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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.73 Uberlândia ene./apr 2021  Epub 11-Ene-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n73a2021-56732 

Artigos

Pode o mestre ensinar algo através da fala? Uma análise sobre as obras De Magistro de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino

Can the master teach something through speech? An analysis of the works De Magistro of Saint Augustine and Thomas Aquinas

¿Puede el maestro enseñar algo a través del habla? Un análisis de las obras De Magistro de San Agustín y Tomás de Aquino

Elói Maia de Oliveira* 
http://orcid.org/0000-0003-4101-8592; lattes: 2344548140739510

Alonso Bezerra Carvalho** 
http://orcid.org/0000-0001-5106-2517; lattes: 4091021554181403

*Doutorando em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Professor na Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE). E-mail: eloimaia@gmail.com

**Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). E-mail: alonso.carvalho@unesp.br


Resumo

O presente artigo tem como objetivo investigar nas obras De Magistro de Santo Agostinho e Tomás de Aquino a possibilidade do ensino através da figura do mestre e/ou de um agente externo ao discípulo ou indivíduo. Agostinho defende a tese da qual só Deus ensina e a figura do mestre torna-se apenas como um auxiliador no processo de aprendizagem para a verdade interior do discípulo, tese essa formulada através da sua Teoria da Iluminação. Tomás de Aquino não contradiz completamente Agostinho, mas defende o papel e a importância do mestre sobre o tipo de conhecimento que o mesmo pode fornecer ao discípulo, tendo papel substancial para o processo de aprendizagem para adquirir conhecimento. Ambos se preocupam em que medida o mestre pode ensinar, o que ensina e como ensina, visando compreender como se dá o processo de conhecimento do ser humano o relacionando-o com a verdade das coisas.

Palavras-chave: Santo Agostinho; Tomás de Aquino; De Magistro; Ensino; Aprendizagem

Abstract

This article aims to investigate in the worksDe Magistroof Saint Augustine and Thomas Aquinas the possibility of teaching through the figure of the master and / or an external agent to the disciple or individual. Augustine defends the thesis that only God teaches and the figure of the master becomes only as a helper in the learning process for the disciple's inner truth, a thesis formulated through his Theory of Enlightenment. Thomas Aquinas does not completely contradict Augustine, but he defends the role and the importance of the master on the type of knowledge that he can provide to the disciple, having a substantial role in the learning process to acquire knowledge. Both are concerned with the extent to which the master can teach, what he teaches and how he teaches with a view to understanding how the human being's knowledge process takes place, relating it to the truth of things.

Keywords: Saint Augustine; Thomas Aquinas; De Magistro; Teaching; Learning

Resumen

Este artículo tiene como objetivo investigar en las obras De Magistro de Santo Agostinho y Tomás de Aquino la posibilidad de enseñar a través de la figura del maestro y / o de un agente externo al discípulo o individuo. Agustín defiende la tesis de que sólo Dios enseña y la figura del maestro se convierte sólo en un ayudante en el proceso de aprendizaje de la verdad interior del discípulo, tesis formulada a través de su Teoría de la Ilustración. Tomás de Aquino no contradice completamente a Agustín, pero defiende el papel y la importancia del maestro sobre el tipo de conocimientos que puede aportar al discípulo, teniendo un papel sustancial en el proceso de aprendizaje para adquirir conocimientos. Ambos se preocupan por la medida en que el maestro puede enseñar, lo que enseña y cómo enseña, con el objetivo de comprender cómo se produce el proceso de conocimiento del ser humano, relacionándolo con la verdad de las cosas.

Palabras-clave: San Agustín; Tomás de Aquino; De Magistro; Enseñando; Aprendizaje

Introdução

O processo educativo e a obtenção de conhecimento foram durante séculos compostos de discussões de natureza filosófica e de preocupação de diversos filósofos, mas foi na modernidade que esse debate tornou-se objeto de um campo específico do saber: a filosofia da educação. A esse saber nascente se preocupou em sistematizar ideias, reflexões e concepções de mundo que tinham no horizonte a formação humana. Nessa perspectiva, já encontraríamos em Platão e Aristóteles ou até mesmo entre os pré-socráticos, um conjunto de estudos que contribuíram para o esclarecimento de aspectos relevantes da educação. (HENNING, 2015; SANTOS, 2014; MARTINS & PEREIRA, 2014; GHIRALDELLI Jr. 2002).

A filosofia surge na Grécia Antiga, intimamente ligada à pedagogia. Pode-se afirmar, sem exagero, que a filosofia nascente é por natureza pedagógica. Assim podem lidos Platão e Aristóteles. Todavia, séculos, essa conaturalidade entre as duas manifestações, devido ao avanço dos conhecimentos e das características de nossa época e especialmente da situação econômico-política, tornou essas instituições autônomas, embora ainda ligadas por laços de origem e aspectos éticos e epistemológicos. Com o surgimento das ciências sociais e humanas, houve um momento em que até se pensou que se poderia fazer educação sem filosofia. Todavia, esse equívoco momentâneo parece já ter sido superado. (SANTOS, 2014, p. 11-12).

Para este artigo, não faremos uma análise do o que se conhece, discussão essa de grande importância para filosofia, para compreender o que pode ser conhecido, mas fazer uma análise de duas obras filosóficas de Tomás de Aquino e Santo Agostinho sobre o como se conhece, de maneira a mostrar as possíveis conexões entre o pensar filosófico e a ação pedagógica.

As escolhas dessas obras e desses autores foram propositais por acreditarmos na importância do resgate de autores clássicos sobre um problema filosófico ainda muito discutido na contemporaneidade. Tanto Santo Agostinho como Tomás de Aquino foram grandes teóricos de sistemas filosóficos que, para o seu tempo contribuíram com excelência sobre os problemas que se dispuseram a discutir. Nossas referências principais serão duas obras coincidentemente intituladas De Magistro1, nas quais os dois filósofos se propuseram a dissertar sobre o processo de ensino e aprendizagem.

Santo Agostinho, a Teoria da Iluminação e a educação

Agostinho, nascido em Tagaste em 354 e realizando seus estudos sobre retórica em Cartago é o mais importante dos Padres da Igreja, falecendo em 430 de nossa era. (REALE, 2003, p. 81). A filosofia de Santo Agostinho tem como base a filosofia neoplatônica de Plotino e Porfírio, os ensinamentos de São Paulo e do Evangelho de São João. Muito aspectos da filosofia platônica também ecoam na filosofia agostiniana, pois para ele a filosofia antiga é vista como “uma preparação da alma, útil para a compreensão da verdade revelada. (MARCONDES, 2007, p. 113).

Platão, em sua obra Crátilo, apresenta o problema da convencionalidade do signo, transformado no cerne do diálogo a seguinte questão: como a linguagem poderia contribuir para o conhecimento da realidade?

Platão examina duas respostas possíveis à questão, levando em conta as posições já na época tradicionais entre os filósofos que o antecederam, incluindo os mobilistas e os sofistas: o naturalismo (defendido pelo personagem de Crátilo) e o convencionalismo (defendido por Hermógenes). O naturalismo caracteriza-se por defender que há uma relação natural entre o signo e a coisa significada: o signo deveria possuir uma natureza comum com a coisa que significa, contribuindo assim para o conhecimento desta. O convencionalismo, enquanto alternativa ao naturalismo, consiste em uma tese mais fraca sobre a relação entre as palavras e coisas, segundo a qual não há nada em comum entre elas: são apenas convenções estabelecidas em uma determinada sociedade. (MARCONDES, 2011, p. 14).

A problemática se remete a haver uma “oposição entre a linguagem e o conhecimento e a visão da linguagem como fonte de erro”, o que faz do diálogo Crátilo um diálogo aporético, pois termina em um impasse, já que as duas alternativas que examina revelam-se insatisfatória. Mesmo assim, a influência que teve na tradição filosófica foi muito grande, especialmente nos estudos de linguagem em geral.

A tradição herdou em grande parte a posição platônica acerca da linguagem formulada nesse diálogo, ou seja, o dilema entre uma concepção naturalista, que seria relevantes para o conhecimento mas que não se sustenta, e o convencionalismo, que, embora mais plausível e mais próximo da experiência concreta da linguagem, não traz contribuição ao conhecimento. (MARCONDES, 2011, p. 15).

Nesse debate, o diálogo é concluído com a necessidade de se procurar a verdade para além das palavras. Esse posicionamento platônico terá muita influência na obra de Agostinho, da qual ele interpelará: como é possível o ser humano atingir o conhecimento verdadeiro, eterno e imutável, uma vez que, ele, é um ser mutável e infalível? Em uma reelaboração da Teoria da Reminiscência de Platão2, Agostinho elabora a Teoria da Iluminação, que analisaremos detalhadamente mais adiante.

Agostinho não pretende desenvolver uma filosofia sistemática da linguagem. O que importa para ele é comprovar a presença de uma realidade divina no nosso falar e pensar.

Um ponto que se destaca por todo o pensamento agostiniano sobre a filosofia da linguagem é a tese de que palavras representam sinais [...] Por meio de um sinal linguístico, o falante aponta uma coisa para o espírito do ouvinte. Um sinal, portanto, é um objeto perceptível que, para além de si mesmo, aponta para outra coisa. Para conseguir um entendimento, tanto o falante quanto o ouvinte têm de entender o caráter de sinal de uma palavra. [...] Agostinho se interessa, não pela função substitucional ou semântica da linguagem, mas pelo seu efeito constitutivo do conhecimento. (HORN, 2006, p. 7-8. grifo nosso).

Ao estilo platônico, o diálogo De Magistro irá discutir a respeito desse problema filosófico. É um diálogo desenvolvido com seu filho Adeodato que se inicia com a pergunta chave de todo o diálogo proposto. A obra é um dos textos clássicos da pedagogia por buscar compreender como se dá o processo de ensino e aprendizagem na relação com o mestre e o discípulo. Vejamos:

AGOSTINHO: Que te parece que pretendemos fazer quando falamos?

ADEODATO: Pelo que de momento me ocorre, ou ensinar ou aprender.

AGOSTINHO: Vejo uma dessas duas coisas e concordo; com efeito, é evidente que quando falamos queremos ensinar; porém, como aprender?

ADEODATO: Mas, então, de que maneira pensas que se possa aprender, senão perguntando?

(AGOSTINHO, 1973. p. 323).

Desse pequeno trecho já destacamos que Agostinho até concorda com Adeodato sobre a possibilidade do ensino através da linguagem, mas não aceita que através da linguagem possa se aprender algo. E diante dessa afirmação, Agostinho lança a tese que irá permear toda sua obra e será sua defesa: “já declaro que o fim da palavra é duplo: ou para ensinar ou para suscitar recordações nos outros ou em nós mesmos.” (AGOSTINHO, 1973, p. 323). No final do capítulo I, Agostinho já demonstra que o verdadeiro aprendizado será o que se encontra no seu íntimo, o buscar em Deus, na alma racional, o chamado homem interior.

Adeodato ainda na intenção de compreender o papel da palavra questiona Agostinho ao afirmar que o Mestre “não lhes ensinou palavras, mas, pelas palavras.” (AGOSTINHO, 1973, p. 324). Todavia, Agostinho refuta: “com as palavras nada mais fazemos do que chamar a atenção; entretanto, a memória, a que as palavras aderem, em as agitando, faz com que venham à mente as próprias coisas, das quais as palavras são sinais.” (AGOSTINHO, 1973, p. 324). Aqui já aparece a ideia da Teoria da Iluminação, como veremos mais abaixo.

A compreensão até aqui “se volta para a tese de que todas as palavras poderiam ser entendidas como sinais.” (HORN, 2006, p. 9). E aqui caminhamos para o capítulo II, onde ele vai abordar o papel da sintaxe, que constitui elemento principal no ato de ensinar, ou seja, o de se fazer entender para o outro, no caso, o discípulo. Mas como exposto, o ato de ensinar, através das palavras, é na intenção de rememorar. Enquanto o som é real, relacionando a palavra dita, nos faz imediatamente investigar a nossa mente a se buscar um significado para aquela palavra pronunciada, posto que está em nossa memória. Afirmando essa tese, Agostinho encerra o capítulo II, afirmando: “Podes facilmente reparar que explicaste palavras com outras palavras, isto é, sinais com outros sinais [...], porém, gostaria que, se pudesses, me mostrasses as coisas mesmas de que estas são os sinais.” (AGOSTINHO, 1973, p. 326).

Ao longo do capítulo III até o VI, Agostinho e Adeodato travam um diálogo estritamente sobre o papel e a função dos sinais, que não é objeto direto da nossa análise, visto que estamos buscando como se dá o processo da aprendizagem. No capítulo VII, por seu lado, Agostinho pede que Adeodato faça um resumo de tudo o que então foi discutido, e este aponta que

as palavras nada mais são do que sinais e que não pode existir sinal sem significar algo [...] Com isso ficamos avisados de que: ou se mostram sinais com sinais ou, com sinais, se mostram outras coisas que sinais não são, ou então, sem sinal podem mostrar-se as coisas que podemos fazer depois de interrogados: e, desses três casos, detivemo-nos a considerar e discutir com mais minúcia o primeiro. (AGOSTINHO, 1973, p. 338-339).

O real interesse de Agostinho começa agora se desenhar através do papel da semântica. Eis a pergunta chave: “em primeiro lugar, dize-me se ‘homem é homem’.” (p. 341). Tal pergunta exprime a intenção de Agostinho de apresentar que aquilo que é dito não torna o objeto em si conhecido, pois homem como palavra, de certo, não é o homem (animal racional), mas um composto de duas sílabas. Ou seja, a palavra pronunciada representa a coisa enquanto seu significado, mas não sob o lugar da coisa material. Desse modo, para compreender o conhecimento real do objeto devemos nos ater ao que é significado, ou seja, o objeto real, e não no seu signo (palavra), ficando “estabelecido uma primazia da realidade em relação ao signo” (SPICA, 2010. p. 74) ou, nas palavras de Agostinho, “desejo, portanto, que compreendas bem que se devem apreciar mais as coisas significadas do que os sinais.” (1973. p. 344).

Defendendo que a realidade se constitui em hierarquia mais importante que o signo, Agostinho apresenta que “o conhecimento das coisas é mais preciso que os sinais das mesmas. Logo, o conhecimento das coisas que são significadas há de preferir-se ao conhecimento dos sinais.” (p. 345). Agostinho começa a caminhar para um campo mais radical de pensamento a fim de defender sua tese final, a da existência do homem interior. As palavras começam a se apresentar como insuficientes para se dizer que há de fato aprendizado por meio delas. Adeodato no capítulo X ainda não consegue compreender como alguém possa aprender sem alguém se utilizar de sinais para ensinar. Eis que Agostinho expõe:

AGOSTINHO: Concordo com isto, mas não te parece que falar é uma coisa e ensinar é outra?

ADEODATO: Certamente, pois se fossem a mesma coisa não se poderia ensinar senão falando; mas, porque se ensinam muitas coisas com outros sinais além das palavras, quem poderia duvidar dessa diferença?

AGOSTINHO: Ensinar e significar são a mesma cousa ou diferem em algo?

ADEODATO: Creio que a mesma.

AGOSTINHO: Fala corretamente quem diz que nós usamos de sinais (que significamos) para ensinar?

ADEODATO: Sem dúvida.

AGOSTINHO: Se alguém dissesse que ensinamos para usar sinais (para significar), não seria facilmente refutado pela afirmação precedente?

ADEODATO: Seria.

AGOSTINHO: Se, portanto, usarmos os sinais para ensinar, não ensinamos para usar os sinais: uma coisa é ensinar e outra coisa é usar os sinais (significar). (AGOSTINHO, 1973, p. 347).

Com esse trecho, encaminhamos para a conclusão de Agostinho ao afirmar que nada pode ser ensinado sem os sinais, e que o conhecimento tem muito mais valor do que os sinais, embora o conhecimento se expresse através dos sinais. Mas Agostinho retoma a sentença da possibilidade de ser aprender algo sem os sinais.

Se aquele espectador fosse tão inteligente que compreendesse por completo toda a arte de caçar só pelo o que viu, isto já seria o bastante para demonstrar, sem mais, que alguns homens podem ser instruídos sem sinais sobre algumas coisas, se bem que não sobre todas [...] umas coisas podem ser ensinadas sem sinais, e , consequentemente, é falso aquilo que há pouco nos parecia verdadeiro, isto é, não existir nada que se possa mostrar ou ensinar sem sinais. (AGOSTINHO, 1973, p. 348).

A partir desse momento Agostinho começa apresentar que as palavras (verbo) não se apresentam nem para que possamos ter conhecimento de fato sobre tal objeto, não sendo elas em absoluto que estão aptas a produzir conhecimento. A palavra torna-se subjugada ao mundo exterior. “Se me for apresentado um sinal e eu me encontrar na condição de não saber de que coisa é sinal, este nada poderá ensinar-me; se, ao contrário, já sei de que é sinal, que aprendo por meio dele?” (AGOSTINHO, 1973, p. 348). Eis aqui a passagem demonstrada que são os objetos que ensinam as palavras. “Em si, palavras não ensinam nada além do seu som.” (HORN, 2006, p. 12).

“Eu ao contrário, já antes conhecia estas coisas, delas adquiri conhecimento sem que as ouvisse chamar assim por outrem, mas vendo-as com meus próprios olhos.” (AGOSTINHO, 1973, p. 349). As palavras então, são apenas sinais, não possuindo força alguma de constituição de conhecimento. Cabe a elas apenas a função de lembrar o que já é conhecido. O conhecimento é anterior a linguagem. Há uma necessidade da palavra estar presa ao seu conteúdo para ter sua existência. Se conheço, pronuncio aquilo que vejo, mas se vejo e não sei o que é, não consigo pronunciar.

Não aprendemos nada por meio desses sinais que chamamos de palavras: antes, como já disse, aprendemos o valor da palavra, ou seja, o significado que está escondido no som através do conhecimento ou da própria percepção da coisa significada; mas não a própria coisa através do significado [...] Se eu, no momento em que as vejo, por acaso fosse avisado com as palavras [...], aprenderia uma coisa que não sabia, não pelas palavras que foram pronunciadas, mas pela visão da própria coisa, por meio da qual conheci e gravei também o valor do nome. Pois quando aprendi a própria coisa, não acreditei nas palavras de outrem3, mas nos meus olhos; talvez acreditasse também nelas, mas apenas para despertar a atenção, ou seja, para procurar com os olhos o que era para eu ver.” (AGOSTINHO, 1973, p. 350).

Chegamos ao ponto que Agostinho desconsidera totalmente a função dos sinais para obtenção do conhecimento, pois o sinal reconhece o som da palavra proferida que é captado pela audição; a coisa que vier a ser conhecida é captada pela visão; e o significado do que é conhecido pelos sentidos permite questionar de como podemos adquirir o conhecimento apresentado aos sentidos, já que a relação entre o sinal e a coisa não é real? E aqui avançamos para a sua Teoria (Doutrina) da Iluminação.

A partir do capítulo XI o De Magistro deixa de ser um diálogo e torna-se uma exposição sobre o que Agostinho queria desde o início que é entender o processo de ensino e aprendizagem. Eis que aqui nota-se o papel da pragmática, ou seja, da teoria que analisa a linguagem partindo da interação entre a pessoa que fala (falante) e o efeito que sua fala tem na pessoa que ouve (ouvinte).

O valor das palavras [...] apenas incitam a procurar as coisas, sem, porém, mostrá-las para que as conheçamos. No entanto, ensina-me algo quem apresentar, diante dos meus olhos ou a um dos sentidos do corpo ou também a própria mente, as coisas que quero conhecer. Com as palavras não aprendemos senão palavras. [...] Ao serem proferidas palavras, é perfeitamente razoável que se diga que nós sabemos ou não sabemos o que significa; se o sabemos, não foram elas que no-lo ensinaram, apenas o recordaram [...] Não consultamos a voz de quem fala, a qual soa por fora, mas a verdade que dentro de nós preside à própria mente, incitados talvez pelas palavras a consultá-la. Quem é consultado ensina verdadeiramente, e este é Cristo, que habita, como foi dito, no homem interior. (AGOSTINHO, 1973, p. 350-351. Grifo nosso).

As palavras nos convidam a buscar a verdade dentro de nós. Os objetos externos são apreendidos pelos nossos sentidos, mas e a nossa mente? E as ideias que nela contém? Apenas o Mestre interior, é capaz de nos ensinar verdadeiramente. E é essa compreensão da verdade interior que nos faz compreender a verdade exterior dos objetos. A única tarefa da linguagem é a de nos incitar a buscar a verdade interior. “O exterior é meramente apto a nos chamar algo à consciência, enquanto a verdade ensina no ‘interior’ do ser humano.” (HORN, 2006, p. 13).

Diante disso, Agostinho nos apresenta que a verdade não pode ser conhecida através dos sinais e nem do mundo externo, da qual derivará a tese da busca da verdade interior, tese defendida em outras obras, como: A verdadeira religião e Confissões. Inspirado em Plotino, ele já defendia que os objetos sensoriais agem sobre os sentidos, não escapando a alma que consequentemente se manifesta, não pelo conteúdo externo, mas sim do seu interior, manifestando a representação do objeto que é a sensação, dado que a sensação é o corpo passivo, ao passo que a alma é ativa. (REALE, 2003, p. 90).

A sensação é só o primeiro passo do conhecimento. A alma julga conhecimento com base racional segundo aquilo que deve ser imutável e perfeito. Ora, os objetos externos são mutáveis e imperfeitos. Assim, de onde viriam esses critérios que a alma julga ser superiores às coisas? Não poderia ser dela mesmo, uma vez que, ela também é mutável. Portanto, parece que há algo superior, acima de nossa mente que age em relação a alma para estipular esses critérios. Essa coisa superior chama-se Verdade. Essa verdade captada por nós é constituída pelas Ideias, que são as supremas realidades inteligíveis - as rationes intelligibiles incorporales que rationes. Eis a Teoria da Iluminação.

A doutrina de Agostinho sobre a iluminação substitui a doutrina platônica de anamnese ou reminiscência. Para Platão, as almas humanas contemplaram as Ideias antes de encarnar-se nos corpos, e depois se recordaram delas na experiência concreta. Para Agostinho, ao contrário, a suprema Verdade de Deus é uma espécie de luz que ilumina a mente humana no ato do conhecimento, permitindo-lhe captar as Ideias, entendidas como as verdades eternas e inteligíveis presentes na própria mente divina. (REALE, 2003, p. 91).

Neste sentido, Agostinho de certa forma promove uma reforma na filosofia platônica. Por um lado, faz das Ideias os pensamentos de Deus (como já haviam feito, embora de modos diferentes, Fílon, os Medioplatônicos, e Plotino) e, por outro, rejeita a doutrina da reminiscência, ou melhor, ele a repensa ex novo. Sobre o primeiro ponto, essa transformação se impunha no contexto geral do criacionismo, que está na base da doutrina agostiniana. Agostinho insiste no fato de que só a mens, a parte mais elevada da alma, chega ao conhecimento das Ideias.

Do que já foi exposto Agostinho caminhará para expor o papel do mestre, temática essa que nos proporcionará a ponte para o pensamento de Tomás de Aquino. Qual seria então o papel do mestre já que as palavras nada nos ensinam? Agostinho afirma:

E porventura, os mestres pretendem que se conheçam e retenham os seus próprios conceitos e não as disciplinas mesmas, que pensam ensinar quando falam? [...], mas quando tivera explicado com as palavras todas as disciplinas que dizem professar [...] então é que os discípulos vão considerar consigo mesmos se as coisas ditas são verdadeiras, contemplando segundo as suas forças a verdade interior. Então é que, finamente, aprendem; e, quando dentro de si descobrirem que as coisas ditas são verdadeiras, louvam os mestres sem saber que elogiam mais homens doutrinados que doutos. [...] Erram, pois, os homens ao chamarem de mestres o que não o são [...] e porque, como depois da admoestação do professor, logo aprendem interiormente, julgam que aprenderam pelo mestre exterior, que nada mais faz do que admoestar. [...] não se chame a ninguém de mestre na terra, pois o verdadeiro mestre e único Mestre de todos está no céu. (AGOSTINHO, 1973, p. 355. Grifo nosso).

Na afirmação de Agostinho são formadas teses caras para a relação do mestre e discípulo e a relação do ensino e aprendizagem e que levará Tomás a não concordar com essa visão. Em Agostinho observamos uma “forte desvalorização do valor cognitivo dos sinais linguísticos” e com isso advém diversos problemas do papel/função da linguagem e até mesmo sobre a verdade. (HORN, 2006, p. 14). Uma vez que a verdade se encontra no interior do homem e não há possibilidade da linguagem para sua externalização, torna a verdade um local onde não se pode ter acesso pela comunicação abrindo margem para a noção da subjetividade da verdade, uma vez que eu não consiga enunciá-la, e se conseguisse, o ouvinte não a captaria. Mesmo se todos estivessem de posse da verdade interior através da iluminação, ela torna-se incomunicável.

O ponto central da obra De magistro se encontra, contudo, noutro lugar; ele consiste na tese de que, não os sistemas de sinais, mas somente os conteúdos intermediados no ‘interior’ são de significado cognitivo. Agostinho, portanto, combina um convencionalismo filosófico-linguístico, que acentua o caráter de imposição de sinais linguísticos, com uma concepção neoplatônica do acesso imediato aos objetos inteligíveis. (HORN, 2006, p. 14).

Acerca da mesma questão, Spica (2010, p.78), afirma:

Ao tirar da palavra o poder de ensinar, Agostinho reduz também o poder da comunicação [...] seria interessante perguntar a Agostinho se a incapacidade de expressar nossos pensamentos surge de uma incapacidade da linguagem ou do próprio pensamento? [...] pois não podemos pensar nada sem a linguagem [...] no século XX essa noção é criticada por autores como Wittgenstein, e Gilbert Ryle, dentre outros. Para esses, a linguagem não serve simplesmente como meio de transporte do pensamento, mas é já pensamento, ou melhor, é constitutiva do próprio conhecimento.

Tomás, alinhado com o pensamento aristotélico, admite que por meio dos sinais o mestre causa conhecimento no aluno através da razão natural dele, entendendo que o processo de ensinar é um movimento que vai da potência ao ato. Vejamos agora como Tomás de Aquino elabora sua tese em relação ao processo de ensino aprendizagem.

Tomás de Aquino:

Tomás de Aquino é considerado um dos expoentes mais reconhecidos do período escolástico, sobretudo pela influência que sofreu da filosofia aristotélica e menos pela a platônico-agostiniana. É originário de Roccasecca, no sul de Lácio, nascendo aí em 1221. Foi também um importante discípulo de Alberto Magno, ensinou em Paris, onde foi agraciado com o título de magister em teologia, e em outras universidades europeias. Faleceu em 7 de março de 1274, aos 53 anos, quando viajava para Lyon, por ordem do papa Gregório X, precisamente para participar de um Concílio. (REALE, 2003, p. 212).

No que concerne à sua filosofia da educação, não faz em sua obra homônima a de Agostinho - De Magistro - o mesmo desenvolvimento sobre o processo do ensino e aprendizagem. Ele se preocupa, sim, com a função dos sinais e como se dá esse processo de mediação do conhecimento, mas de modo mais sucinto que Agostinho. Seu olhar se dará substancialmente para a compreensão do movimento da potência ao ato, do conceito de ciência, de como o mestre pode ensinar verdadeiramente e até a possibilidade de um auto didatismo.

Diferente de Agostinho, Tomás não escreve suas obras em forma de diálogos, mas sim de uma forma mais sistemática. A maioria de suas obras é organizada pela chamada quaestio disputata, sendo a essência da educação escolástica. Na universidade não bastava mais apenas a exposição dos autores e suas teses, mas sim que se examinasse criticamente na disputa. O modus operandi dessas quaestiones é como um rito pedagógico. Uma quaestio disputata é dedicada a um tema e dividida em artigo, que correspondem a capítulos ou aspectos do tema. Primeiro, enuncia-se a tese de cada artigo, começando por dar voz ao adversário sobre o que pretende defender. Não era recusado nenhum argumento, pois assim considerava a temática sob um ângulo universal. O espírito da disputatio é o espírito da universalidade. (LAUAND, 1999, pp. 16-17).

O De magistro de Tomás segue-se de quatro artigos. Primeiro, se pode o homem ensinar e ser dito mestre ou somente Deus (artigo mais importante da nossa proposta); segundo, se alguém pode ser dito mestre de si mesmo (e aqui seria uma tentativa do auto didatismo); terceiro, se o homem pode ser ensinado pelo anjo (não nos deteremos nesse artigo nesta questão); e o quarto artigo, se ensinar é ato da vida ativa ou contemplativa.

No primeiro artigo, são apresentados dezoito argumentos contrários ao que Tomás pretende defender que resultará na questão de se o mestre pode ensinar ao discípulo e ser dito mestre, contrariamente ao que Agostinho afirmara em sua obra. Na sequência realizaremos uma síntese dos argumentos contrários e das respostas que Tomás apresentou e, assim, captar a essência do que ele quer nos mostrar.

Tomás, utilizando-se do argumento de Agostinho, afirma: “se o homem ensina, não o faz senão por alguns sinais. [...], mas através do sinal não se pode chegar ao conhecimento das coisas”, como já observamos anteriormente. Outro argumento é que “ensinar não é outra coisa que causar a ciência em outrem. Ora, o sujeito da ciência é o intelecto; os sinais sensíveis pelos quais tão só parece que o homem possa ser ensinado, não chegam até a parte intelectiva, mas permanecem na potência sensitiva. Por consequência, o homem não pode ser ensinado pelo homem.” (De ver. XI - De Magistro. art. 1).

Novamente é visto em Agostinho que “o homem está em relação à cátedra assim como o agricultor com relação à árvore”. O agricultor não faz as árvores, mas as cultiva. Logo, ao homem não pode ser dito dador da ciência, mas o que a disponibiliza. Presente também em Boécio, o argumento se segue que ao homem cabe apenas ensinar a excitar outro homem a conhecer; mas quem excita o intelecto para saber, não o faz saber. Logo, um homem não faz outro homem saber.

Ainda sobre a transmissão da ciência, apresenta-se contrariamente ao entendimento de que ciência é a representação das coisas da alma e um homem não pode representar a alma a outro homem, pois essas operações são internas, e pertencente só a Deus. A ciência requer certeza de conhecimento. Ora, um homem não pode produzir certeza por meio dos sinais sensíveis. Logo, um homem não pode ensinar a outro. Agora, Tomás antes de responder à questão e de rebater todos os argumentos contrários, apresenta alguns argumentos que não são dele, para auxiliar sua posição final. Alicerçado na Metafísica de Aristóteles que diz que “é perfeito todo aquele quando pode gerar semelhantes a si”, Tomás afirma: “ora, a ciência é certo conhecimento perfeito. Logo, o homem que tem ciência, pode ensinar a outro.” (CAMELLO, 2000, p. 79, nota 8).

A resposta de Tomás apresenta que

a causa primeira, com efeito, pela eminência de sua bondade, confere as outras coisas não apenas que sejam, mas também que sejam causas. [...], as formas naturais preexistem na matéria, não em ato, mas só em potência da qual se passa ao ato pelo agente extrínseco próximo, não apenas pelo agente primeiro. [...], do mesmo modo se dirá também da aquisição das ciências, ou seja, as primeiras que preexistem em nós algumas sementes das ciências, ou seja, as primeiras concepções do intelecto. (De ver. XI - De Magistro. art. 1).

Ao afirmar que as coisas naturais preexistem em nós, o Aquinate afirma que preexiste de dois modos: “Primeiro, na potência ativa completa, ou seja, quando o princípio intrínseco pode suficientemente levar ao ato perfeito [...]; segundo, na potência passiva, ou seja, quando o princípio intrínseco não é suficiente para eduzir ao ato.” (De ver. XI - De Magistro. art. 1). E desse modo, com maestria, Tomás apresenta a tese da função do mestre para a aprendizagem,

Quando, pois, preexiste algo na potência ativa completa, então o agente extrínseco não age senão o agente intrínseco, e ministrando-lhe aquelas coisas pelas quais possa passar ao ato [...], quando, porém, algo preexiste apenas na potência passiva, então o agente extrínseco é o que eduz principalmente da potência ao ato. [...] A ciência, pois preexiste no que aprender em potência não apenas passiva, mas ativa; do contrário, o homem não poderia por si mesmo adquirir a ciência. (De ver. XI - De Magistro. art. 1).

É importante notar aqui que Platão defendia uma visão que todo tipo de aprendizado estaria em ato na natureza humana, e Agostinho seguiria essa linha de pensamento, mas Tomás apresenta que toda forma de aprendizado estariam em formas de disposições potenciais, sendo atualizadas por uma causa eficiente próxima, um agente exterior, como por exemplo, o professor, e repetidas as ações aprendidas, posteriormente hábitos com a mediação da razão. (PICHLER, 2008, p. 6).

Nesse ponto Tomás consegue salvar a teoria agostiniana de que existem Ideias em nós e são elas que nos possibilitam um certo aprendizado, mas também consegue salvar o papel do mestre no processo educativo e a possibilidade de uma ciência auto didata. Percebemos a distinção que Tomás faz entre o intelecto teórico (especulativo) e o intelecto operativo (prático), ambos tendo finalidades distintas, o primeiro visando a operação e o segundo, a verdade. Nesse caso, o professor tem um papel em ambas aquisições de ciência no discípulo.

Chegando ao fim de sua resposta e deixando claro sua tese, Tomás diz: “há dois modos de adquirir a ciência; um, quando a razão natural por si mesma chega ao conhecimento das coisas desconhecidas [ou seja, a um conhecimento que não possuía] - e tal modo chama-se invenção [descoberta]; outro, quando à razão natural é ministrada externamente como ajuda [recebe ajuda de fora], e esse modo chama-se disciplina [ou seja, ensino].” (De ver. XI - De Magistro. art. 1). Nota-se que aqui o papel do professor é infundir conhecimento ao educando, não que o mesmo conhecimento em ato do intelecto do professor seja transferido, mas de modo pedagógico, através dos sinais, didática, etc., se produz um saber semelhante, conforme o princípio metafísico do movimento da potência ao ato. (PICHLER. 2008. p. 7). Pode então um homem ser chamado mestre, pois ensina ao aluno, causando conhecimento no aluno com a atividade da razão natural dele assim como podemos dizer que um médico causa a saúde no doente.

Ao que se segue, mesmo com sua brilhante resposta para a defesa de sua tese, Tomás refutará cada argumento contrário que foi apresentado. Ele concorda que o conhecimento não se faz pelo conhecimento dos sinais, mas afirma que se dá pelos princípios que nos são propostos por meio de alguns sinais. O conhecimento desses princípios produz em nós a ciência das conclusões (causas) e não propriamente o conhecimento dos sinais. Tomás não nega o conhecimento já preexistente, aliás, apresenta que o papel do professor é auxiliar o aluno a chegar nessa conclusão já existente nele, pois não se encontra em ato completo, mas como em razões seminais, isto é, como potência, e pelo ensinamento, se faz no discípulo a ciência semelhante a do mestre, levada da potência ao ato.

O artigo II irá questionar se alguém pode ser mestre de si mesmo. Como vimos, Tomás dá a entender haver uma possibilidade de um tipo de ciência, a da descoberta. Mas será ela o suficiente para afirmar que alguém aprende apenas e essencialmente de um só modo? Aos argumentos que vem defender essa concepção de autodidatismo, observamos que o intelecto agente é a causa principal de conhecimento e o mestre apenas causa instrumental. Logo, o intelecto agente ensina mais interiormente do que o homem exteriormente. Mas, uma vez que dizemos que o conhecimento está em nós por meio dos princípios naturalmente conhecidos pela luz do intelecto agente, é mais provável o aprendizado e mais confiável o que se chega por si mesmo e não ensinado exteriormente. Do mesmo modo, como o médico cura a si mesmo, alguém pode a si mesmo ensinar. (De ver. XI - De Magistro. art. 2.).

Tomás não nega a possibilidade do conhecimento sem a necessidade de um agente externo para ensinar algo, pois por meio da luz da razão podemos chegar a muitos conhecimentos que não foram ensinados externamente, o que podemos nomear como invenção e/ou descoberta. Esse procedimento, pelo o que podemos indicar, seria da aplicação do método dedutivo. Todavia, mesmo esse alguém aprendendo algo de modo por si próprio não deve ser chamado de mestre de si mesmo ou que se ensina a si mesmo.

Segundo ele, há

dois modos como os princípios agem nas coisas naturais [...]; o primeiro é quando o agente tem em si tudo o que é causado, por meio dele, no efeito; [...] com efeito existem alguns agentes nos quais preexiste senão uma parte daquelas coisas que são feitas [...], donde, como não está em ato o efeito a induzir a não ser em parte, não será perfeitamente agente. O ensinamento, porém, implica a perfeita ação da ciência no docente ou mestre; daí que convém que aquele que ensina ou é mestre tenha a ciência que causa no outro, explícita e perfeitamente, como naquele que aprende por meio do ensinamento. Quando, entretanto, a ciência é adquirida por alguém por meio de um princípio intrínseco, aquilo que é causa agente da ciência não tem a ciência a ser adquirida senão a parte, ou seja, o quanto relativo às razões seminais da ciência [...], e assim de tal causalidade não pode ser extraído o nome de docente ou de mestre, falando em nome próprio (De ver. XI - De Magistro. art. 2.).

Nessa perspectiva, Tomás advoga contra uma posição que estava presente na tradição teológica, principalmente na Faculdade de Teologia de Paris, na qual acreditava-se que o intelecto humano, em relação ao processo de aprendizagem, necessitava da iluminação imediata de Deus, visão agostiniana vigente na época. (PICHLER. 2008. p. 8.). Tomás não nega a importância do conhecimento interior e do papel do intelecto agente, mas também não descredibiliza a função dos órgãos e suas operações próprias, como se Deus os tivesse criado sem propósito ou se como os sentidos não ajudassem a obtenção do conhecimento.

Refutando as primeiras colocações apresentadas no artigo II, mesmo o intelecto agente sendo causa principal do conhecimento, diferente do mestre que é causa instrumental, no sujeito não preexiste a ciência completamente ao ponto dele conhecer tudo por si; ao ponto de que quem ensina, contém de modo completo, o conhecimento, ambos iluminados pela razão natural. Ao passo que dá parte do que causa a ciência o modo mais perfeito é por meio do ensinamento, “pois o que ensina, conhecendo explicitamente toda a ciência, pode mais expeditamente induzir à ciência do que alguém que é induzido por si mesmo, pelo fato de que conhece, em generalidade, os princípios da ciência em certa comunidade.” (De ver. XI - De Magistro. art. 2.).

Acima foi exposto um argumento que uma vez que o médico causa sua saúde, alguém poderia ser mestre de si mesmo. Pensando assim poderia ser um argumento forte para demonstrar o conhecimento único pelo auto aprendizado. Mas Tomás afirma que “o médico cura enquanto previamente tem a saúde não em ato, mas no conhecimento da arte médica; o mestre, porém, ensina enquanto tem a ciência em ato.” (De ver. XI - De Magistro. art. 2, ad. 6). Ora, o médico não se cura pelo fato de ter a saúde em ato, pois encontra-se doente, e só consegue se auto curar devido ao conhecimento teórico, que foi ensinado por alguém. Por essa linha de raciocínio não tem como alguém ser mestre de si mesmo, pois não tem como alguém ter ciência em ato e ao mesmo tempo não ter de modo que possa e precise se auto ensinar.

Quando se fala do objetivo de se ensinar no quarto artigo, questiona-se se seria um ato para a vida contemplativa ou ativa. Tomás apresenta que entre a vida contemplativa e a vida ativa há distinções entre si na matéria e no fim. A matéria, na vida contemplativa, seriam as razões conhecíveis das coisas; já o fim, a visão da verdade. Na vida ativa, a matéria, seriam as coisas temporais e o fim a utilidade para os próximos. Ou seja, o fim do conhecimento do intelecto ativo são as atividades exteriores, como a prática das virtudes morais, a política, por meio da prudência, assim como todas as outras virtudes humanas e o fim do conhecimento contemplativo é a busca da verdade, a incriada, a contemplação do divino, do princípio e fim de todos os entes. (PICHLER. 2008. p.8. ). Ora, se são dois modos de conteúdos diferentes de aprendizado, logo são duas maneiras também assim de se ensinar. De um lado, ensinar refere-se a uma determinada matéria, a coisa que se ensina, própria da vida contemplativa; e de outro, ensina-se conteúdos a alguém, ou seja, a transmissão da ciência, própria da vida ativa.

Nessa perspectiva, Tomás demonstra que relacionado ao ensino estamos falando da vida ativa, na qual se ensina, como dissemos acima, principalmente sobre as virtudes e seus desdobramentos que implica também, de certo modo, da vida contemplativa, pois como argumentado pelo próprio Tomás “a ativa precede a contemplativa com relação àqueles atos que, de algum modo, convém com a contemplativa. Quando, porém, aqueles atos que recebem a matéria da vida contemplativa, é necessário que a ativa siga a contemplativa.” (De ver. XI - De Magistro. art. 4.).

Considerações finais

Exposto brevemente as duas obras de modo significativo a suas épocas e influenciado respectivamente o pensamento pedagógico do processo de ensino aprendizagem, Tomás apresenta uma outra versão daquela apresentada por Agostinho, da qual “só Deus ensina”, uma vez que a verdade interior é o fundamento das coisas e dos sinais e a força das palavras tem utilidade em chamar atenção para as coisas e não para o seu ensino, elucidada em sua Teoria da Iluminação, posição essa muito difundida antes dos escritos do Tomás.

Deus, segundo Tomás, ensina sim no interior do homem, mas não anula o aprendizado exterior. Assumir unicamente a visão agostiniana é tomar o cristianismo com uma posição muito espiritualista, negando as potencialidades da criatura, defendida por Tomás. (PICHLER. 2008. p. 9.). O homem participa da construção do seu conhecimento e para justificarmos essa afirmação de uma maneira melhor, encontramos na Súmula contra os Gentios, no capítulo primeiro, no ofício do sábio, Tomás, citando Aristóteles, deixa claro o papel do sábio, tendo ele a função de “dar nome às coisas, manda que se chamem sábios aqueles que se organizam diretamente às coisas e presidem ao seu reto governo.” (S.c.G. c. I.). Não seria esse o papel do mestre? E se sim, não lhe cabe, uma vez de dado os nomes às coisas, e organizarem essas mesmas coisas e dominarem as virtudes para seu reto governo também ensinar aos discípulos?

E por fim, no capítulo terceiro da Súmula contra os Gentios encontramos uma tese fantástica que contempla toda nossa temática e a posição de Tomás sobre a possibilidade do conhecimento da verdade. “Existem muitas maneiras de descobrir a verdade”. Essa afirmação por si só já nos demonstra o panorama que Tomás quer traçar para justificar as formas de ensino.

A inteligência humana é incapaz, pelas suas próprias forças, de aprender a substância ou a essência íntima de Deus. Com efeito, o nosso conhecimento intelectual, conforme o próprio modo da vida presente, tem seu ponto de partida nos sentidos corporais, [...] existem em Deus verdades inteligíveis, as quais são acessíveis à razão humana; em contrapartida, outras há que superam totalmente as forças da razão humana. É fácil fazer a mesma constatação a partir dos graus de conhecimento que podemos ter das coisas. [...] é o caso que se dá com o camponês, que é incapaz de compreender as sutis considerações da Filosofia. Ora, a inteligência dos anjos supera muito a dos homens (S.c.G. c. III).

Ora, se temos uma hierarquia de conhecimentos, como se daria a evolução deles? Não seria através do ensino? Especificamente o ensino do mestre? Vejamos.

Consequentemente, assim como seria loucura um ignorante julgar falso o que ensina um filósofo, sob o pretexto de que não o pode compreender, da mesma forma, e com muito maior razão ainda, seria para o homem uma grande tolice julgar falso o que é revelado pelo ministérios dos anjos, sob o pretexto de que a razão humana não consegue descobrir tais coisas (S.c.G. c. III).

Portanto, diante do exposto, sustentar a tese agostiniana de que “só quem ensina é Deus” é desvalorizar toda a produção humana de conhecimento, do qual o homem possui potencialidades naturais para tal confecção, mas sempre de acordo com o projeto divino. Afirmar a existência infusa da graça e do intelecto agente, não anula as potencialidades da razão natural, que por seus próprios meios aprende, com o auxílio do mestre, do externo, da função da sua vida ativa, para viver a vida virtuosa progredindo seu conhecimento para a vida contemplativa, que tem por seu fim, contemplar a verdade divina.

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1Ressaltamos que o De magistro não é uma obra específica de Tomás de Aquino, assim como é uma obra de Santo Agostinho, mas apenas a 11ª questão, extraída das vinte nove questões que compõem a obra Quaestiones Disputatae de Veritate, de Tomás de Aquino, que por tratar da questão do ensino/aprendizado, quando traduzida e publicada separadamente costuma receber este título.

2Cf. Marcondes. 2007. p. 59.

3“Um falante pode, com suas palavras, equivocar-se sobre a realidade de quatro maneiras: primeiramente, no caso de uma mentira; em segundo lugar, num erro; em terceiro lugar, na reprodução sem entendimento de um conteúdo; em quarto lugar, numa confusão de palavras. Fôssemos nós instruídos nas palavras, ao invés de conhecer os próprios estados de coisas, nesse caso não poderíamos em absoluto notar tal engano de conteúdo das palavras.” (HORN, 2006. p. 13).

Recebido: 16 de Agosto de 2020; Aceito: 16 de Dezembro de 2020

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