I Introdução
É muito difícil encontrar uma tradução que possa satisfazer o significado do termo νοῦς. Já no Grego Clássico é difícil distinguir entre νοῦς e λόγος. Aristóteles define o ser humano em sua Política (I, 2. 1253a10) como um animal cívil (ζῷον πολιτικόν), a saber, como um animal que dispõe de linguagem (ζῷον λόγον ἔχον). Em Latim, encontram-se como possíveis traduções para νοῦς os termos ratio, intellectus, mens, animus e spiritus. Em português, ‘razão’ e ‘intelecto’ são os termos que traduzem melhor a noção de νοῦς, mas encontramos também: ‘inteligência’, ‘mente’ e ‘espírito’. Em Alemão a distinção está entre Verstand (segundo I. Kant a faculdade dos conceitos) e Vernunft (segundo I. Kant a faculdade das ideias); mas encontra-se também ‘Geist’: Phänomenologie des Geistes (G.W.F. Hegel); em inglês ‘reason’ e ‘mind’. Do ponto de vista morfossintático, o termo inteligência, intelligence, pode ser empregado no plural como os outros termos também. Enfim, o que está em questão é tanto a unidade do intelecto quanto a unidade da razão.
O termo ratio ‘razão’ tem a ver com a atividade intelectual do ‘raciocínio’, que Thomas Hobbes (Leviathan I, cap. 5) emprega para definir o procedimento científico como “reckoning with names”, quer dizer:1
For Reason, in this sense, is nothing but reckoning, that is adding and subtracting, of the consequences of general names agreed upon for the marking and signifying of our thoughts” (Pois Razão, neste sentido, nada mais é do que cálculo, isto é, adição e subtração das consequências de nomes gerais estabelecidos para marcar e significar os nossos pensamentos).
Talvez Aurélio Agostinho (Confessiones X, cap. 11), uma das fontes medievais até René Descartes, pode ajudar para um esclarecimento do significado de intelecto através do verbo cogitare: 2
[…] id est velut ex quadam dispersione conligenda, unde dictum est cogitare. nam cogo et cogito sic est, ut ago et agito, facio et factito. verum tamen sibi animus hoc verbum proprie vindicavit, ut non quod alibi, sed quod in animo conligitur, id est cogitur, cogitari proprie iam dicatur. (Quer dizer, precisamos dos conhecimentos existentes na memória para coligir (colligenda), subtraindo-os a uma espécie de dispersão. E do verbo cogenda, cogo vem o infinitivo cogitare; pois cogo e cogito são como ago e agito, facio e facito. Porém a inteligência reivindicou para si o verbo cogito, de tal maneira que apenas o ato de coligir (colligere), ou seja, o ato de juntar (cogere) no espírito, e não em qualquer parte, é que se chama propriamente “pensar” (cogitare)).
Entretanto, juntar o quê? Coligir nomes por meio da cópula ‘est’ em uma proposição de forma ‘S é P’, cujo sentido sabemos pela análise dos significados dos termos usados nessa proposição. Pensar em algo significa subtrair, separar, distinguir, analisar assim como coligir, recolher, juntar, sintetizar. Por isso, a noção de análise e síntese representa, falando de modo metafórico, dois lados de uma mesma moeda, ou seja, do mesmo método de conhecimento.
A noção de intelecto está intrinsecamente conectada com a noção de alma, pois é denominado por alma intelectiva. A tripartição da alma recebe a nomenclatura de acordo com suas principais atividades: anima vegetativa, sensitiva e intelectiva. Essa tripartição pertence à convicção comum da psicologia filosófica da Antiguidade. Nós temos em comum com as plantas a alma vegetativa, com os animais a alma sensitiva, mas a alma intelectiva representa o específico do ser humano.3
Neste ponto, precisamos recorrer - como sempre - à filosofia de Aristóteles, ‘o Filósofo’ na Idade Média, que define a alma como o princípio fundamental dos seres vivos, sua ἐντελέχεια, seu actus primus (ato primeiro), sua realidade enquanto seres vivos, ou seja, enquanto corpos naturais ou vivos que são compostos de alma e corpo; onde a alma é unida ao corpo4. Aristóteles diz (De anima II, 4. 415b13):5 τὸ δὲ ζῆν τοῖς ζῶσι τὸ εἶναί ἐστιν. Vivere viventibus est esse. Viver é para os vivos o ser (trad. por J.H.J. Schneider).
A alma é o princípio da vida e desta maneira “o ser dos seres vivos”. Além disso, a alma não é só o princípio da vida, ela é, sobretudo, estando unida ao corpo, a condição do ser humano na vida presente; a saber, quando o homem é um animal racional vivendo na terra como um animal pacífico que é “apenas às vezes beligerante” (Historia animalium IX, 1. 610 a 3-4).
A filosofia da natureza tem por objeto os seres que estão, por natureza, em contínuo movimento, cujo correspondente princípio intrínseco é a própria natureza. Se a alma é o princípio da vida e dos seres vivos, é preciso considerar as ciências da natureza que tratam dos seres vivos para localizar onde, dentro das ciências naturais, deve se investigar a natureza da alma (II). Em seguida (III), indicarei algumas observações sobre o intelecto, a saber, sobre o νοῦς, considerando que Aristóteles não tenha dedicado tratado sobre o intelecto e mostrarei vários significados do intelecto na obra aristotélica. Depois (IV) apresentarei uma pequena análise do De anima III, cap. 5. E por fim (V) me ocuparei com os capítulos 4, 5, e 6 do Livro III do De anima onde Aristóteles trata diretamente sobre o intelecto; aliás, o único trecho nas obras aristotélicas que tematiza em particular o intelecto, sobretudo o capítulo 5, onde Aristóteles distingue entre o νοῦς ποιητικός (intellectus agens, intelecto agente) e o νοῦς παθητικός (intellectus passivus, intelecto passivo) ou com o termo mais comum: intellectus possibilis, o intelecto possível. Este item dividirei em cinco parágrafos: § 1 O paralelismo da estrutura da percepção e da cognição; § 2 O dilema de Tomás de Aquino com o axioma: nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu; § 3 Abstração versus intuição; § 4 A unidade e a unicidade do intelecto; § 5 Lumen intellectuale - a luz natural da razão e VI a conclusão.
II. O De anima dentro da sistematização das ciências filosóficas da natureza
Segundo Aristóteles, a tarefa do filósofo é refletir sobre tudo, tomar tudo em consideração, teorizar tudo. Aristóteles diz em sua Metafísica (IV, 2. 1004a34-b1): Καὶ ἔστι τοῦ φιλοσόφου περὶ πάντων δύνασθαι θεωρεῖν (E é o próprio do filósofo ser capaz de contemplar, investigar e estudar tudo; trad. por J.H.J. Schneider).
Não há nenhum conteúdo sobre o qual a razão humana não possa refletir. A razão humana, junto com a filosofia, pode tematizar qualquer coisa, pois ela está aberta a qualquer conteúdo. Neste ponto, Aristóteles distingue entre coisas que existem por natureza (τὰ φύσει ὄντα) e coisas que existem pela arte (τὰ τέχνῃ ὄντα). Ademais ele define a filosofia, o amor sapientiae (amor à sabedoria), como a investigação das causas e dos princípios. Considerando a primeira frase da sua Metafísica: Πάντες ἄνθρωποι τοῦ εἰδέναι ὀρέγονται φύσει (Todos os homens desejam por natureza sabedoria e ciência) Aristóteles define este desejo natural, ou seja, esta paixão natural pela filosofia, como um saber das causas e princípios (Metaph. II, 1. 993b19-24). Marcos Túlio Cícero (De officiis II. ii, 5)6 definiu o estudo da filosofia de seguinte modo:
O sapientiae studium é o conhecimento, resp. a ciência (scientia) das “divinarum et humanarum causarumque […] rerum” (O estudo da sabedoria é uma pesquisa dos seres, ou também, dos entes humanos e divinos e suas causas e seus princípios; trad. por J.H.J. Schneider).
Em primeiro lugar, então, o estudo da filosofia é uma investigação das causas (αἰτίας) e dos princípios (ἀρχαί), sobretudo, da primeira causa e do primeiro princípio (ἀρχή) do ser que Aristóteles demostra no XII. Livro da sua Metafísica (cap. 7. 1072b1-5): o “primeiro motor imóvel” como uma causa finalis que move o mundo como um “amado” (ὡς ἐρώμενον).7 Considerando assim, as ciências filosóficas da natureza, também, devem pesquisar os seres que estão em contínuo movimento pelas suas causas e princípios.
O primeiro editor das obras aristotélicas, Andrónikos de Rhodes, os comentadores antigos (Alexander de Afrodísias, Themístius e Simplícius, entre outros) e os comentadores medievais fizeram das ciências naturais, ou seja, dos livros de Aristóteles sobre a natureza, um sistema de acordo com o princípio metodológico que toda a ciência deve cumprir, de que se parte do universal para o particular.
Seguramente, pode-se afirmar que o termo central da filosofia concernente à investigação da natureza é o conceito de movimento (κίνησις); pois as coisas naturais nos são manifestas que nos rodeiam e que são nossos companheiros. As coisas artificiais são, pelo contrário, coisas adicionais, coisas do luxo, não próprias da vida enquanto vida. Em primeiro lugar, então o céu, a saber, o sol que nos acorda dia a dia e cujo ‘movimento’ divide o dia em dia e noite, o ano em estações do ano: primavera, verão, outono e inverno.
A fala sobre o ‘movimento do sol’ deve-se à imagem antiga do mundo. Ainda hoje falamos ‘o sol nasce e o sol desce’ sabendo que esta proposição não é verdadeira, pois ela não corresponde à descrição cosmológica atual de que a terra possui movimentos de rotação e translação. Logo, um conhecimento se manifesta nos textos e livros; a saber: todo nosso conhecimento é um conhecimento das proposições publicadas nos livros. Um conhecimento das proposições é um conhecimento dos livros, ou seja, um conhecimento proposicional respondendo à questão ‘O que é X?’. A resposta a esta pergunta sempre tem a forma linguística ‘S é P’, ou seja, um determinado ‘o quê’.
De acordo com um método do processo científico que procede a partir do universal ao particular, encontramos nas ciências naturais, ou seja, nos livros de Aristóteles8 sobre a natureza a seguinte ordem:9
Nós começamos com a Physica (φυσικὴ ἀκρόασις) que investiga o movimento em comum,10 o ens mobile in communi ou o mobile inquantum est mobile,11 ou o motus e o principum motus como communissima omnibus naturalibus.12 Disso, precisamos continuar a pesquisa filosófica ao modo de “especificação” ou de “aplicação” do conhecimento geral, ou seja, do conceito universal do movimento em geral aos movimentos mais específicos;13 logo, aquelas coisas em movimento quae consequuntur ens mobile in communi. E isso pela seguinte ordem:14
Começamos com a (1) Physica como o livro fundamental das ciências físicas e a partir dele procedemos a outros livros restantes da natureza ao modo de especificação do conceito universal do movimento em comum; (2) De caelo et mundo (movimento circular); (3) De generatione et corruptione (movimento substancial); (4) Meteorologia (movimento entre lua e terra); (5) De mineralibus;15 (6) De anima (movimento da alma enquanto princípio da vida, em última instância sobre a alma intelectiva no homem que é um movimento circular (reflexão)); (7) De animalibus et plantis16 (movimento dos outros corpos vivos), ademais De morte et vita até De somno et vigília.17
Por causa dessa disposição de investigação pelos livros aristotélicos, Avicena nomeia em seu Kitab al-Shifa (sua enciclopédia das ciências filosóficas18) o De anima de Aristóteles como Liber Sextus de naturalibus (Livro VI dos livros sobre a natureza)19 que é o último livro dos livros naturais dentro do sistema aristotélico. Depois, há os parva naturalia, alguns dos quais Averróis comenta: De sensu & sensato, De memoria & reminiscentia, De somno & vigília, De iuuentute & senectute, De respiratione & inspiratione, De nutrimento & numibili, De sanitate & egritudine, De motu cordis;20 [De morte & vita; “et multis aliis breuitatis causa hic praetermissis”21].
Neste sistema aristotélico das ciências da natureza não se encontra uma pesquisa do intelecto; pois o intelecto em si considerado não pode ser um objeto da física, ou seja, da ciência natural que tem a ver com objetos naturais, quer dizer, com objetos compostos da alma e do corpo. E porque a alma (ἡ ψυχή) enquanto forma corporis é o princípio da vida, ela não é o objeto direto da ciência física, mas apenas o princípio dela; ou seja, a ciência física deve investigar seu objeto até o conhecimento de seus princípios.
O De anima de Aristóteles tem como objeto de investigação a alma unida ao corpo e materializada num corpo vivo que está constantemente em movimento. Entretanto, como o intelecto é um princípio imaterial, ele não pode ser considerado como um objeto da física, que trata das substantiae compostae de forma e matéria.
Neste ponto, Aristóteles afirma22 significativamente num escrito seu da natureza De generatione animalium que o intelecto advém ao ser humano de fora, θύραθεν. Assim o intelecto é o único divino no e do ser humano. Acerca disso o intelecto, ou seja, a anima rationalis é o único caso de uma forma que é de si mesma imaterial, a saber, separada da matéria; pois como uma força intelectiva ela não pode ser um ato atual de um órgão corporal.
Assim, a alma como forma corporis dá como toda a forma (forma dat esse A.M.S. Boécio) ao corpo vivo o ser: o ser natural, o esse naturale.23 Neste sentido, o terminus ad quem da consideração física é a anima rationalis, mas não como uma potência separada da matéria, mas como forma in materia.24 Essa distinção é decisiva, pois a consideração física deve conduzir seu objeto até o último termo da sua investigação quer dizer, até o intelecto. A teoria do intelecto se constitui, seguindo essa explicação, como um tema separado, à medida que seu atributo principal seja a imaterialidade. Deste modo, deve ser classificado como assunto da metafísica.25
III Nomen intellectus multis modis dicitur - o nome intelecto é enunciado de várias maneiras
Para Aristóteles é naturalmente bem claro que uma teoria da evolução do intelecto natural e humano é excluída das ciências naturais; pois ele não conhece esta teoria contemporânea da evolução. O intelecto advém ao homem de fora. Por outro lado, o ser humano faz parte da natureza, incluindo sua alma espiritual. A natureza, por sua vez, não pode ser um puro objeto do homem, seja das suas atividades intelectuais, seja das atividades práticas. Sempre quando o ser humano se relaciona com a natureza, ela é sujeito e objeto ao mesmo tempo.
O ser humano faz parte da natureza que nunca é um puro objeto dele. O intelecto por causa da sua imaterialidade não pode ser um objeto da pesquisa da filosofia natural. Logo, se Aristóteles fizesse uma filosofia do intelecto, que ele de fato não fez, então, essa pesquisa pertenceria à metafísica, e não à física. Essa é a resposta de Tomás de Aquino,26 diferente da resposta de Alberto Magno27 que considera, desde o início de uma pesquisa filosófica sobre o intelecto, esta pesquisa num contexto teológico: p.ex. o Liber de causis (que é uma metafísica da geração do mundo a partir do Uno) como a Theologia Aristotelis que, porém, passa a ser conhecida na Europa Latina apenas a partir do século XVI.28
O Liber de causis29 é um excerto da Elementatio Theologica de Proclo. Entretanto, a chamada Teologia de Aristóteles é um anônimo30 - como o Liber de causis também - e se refere às Enneades IV, V, e VI de Plotino - a conhecida Plotiniana Arabica - e deve ter sido escrito provavelmente por Al-Kindi que aparece no Incipit pelo menos como um revisor.31
Se não houvesse uma filosofia do intelecto, então seria impossível uma filosofia do ser humano, uma antropologia filosófica, pois ela perderia o essencial do homem da sua perspectiva científica, quer dizer: a razão estaria fora do alcance do homem. Aristóteles define o ser humano (Politica I, 2. 1253a2-3) como um ζῷον πολιτικόν (animal civile), a saber, como um ζῷον λόγον ἔχον, um animal rationale (1253a9-10: λόγον δὲ μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῷων) e a partir disso podemos considerar suas Éticas e sua Política como uma antropologia filosófica, uma ciência da natureza humana.
Aristóteles nega que o intelecto seja o resultado da evolução do homem. Uma teoria evolucionista não está no horizonte intelectual de Aristóteles. O νοῦς adentra ao ser humano de fora, θύραθεν, fazendo parte dele só como anima intellectiva (alma racional), a saber, como a diferença específica, o rationale, na definição do homem como animal rationale, pela qual o ser humano se distingue dos outros animais. Conforme uma dica de Aristóteles na sua Metafísica (IV, 2. 1003a33) τὸ ὄν πολλαχῶς λέγεται, podemos dizer também: Dixit Alfarabius nomen intellectus multis modis dicitur (Al-Farabi disse que o nome intelecto é enunciado de várias maneiras):32
(1) A primeira observação de Aristóteles acerca do significado do ‘intelecto’, ou seja, do seu uso linguístico encontra-se nos contextos da ética: No começo do VI. Livro da Ética a Nicômaco. Aristóteles refere-se à determinação do ὀρθὸς λόγος, recta ratio, ‘right reason’, ‘razão correta’ com respeito à πρᾶξις, a saber, aos atos humanos, nos quais a recta ratio sempre prescreve a escolha do ‘meio-termo’ (μεσότης) entre os extremos, como a virtude (ἀρετή) é definida em geral, assim também, a virtude intelectual (διανοητική), sobre a qual Aristóteles trata neste Livro VI,33 sobretudo da ‘prudência’ φρόνησις, da ‘sabedoria prática’.
Os atos humanos são estruturados por três fatores dominantes (Eth. Nic. VI, 2. 1139a20): αἴσθησις (sensus, sensação, sense), νοῦς (mens, intelecto, reason) e ὄρεξις (appetitus, desejo, desire).
O primeiro fator, a sensação como percepção sensitiva, não pode criar um ato, como se mostra nos animais que podem perceber, mas não agir. Seguindo a interpretação desta curta observação de Aristóteles, surgem bastante controvérsias na literatura científica do presente.34 Na realidade, esta questão é muito mais antiga. Em seguida da filosofia cartesiana David Renaud Boullier escreve no Prefácio da primeira edição de seu livro Essai Philosophique sur l’Âme des Bêtes: “où l’on trouve Diverses Reflexions sur la Nature de la Liberté, sur celle de nos Sensations, sur l’Union de l’Âme et du Corps, sur l’Immortalité de l’Âme”, Seconde Édition revue & augmentée, ”À laquelle on a joint un Traité des Vrais Principes qui servent de Fondement a la Certitude Morale”, Tome I, Amsterdam, chez François Changuion, 1737, À Monsieur de Fontenelle, Sécrétaire perpétuel de l’Académie Royale des Sciences, p. XXIX:
“L'Homme, nous dit-il, n’a d’autre guide que les passions; il va comme les Animaux Brutes, où l’attrait du plaisir le mene, & n’a par dessus elles que l’orgueil & la vaine gloire. Pour ce qui est d’une Ame spirituelle, de la Liberté, du pouvoir de pratiquer la justice & la Vertu; ce sont des privilèges chimériques qui n’ont d’existence que dans une présomptueuse Imagination. Ainsi parle le Libertin; […]. (p. XXVII): “[…] un de plus ingénieux paradoxes du Cartésianisme, & de savoir, si les Bêtes ont une Âme, ou si elles n’en ont point. […].” (p. XXX): “A quoi bom, dites-vous, ces subtils raisonnemens pour prouver qu’il y a de différents espèces d’Esprits? Mais si l’on accorde qu’il n’y a point entre les Ésprits des pareilles différences, voyons un peu ce qui s’ensuivra. L’Âme des Bêtes, car certainement elles en ont une, est toute pareille à la nôtre; sous des organes un peu moins délicats, elles ont mêmes facultes, & même intelligence que nous. Quoi donc!”
O segundo fator, contudo, o ‘intelecto’ no sentido da razão prática, atingindo a verdade, o bem por buscá-lo e evitar o contrário, ou seja, se afastar do mal. Do mesmo modo que a razão especulativa acerta a verdade pelas afirmações e negações, a razão prática acerta a verdade prática, a saber, o bem e o mal por buscar o bem e evitar o mal.35 Neste contexto, a φρόνησις (prudência) desempenha um papel importante como intermediário do primeiro princípio da razão prática, da recta ratio, do ὀρθὸς λόγος, de que bonum est faciendum et prosequendum et malum vitandum (deve-se fazer o bem e evitar o mal) com um desejo justo e correto em vista do fim último, que Aristóteles chama de felicidade, a εὐδαιμονία. Através do fim último, o ser humano realiza seu verdadeiro ser, ou seja, sua perfeição enquanto homem.36
(2) Um segundo significado, ou seja, uso linguístico do ‘intelecto’ encontra-se no contexto da primeira frase da Ética a Nicômaco: toda arte e toda ação visam um bem como o fim da atividade humana. O que é este bem, ou seja, o fim, que todo o mundo deseja por natureza? Este fim último, o bem absoluto Aristóteles chama εὐδαιμονία, a felicidade ou a beatitude. Aristóteles distingue - no Livro X da Ética a Nicômaco - a vida teórica (βίος θεωρητικός) da vida política ou prática (βίος πρατικός) como a segunda felicidade. A preferência pela vida teórica como uma vida contemplativa encontra-se neste livro associada com a determinação do fim último, a τελεία εὐδαιμονία, do homem na vida contemplativa, ou seja, da especulação, pois a filosofia especulativa realiza o ‘divino’, o νοῦς, no ser humano (ἐν ἡμῖν τὸ θειότατον) que não é um deus, mas que é ‘divino’ (Eth. Nic. X, 7. 1177a16).
Dessa perspectiva, origina-se a famosa tese da filosofia árabe, a saber, de Averróis de que a filosofia como ciência especulativa é a última perfeição da nossa alma, uma tese que Aegidius Romanus discute no início de seu comentário à Metafísica de Aristóteles, sua primeira frase: “Omnes homines natura scire desiderant”:37
Circa istam scientiam (!) primo quaeritur utrum methaphysica sit finis vel beatitudo ipsius hominis; et videtur quod non (Com respeito a esta questão está em dúvida, se a metafísica seja o fim, resp. a beatitude ou a felicidade do homem e parece que não; trad. por J.H.J. Schneider).
Ou Aubry de Reims: 38
Nam ut ait Auerroys in prologo octaui Phisicorum, esse hominis ex sui ultima perfectione […] est ipsum esse perfectum per scientias speculativas […].39 (Pois como Averróis diz no prólogo dos VIII Livros da Física, o ser do homem considerado a partir da sua última perfeição é o ser mesmo aperfeiçoado pelas ciências especulativas; trad. por J.H.J. Schneider).
(3) Um terceiro modo linguístico do ‘intelecto’ se encontra no Livro XII da Metafísica de Aristóteles. Depois da prova da existência do ‘primeiro motor imóvel’ (cap. 6-7) como causa finalis do mundo, do qual “dependem o céu e a natureza” (7. 1072b14) Aristóteles dedica-se à descrição da essência, ou seja, das atribuições e das propriedades deste primeiro motor imóvel, que ele chama também “o primeiro princípio” (πρώτη ἀρχή 1072 b 11), cuja existência ele já mostrou no Livro VIII da Física (cap. 7-9). E porque o movimento circular simboliza um movimento inteligível que é eterno e sempre está pensando em ato, sem interrupção, Aristóteles chama o primeiro princípio uma substancia (separada da matéria e do movimento corpóreo), ou seja, uma ‘inteligência’ ou até Deus,40 cujas caraterísticas são (Metaph. XII. 7. 1072b18-31):
A tese da identidade entre pensamento e objeto de pensar apresenta as seguintes “dificuldades” (ἀπορίαι): se Deus é “um ser vivo, eterno, maximamente bom” e sempre pensa em ato; e se pensar significa sempre pensar algo; o que Deus pensa? Se ele, sendo uma “inteligência” (νοῦς, ou seja, οὐσία νόησις), pensa ‘algo’, este algo deveria, enquanto um pensamento possível, limitar sua existência eterna e infinita de pensar; o que contradiz sua essência como uma contínua existência eterna, uma “substância mais excelente” (ἀρίστη οὐσία), que está sempre pensando em ato. Por outro lado, se Deus é apenas uma potência (δύναμις) de pensar em “certas coisas”, isto significaria um movimento para o “pior”; o que contradiz o fato de que Deus pensa sempre num sentido mais elevado o melhor. Mas a “vida maximamente boa e eterna” é sua própria vida. “A conclusão é que a inteligência pensa a si mesma, se é isto o melhor - e o seu pensamento é um pensar do pensar (νόησις νοήσεως)” (Metaph. XII, 9. 1074b15-34). Aqui, encontra-se a identidade do pensar e do pensado; por conseguinte, num sentido mais elevado, dá-se a auto identidade e a auto presença do espírito.
(4) Um quarto uso linguístico do νοῦς como οὐσία νόησις surge de uma questão do Livro XII, cap. 8. 1073a15-1074b14 da Metafísica: quantos “princípios motrizes imóveis” precisamos assumir fora do “primeiro movente imóvel” (τὸ πρώτον κινοῦν ἀκίνητον)41 para garantir uma explicação satisfatória da geração do céu e da natureza.
É bem claro que há apenas um único céu (οὐρανός (1074a31)). Contudo, a tradição aristotélica divide esse único céu em duas realidades diferentes: uma realidade acima da esfera da lua e uma abaixo da esfera da lua. Acima da esfera da lua, estamos lidando com os movimentos circulares dos planetas, que requerem um princípio para cada um de seus movimentos. Visto que um movimento circular é um símbolo de um movimento inteligente, os princípios dos movimentos planetários também devem ser princípios inteligentes. A tradição aristotélica chama estes “princípios motrizes imóveis” substantiae separatae (da matéria) ou substâncias inteligíveis, conhecidas em latim por intelligentiae. Determinar o número desses princípios é um assunto da astronomia ou da ‘geometria celeste’. Na realidade, o assunto das substâncias inteligíveis é discutido na metafísica, uma vez que o tema das substâncias inteligíveis exige a confrontação entre a eternidade divina e a temporalidade do mundo. A concepção filosófica da generatio ou a concepção teologica da creatio ex nihilo do mundo estão em questão. No Livro XII das Confessiones, Agostinho esforça-se para responder o problema da eternidade do mundo, segundo o qual há uma separação estrita entre a eternidade divina e a temporalidade do mundo. Segundo Agostinho o mundo é criado do nada e não gerado da eternidade.
IV. Análise do De anima III, cap. 5
O De anima de Aristóteles parte da investigação sobre a alma como princípio da vida. A alma, todavia, encontra-se nos seres vivos de modo diferente, seguindo uma regra, ou seja, do axioma42omne quod recipitur per modum recipientis recipitur (tudo o que é recebido, é recebido ao modo do recipiente).43 A alma se une ao corpo vivo de modo diferente, às plantas enquanto anima vegetativa, aos animais enquanto anima sensitiva, e aos homens enquanto anima intellectiva. A alma vegetativa e a alma sensitiva indicam aquilo que o homem tem em comum com outros animais: a alma vegetativa, crescer e morrer; nas plantas, o metabolismo; nos animais p.ex. o bater do coração, a digestão etc.; a alma sensitiva indica o que ela tem em comum com outros animais, como a locomoção e os órgãos sensoriais necessários para determinado movimento; a alma intelectiva indica aquilo que é o próprio do ser humano, a saber, aquilo que diferencia o ser humano dos outros animais.
Já observamos que o νοῦς (intelecto), segundo Aristóteles, adentra o ser humano θύραθεν; o νοῦς considerado em si não faz parte do ser humano; ele é isto só enquanto a alma (intelectiva) se une ao corpo humano, mas nas condições naturais do ser humano, a saber, enquanto o ser humano é definido como animal rationale. Tomás de Aquino usa o mencionado axioma omne quod recipitur per modum recipientis recipitur contra a teoria platônica do intelecto. Mas isto não é justo e certo; pois neste ponto, acerca do intelecto, Aristóteles não se afasta de Platão.44 Pelo contrário, Aristóteles continua o que Platão iniciou. Devemos entender a história da Academia de Platão como uma continuação crítica e como um aprofundamento filosófico-conceitual da filosofia de Platão.45
Desde os capítulos, 4, 5, e 6 do Livro III De anima de Aristóteles a discussão filosófica sobre a natureza do intelecto não acaba na história da filosofia. Ela continua com Franz Brentano.46 Estes três capítulos, sobretudo o capítulo 5, cuja autenticidade não está certa, são de grande importância não só para a filosofia antiga e os comentadores das obras de Aristóteles como o comentário de Teofrasto, de Alexandre de Afrodisias;47 e em seguida o de Simplício48 e Themístius49 entre outros, mas também para a filosofia do Oriente e Ocidente da Europa.
No capítulo 5 do Livro III De anima (430a10-19) Aristóteles distingue entre o νοῦς ποιητικός (nous poietikós) chamado pelos latinos de intellectus agens (intelecto agente) e o νοῦς παθητικός (nous pathetikós) chamado pelos latinos de intellectus passivus, ou seja, intellectus possibilis (intelecto possível), termos técnicos e filosóficos mais comuns. As caraterísticas do νοῦς ποιητικός (intelecto agente) são as seguintes:50
(a) χωριστός, separabilis, separado (da matéria);
(b) ἀπαθής, non mistus passioneque vacat, impassível;
(c) ἀμιγής, não misto (não é misto com a matéria, a saber, é puro);
(d) τῇ οὐσία ὥν ἐνέργεια, substantia sua actu, estando sempre em ato por (sua) natureza;
(e) ἁθάνατον καὶ ἀΐδιον, immortale aeternumque, imortal e eterno;
(f) πάντα ποιεῖ, omnia facit, que faz tudo;
(g) τιμιώτερον τὸ ποιοῦν τοῦ πάσχοντος καὶ ἡ ἀρχὴ τῆς ὕλης, semper enim id quod agit, praestabilius est eo, quod patitur, et principium materia; aquilo que age é sempre mais nobre do que aquelo que sofre, e o princípio mais nobre do que a matéria.
Todos estes atributos do intelecto agente são tirados do XII. Livro da Metafísica de Aristóteles ou o contrário; depende da historiografia das obras de Aristóteles que não posso descrever aqui.
O νοῦς παθητικός, o intelecto possível, apresenta-se com atributos contrários aos do νοῦς ποιητικός, do intelecto agente; o intelecto possível é o intelecto que pode tornar-se tudo, πάντα γίγνεσθαι (omnia fit), a saber, que inicialmente não está cheio das formas inteligíveis, como Platão acha que nossa alma (intelectiva) está cheia das formas que nós só deveríamos lembrar para que elas são nossos conhecimentos das coisas como tais. O intelecto possível adquire-as pelo princípio do intellectus agens, (quod omnia facit) ou seja, pela sua representação nos cognoscentes, pela luz natural da razão (nam et lumen colores qui sunt potentia, actu colores quodammodo facit) ou pela imaginação intelectual em nós. O intellectus possibilis, ou seja, passivus, é inicialmente vazio de qualquer conteúdo conceitual. Aristóteles o define como uma tabula rasa.51 Este intelecto deve ser entendido como um hábito (ἕξις); ele é, também, corruptível; pois nós pensamos às vezes e outras vezes não, por exemplo, quando dormimos. Nós sonhamos, neste caso, talvez esperando uma inspiração ‘de cima’ depois de um longo dia de pensar, mas não pensamos claramente em alguma coisa durante o sono. Ou seja, que a realidade que nos rodeia, seria um sonho, uma fantasmagoria, uma quimera onírica? Como então diferenciar sonho de realidade?
Aliás, René Descartes acreditava neste tipo de sonhos, como Adrian Baillet mostra na sua Biografia de R. Descartes, naquela noite de 10 de novembro de 1619;52 mas vice versa do Discours de la méthode de Descartes, onde a dúvida metodológica domina a cena. Aristóteles não escreveu um livro com o título: De somno et vigilia e De memoria et reminiscentia?53 E não é o Livro X das Confessiones de Santo Agostinho uma teoria da memória, ou seja, da reminiscência?
Tomás de Aquino (S.th. I, 79, 10c.) resume:
Sic ergo intelligentia ab intellectu non distinguitur sicut potentia a potentia; sed sicut actus a potentia. Invenitur enim talis divisio etiam a philosophis.54 Quandoque enim ponunt quatuor intellectus; scilicet intellectum agentem, possibilem, et in habitu, et adeptum. Quorum quatuor intellectus agens et possibilis sunt diversae potentiae; sicut et in omnibus est alia potentia activa, et alia passiva (Portanto, a inteligência não se distingue do intelecto como uma potência de outra potência, mas como o ato se distingue da potência. Divisão semelhante encontra-se também nos filósofos. Às vezes, com efeito, eles afirmam quatro intelectos, a saber, intelecto agente, possível, no estado de hábito, e intelecto consumado. Entre esses quatro, o intelecto agente e o intelecto possível são potências distintas, pois, em todas as coisas a potência ativa é distinta da potência passiva, Trad. Suma Teológica, Edições Loyola, Vol. 2, p. 457).
V Temas importantes do Livro III, cap. 4-6 do De anima de Aristóteles
§ 1 O paralelismo da estrutura da percepção e da cognição - nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensu
No final do capítulo 4 do Livro III De anima, Aristóteles faz uma comparação entre a estrutura da percepção sensorial e a estrutura da cognição; quer dizer, ele explica a estrutura do processo cognitivo através da estrutura do processo sensitivo. A percepção se relaciona com o percebido assim como o conhecimento com o conhecido. A estrutura dos dois processos é idêntica à tese provinda da Metafísica XII, cap. 9. Um conhecimento, tal como uma percepção, deve ser meu conhecimento ou minha percepção; caso contrário eu não poderia nem conhecer, nem mesmo perceber algo como tal. Portanto, o conhecido deve ser idêntico ao conhecimento, em outras palavras, o pensado e o pensamento não se distinguem, quando o conhecido é alcançado sem matéria, ἄνευ ὕλη (νόησις νοήσεως). De modo semelhante, o percebido deve ser o mesmo com a percepção, se alcançado em matéria.
Qual é, então, o verdadeiro objeto do intelecto? A species intelligibilis ou a coisa mesma enquanto representada no seu conceito?
A mesma dúvida pode ser estabelecida no âmbito da percepção: qual é o verdadeiro objeto dos sentidos:55 as coisas vistas pelos olhos, o melhor dos sentidos, ou as coisas enquanto representadas pelas imagens na imaginação, φαντασία, palavra-chave neste contexto?56 O aparente processo natural da percepção, do qual outros animais também são capazes, liga a natureza sensorial do homem com sua natureza racional.57 Franco Volpi começa seu artigo sobre o “problema da aisthesis” em Aristóteles com o seguinte provérbio nihil est in intellectu quod non fuerit in sensu: nisi ipse intellectus Leibniz.58
As duas perguntas, dúvidas, ou seja, o paralelismo entre cognição e percepção levam ao campo da intencionalidade59 e/ou da fenomenologia (Edmund Husserl e Martin Heidegger). Quais seriam os objetos por excelência da percepção e da cognição? Ou trata-se do mesmo objeto em níveis distintos? Conforme um famoso aforismo atribuído a Aristóteles:60nichil quod non prius fuerit in sensu cadit in intellectu (nada que não esteve primeiro nos sentidos pode ser inteligido (trad. J. Meirinhos) ou: não há nada no intelecto que já não estivesse nos sentidos),61 ou seja, melhor conhecida: nihil est in intellectu, quod prius non fuerit in sensu,62nisi intellectus ipse, como Leibniz acrescenta, seguindo este aforismo, na ausência de um dos sentidos, não há a ciência correspondente, como Tomás de Aquino (S.th. I, 84, 3c.) referindo-se à mesma fonte do início do De memoria et reminiscencia de Aristóteles, à qual também René Descartes (Meditationes II) deveria fazer referência.63
O primeiro ponto do Capítulo 5 do Livro III De anima junto com o início do De memoria et reminiscentia, sobretudo o que Aristóteles diz acerca da memória que se relaciona com o passado ἐν τῇ ψυχῇ λέγεται (falando com si mesma) tematiza, é o autoconhecimento do cognoscente,64 ou seja, do Ego, justamente o tema da II das Meditationes de Descartes.
§ 2 O dilema de Tomás de Aquino com o axioma: nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu
O dilema que Tomás de Aquino com o axioma nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu, atinge o conhecimento da essência divina. Enquanto Deus é uma entidade incorpórea e invisível, ele não pode entrar em nossos sentidos o que contradiz o mencionado axioma. Neste sentido Deus nunca entraria no horizonte intelectual da nossa mente, pelo menos não no sentido científico, talvez num sentido místico e narrativo, ou seja, pelas imagens metaforicamente ou figuradamente interpretadas. O dilema de Tomás é atingido em De ver. 2, 3 ad 19, mas não é resolvido aquí.65
Para resolver o dilema, Tomás faz dois passos na sua argumentação. O primeiro passo é (S.th. I, 87, 1): Utrum anima intellectiva seipsam cognoscat per suam essentiam. Com relação ao Capítulo 4 do Livro III De anima (430a2-9) onde Aristóteles diz que “no que é sem matéria, o intelecto é o mesmo que o que é inteligido” (τῶν ἄνευ ὕλη τὸ αὐτό ἐστι τὸ νοοῦν καὶ τὸ νοούμενον). Mas no que é com matéria, “o intelecto intelige a si mesmo assim como ademais”. Ora, a presença da mente de cada um de nós basta para que seu conhecimento esteja em ato; mas o conteúdo concreto do conhecimento é recebido ao modo da abstração. Como todas as coisas materiais (e a alma intelectiva é materializada por união ao corpo) estão em potência, é preciso que nosso intelecto (possível) torne-se em ato pelas espécies abstraídas dos sensíveis pela “luz do intelecto agente”, ou seja, pela “luz intelectual (lumen intellectuale) que há em nós” sendo “uma certa semelhança participada da luz incriada na qual estão contidas as razões eternas” (S.th. I, 84, 5c.). Quer dizer, a mencionada νόησις νοήσεως não corresponde às condições da nossa vida presente. Um autoconhecimento só é possível pelo conhecimento de outro conteúdo realizado por meio da abstração.66
No que diz respeito ao autoconhecimento, Tomás conhece com certeza Santo Agostinho Confessiones X, 8-12 (sobre a memória) e De Trinitate X, 10 onde Agostinho destaca que a alma conhece si mesma por sua presença. R. Sorabij (2006, op. cit. pp. 212sqq.) mostra, que tanto as obras mencionadas de Agostinho quanto as demais obras, p.ex. o Alcibiades I de Platão, Plotinus e De anima de Avicena são as fontes da Meditação II de Descartes. Isto é também a posição de Tomás quando se refere em S.th. I, 87, 1 à tese de Aristóteles sobre a identidade do intelecto e o que ele intelige, caso ele intelige “sem matéria”, ele intelige a si mesmo. Mas para isto basta a auto presença do espírito.
O segundo passo da argumentação é (S.th. I, 88, 3: Utrum Deus sit primum quod a mente humana cognoscitur): “O primeiro que é inteligido por nós, de acordo com o estado da vida presente, é a quididade da coisa material que é o objeto do nosso intelecto”. Mais abstratamente dito: quod primo cadit in intellectu est ens; o primum cognitum é o ser (De veritate, I, 1c, Ed. Leonina XXII, p. 5).67 Deus então não pode ser o primeiro conhecido por causa do estado da nossa vida presente.68 Nem nós mesmos podemos conhecer a nós mesmos de imediato. Um conhecer de si mesmo como também um conhecer de Deus só é possível por meio de um desvio: com relação ao conhecer de si mesmo pelo conhecimento do outro; a respeito do conhecimento de Deus pela prova da sua existência a partir da nossa experiência física. Deste modo, Deus pode entrar no horizonte intelectual cristão apenas como o princípio de todo o ser, mas não como objeto. Do mesmo modo, o ser humano só pode entrar no horizonte intelectual da nossa vida presente como o princípio, como sujeito, dono, senhor de seus pensamentos e de suas ações e atividades, mas não como objeto.
Os dois caminhos precisam de um modo de conhecimento aprovado pela natureza humana; e este modo de conhecimento é denominado abstração e separação, síntese e análise, afirmação e negação, demonstração e indução.
§ 3 Abstração versus intuição - convertendo se ad phantasmatas
O tema abstração versus intuição pode ser lido como um debate entre Aristótles e Platão.69 Platão prefere a intuição, enquanto Aristóteles prefere a abstração no processo cognitivo. Platão confia na iluminação pelas ideias; enquanto que Aristóteles confia no poder de nosso intelecto: conhecer uma coisa como tal coisa através dos conceitos ou dos universais.
Segundo um princípio bem conhecido: simile simili cognoscitur (o semelhante se conhece pelo semelhante)70 que Tomás de Aquino (S.th. I, 84, 2) usa contra os pré-socráticos e também contra Platão, aliás apoiando-se em Aristóteles (De anima I, 2. 404b11-18), pois o verdadeiro objeto do intelecto serão as ideias, uma concepção que fazia uma ciência da natureza impossível. Ele aceita a posição doutrinal de Platão de que todo conhecimento deve ser “universal, imaterial e necessário”, mas não porque as coisas conhecidas em si e para si são do modo como as ideias são.
Ao contrário: as coisas são conhecidas pelo conceito, a saber, pela diferença. Uma abstração se realiza em oposto ao princípio da individuação que é segundo Tomás a matéria (Sth. I, 84, 2c.). Um conceito deve ser o outro da percepção; pois ele é universal, imaterial e necessário, ou seja, com as palavras de René Descartes: claro e distinto, claro em si (intensão) e distinto para fora (extensão). Pois a pedra não está no intelecto, mas apenas o seu conceito (S.th. I, 85, 2c.): species intelligibiles a phantasmatibus abstractae, ao passo que as coisas sensíveis são coisas corpóreas e materiais que precisam ser representadas na imaginação por suas imagens.
Segundo I. Kant (Crítica da Razão Pura, B 75) um conceito (pensamentos) sem imaginação (intuição) é vazio; e uma imagem sem conceito é cega. A mesma tese, Tomás de Aquino reflete referindo-se ao Livro III do De anima (7. 431a16: διὸ οὐδέποτε νοεῖ ἄνευ φαντάσματος ἡ ψυχή) quando diz (S.th. I, 84, 7): nihil sine phantasmate intelligit anima: “[…] é impossível o nosso intelecto, de acordo com o estado da vida presente, no qual está unido ao corpo passível, inteligir algo em ato, senão voltando-se para as fantasias” (trad. Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento).
Se um conceito é o outro da percepção, ou seja, da imaginação, e se as imagens trazem o conteúdo a seu conceito formal ou abstrativo, então, não temos só a ver com a discrepância entre ‘abstração’ e ‘intuição’, mas também com a disputa medieval entre Platão e Aristóteles; este prefere a abstração ao contrário de Platão que prefere a intuição porque ela é o fundamento do conhecimento; pois é preciso saber antes de tudo o que é abstraído da coisa. Em última instância tudo depende da visão (intelectual) ‘direta’ (ἐξαίφνης) da ideia do Bem;71 é, claro, só depois um longo caminho do trabalho filosófico. Mas Aristóteles, aliás, junto com Platão,72 tem dúvidas; pois a visão fica cega quando olhando diretamente na luz, assim também o intelecto, ou seja, o espírito se ele visse imediatamente o primeiro princípio de todo o ser. Então, só Deus intelige tudo por sua essência, mas nem os anjos (intelligentiae) e nem, menos ainda, o ser humano (S.th. I, 84, 2c).
Se o axioma símile simili cognoscitur é bem comum entre as almas - como Tomás (S.th. I, 84, 2c.) resume a posição dos pré-socráticos - conforme um dito bem conhecido de que semelhantes se atraem, então, temos que pesquisar, como na parte sensitiva da alma do homem se estruturam a sensação, percepção e imaginação, tanto quanto na parte intelectiva: apreensão, compreensão, conhecimento, entendimento etc. Um conceito não pode ser completamente o outro da imaginação; entre os dois deve ter uma certa forma de semelhança para que um conceito possa representar a essentia, ou seja, a quidditas de uma coisa no intelecto; pois “a pedra não está na alma, mas só seu conceito, ou seja, sua imagem” (De anima III, 8. 431b29: οὐ γὰρ ὁ λίθος ἐν τῇ ψυχῇ, άλλὰ τὸ εἷδος): lapis non est in anima, sed species lapidis, ut dicitur in III De anima (S.th. I, 76, 2c.).
O termo ‘semelhança’ (similitudo, μίμησις) é tomado do 1o capítulo do De interpretatione (16a5-10) de Aristóteles73 que explica a ‘triangulação’ da linguagem:74 as palavras escritas (γραφόμενα) são “signos” (σύμβολα, signa) dos sons expressos com a voz (τὰ ἐν τῇ φωνῇ, sunt notae eorum quae sunt in voce); os sons mesmos são signos das representações75 evocadas na alma (τῶν ἐν τῇ ψυχῇ παθημάτων, notae passionum quae sunt in anima). Por outro lado, as representações mentais não são signos, mas ὁμοιώματα, simulacra: retratos, imagens, a saber, o que Boécio traduz por similitudines, semelhanças. A relação entre as palavras que são signos convencionais e variáveis e as representações mentais é uma relação simbólica, ou seja, designativa; ao passo que a relação entre as representações mentais e a coisa representada no seu conceito é uma relação mimética. A relação mimética é uma relação representativa e invariável entre os homens, pois as coisas são as mesmas para todos os homens (eaedem sunt etiam res, quarum hae passiones sunt simulacra. ac de his quidem dictum est in libris de anima). Para que a locutio (o ato de fala) seja significativa é preciso de acrescentar à voz articulada uma imaginação; por causa disso, assim diz Boécio em De interpretatione, 1, 1,76 Aristóteles tinha razão em chamar as palavras faladas de “signos dos pensamentos”77 (animae passionum notae). Palavras, então, designam as coisas através dos pensamentos ou imaginações, ou seja, através das representações mentais.78
Na S.th. I, 85, 2, lemos: Utrum species intelligibiles a phantasmatibus abstractae, se habeant ad intellectum nostrum sicut id quod intelligitur, Tomás responde assumindo a posição de Boécio que a species intelligibilis, a saber, um conceito ou uma representação mental do conceito é aquele pelo qual nosso intelecto intelige as coisas. Então a espécie inteligível, não é o conhecido. Como um conceito pode representar a essência de uma coisa no intelecto, se não é o conhecido por nosso intelecto? Em sua resposta (ibidem ad 3) esclarecendo a opinião de Aristóteles no De interpretatione Tomás distingue entre duas operações na parte sensitiva da alma, ou melhor, na parte sensitiva do intelecto: (1) a da modificação segundo a qual os sentidos são modificados pelo sensível. (2) a da formação, a saber, a faculdade imaginativa (vis imaginativa) “forma para si alguma imagem da coisa ausente ou mesmo nunca vista”.
Ambas estas operações unem-se no intelecto. Pois, considera-se primeiro a passividade do intelecto possível na medida em que é enformado pela espécie inteligível. Uma vez por ela formado, forma em segundo lugar uma definição, ou uma divisão ou uma composição, que é significada pela voz. Donde, a noção que o nome significa é a definição e a enunciação significa a composição e a divisão do intelecto. Portanto, as vozes não significam as próprias espécies inteligíveis, mas o que o intelecto forma para si, para julgar acerca das coisas exteriores. (Tomás de Aquino, S. Theol. I, q. 85, art. 2, ad 3um, trad. por Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento)
Então, além de uma semântica dos termos, a saber, dos conceitos enquanto sendo a curta forma de uma definição ou divisão, é preciso uma semântica das proposições,79 afirmações e negações, proposições silogísticas ou ademais proposições éticas, as das sentencas imperativas, sejam as categóricas ou sejam as da prudência. O modo da abstração, a saber, a análise do que é primeiramente visto sub quadam confusione (S.th. I, 85, 3c.) é acompanhado pelo modo da composição e divisão (ibid. a. 5), ou seja, pela síntese (convertendo se ad phantasmata); daí La querelle des universaux80 e p.ex. acerca do capítulo 9 do De interpretatione (amanhã ocorrerá uma batalha no alto mar): De futuris contingentibus.81
§ 4 A unidade e a unicidade do intelecto
O terceiro tema importante para os intérpretes do Capítulo 5 do Livro III De anima é a teoria do intelecto em particular. A unidade do intelecto está em questão. Além da tripartição da alma em anima vegetativa, sensitiva e intellectiva, o intelecto humano também parece ser dividido em diversos aspectos. Os aspectos mais importantes são:
(a) a diferença entre o νοῦς ποιητικός, intellectus agens (intelecto agente) e o νοῦς παθητικός, intellectus possibilis, ou seja, passivus (intelecto possível ou passivo);
(b) a diferença entre razão prática, resp. φρόνησις, prudência, e razão teórica, resp. ἐπιστήμη, ciência;
(c) a diferença entre διάνοια no sentido de um raciocínio, segundo Immanuel Kant Verstand, a faculdade de compreensão, de conceitos (Begriffe) e νόησις no sentido de um entendimento, mens (mente), Vernunft a faculdade de ideias (Ideen).82
Ad (c), no proémio do comentário aos Analytica posteriora, chamado Expositio Libri Posteriorum, (Ed. Leonina I/2, pp. 4a-5a), Tomás de Aquino distingue entre três operações do intelecto:
Sunt autem rationis tres actus. […] uma enim actio intellectus est intelligentia indiuisibilium, siue incomplexorum, secundum quam concipit, quid est res, et hec operatio a quibusdam dicitur informatio intellectus, siue ymaginatio per intellectum; et ad hanc operationem rationis ordinatur doctrina quam tradit Aristotiles in libro Praedicamentorum; secunda uerum operatio intellectus est compositio uel diuisio intellectuum, in qua est iam uerum et falsum; et huic rationis actui deseruit doctrina quam tradit Aristotiles in libro Peryermenias. Tercius uero actus rationis est secundum id quod est proprium rationis, scilicet discurrere ab uno in aliud, ut per id quod est notum deueniat in cognitionem ignoti; et huic actui deseruiunt reliqui libri logice.
A primeira ação do intelecto que Tomás chama intelligentia é a simples apreensão das coisas indivisíveis ou incomplexas. Esta ação é chamada também informatio (formação) do intelecto ou imaginação pelo intelecto. A esta ação pertencem as Categorias de Aristóteles. A segunda ação, ou seja, operação do intelecto que Tomás chama também ratio (razão) é a compositio (composição) e divisio (divisão), a saber, o modo de compor uma proposição afirmativa ou negativa (divisão) por termos simples, a saber, por nomes e verbos. A esta ação do intelecto pertence o De interpretatione. A terceira operação da razão que atinge o ‘próprio’ da razão é o discurso, mais certo, onde a argumentação partindo do conhecido para descobrir o que não é conhecido ainda. A esta ação da razão pertencem os reliqui libri logice, são os Analitica priora e posteriora, a Topica, os Sophistici elenchi, a Rhetorica e - como é comum na filosofia árabe83 - a Poetica também.
Neste contexto, é importante a tese de que uma percepção dos objetos sensíveis é de certa forma um conhecimento, uma compreensão e não uma mera ‘impressão’ ou ‘sensação’, pois a imaginação é, de certo modo, uma atividade de nosso intelecto.
Ademais, deve-se considerar a tese de que a verdade e falsidade são propriedades ou qualidades das proposições e não das coisas. A verdade se define geralmente como adaequatio intellectus et rei.84 Uma proposição é verdadeira quando ela exprime o que é o caso ou o fato e quando ela exprime o que não é o caso ou o fato.85
Neste contexto o termo ‘semelhança’ carrega novamente um papel importante; pois verdade e falsidade de uma proposição dependem do significado deste termo; nam in compositione et divisione est veritas aut falsitas (pois na composição e na divisão encontram-se a verdade e a falsidade).86 Logo, o entendimento do verdadeiro e do falso (intelligentia veri et falsi) se encontra no λόγος ἀποφαντικός (De interpretatione 1) na afirmação ou na negação, ou seja, numa proposição afirmativa ou negativa que deve estar conforme à realidade da coisa, ou seja, em consonância com a realidade da coisa, ou seja enfim, ‘assimilada’ e adequada à coisa enunciada na proposição correspondente.
Ad (b) O que atinge a relação entre razão prática e razão teórica, resp., ‘razão pura’ (I. Kant) se encontra no nível dos princípios de ‘ambas razões’. Na realidade, é impossível ter a ver com duas ‘razões’. Mesmo R. Descartes não faz uma possível separação, se recordo sua Regulae ad directionem ingenii. Os princípios das ‘duas razões’ devem ser os mesmos. Ou seja, a verdade da razão prática87 e da razão teórica deve prosseguir as mesmas regras formais da razão. Se trata então da unidade da razão humana em suas ambas direções, na direção prática, ou seja, ética, e na direção teórica.
Embora o intellectus speculativus e o intellectus practicus não são potencias diferentes, eles se diferem enquanto suas direções são diferentes: O intellectus speculativus considera as coisas naturais e sobretudo suas próprias operações. Neste ponto, ele fica com si mesmo e não se expande a outras coisas. Mas ele se difere quando se expande as outras coisas que não são as próprias dele, p.ex. à vontade. Então o intellectus speculativus per extensionem fit practicus (o intelecto especulativo torna-se um intelecto prático pela extensão), como Tomás (S.th. I, 79, 11 sed contra) se refere ao Livro III De anima (cap. 10. 433a14-15) de Aristóteles para concluir (corpus articuli):
Nam intellectus speculativus est, qui quod apprehendit non ordinat ad opus sed ad solam veritatis considerationem: practicus vere intellectus dicitur, qui hoc quod apprehendit, ordinat ad opus. Et hoc est quod Philosophus dicit in III De anima quod speculativus differt a practico, fine (τῷ τέλει). Unde et a fine denominatur uterque: hic quidem speculativus, ille vero practicus, idest operativus. (O intelecto especulativo é aquele que não ordena o que apreende para a ação, mas somente para a consideração da verdade. Ao contrário, o intelecto prático ordena para a ação aquilo que apreende. E isso o que diz o Filósofo no livro III da Alma: “O intelecto especulativo é diferente do prático por seu fim”. Por isso, um e outro são denominados segundo seu fim, um especulativo, e o outro prático, isto é operativo; trad. Suma Teológica, Edições Loyola, Vol. 2, p. 459).
No seu tratado sobre a lei natural (lex naturalis) Tomás (S.th. I-II, 94, 2) explica, que os primeiros princípios da razão especulativa são para o intelecto, assim como os primeiros princípios da razão prática. Assim o primeiro princípio da razão especulativa, a saber, o princípio da não-contradição fundado no conceito do ser (ens) se comporta de igual modo como o primeiro princípio da razão prática (bonum est faciendum et malum vitandum) fundado no conceito do bem (bonum). A intermediação deste primeiro princípio da razão prática sendo um princípio formal com os conteúdos concretos vindo do desejo, ou seja, do apetite (appetitus) é a tarefa da prudência (φρόνησις); como a intermediação do primeiro princípio da razão especulativa sendo também um princípio formal com os conteúdos científicos vindo da experiência é a tarefa do raciocínio (διάνοια). Acerca do intelecto humano, não se trata de dois intelectos, mas de um intelecto só em várias manifestações e finalidades.88
Ad (a) A diferença entre νοῦς ποιητικός (intellectus agens) e νοῦς παθητικός (intellectus possibilis) é a mais importante, tanto na linha da tradição da filosofia árabe quanto na da filosofia latina medieval. Nesta diferença se encontra o que é a verdadeira questão de uma teoria do intelecto; de uma Filosofia da Mente, Philosophy of Mind, como se diz em seguida de Gilbert Ryle,89 porém, a psicologia filosófica de Aristóteles é mais ampla.
Ora, a tese aristotélica da identidade do intelecto e do inteligido que Tomás aceita apenas com respeito à entidade divina, mas não com respeito ao intelecto humano de que o inteligido seria o verdadeiro objeto do intelecto e consequentemente o mesmo como ele, leva ao problema da unidade do intelecto que é o tema central surgido com a tradução latina do Comentário de Averróis ao De anima de Aristóteles no século XIII e eficaz até, pelo menos, o século XVI,90 senão além.
O conhecimento científico, em sua estrutura de universalidade, necessidade e imaterialidade, a saber, da objetividade, requer, no caso ideal do conhecimento, a identidade do intelecto e do inteligido. Para Tomás de Aquino o inteligido não é o primeiro conhecido, mas apenas o pelo qual, ou seja, através do que nosso intelecto intelige as coisas.
Isso é dito contra Averróis para que a compreensão subjetiva de uma coisa objetiva, ou seja, do processo objetivo da ciência, precisa também ser unida e não multiplicada. De onde vem a tese famosa dos averroistas medievais de que só há um único intelecto para todos os homens; e sua crítica a partir do lado de Alberto Magno e Tomás de Aquino no De unitate intellectus contra averroistas - bem notado “contra averroistas” e não contra Averróis em que não se encontra uma defesa dessa tese,91 pelo menos não expressis verbis - que refutam essa tese; pois neste caso não seria possível que hic homo intelligit (que este homem aqui intelige). Aliás, Tomás de Aquino apoia-se em Averróis como o comentador de Aristóteles para se basear num fundamento certo em sua própria interpretação de Aristóteles.
O que é, então, o verdadeiro sujeito do Cogito cartesiano? Uma République des lettres et sciences, um anonimato, ou o Ego individual, uma pessoa autêntica? E por que Descartes usa a forma de um silogismo, cogito ergo sum? O que significa o sum? O mesmo trecho do Livro III do De anima experimenta interpretações diferentes e às vezes opostas como o debate sobre o De anima no século XVI e XVII mostra.92
Martha C. Nussbaum levanta as questões correspondentes em sua introdução aos Essays on Aristotle’s De anima por ela organizado:93
(1) Acerca do status ontológico do νοὑς: Qualquer investigação científica inclui de certa forma uma separação do λόγος da sua matéria a ser investigada: a) Há um λόγος que não é separável da sua matéria (πράγματα), nem secundum esse, segundo sua existência, nem analiticamente, secundum rationem, p.ex. a medicina. b) Há um λόγος que é separado da sua matéria apenas analiticamente, secundum rationem, mas não secundum esse, segundo a sua existência real, p.ex. a matemática e c) Há um λόγος que é separado da sua matéria secundum esse, segundo da sua existência e secundum rationem, analiticamente (De anima I, 1. 403b10sqq). Se há uma função ou parte da alma que pode existir separada e independente da alma, então não faz parte da pesquisa sobre a alma, mas pertence à metafísica (403b15). No Proêmio de seu comentário da Metafísica de Aristóteles Tomás repete, ou seja, apresenta as mesmas distinções: a separação do λόγος (a perspectiva formal: ratio formalis obiecti) do objeto da pesquisa secundum rationem e/ou secundum esse.
(2) Cada e qualquer alma (ψυχή) é λόγος ἔνυλος (403a25), um logos relacionado à e realizado na matéria: a) p.ex. locomoção, crescimento etc. que o φυσικός investiga, pois envolve uma mudança física (κίνησις τἡς ὕλης); b) alguns aspetos são analiticamente separáveis da matéria, p.ex. percepções, desejos, fantasias que não causam uma mudança da matéria sujeitada à pesquisa. Contudo, são relacionadas com ela, p.ex. a percepção visual não muda o processo físico nos olhos; ademais, afecções (πάθη), emoções, paixões, podem mudar o organismo, mas também um tipo de pensamento, p.ex. quando alguém é pego em uma mentira, ele cora de vergonha; que é então um conjunto de pesquisa física e psicológica. Eu pulo estas questões e passo para o assunto em questão.
(3) Aristóteles designa a alma como a ἐντελέχεια, actus primus, princípio, causa da vida e das suas atividades (actus secundus). Uma primeira e a fundamental das atividades é a autopreservação do indivíduo e a manutenção da espécie. O νοῦς faz um papel específico do ser humano. O homem pode manter sua vida e levar sua vida apenas pela razão. Ele dispõe de nenhum outro equipamento natural que poderia compensar suas deficiências naturais além do seu intelecto. E por isso Aristóteles define o homem como um ζῶον πολιτικόν, um animal sociale et politicum, a saber, como um ζῶον λόγον ἔχον, um animal que possui linguagem, o animal o mais comunicativo como Tomás comenta.94
Já mostramos acima em vários aspectos as atividades do intelecto, da razão, da mente, da prudência, do raciocínio etc. em favor de uma boa vida (εὗ ζῆν). Tudo isto pertence ao actus secundus da alma. Se, então, há uma função da alma que é separada dela, seja enquanto uma atividade, seja enquanto uma entidade independente, precisamos de uma reflexão metafísica que possa esclarecer o significado da distinção entre νοῦς ποιητικός, intellectus agens, e νοῦς παθητικός, intellectus passivus. O que realmente o intellectus agens faz?95 Esta questão, porém, é uma questão metafísica que interessa aos intérpretes medievais, pois é erigida a partir da síntese da filosofia e teologia.
§ 5 Lumen intellectuale - a luz natural da razão
Para os autores medievais esta diferença entre νοῦς ποιητικός (intellectus agens) e νοῦς παθητικός (intellectus possibilis) é a mais importante. Deste problema, origina-se a tese de Étienne Gilson de “l’augustinisme avicennisant”. A tese de Gilson, elaborada, entre outras, com referência à S.th. I, 84 de Tomás, significa o seguinte: a reinterpretação da teoria platônica das ideias como ideias divinas e realmente criadoras, ou seja, razões eternas, através da teoria do intelecto agente tirada da filosofia de Avicena.
É bem conhecido que Tomás rejeita a teoria platônica das ideias (a. 1, 2 e 3). Ideias não podem ser substâncias separadas e causas, também não são entidades independentes. Avicena aceita a teoria das ideias, mas nega que elas fossem entidades autônomas ou subsistentes, como em Platão. Elas devem ser pensamentos de um intelecto, a saber, dos intelectos separados até o último intelecto, o intellectus agens que, na filosofia de Avicena, situa-se na esfera da lua, a partir de lá elas advêm (effluant) à nossa alma.
Então, nossos conceitos, as species intelligibiles das coisas naturais advêm à nossa alma a partir de “certas formas separadas” enquanto ideias do intelecto agente, quer dizer, a alma intelectiva recebe as espécies inteligíveis do intelecto agente. Ela fica neste ponto puramente receptiva quando intelige algo como tal coisa. Ademais, as ideias, espécies inteligíveis, ou seja, as formae separatae voltam para o intelecto agente. Cada vez quando a alma intelige algo como tal coisa, ela recebe as espécies inteligíveis novamente. Para receber as formas separadas a alma deve se preparar por uma vida saudável para que o intelecto possível não seja perturbado pelas paixões (a. 4).
No artigo 5, da mesma questão: Utrum anima intelectiva cognoscat res materiales in rationibus aeternis Tomás refere-se diretamente a Agostinho Confessiones XII, ao II. Livro do De doctrina christiana, às Octoginta trium Quaestiones e ao IV. Livro De trinitate. Mas já no X. Livro das Confessiones cap. 11: “Memória e ideias inatas” Agostinho reinterpreta a teoria platônica das ideias como rationes aeternae, ou seja, divinae.
Apesar da teoria da participação de nosso intelecto nas formas separadas e subsistentes por si, é “estranho à fé que as formas das coisas subsistam por si sem matéria, fora das coisas […] como certas substâncias criadoras”. Tal pressuposto contradiz a fé, pois só Deus é criador. Por isso Agostinho
“sustentou, no lugar destas ideias […] que as razões de todas as criaturas existem na mente divina, de acordo com as quais tudo é formado e, de acordo com as quais, também, a alma humana conhece tudo”.
Ora, algo pode ser visto em algo como o rosto que se reflete no espelho. De outro modo algo pode ser visto em algo como no princípio; quando dizemos algo é visto no sol enquanto é visto pelo sol. Desta forma a alma humana conhece tudo nas razões eternas por participação:
“De fato, a própria luz intelectual (lumen intellectuale) que há em nós, nada é além de uma certa semelhança participada da luz incriada (quaedam participata similitudo luminis increati) na qual estão contidas as razões eternas (in quo continentur rationes aeternae).”
O que Gilson chama com sua tese de “l’augustinisme avicennisant” é o seguinte: Tomás aceita a reinterpretação da teoria platônica das ideias como ideias divinas; mas como nós não conhecemos as ideias divinas, Tomás precisa de um fundamento filosófico que ele encontra na teoria de Avicena do intelecto agente, segundo o qual as ideias não são substancias por si subsistentes, mas ideias de um intelecto, a saber, do intelecto agente que é representado em nós pela luz intelectual enquanto princípio de nosso conhecimento.
O que Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento96 mostra na sua detalhada análise das questões 84-89 da primeira parte da Suma de Teologia com referência a um grande artigo de É. Gilson: Pourquoi saint Thomas a critiqué saint Augustin é que Z. Kuksewicz apresenta em seu artigo97com referência não a Avicena, mas a Aristóteles; a saber, em diferença à tese de Agostinho de uma teoria do conhecimento enquanto iluminação divina. Tomás de Aquino e outros autores medievais como Sigério de Brabant se referem a Aristóteles que conhece a comparação do intelecto agente, o princípio do conhecimento com o sol (De anima III, 5. 430a15) como princípio das coisas coloridas. Porém, a metáfora do lumen intellectuale enquanto participação da luz divina fica e que não se encontra no De anima de Aristóteles,98 nem nos comentadores gregos como Alexander de Afrodisias.99 Essa metáfora se encontra em Agostinho Confessiones X cap. 8 n. 12 sob a metáfora da luz no “palácio da memória” enquanto a luz natural da razão, ou seja, a luz natural do “homem interior” que é o Ego mesmo, o espírito e a mente.
O que permanece é a confiança em que o mundo é devido a uma inteligibilidade, ou seja, à inteligência divina. Com respeito a isto, Tomás repete um axioma muito influente na Idade Média: opus naturae est opus intelligentiae, quer dizer: a natureza é uma obra da arte divina; o mundo é um artefato - cuja teoria e justificação Platão fundamenta no livro X Das Leis (Nomoi) - e Deus artifex mundi.100
Tomás combina este axioma com um outro, ars imitatur naturam, vindo da Física de Aristóteles (Phys. II, 2. 194a21-22: εἰ δὲ ἡ τέχνη μιμεῖται τὴν φύσιν): A arte procede como a natureza procederia se a natureza fosse arte.101 E porque o princípio da arte sempre é um conhecimento,102 então Deus é o architectus mundi, e o mundo, sua imitação, ou seja, imago dei.103 De ambos os pensamentos, em que a arte imita a natureza e em que a obra da natureza é a obra da inteligência, provém a noção do Deus como architectus mundi, quer dizer: “natura nihil est aliud quam ratio cuiusdam artis, scilicet divinae, indita rebus”,104 ou seja, com alusão a 1 Cor 3, 10: “Segundo o dom que Deus me deu, como arquiteto experiente coloquei o alicerce”.
Em seu comentário da Peri hermeneias de Aristóteles, Tomás de Aquino escreve explicitamente:105
Et quia omnia, etiam naturalia, comparantur ad intellectum divinum sicut artificialia ad artem, consequens est ut quelibet res dicatur esse uera secundum quod habet propriam formam secundum quam imitatur artem diuinam; quia quelibet res naturalis per suam formam arti diuine conformatur. Vnde et Philosophus in I Phisicorum formam nominat quicquam diuinum (Phys. I, 15. 192a16-17).
Em relação à crítica de Aristóteles da doutrina platônica das ideias, Tomás aceita no seu comentário da Metafísica de Aristóteles (In Metaph. I, lec. 15 n. 9) a opinião aristotélica, mas acrescenta que Aristóteles não contesta que a ciência divina é a causa exemplaria das todas as coisas. Porque o mundo não surgiu por acaso, mas é feito por deus pelo intelecto agente, é necessário que exista no intelecto divino uma forma segundo cuja semelhança o mundo é criado: “Et in hoc consistit ratio ideae“ (Sth. I, 15, 1). Esta forma é o Bem (I, 46) que Deus quer necessariamente. Aristóteles afirma em sua Física (II, 6. 198a10-14) que
a natureza não está ativa infundadamente. Nada acontece nela sem motivo, quer dizer, por acaso e por coincidência cega, pois, se o acaso poderia ser a causa do universo, bem antes dele a natureza e o pensamento são necessariamente a causa para muitas outras coisas e para este tudo do ser.
Parece que, neste ponto, Aristóteles está de acordo com Platão quanto à necessidade do ato de pensar como primeira causa do tudo do ser, ou seja, a questão não é, para Aristóteles, a teoria das ideias, mas a investigação adequada do primeiro princípio que é o primeiro motor imóvel, do qual o tudo do ser depende.
Enfim, os capítulos 4, 5 e 6 do Livro III do De anima de Aristóteles são tão importantes para os intérpretes medievais porque levam as reflexões sobre a geração ou criação do mundo, sobre sua inteligibilidade, sobre a pluralidade em face da unidade divina, sobre o conjunto do espírito e matéria; as várias reflexões diferentes sobre o intelecto, a inteligência (em plural: inteligências), a mente, e a razão (ratio) nas condições da vida humana presente, ou seja, terrestre; e sobretudo a reflexão sobre o Uno e a pluralidade das coisas existentes em seguida da dialética da primeira hipostase do Parmenides de Platão enquanto se reflete na filosofia árabe.106
VI Conclusão
Já os comentadores antigos de Aristóteles prestaram muita atenção a esta estrutura inteligível do corpo e da mente. Trata-se de um desenvolvimento intelectual que começa com os filósofos árabes e continua na Europa latina tanto medieval quanto moderna. Um próprio tratado sobre o intelecto começa com Al-Kindi que inaugurou este genre littéraire com seu pequeno tratado De intellectu et intellecto, passa para Isaac Israeli De definitionibus, Al-Farabi De intellectu et intellecto, Avicena De intelligentiis e Averróis Epistula de intellectu e seu Commentarium ao De anima de Aristóteles. Nessa tradição trata-se de um conjunto da perspectiva metafísica, física, epistemológica, lógica etc. A caraterística é um conjunto da metafísica e cosmologia, ou seja, uma explicação da geração do mundo na base puramente filosófica, como p.ex. o Liber de causis mostra - e que é segundo a interpretação de Alberto Magno a verdadeira Theologia Aristotelis que na sua época não foi conhecida, mas apenas a partir do século XVI e vem da mesma fonte como o Liber de causis: o Circulo de Al-Kindi em Bagdã do século IX.107
Na Europa medieval, esta tradição é continuada por Alberto Magno De intellectu et intelligibili. Ele lê o Liber de causis, o manual escolar da metafísica medieval que a Universidade de Paris com seu estatuto da Faculdade de Artes no dia de 19 de março no ano de 1255 obriga seus alunos estudar: “librum de causis in septem septimanis” (sete semanas) por ano,108 como a Theologia de Aristóteles que Aristóteles não escreveu e que é um excerto da Plotiniana Arabica feito por um anônimo. Alberto acredita que o Liber de causis for o complemento dos livros aristotélicos da Metafísica, por causa da falta de seu final, a saber, de seu último livro para fechar sua Metafísica.
Tomás de Aquino, p.ex. De unitate intellectus contra averroistas, embora não seja na realidade um tratado sobre o intelecto, mas uma crítica à tese provida provavelmente de Averróis, está na mesma tradição que Alberto, mas esclarece várias dúvidas, como p.ex. a verdadeira fonte do Liber de causis que não é a chamada Plotiniana Arabica da Theologia Aristótelis, mas um excerto da Elementatio theologica de Proclo. Sobre o intelecto, Tomás se pronuncia várias vezes quando introduz seu tratado sobre a unidade do intelecto109 e em várias outras ocasiões. É um tratado (polêmico) contra “os averroistas” como p.ex. Sigério de Brabant De intellectu e Boécio de Dacia De summo bono et alii que ficam mais ou menos no anonimato.110
Trata-se então de uma verdadeira filosofia da mente (philosophy of mind) e não só da mente humana. Sobretudo a tese de Averróis de haver um único intelecto para todos os homens é a tese mais provocante na Idade Média Latina;111 pois exclui a teologia do sistema das ciências filosóficas, como as controvérsias durante as condenações no século XIII, sobretudo no ano de 1277 na Universidade de Paris com respeito à eternidade do mundo mostra;112 e isto em volta dos Errores Philosophorum de Giles of Rome (Aegidius Romanus), p.ex. acerca da tese de Averróis sobre a ‘unicidade do intelecto’113 que refletem as condenações do 7 de março de 1277 na Universidade de Paris sobre a direção de Étienne Tempier,114 bispo de Paris, com quem começa a disputa sobre “l’averroisme latin”,115 ou o ‘radical aristotelism’ ou o ‘heterodox aristotelism’ e sua crítica.116 Mas, deixo estas coisas para outra ocasião.