (IF §415; cf. §89). Aparentemente caricatos, os jogos de linguagem como os expostos acima não deixam de chamar nossa atenção para o fato - tão relevante quanto ignorado na atividade de filosofar - de que as regras convencionais envolvidas nos usos dos conceitos constituem condição de sentido para aquilo que o filósofo pode dizer ou pensar em contexto filosófico. Esses usos simples da linguagem cumprem, assim, uma função transcendental, na medida em que não apenas descrevem uma experiência ou um objeto existente, mas antes instituem regras linguísticas que permitem dizer o que um objeto pode ser em determinadas circunstâncias. Daí o recurso frequente de Wittgenstein a exemplos de usos da linguagem em que são introduzidas regras convencionais que estabelecem relações internas, de sentido, entre palavras, sons, objetos e demais aspectos empíricos do mundo. Aparentemente toscas, essas situações mostram que essas ligações primárias constituem os limites dos sentidos dos conceitos que organizam nossa experiência. Esses jogos primários constituem o solo a partir do qual o filósofo pode se pôr a falar sobre o mundo. É justamente a aparente necessidade e evidência dessas regras convencionais de sentido que atrapalham o filósofo em seu nobre empreendimento (IF, §203). A tarefa da terapia filosófica, em contrapartida, consiste em lembrá-lo do caráter convencional desses jogos, frequentemente esquecido ou ignorado quando a linguagem “sai em férias” na reflexão filosófica. Ao perceber o papel constitutivo desses acordos tão profundos quanto “naturais” que organizam os sentidos de nossos conceitos - e, portanto, de nossa experiência no mundo -, podemos ver de outro modo a inquietação profunda que move a filosofia em busca de fundamentos de uma natureza quase divina: “nosso erro é buscar uma explicação onde deveríamos ver os fatos como ‘fenômenos originários’ (Ürphänomene). Isto é, onde deveríamos dizer: joga-se este jogo de linguagem” (IF §654). Assim, a profundidade da filosofia pode ser vista como reflexo da profundidade de nossa gramática.

Embora os argumentos polidos do filósofo profissional não sejam considerados em seus próprios termos pelo filósofo terapeuta, não se deve concluir que sua tarefa seja indiferente à tradição filosófica. Pelo contrário, Wittgenstein afirma expressamente o contrário na seção 109 das Investigações Filosóficas:

Toda explicação (Erklärung) deve sair, e apenas a descrição (Beschreibung) ocupar seu lugar. E essa descrição recebe sua luz, isto é, sua finalidade, dos problemas filosóficos. Esses não são problemas empíricos, mas são resolvidos (gelöst) através da visada (Einsicht) no modo de trabalhar de nossa linguagem, e de tal sorte que ele seja reconhecido: contra o impulso de mal entendê-lo. Esses problemas são resolvidos não pela apresentação de novas experiências, mas pela disposição conjunta do que já é há muito conhecido. (IF §109)

Não temos condições de comentar detalhadamente o que Wittgenstein entende por “resolver” um problema filosófico. Na verdade, comentadores discutem os termos da relação da obra tardia de Wittgenstein com os problemas filosóficos tradicionais (STERN, 2004). Para nossa argumentação, basta assinalar que a dissolução desses problemas não requer nem à formulação de contra-argumentos especializados (uma nova explicação), nem a apresentação de novos fatos empíricos. O trecho tampouco menospreza a importância dos problemas filosóficos - ainda que a dignidade desses impasses seja interpretada de um modo diverso daquele esperado pelo filósofo tradicional. Na verdade, as inquietações tipicamente filosóficas constituem a matéria prima que anima e lança luz sobre as observações fragmentárias e erráticas do segundo Wittgenstein. O desfile de afirmações e comentários sobre os mais diversos temas parece, à primeira vista, não apresentar nenhum interesse tipicamente filosófico. No entanto, a atenção à forma como as paisagens desse álbum se sucedem permite reconhecer a encenação de problemas filosóficos tradicionais, como o da relação entre ser e linguagem, apresentados como despretensiosos comentários sobre construtores, retratos e besouros, entre outros exemplos. Talvez um interlocutor às voltas com impasses semelhantes possa encontrar então referências para ver seus problemas sob outro aspecto, agora considerando o solo linguístico sobre o qual seus impasses - e as respostas esperadas - podem se erigir. Desse modo, a luta contra o enfeitiçamento da linguagem eventualmente presente na filosofia conta com a atenção do leitor ao trabalho da linguagem enfeitiçada para cumprir seu propósito. A filosofia converte-se assim numa atitude ou num exercício formativo diante de problemas dito “filosóficos”.

Sob esse aspecto específico, a obra do segundo Wittgenstein parece compartilhar de propósitos formativos característicos dos exercícios espirituais de certas tradições filosóficas antigas. Como relembra Hadot, desde sua origem, o termo sophia e o correlato posterior philosophia indicavam que “o verdadeiro saber é, finalmente, um saber-fazer”, de modo que o conhecimento filosófico não se deixa distinguir de seus modos práticos de expressão ou exercício. Ao se referir a um poema de Hesíodo sobre os dons da palavra das musas, Hadot observa que

Já aparece aqui a ideia, fundamental na Antiguidade, do valor psicagógico do discurso e da importância capital da habilidade da palavra. Palavra que opera em dois registros aparentemente muito diferentes, o da discussão jurídico-política: os reis decidem a justiça e põem fim à discórdia; e o do encanto poético: os poetas com seus cantos mudam o coração dos homens. (...) Nesse encanto, pode-se descobrir um esboço do que serão mais tarde os exercícios espirituais filosóficos, sejam eles da ordem do discurso ou da contemplação (HADOT, 2011, p. 39).

O comentário de Hadot reúne, sob o aspecto dos efeitos da palavra, as práticas filosóficas indicadas brevemente neste artigo: o uso da linguagem tradicionalmente classificado sob o rótulo da retórica, empregado pelos sofistas, de um lado, e os esforços dialéticos de contemplação das Formas característicos do modo de filosofar platônico. Desse ponto de vista, o aprendizado e a prática de certos usos da linguagem constituem o solo apropriado para a emergência das ideias e conceitos, de sorte que os enunciados teóricos, o conteúdo do que é dito, ganham sentido no contexto de uma forma de vida, na prática de determinados exercícios espirituais. O caso de Sócrates, um dos símbolos maiores da filosofia, parece bastante esclarecedor da indissociabilidade entre o conteúdo do discurso e a aprendizagem de um certo modo de vida representado pela prática do diálogo. Nas palavras de Hadot,

O próprio diálogo, como evento e atividade espiritual, já constitui uma experiência moral e existencial, pois a filosofia socrática não é a elaboração solitária de um sistema, mas o despertar da consciência e a ascensão a um nível de existência que só pode ser alcançado por meio da relação de pessoa a pessoa. (HADOT, 1995, p.163)

Não se trata evidentemente de equiparar os diálogos de Sócrates e a obra wittgensteiniana. Como vimos, o próprio Wittgenstein se definia como o oposto do mestre de Platão. Ao ler as Investigações, estamos distantes da formação do homem belo e bom e para o verdadeiro conhecimento do Ser. Tampouco nos aproximamos da aprendizagem de discursos razoáveis para os negócios da Cidade. Arriscamos a indicação dessa vaga e tênue semelhança de família apenas para sugerir que também na leitura de Wittgenstein nossos embates com a linguagem não se separam de um propósito formativo associado ao reconhecimento de seus labirintos e prodígios. Como mais uma vez observa Hadot, “o fato mesmo de reconhecer essa diversidade de jogos de linguagem, o fato mesmo de considerar a linguagem cotidiana como um fenômeno original, constitui um processo, supõe uma atitude” que tem seu lugar no que ele chama um “jogo de linguagem filosófico” (HADOT, 2007, p. 105). Talvez não aquilo que o autor das Investigações Filosóficas diz, mas antes o exercício formativo materializado em seu estilo de tratar os problemas, seja aquilo que o aproxima de uma forma de vida que ousou chamar, ainda que com muitas hesitações, “filosofia” (MONK, 1991).

Referências

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Outras referências

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1Os trechos da obra de Wittgenstein citados neste trabalho são de nossa própria tradução, cotejados, quando possível, com as traduções disponíveis relacionadas nas referências bibliográficas.

2A obra de Wittgenstein é geralmente dividida pelos comentadores em dois períodos, correspondentes grosso modo à publicação do Tractatus (1921) e ao conjunto de anotações que daria origem às Investigações Filosóficas, publicadas postumamente (1953). As ideias do segundo Wittgenstein referem-se aqui aos escritos do segundo período.

3Seguindo a notação convencional entre os comentadores da obra tardia de Wittgenstein, adotamos aqui a notação IF em referência ao título das Investigações Filosóficas (Philosophische Untersuchungen no original), seguida do número da seção referida. A edição consultada (2009) foi cotejada com as traduções listadas nas referências bibliográficas. Alguns termos relevantes ou potencialmente problemáticos foram mantidos no original entre parênteses.

4Uma transcrição do trecho da entrevista encontra-se disponível em http://stoa.usp.br/prodsubjeduc/files/262/1015/Abecedario+G.+Deleuze.pdf (Acesso em 09/08/2020)

Recebido: 10 de Agosto de 2020; Aceito: 30 de Novembro de 2020

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