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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.73 Uberlândia jan./abr 2021  Epub 11-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n73a2021-59351 

Artigos

Moral e Direito: uma relação peculiar

Morals and Law: a peculiar relationship

Moral y Derecho: una relación peculiar

Denis Coitinho Silveira* 
http://orcid.org/0000-0002-2592-5590; lattes: 2755385851635999

*Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). E-mail: deniscs@unisinos.br


Resumo

O objetivo deste artigo é defender a existência de uma relação peculiar pluridirecional entre a moral e o direito, bem como defender que a moralidade é melhor compreendida por sua autoridade normativa em segunda pessoa, especificamente nos casos que envolvem reivindicações de justiça. Para tal finalidade, inicio esclarecendo as características centrais da moralidade, ressaltando a sua natureza e autoridade normativa intersubjetiva. Posteriormente, investigo duas reivindicações de justiça, a saber, a injustiça epistêmica e a desobediência civil. Na conclusão, sugiro uma distinção entre moralidade privada e pública, argumentando que isto pode nos ajudar a compreender melhor a relação pluridirecional que existe entre a moral e o direito.

Palavras-chave: Normatividade; Ponto de vista de segunda pessoa; Injustiça epistêmica; Desobediência civil; Moralidade privada e pública

Abstract

The main aim of this paper is to defend the existence of a peculiar pluridirectional relationship between morals and law, as well as to defend that morality is better understood by its normative authority in second person, specifically in cases involving claims of justice. To this end, I begin by clarifying the central characteristics of morality, highlighting its nature and its normative authority that is intersubjective. Subsequently, I investigate two claims of justice, namely, epistemic injustice and civil disobedience. In conclusion, I suggest a distinction between private and public morality, arguing that this can help us to better understand that there is a pluridirectional relationship between morals and law.

Key-words: Normativity; Second-person standpoint; Epistemic injustice; Civil disobedience; Public and private morality

Resumen

El objetivo principal de este trabajo es defender la existencia de una peculiar relación pluridireccional entre moral y derecho, así como defender que la moral se entiende mejor por su autoridad normativa en segunda persona, específicamente en los casos de pretensiones de justicia. Para ello, comienzo por aclarar las características centrales de la moral, destacando su naturaleza y su autoridad normativa que es intersubjetiva. Posteriormente, investigo dos reclamos de justicia, a saber, la injusticia epistémica y la desobediencia civil. En conclusión, sugiero una distinción entre moralidad privada y pública, argumentando que esto puede ayudarnos a comprender mejor que existe una relación pluridireccional entre moral y derecho.

Palabras clave: Normatividade; Perspectiva en segunda persona; Injusticia epistémica; Desobediencia civil; Moral pública y privada

Introdução

Um dos temas que mais detiveram a atenção dos filósofos do direito ao longo do século XX e ainda atrai muito interesse é a respeito da relação entre moral e direito e sobre a natureza mesma desta relação, a saber, se ela seria necessária ou apenas contingente. É o caso de Joseph Raz, por exemplo, que, em “About morality and the nature of law”, pergunta sobre a existência de uma conexão necessária entre o direito e a moral, em que após fazer referência às posições tanto juspositivista, que nega uma conexão necessária, quanto a jusnaturalista, que defende uma intrínseca vinculação, dirá que a conexão necessária mais significativa entre direito e moralidade estaria relacionada com a estrutura da autoridade legítima (RAZ, 2003, p. 13-15).

Embora não seja exequível reproduzir todo o debate sobre este tema aqui, é possível identificar as suas teses centrais, a saber, a tese da separabilidade e a tese da conexão. A tese da separabilidade entre direito e moral, que é defendida pelos juspositivistas, assim como Bentham, Austin, Kelsen e Hart, por exemplo, considera que a validade da norma jurídica não depende de seu conteúdo e do fato dela ser justa, uma vez que o critério de validade seria puramente formal, sendo válida a norma jurídica emanada pelo órgão estatal competente e que segue os procedimentos publicamente adequados. Assim, as regras jurídicas não dependeriam das regras morais para sua validade, ainda que que, em muitos casos, elas sejam coincidentes, como no caso das regras que proíbem/punem o homicídio, roubo e estupro, que tanto são morais quando legais. É claro que para os juspositivistas esta conexão seria apenas histórica e não conceitual.1 Por outro lado, a tese da conexão ou da vinculação, que é defendida por Finnis, Fuller, Alexy e Dworkin, entre outros, argumenta que direito e moral estão ligados de forma conceitual e não apenas de forma contingente. Assim, para a norma jurídica ter validade, além de ser emanada pelo órgão estatal competente e seguir os procedimentos legítimos, ela deveria ser justa, ou, como dito por Alexy , adotando a fórmula de Radbruch, ela não deveria ser extremamente injusta, uma vez que uma extrema injustiça não seria direito (ALEXY, 2002, p. 28-31).

Em que pese a complexidade do debate e as sofisticadas posições defendidas por seus diferentes representantes, penso que falta ainda um maior esclarecimento sobre o que seria mesmo a moralidade, bem como sobre a própria compreensão do significado do termo “relação”. De forma geral, parece que ambos representantes pressupõem que esta relação é um tipo de dependência do direito em relação à moral, como no caso do direito natural ser um critério normativo último para o direito positivo, considerando o direito positivo como fundamentado na vontade divina ou na natureza ou mesmo na razão. Veja que tanto o juspositivista quanto o jusnaturalista parecem pressupor uma relação de dependência do direito em relação à moral quando querem evitar ou a anarquia e conservadorismo ou a arbitrariedade e injustiça, respectivamente.2 Da mesma forma, parece que ambos consideram a moral como um conjunto de regras de conduta que teria sua autoridade dada exclusivamente de forma internalista (em 1ª pessoa), isto é, que dependeria exclusivamente da consciência individual (1ª pessoa do singular) e/ou coletiva (1ª pessoa do plural) para sua obrigação, uma vez que apenas as regras jurídicas seriam coercitivas, isto é, obrigariam independentemente da vontade dos agentes, considerando que elas são criadas pelo poder político estatal e imposta de forma coativa, sendo que apenas o descumprimento das regras jurídicas seriam passíveis de punição.3

Mas, a moralidade não teria também aspectos externalistas, com uma autoridade normativa intersubjetiva, e a relação entre o direito e a moral não poderia ser pensada em termos de reciprocidade, quer dizer, identificando tanto a influência da moral ao direito quanto do direito à moral?

Veja que é comum nas discussões tomar os domínios da moral e do direito como estritamente distintos, e isso porque a moralidade ou a ética remeteria os agentes a uma esfera dos valores, que seria puramente subjetiva, interna, enquanto o direito remeteria os indivíduos a uma esfera das leis, que seria fatual, externa e tomada como objetiva. Mas, note-se que para além dessa interpretação simplificadora que separa radicalmente os fatos dos valores, pode-se reconhecer uma série de critérios morais nas decisões jurídicas, bem como certos princípios de legalidade, tais como os critérios de razoabilidade, liberdade, igualdade, e os princípios de generalização, publicidade, clareza, coerência, entre outros, da mesma forma que pode-se identificar um caráter objetivo nas decisões morais, de forma a tomar a crueldade e o sofrimento como errados, bem como considerando a tolerância como correta e condenando algumas formas de discriminação, tais como a discriminação racial e de gênero, por exemplo.4 Creio que a Declaração Universal dos Direitos Humanos mostra muito bem essa realidade, uma vez que ela é tomada não apenas como um código legal, mas que ofereceria, também, uma forte proteção moral aos cidadãos, garantindo seus direitos. Importante frisar que apesar de reconhecer-se a autoridade exclusivamente coercitiva do direito em contraposição a uma autoridade internalista (voluntária) da moralidade, tanto a ética quanto o próprio direito parecem poder ser compreendidos como possuindo uma autoridade normativa interpessoal, uma vez que as suas regras sociais que orientam o comportamento humano com o objetivo de harmonia seriam validadas intersubjetivamente ao invés de validadas de forma objetiva, como no caso das ciências duras, que precisariam contar com uma forte dimensão verificacionista, dimensão esta que não parece disponível no nível prático da vida humana.

Deixem-me apontar um exemplo ilustrativo dessa conexão que tenho em mente. Recentemente, no Brasil, o STF (Supremo Tribunal Federal) realizou um debate sobre a criminalização da homofobia, julgamento esse que avaliou se a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero deveria ser considerada crime e enquadrada pela lei do racismo (Lei 7.716/1989). Oito dos onze ministros do Supremo votaram a favor da proposta feita pelas duas ações que levaram a questão ao plenário da corte.5 O ponto importante que quero destacar é que parece haver uma reprovação moral por uma grande parte da sociedade da discriminação tanto por orientação sexual quanto por identidade de gênero, de forma a equiparar o erro público da homofobia e transfobia ao racismo ou mesmo à violência de gênero, havendo uma forte censura social em relação a esses atos por se entender que eles ferem a dignidade e a liberdade humana. Assim, não seriam esses valores morais de dignidade, liberdade e igualdade, por exemplo, que estariam servindo de referência tanto ao direito quanto à política, isto é, servindo de referência tanto para a decisão judicial quanto para a deliberação legislativa? E se a resposta for afirmativa, de que maneira se poderia pensar nessas esferas como em separado, pois, note-se que, de forma similar, tanto o judiciário como o legislativo também parecem servir de orientação para a moral. Não seria a lei do Racismo e a lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) uma importante referência normativa para pautar os juízos morais dos cidadãos de sociedades democráticas, de forma a propiciar um aperfeiçoamento no raciocínio moral dos agentes em uma direção de maior inclusividade e correção das arbitrariedades?

Dito isto preliminarmente, o objetivo deste artigo é defender a existência de uma relação peculiar de pluridirecionalidade entre a moral e o direito e que a moralidade pode ser melhor compreendida por sua autoridade normativa em segunda pessoa, especificamente nos casos que envolvem questões de justiça. Para tal, inicio esclarecendo as características centrais da moralidade, ressaltando a sua natureza e autoridade normativa intersubjetiva. Posteriormente, tematizo duas questões de justiça, a saber, a injustiça epistêmica e a desobediência civil. Como conclusão, sugiro uma distinção entre moralidade privada e pública, defendendo que isto pode nos ajudar a compreender melhor a relação recíproca que há entre a moral e o direito.

A natureza da moral

Muitos textos que tratam da relação entre moral e direito tomam por dado o que seria a moralidade e se detêm quase que exclusivamente na descrição e definição do direito, procurando apontar para a sua complexidade e especificidade. Como meu objetivo inicial é esclarecer a própria natureza da moral, tomo como ponto de partida a compreensão de Hart sobre a moralidade, tal como é apresentada em The Concept of Law, e isto porque além deste autor ser uma referência central no debate, ele procura descrever detalhadamente o fenômeno social da moral, em comparação com o direito, é claro, mas demonstrando uma especial atenção à complexidade mesma da moralidade, dedicando dois capítulos desta obra para tal fim.

Para Hart, direito e moral são fenômenos sociais distintos, mas relacionados, uma vez que são sistemas de regras que estabelecem obrigações aos agentes, sendo dois sistemas normativos distintos, mas que possuem uma conexão contingente, isto é, histórica.6 No capítulo oitavo, diz que há uma linha tênue que separa esses dois sistemas de regras, havendo um princípio moral ligado ao direito que é a justiça. A justiça, assim, é um segmento da moral que se ocupa primariamente não com a conduta individual, mas com os modos como são tratadas as classes de indivíduos e, por isso, ela tem especial relevância para o direito e para outras instituições públicas. Em seus termos, a justiça “(...) é a mais jurídica das virtudes e a mais pública delas” (HART, 2012, p. 167). A ideia geral é que o critério de justiça, entendido como equidade, exigiria que a aplicação das regras gerais aos casos particulares seja imparcial, que se trate similarmente os casos iguais, bem como que se use uma mesma regra geral em casos similares. Além de reconhecer que os padrões morais de equidade são exigidos na condução do processo judicial, Hart, no nono capítulo, também reconhece os cinco truísmos do direito natural, a legitimidade da autoridade, as virtudes do magistrado, tais como imparcialidade, neutralidade e igual consideração de interesses e os oito princípios de legalidade (moralidade interna do direito) como conectados ao direito, mas que não seriam capazes de garantir um conteúdo justo do sistema jurídico como um todo, uma vez que este sistema seria compatível com alguma iniquidade (HART, 2012, p. 193-212).

Mas, para além deste reconhecimento da conexão não necessária entre os dois sistemas normativos em tela, Hart aponta para certas diferenças específicas das regras morais em relação tanto às regras jurídicas como a outros tipos de regras sociais. Esta especificidade seria compreendida pela (i) importância de todas as regras morais, (ii) imunidade à alteração deliberada, (iii) caráter voluntário dos delitos morais e (iv) forma de pressão “interna”. Para ele, as regras morais são tomadas como de grande importância a manter, enquanto as regras de etiqueta e algumas regras jurídicas são facilmente alteradas. Também, que as regras morais não poderiam ser alteradas por ato legislativo, o que facilmente ocorre com as regras jurídicas. Outra distinção é que a responsabilidade moral estaria relacionada à voluntariedade do ato (intencionalidade), enquanto a responsabilidade legal estaria ligada ao dano cometido aos outros. Por fim, que seguir uma regra moral não poderia ser apenas por medo da punição, sendo que a forma de pressão moral consistiria em apelar ao respeito às regras como coisas importantes em si mesmas (HART, 2012, p. 173-180). No restante da seção procurarei mostrar que essa compreensão da moralidade apresenta limitações.

A primeira especificidade da moral para Hart em relação ao direito é a importância da manutenção de qualquer regra ou padrão moral. O exemplo dado por ele é a regra que interdita a homossexualidade, uma vez que a parte mais proeminente da moralidade de qualquer sociedade consiste nas regras sobre o comportamento sexual, em razão das pessoas atribuírem grande importância a este tema. Isso seria diferente no caso de muitas regras legais e mesmo regras de etiqueta que poderiam ser facilmente modificadas sem nenhuma preocupação das pessoas com sua manutenção, como no caso da atual regra de etiqueta que exige distanciamento social e uso de máscara.7 O problema desta interpretação é que ela não leva em conta o fenômeno do progresso moral, de forma a reconhecer que muitos comportamentos que antes recaiam sobre uma avaliação moral perderam essa caraterística normativa, isto é, que antes eram considerados moralmente errados e agora são vistos como moralmente permissíveis, tais como a masturbação, o sexo antes do casamento, a promiscuidade e até a homossexualidade, enquanto outros comportamentos que eram neutros do ponto de vista moral, passaram a ser censurados, como o duelo, a mutilação genital feminina, punições extremamente cruéis, tortura e até mesmo o sexo não consensual com a esposa.8

Penso que o fenômeno do progresso moral nos auxilia a ver a moralidade de uma forma mais adequada, uma vez que ele revela seus elementos naturais e mesmo sociais e a aproxima mais do direito, de forma a ressaltar suas características tanto evolutiva como progressiva. A partir deste contexto interpretativo, a moralidade humana pode ser tomada como uma habilidade para regular nossas interações com os outros de acordo com certas regras de obrigação, como uma capacidade de ter sentimentos morais, tais como empatia, senso de justiça, ressentimento, indignação ou mesmo nojo, sendo, também, uma habilidade para aplicar estas regras de obrigação a novas situações que requerem um tipo específico de julgamento e raciocínio, como a imparcialidade e a generalidade, por exemplo, o que parece nos apontar para a plasticidade da mente moral humana.9 E isto nos possibilita compreender porque certas regras morais, sobretudo as ligadas ao campo da sexualidade humana, tal como a que interditava a homossexualidade, caíram em desuso e perderam a importância em sua manutenção.

A segunda característica específica da moral para Hart é a sua imunidade à alteração por ato legislativo. Enquanto é intrínseco ao direito que novas regras jurídicas sejam introduzidas e as anteriores revogadas ou alteradas por ato legislativo intencional, as regras ou princípios morais “não podem ser criadas, alteradas ou eliminadas deste modo” (HART, 2012, p.175). A ideia geral de Hart é que há um claro contraste nesses dois sistemas de regras sociais: enquanto o direito é realizado por um fiat humano através de atos legislativos, a moral é algo que “existe” para ser reconhecida, sendo estabelecida por um processo lento e involuntário. E, assim, não seria admissível que um ato legislativo determinasse a moralidade ou a imoralidade de qualquer ação, como uma lei que dissesse que “A partir de amanhã já não é imoral fazer isto ou aquilo” ou “Em 1º de janeiro último tornou-se imoral fazer isto ou aquilo” (HART, 2012, p. 175-176).

Embora eu reconheça como correta esta distinção em termos gerais, é importante ressaltar, como o próprio Hart faz, que a aprovação ou revogação de certas leis podem estar entre as causas de alteração ou decadência de qualquer padrão moral. Por exemplo, Hart menciona que os atos legislativos podem estabelecer padrões de honestidade e humanidade que alterarão a moral vigente, bem como a repressão jurídica de certas práticas consideradas moralmente obrigatórias pode levar as desparecimento de seu estatuto moral (HART, 2012, p. 176-177). Veja-se que no passado, se tomava a escravidão como justa, assim como não se problematizava moralmente a discriminação às mulheres. Como mudou o juízo moral que considerava a escravidão como justa e o sexismo como correto para um juízo moral atual que considera tanto a escravidão, o racismo e o sexismo como injustos e incorretos? No caso da escravidão, houve um decreto legislativo que aboliu esta instituição injusta, que parece que foi a base para a mudança posterior do juízo moral de grande parte da população. No caso do sexismo, também houve mudanças legislativas que permitiram o voto das mulheres, a participação política e mesmo a igualdade no trabalho. E, similarmente, parece que estas reformas legislativas foram importantes para a mudança da mentalidade de grande parte da população atual que julga como errado toda forma de desigualdade por gênero.

Penso que os exemplos anteriormente citados nos mostram que a moral também sofre influência, sim, de atos legislativos intencionais, e que o estatuto moral dos padrões normativos também pode ser atribuído por um fiat humano, sobretudo se reconhecermos o fenômeno social do progresso moral. Também é importante constatar que algumas regras jurídicas não poderiam ser alteradas por ato legislativo intencional. Imaginem que um certo parlamento nos dias atuais promulgasse a seguinte lei: “A partir de 1º de janeiro de 2021 não será mais ilegal assassinar, estuprar e sequestrar”. Penso que é razoável supor que esta alteração não seria aceita pela sociedade e a razão por sua não aceitação seria a reprovação moral de tais atos. E isso parece nos mostrar, no fim das contas, que estes dois sistemas de regras não são tão diferentes assim, uma vez que ambos compartilham de um mesmo padrão normativo que é intersubjetivo.

A terceira especificidade da moral apontada por Hart é o caráter voluntário dos delitos morais. O ponto central é distinguir entre a responsabilidade moral e a responsabilidade jurídica, de forma que se um agente descumprir uma certa regra moral, como a que diz que é errado matar, sem intenção e tomando todas as precauções cabíveis, ele seria facilmente desculpado no plano moral; entretanto, no plano jurídico, esse agente ainda seria responsável objetivamente pelo dano causado. Com isso, o “caráter interno” da moral, isto é, a intencionalidade ou voluntariedade, seria condição necessária para a responsabilidade que o agente deve ter com sua conduta, o que significaria que uma ação cometida sem intenção não seria censurável (moralmente), sendo apenas passível de punição, uma vez que o sistema jurídico pode impor responsabilidade objetiva aos agentes totalmente independente do dolo, isto é, independente da intenção (HART, 2012, p. 178-179).

A limitação desta distinção entre o interno (intenções) e externo (consequências) para compreender a especificidade da moral e do direito, parece esconder os elementos “externalistas” da moral, bem como minimizar os elementos “internalistas” do direito. Como o próprio Hart reconhece, no sistema jurídico a identificação do dolo (intenção) é um elemento importante de responsabilidade criminal para assegurar aos que ofenderam sem intenção um certo tipo de desculpa, o que significaria uma pena mais branda. E, além da distinção entre dolo e culpa, o direito penal também distingue entre crime tentado e crime realizado, atribuindo uma penalidade (ainda que menor) até mesmo aos atos que foram pensados e desejados, mas que não foram concretizados, como na circunstância de uma tentativa de homicídio. E isso já nos conduz aos casos de sorte moral resultante, que ocorrem quando a censura e a responsabilidade moral vão além das intenções dos agentes, tendo por foco as consequências mesmas dos atos.10

Penso que os casos de sorte moral resultante claramente nos mostram que na vida real responsabilizamos moralmente as pessoas também pelas consequências de seus atos, além das de suas intenções. Pensem no exemplo clássico dos dois motoristas imprudentes. Ambos ingerem a mesma quantidade de álcool e, ao dirigir seu automóvel, sobem na calçada, mas em apenas em um dos casos há o atropelamento e posterior morte de pedestres. No outro caso, não ocorre nenhum atropelamento e morte porque não havia pedestres na calçada (NAGEL, 1993, p. 61). O problema central que emerge neste caso e em outros similares é que eles parecem colocar em xeque as nossas avaliações morais que deveriam considerar a responsabilidade dos agentes circunscrita apenas às suas capacidades de ação voluntária (escolha livre) e deliberada, mas, de fato, levam em conta igualmente o resultado das ações intencionais para o elogio e censura. Note-se que os agentes são igualmente culpados por sua imprudência de beber e dirigir, mas a censura é mais intensa ao motorista que atropela e mata os pedestres, inclusive sendo um ato passível de punição, o que é uma censura legal. Há igual culpabilidade moral, mas a censura, tanto moral quanto legal, é diferenciada.

A última distinção entre moral e direito feita por Hart consiste na observação de que as regras morais teriam uma forma de pressão “interna” em contraposição a pressão externa das regras jurídicas. Isto quer dizer que a obediência às regras jurídicas se daria muitas vezes pelo medo da punição, enquanto a obediência às regras morais se daria pela própria correção das regras e pelo reconhecimento de sua importância por parte dos agentes. Por exemplo, seria a própria consciência do agente que o obrigaria a seguir a regra moral de cumprir a promessa, pois mesmo não havendo punição para o seu descumprimento, pode gerar culpa e arrependimento no agente por sua não observância (HART, 2012, p.179-180).

Creio que uma forma mais frutífera para se compreender a natureza da moralidade seja identificando também os seus aspectos fortemente sociais. Phillip Pettit, em The Birth of Ethics, cria uma interessante genealogia contrafactual da moral que nos ajuda neste propósito. Ele imagina uma comunidade hipotética, chamada de Erewhon, em que as pessoas têm linguagem e interação pessoal, mas não fazem juízos morais. A questão levantada é a de saber como as pessoas teriam desenvolvido as práticas de obrigação entre si e teriam tomado os outros como responsáveis? A resposta é dada pelas práticas de censura e elogio. Imaginando a necessidade da confiança para realizar empreendimentos cooperativos, a credibilidade do agente teria sido fundamental para a garantia de seu sucesso no grupo. Assim, seria razoável imaginar que o agente que mentisse ou que não cumprisse a sua promessa fosse fortemente censurado pela comunidade. E, dessa forma, seriam estas condições sociais que teriam levado as pessoas a adotarem os conceitos de desejabilidade e responsabilidade, dizendo por exemplo, “é desejável que você não minta” ou “é desejável que você cumpra a promessa”, o que teria levado aos conceito de obrigação, na forma de “você tem o dever de não mentir” ou “você deve cumprir a promessa”, por exemplo (PETTIT, 2018, p. 13-56).11

Autoridade Normativa e Pluridirecionalidade

Vimos anteriormente que a moralidade é mais complexa do que parece a um primeiro olhar, uma vez que não se dá uma grande importância em manter certas regas morais, sobretudo as ligadas ao comportamento sexual, que a moral também é realizada por um fiat humano e muitas vezes é influenciada por atos legislativos intencionais, que as consequências dos atos também são importantes para a responsabilização moral e que existe uma pressão moral que é social, exigindo que os indivíduos se comportem de uma certa maneira, por exemplo, não mentindo, cumprindo a promessa, não matando etc. Penso que essas características nos ajudam a compreender a autoridade interpessoal da moral, uma vez que ela é um conjunto de regras de conduta que tem sua autoridade normativa dada não subjetivamente, isto é, garantida pela consciência individual (1ª pessoa) ou dada objetivamente, quer dizer , validade por certos fatos (3ª pessoa), mas é dada intersubjetivamente, especialmente nos casos que envolvem questões de justiça. Deixem-me partir de um interessante exemplo dado por Dworkin que é muito esclarecedor para se compreender adequadamente a autoridade intersubjetiva da moral e, também, de como a moral se relaciona com o direito e vice-versa.

Imaginem um pai que deve arbitrar o conflito entre os filhos, G, uma adolescente e, B, o irmão menor. G promete levar B a um show de música pop, que está com os ingressos esgotados, e depois muda de ideia, querendo dar o ingresso a um amigo. B protesta e quer que o pai obrigue G a manter sua palavra. A questão que surge é: o pai em tela teria autoridade legítima para dizer que G deve cumprir sua promessa ou para dizer que B deve aceitar a mudança de ideia da irmã? E os filhos teriam a obrigação de aceitar a decisão do pai? Uma forma óbvia de ver o caso seria tomar o pai com uma autoridade legítima para decidir e usar até mesmo meios coercitivos para ser obedecido, por exemplo, ameaçando G. Mas, existiriam outras condições no uso da autoridade coercitiva do pai para além de sua convicção pessoal de que a filha deve cumprir a promessa? Parece que sim. A partir da história familiar se poderia identificar como o pai exercitou sua autoridade em casos similares no passado, ou mesmo como a mãe exerceu essa mesma autoridade nestes casos. Por exemplo, em situações anteriores, sempre foi exigido que os filhos cumprissem as promessas. Ou, alternativamente, nunca houve esta exigência aos filhos (DWORKIN, 2011, p. 407-409).

A partir deste contexto, parece que a decisão terá que contar com a construção de uma moralidade institucional, que seria, para Dworkin, “(...) uma moralidade especial que governa o uso da autoridade coercitiva na família” (DWORKIN, 2011, p. 408). E a característica desta moralidade é que ela é dinâmica, pois o padrão normativo seria instituído a partir das decisões que foram tomadas e impostas nas situações concretas. O ponto defendido é que a história familiar cria um código moral específico. E isso porque as razões usadas para se decidir nos casos de conflito são razões morais, como os princípios da equidade (fairness), que exigem o jogo limpo (fair play), a notificação com antecedência (fair notice) e a justa distribuição de autoridade. Agora, se o pai em tela tomar uma decisão que não respeita estes princípios estruturantes, por exemplo, impondo uma obrigação a G que não foi feita no passado, sua decisão seria facilmente tomada como injusta e, provavelmente, sua autoridade seria questionada. Esta decisão seria injusta a menos que uma nova e melhor explicação destes princípios mostrassem que isto não é injusto. Por exemplo, ele poderia justificar sua decisão anterior dizendo que estava incentivando sua autonomia e agora estaria incentivando sua empatia. E, claro, toda nova interpretação destes princípios é um exercício moral.12

Creio que este exemplo dado por Dworkin nos ajuda a compreender que as obrigações morais (e também as jurídicas) estão ligadas à legitimidade da autoridade, ao respeito aos precedentes, isto é, as decisões anteriores e a justiça (ou razoabilidade) da decisão. Ele nos permite ver que o padrão moral, o princípio da equidade (fairness), por exemplo, só é conhecido a partir das próprias práticas, como na história da família que, por sua, vez, vai se espelhar nas práticas institucionalmente reconhecidas, como as práticas jurídicas e mesmo políticas, sobretudo as legislativas. Aqui, penso, podemos ver mais claramente a pluridirecionalidade, pois a moral (princípios estruturantes) orienta o direito, oferecendo um padrão normativo para o julgamento e decisão. Entretanto, é o próprio sistema jurídico e político que oferecem as condições para a construção do critério normativo. Antes da equidade ser um critério moral que “existe” e que deve ser “reconhecido” pelos agentes, ela parece ser um critério construído em certas práticas socialmente legítimas.

Mas, interpretar a moral como tendo uma autoridade interpessoal ao invés de subjetiva não descaracterizaria a própria moralidade, uma vez que a obrigação do ponto de vista ético precisaria ser imposta pela consciência do agente independente das opiniões alheias? Num certo nível sim, sobretudo quando pensamos na integridade pessoal, isto é, nos valores que fazem os agentes se verem como pessoas, como no caso do agente exigir de si mesmo um comportamento virtuoso, exigindo a veracidade, a coragem, a moderação, a curiosidade, a solidariedade etc. Neste nível, há grande desacordo moral, isto é, há grande disputa sobre o que mesmo teria valor. Mas, em um nível público, não, antes pelo contrário, uma vez que a consciência (mente) do indivíduo se desenvolve socialmente e os valores que são importantes para o agente são adquiridos no interior mesmo da comunidade moral e política. Não é por acaso que os homens, em geral, não se sentiam obrigados a não assediarem sexualmente suas colegas de trabalho ou funcionárias na primeira metade do século vinte. Foi necessário ocorrer a revolução sexual, a maior conquista dos direitos das mulheres e a crítica ao machismo estrutural feita pelo movimento feminista para que esta obrigação fosse de fato reconhecida. Isso parece nos mostrar que ao menos neste nível público as obrigações ou deveres estão diretamente relacionadas com as exigências de direitos que são feitas pelos agentes no interior mesmo de uma comunidade moral e política.

A esse respeito, é elucidativo fazer referência à concepção de moralidade apresentada por Stephen Darwall. Ele defende que a moral é melhor interpretada como tendo uma autoridade normativa em segunda pessoa, em que haveria um âmbito interpessoal de exigências e demandas. Para o autor, a maioria dos conceitos morais, tais como obrigação ou dever, direitos, certo e errado, entre outros, têm uma estrutura em segunda pessoa que é irredutível. Por exemplo, alguém teria o dever de não causar dano às pessoas não porque é errado causar dor aos outros, o que seria um fato externo (em 3ª pessoa), mas pela razão de alguém exigir ter sua integridade e vida respeitadas. Aqui haveria uma autoridade discricionária individual, mas que remete a um fato em segunda pessoa, que seria a demanda feita. A isto Darwall chama de obrigação bipolar. Há uma obrigação por que alguém exige de nós um certo tipo de comportamento, sendo a relação de obrigação estabelecida entre o que exige e aquele que é exigido, o que nos remete a uma autoridade pressuposta que todos temos como pessoas representativas da comunidade moral (DARWALL, 2013, p. 3-32).13

O ponto importante a ser destacado é que a obrigação moral estará relacionada não com a consciência a individual que acessa um certo fato (erro), mas com a reprovação dos membros da comunidade. Para ele, o que estamos moralmente obrigados a fazer, o que seria errado não fazer, não é apenas que existiria razões conclusivas ou razões morais para nós fazermos. Somos responsáveis moralmente para fazer no sentido de que não fazer tal coisa sem uma boa desculpa seria censurável. E a censura, para ele, é explicada em termos das atitudes reativas, como em Strawson, em que um ato errado gera sentimentos de ressentimentos ou indignação nos agentes, o que traz uma exigência por direitos. Por isso, os direitos morais são entendidos também em termos jurídicos. Por exemplo, o direito à liberdade implicará que os outros não tenham autoridade para demandar ou exigir nada. E isto parece revelar uma estrutura interpessoal da normatividade, de forma que os membros da comunidade fazem exigências entre si, responsabilizando moralmente os agentes, e as leis criam exigência em termos de direitos e deveres. Mas, como justificar tal autoridade normativa? Pela condição de aceitação razoável. Ele defende corretamente que as pessoas compartilham uma autoridade comum para exigir dos outros em virtude de sua capacidade de entrar em relação de responsabilidade mútua, o que exigirá um reconhecimento recíproco de autoridade (DARWALL, 2013, p. 168-178).14

É claro que muito mais deve ser dito a respeito do caráter intersubjetivo da moral. É o que faremos na próxima seção, em que analisaremos dois casos que tratam de exigências de justiça e são relevantes por operaram em um nível público, nível em que a autoridade normativa interpessoal é mais evidente.

Exigências de justiça

Desde Platão e Aristóteles e passando pelos medievais, a justiça sempre foi tomada corretamente como o padrão normativo central para o direito, sendo a virtude que mais claramente lida com o bem do outro, isto é, com aquilo que a comunidade como um todo considera seu direito, uma vez que ela é um traço de caráter, estabelecido pelo hábito, para dar às pessoas aquilo que lhes é devido, seja em termos de bens a serem distribuídos, seja na forma de uma punição por um ato errado/ilegal. E, assim, ela é uma virtude que se efetiva nas relações que um indivíduo mantém com a comunidade (ARISTOTLE, 1999, V, 1, 1128 b 41-1129 a 32). E a partir da modernidade, a justiça passa a ser interpretada também como ligada aos direitos individuais. É o caso de Adam Smith, que toma a justiça como uma virtude negativa, uma vez que sua observância não estará ligada à vontade do agente, podendo ser exigida pela força, uma vez que a violação das regras de justiça geraria ressentimento nos membros da comunidade, sendo o que fundamentaria toda punição. A justiça, assim, se relaciona com as ações de tendências danosas que são objetos apropriados do ressentimento, especificamente do ressentimento empático do espectador imparcial. Ela é uma virtude negativa, pois implicará numa disposição para não causar dano aos outros, respeitando os direitos à vida, liberdade e propriedade dos agentes. Também, é uma virtude social que obriga absolutamente a todos, diferentemente das virtudes de generosidade, caridade e amizade, por exemplo, que podem ser livremente escolhidas, não sendo pressionadas pela punição, o que nos remete a uma importante distinção entre o nível privado e público da moral (SMITH, 1976, II.ii.I.2).

No nível público da moral, as obrigações ou deveres estão diretamente relacionados com as exigências de direitos que são feitos pelos agentes no interior mesmo de uma comunidade moral e política. É neste nível, penso, que podemos ver com mais clareza a autoridade intersubjetiva da ética, uma vez que, geralmente, observamos reivindicações de justiça feitas por parte dos agentes e o reconhecimento ou não da justeza destas reivindicações pelo conjunto da sociedade. Creio que dois fenômenos são significativos para entendermos porque os casos que envolvem exigências de justiça nos remetem ao caráter interpessoal da moralidade, a saber, os casos de injustiça epistêmica e de desobediência civil, que são situações em que se toma como referência normativa central o senso de justiça que é comum ao agrupamento social. Mas, vejamos em maiores detalhes estes dois fenômenos.

A injustiça epistêmica ocorre quando aspectos discriminatórios arbitrários influenciam no domínio do conhecimento ou, em outras palavras, quando o preconceito identitário influencia as nossas práticas epistêmicas, como originando um déficit de credibilidade no testemunho de um agente ou dificultando a compreensão da realidade social em razão da ausência de certos conceitos centrais. Em Epistemic Injustice: Power & the Ethics of Knowing, Miranda Fricker diz que há duas formas de injustiça epistêmica, a saber, a injustiça testemunhal e a injustiça hermenêutica. A injustiça testemunhal ocorre quando o preconceito a uma certa identidade causa no ouvinte um nível deflacionado de credibilidade ao que foi afirmado pelo falante. Por exemplo, imaginem a situação em que um policial, um juiz ou mesmo um júri não acredita no que diz um agente apenas por ele ser negro. Nesse caso, temos um déficit de credibilidade causado pelo preconceito identitário que faz uso de estereótipos para julgar a situação, como o estereótipo que considera que “todo negro mente”, o que nos mostra que esta injustiça é causada pelo preconceito na economia da credibilidade. De outro lado, a injustiça hermenêutica acontece em um estágio anterior, ocorrendo quando uma lacuna nas fontes interpretativas coletivas coloca alguém em uma situação de desvantagem arbitrária no contexto das experiências sociais. Por exemplo, uma mulher que sofre assédio sexual em uma cultura que não possuí o conceito de “assédio sexual” parece estar sofrendo de uma desigualdade hermenêutica, uma vez que a ausência do conceito pode dificultar no reconhecimento da violência que ela está sofrendo. O mesmo poderia ser dito de alguém que sofre racismo em uma sociedade que não possuí ainda o conceito de “racismo”. Casos assim revelariam uma marginalização hermenêutica e teriam por causa o preconceito identitário estrutural na economia dos recursos hermenêuticos coletivos (FRICKER, 2007, p. 17-29; p. 147-161).

Penso que o fenômeno da injustiça epistêmica nos mostra que os preconceitos são errados eticamente, isto é, que eles são injustos, uma vez que uma compreensão comum de justiça exigiria o tratamento equitativo e um julgamento livre de estereótipos preconceituosos. Não é sem razão que Fricker irá sugerir a virtude da justiça para remediar o erro. A virtude da justiça testemunhal, por exemplo, possibilitaria a sensibilidade epistêmica-moral para dar valor imparcial a fala dos agentes e para não se julgar através de preconceitos. Por outro lado, a justiça hermenêutica deveria corrigir a própria estrutura, de forma a se desenvolver uma sensibilidade das dificuldades epistêmicas a partir da marginalização identitária. Assim, o papel da justiça seria o de neutralizar o impacto do preconceito identitário estrutural na credibilidade da fala dos agentes marginalizados por sua identidade social (FRICKER, 2007, p. 173).15

Já a desobediência civil pode ser entendida como um ato político, não-violento e consciente, contrário à lei (ou ilegal), cometido publicamente (ou abertamente) e respeitando a moldura do estado de direito, com o objetivo de protestar contra a injustiça de certas leis ou políticas. É um ato que desobedece a lei em razão de uma causa justa. Exemplos já canônicos de desobediência civil são os movimentos pelos direitos civis dos negros nos EUA como os liderados por M. L. King, os protestos conduzidos por M. Gandhi contra a dominação colonial dos britânicos na Índia, a rejeição de parte da população norte-americana à convocação de alistamento na Guerra do Vietnã, ou mesmo a recusa de muitos europeus a entregar judeus durante a perseguição realizada pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Com estes exemplos em mente, podemos compreender que a desobediência civil é resumidamente uma ação popular que consiste na desobediência expressa a uma determinada lei. E isso se dá mais comumente quando um grupo de cidadãos entende que determinada lei produz injustiça, como foi o caso das leis segregacionistas nos EUA nas décadas de 1950 e 60, que proibiam que os negros estudassem em escolas e universidade para brancos ou que comessem em seus restaurantes, proibindo, também, que eles se sentassem nos lugares reservados aos brancos nos ônibus, exigindo, até mesmo, a cedência de seus lugares a eles no caso dos ônibus estarem lotados.16

Me permitam fazer referência à concepção de desobediência civil como a apresentada por John Rawls e isso em razão dele destacar um aspecto que vejo como fundamental para a compreensão do fenômeno: a desobediência em tela deve estar conectada com o senso de justiça da maioria da comunidade, tendo o papel de declarar que os princípios da cooperação social entre pessoas livres e iguais não estão sendo respeitados. Por isso, os casos de desobediência civil estariam limitados às circunstâncias de clara e substancial injustiça, como seria a situação de se negar o direito de votar a certas minorias, ou negar que elas possuam propriedade. A ideia geral é que esta desobediência seria um apelo aos agentes para reconsiderarem sua posição, para se colocarem no lugar dos outros e reconhecerem que eles não podem esperar que se aceite indefinidamente os termos impostos por serem injustos. Nesse sentido, é importante identificar que esta desobediência é diferente de um ato de objeção de consciência, que apenas apela para princípios morais e convicções religiosas pessoais, como seria o caso de recusar em servir às forças armadas para não lutar em uma dada guerra por acreditar no pacificismo. Para Rawls, este fenômeno estaria restrito aos princípios políticos que expressam uma concepção pública de justiça de uma sociedade democrática. E, por isso, a desobediência em tela dependeria de uma fidelidade à lei que é expressa pela natureza pública e não-violenta do ato, exigindo uma disposição para aceitar as consequências legais da conduta, bem como exigindo que todos os meios legais já tenham sido tentados anteriormente (RAWLS, 1999, p. 319-343).17

É importante observar que os casos de desobediência civil nos apontam fortemente para as ideias de responsabilidade e autonomia que todos os cidadãos que fazem parte de uma sociedade democrática e que não é extremamente injusta devem ter. E essa responsabilidade estaria ligada ao compromisso da melhor interpretação dos princípios públicos de justiça e sua conduta à luz deles. Por exemplo, responsabilidade em defender a liberdade dos agentes, bem como a sua igualdade, seja ela perante à lei, seja ela do ponto de vista econômico, pelo menos em um nível em que se veja como injusto não garantir a igualdade equitativa de oportunidade para os agentes poderem realizar seus projetos de vida. Por essa razão, apenas apresentar uma objeção de consciência a uma certa injustiça poderia caracterizar a autonomia do agente, mas dificilmente isto expressaria o comprometimento com os valores sociais comuns. Parece ser por essa razão que a punição aos desobedientes civis geralmente é diferenciada em relação aos que descumprem a lei sem reivindicar sua injustiça. Em geral, esta punição é enfraquecida.

O relevante nestes casos tanto de injustiça epistêmica quanto de desobediência civil é que eles parecem fazer uso do senso de justiça que é socialmente compartilhado como uma referência normativa central para a identificação das injustiças. Por exemplo, que é errado ou injusto usar estereótipos preconceituosos para diminuir a credibilidade do testemunho de alguém ou que não é justo dificultar a compreensão da realidade social de alguns agentes em razão da ausência de certos conceitos que seriam fundamentais para eles identificarem a violência sofrida. Também, que seria injusto não assegurar a todos os agentes os valores centrais que são defendidos nos princípios públicos de justiça de uma sociedade democrática, por exemplo, os valores de liberdade e igualdade. Este senso de justiça, que é identificado em um nível público e não privado, parece tornar mais claro o que seria mesmo a natureza interpessoal da moralidade, a saber, que qualquer critério normativo-moral só adquire legitimidade se ele for aceitável para todos os agentes que fazem parte de uma mesma comunidade moral e política, não importando suas divergências valorativas em um nível privado.

Considerações Finais

Como vimos na seção anterior, os casos que envolvem reivindicações de justiça parecem revelar mais claramente o aspecto intersubjetivo da moralidade, sobretudo porque mostram que a legitimidade deste critério normativo se dá em um nível público e não privado, que precisa contar com a aprovação dos membros de uma mesma comunidade e isto parece nos possibilitar uma compreensão mais adequada da relação pluridirecional entre a moral e o direito. E isso seria assim porque a própria exigência por justiça parece pressupor certas práticas institucionais que procuram evitar a arbitrariedade, parcialidade e todo tipo de distorções nos julgamentos, tais como o tribunal do júri, a votação em um Parlamento que exige maioria absoluta, bem como a proibição de monopólios numa economia de mercado, entre outros. Mas, é claro que o mesmo não poderia ser dito do âmbito privado da moralidade, uma vez que valores e princípios que são importantes para uns não tem necessariamente a mesma relevância para outros, como seria o caso de certos agentes valorizarem o pacifismo e o respeito aos direitos de animais não-humanos e outros valorizarem mais a solidariedade ou a benevolência com os mais pobres, ou no caso de certos agentes valorizarem mais a autonomia pessoal e outros a dignidade da pessoa humana, pensando em uma discussão sobre a moralidade ou imoralidade do aborto ou eutanásia, por exemplo. Nesse âmbito privado, o desacordo moral é substancialmente maior.

E dado a existência de um grande desacordo moral em sociedades complexas que tem como característica básica o pluralismo ético, é prudente defender uma independência entre a moral e o direito, assim como faz Waldron, por exemplo, uma vez que a função do direito seria a de nos dar razões para agir independentemente dos juízos morais dos cidadãos que, em geral, são discordantes. E isto implicaria tomar o direito como um critério normativo público basilar para arbitrar os conflitos sociais, o que teria por finalidade evitar a arbitrariedade da decisão judicial. E por isso o direito deveria ser de tal maneira que decisões legais pudessem ser feitas sem o uso de juízos morais, por exemplo, sem o uso de valores progressistas ou conservadores. Waldron aponta para um relevante problema epistemológico da moral, a saber, que faltaria uma metodologia aceitável por todos para a justificação das crenças morais, e, assim, seria arbitrário que certos oficiais públicos, tais como juízes, fizessem uso de suas convicções éticas para fundamentar suas decisões jurídicas, sendo até mesmo irrelevante saber sobre a objetividade da moralidade (WALDRON, 1999, p. 182-187).18 Mesmo compartilhando do receio de uma possível arbitrariedade da decisão, penso que uma melhor compreensão das características da moralidade pública pode nos oportunizar um certo antídoto contra uma possível moralização judicial, uma vez que os consensos neste nível não são incomuns.

É verdade que também temos discordâncias morais na esfera pública da comunidade. Discordamos sobre o que devemos aos outros em termos de tolerância, respeito, solidariedade e cuidado mútuo, por exemplo. Discordamos até mesmo sobre o que consistiria a justiça, isto é, sobre o que contaria como os termos equitativos de cooperação. Mesmo tendo um consenso dos direitos assegurados pelas Constituições de sociedades democráticas e pela Declaração Universal do Direitos Humanos, resta ainda um forte desacordo sobre sua aplicação, por exemplo, se o direito à privacidade não eliminaria o direito à segurança coletiva, que seria possibilitada pela vigilância Estatal, ou mesmo se o direito de liberdade econômica (livre iniciativa) não eliminaria certos direitos do consumidor que visam sua proteção. Entretanto, não é difícil reconhecer que todos os membros de uma comunidade moral e política tomam como correto a necessidade de se usar o critério normativo da justiça para legitimar as regras e decisões jurídicas e políticas e até mesmo as econômicas, mesmo que possamos discordar sobre o que seria mesmo a justiça, se o respeito à igualdade, à liberdade, ao bem-comum ou a ambos. Também, parece não haver discordância a respeito da necessidade da decisão jurídica ser sempre imparcial, que é injusto punir um inocente para prevenir futuros crimes, que seria injusto não assegurar para todos os valores centrais encontrados nos princípios públicos que orientam as democracias, tais como a liberdade e a igualdade, ou mesmo que seria injusto levar em conta os preconceitos identitários para diminuir a credibilidade do testemunhos de certos agentes.

Estes últimos exemplos parecem evidenciar que compartilhamos um mesmo senso de justiça que possibilita nossa vida em comunidade, uma vez que ele nos conduz aos consensos morais mínimos sobre a legitimidade das decisões tomadas nos domínios jurídico, político e mesmo econômico. Este senso de justiça, que é percebido em um nível público, parece deixar mais clara a natureza interpessoal da moral, nos apontando para os critérios normativos relevantes que impedem o desacordo moral ou impedem que este desacordo seja tão profundo. E, assim, penso que a identificação destes critérios normativos que, é razoável supor, todos podem aceitar como corretos poderia impedir a arbitrariedade da decisão judicial, evitando, sobretudo, o moralismo jurídico, uma vez que a moral em tela não se resumiria ao apelo aos valores éticos pessoais. Ao contrário, a moral aqui teria uma autoridade normativa tão interpessoal quanto a do direito, sendo, também, influenciada por este. É claro que ainda temos que esclarecer a respeito da metodologia que seria aceitável por todos e que possibilitaria a justificação destas crenças morais no domínio público. Entretanto, creio que o reconhecimento deste consenso ético já seja suficiente para admitirmos a razoabilidade da tese que postula uma relação necessária entre a moral e o direito, relação que é pluridirecional e não de dependência.

Referências

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Financiamento de Pesquisa:CNPq

1Embora não seja determinante aqui, é importante distinguir entre os juspositivistas exclusivistas e inclusivistas. Os primeiros negam a possibilidade mesma de uma relação entre direito e moral no âmbito da validade, enquanto os segundos estipulam que os critérios morais podem fazer parte dos testes de validade jurídica desde que presentes na regra de reconhecimento aceita e operacionalizada pelos officials de uma certa jurisdição, como é o caso de Hart. Sobre a diferença entre exclusivistas e inclusivistas, ver FROEHLICH, 2017, p. 48-51.

2Do ponto de vista juspositivista, uma fundamentação do direito na moral poderia levar ao anarquismo, pois defender que a imoralidade da lei implicaria na sua não obrigatoriedade, poderia conduzir a um questionamento da autoridade e o não cumprimento da obrigação legal. Também, poderia levar ao conservadorismo ou moralismo jurídico, de forma que pensar que tudo o que é direito tem de ser moral e toda desobediência deve ser punida, provavelmente, apenas conservaria a moral vigente. Do ponto de vista jusnaturalista, por sua vez, o problema em não fundamentar o direito na moral poderia levar a arbitrariedade ou injustiça, como no caso de se ter uma regra jurídica que puniria um inocente para garantir a estabilidade social ou mesmo que puniria excessivamente alguém que é culpado. Sobre as características do jusnaturalismo e do juspositivismo, ver HART, 2012, p. 185-193.

3Robert Wolff, por exemplo, defende que o direito é inconsistente com a moralidade, uma vez que ele requer um tipo de obediência que seria incompatível com a autonomia moral das pessoas que implica em assumir a responsabilidade pelas ações e agir segundo o mérito dessas ações. Em síntese, ele estabelece uma distinção entre autoridade legal e autoridade moral, priorizando esta última. Ver WOLLF, 1970, p. 11-14.

4Lon Fuller defende uma tese similar, dizendo que há uma moralidade que faz o direito possível, que seria uma moralidade interna ao direito, apontando para oito princípios de legalidade, a saber: generalização, publicidade, prospecção, clareza, coerência, obrigação realística, continuidade e congruência entre a regra e a administração real. Ver FULLER, 1969, p. 33-94

5Para mais detalhes do julgamento em tela, ver Notícias STF, in: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=414010, 23/06/2019.

6Para Hart, o direito é um sistema formado por regras sociais, constituído por regras primárias e regras secundárias e não pode ser reduzido à ordens coercitivas do soberano. As regras primárias de obrigação exigem que se faça ou se abstenha de fazer certas ações, impondo deveres sobre a conduta, como, por exemplo, as regras que restringem o uso da violência e condenam o homicídio. Já as regras secundárias seriam as de reconhecimento, de alteração e julgamento, que assegurariam que as pessoas possam criar novas regras primárias, extinguir ou mesmo modificar as regras antigas. As regras de reconhecimento, por exemplo, possibilitam o reconhecimento da fonte de autoridade das regras primárias e são legisladas por um órgão específico. Um exemplo seria uma regra constitucional que reconhece o parlamento como fonte legítima para a criação do código penal. Ver HART, 2012, p. 79-99.

7A moralidade, para Hart, para além das obrigações e deveres, como o de não causar dano aos outros, não mentir e cumprir as promessas, inclui certas virtudes ou ideais morais que são superrogatórios, tais como bravura, caridade, benevolência, paciência e castidade. A partir desta importante constatação, Hart faz uma distinção entre a moral aceita, isto é, os valores morais que são apoiados socialmente e a moral crítica, que faz uso de princípios e ideais utilizados na crítica da moralidade da própria sociedade, como os de liberdade, fraternidade e igualdade. E isto porque a moral socialmente aceita pode ser repressiva, cruel e mesmo supersticiosa, como no caso de negar seus benefícios e proteções aos escravos e classes subjulgadas. Sobre esta distinção, ver HART, 2012, p. 180-184.

8Buchanan e Russell, em The Evolution of Moral Progress, apresentam o progresso moral como um fenômeno que pode ser compreendido como o desenvolvimento de nossos juízos morais de forma a existir uma convergência de nossas crenças morais e o padrão normativo do que seria o correto e o justo ao longo da história da humanidade, em direção a uma maior inclusividade ou ampliação do círculo ético. Também, apresentam uma interessante tipologia deste progresso. Entre os dez tipos classificados, encontramos a mudança de consideração sobre certos tipos de comportamentos que antes eram tomados como errados e agora são tomados como permissíveis, como masturbação, sexo pré-marital, casamento inter-racial e algumas instâncias de desobediência civil e também a mudança de consideração sobre certos tipos de comportamentos que eram tomados como permissíveis e agora são tomados como errados, tais como o duelo, circuncisão feminina, assédio sexual no trabalho, punições cruéis, tortura, entre outros. Sobre a tipologia do progresso moral, ver BUCHANAN; RUSSELL, 2018, p. 53-58.

9Allen Buchanan, em Our Moral Fate, explica a mente moral humana como o conjunto de competências cognitivas e emocionais que permitem a moralidade aos seres humanos, sendo composta por: capacidade para experenciar emoções de culpa, indignação, gratidão ressentimento, vergonha etc., aprovando ou desaprovando atitudes; tendência para ter empatia com o sentimento dos outros; habilidade para distinguir entre o que as pessoas desejam e o que elas devem fazer; capacidade para compartilhar intenções que possibilitam atividades coordenadas; habilidade para aplicar regras morais a novas situações etc. Ver BUCHANAN, 2020, p. 17-18.

10Sorte moral é o fenômeno que ocorre quando um agente é corretamente tratado como objeto de um juízo moral, sendo um alvo apropriado de censura ou elogio, embora aspectos significativos pelo qual ele é julgado dependem de fatores que estão além de seu controle, tais como as consequências dos atos, as circunstâncias e causas das escolhas e até mesmo a constituição mental do agente, isto é, a constituição de sua personalidade. A sorte moral resultante ocorre quando as consequências da ação são razões para atribuição de censura ou elogio ou para a ampliação da censura ou elogio, como no caso de se censurar mais fortemente aquele que agiu imprudentemente e causou um dano a alguém, como ter dirigido em alta velocidade e ter matado um pedestre, do que aquele que apenas agiu imprudentemente, isto é, dirigindo em alta velocidade. Sobre o tema, ver STATMAN, 1993, p. 1-18.

11Nessa genealogia hipotética, além dos aspectos sociais que teriam feito a ética inescapável, Pettit destaca que a integridade é peça chave para se entender a natureza da moral. Em suas palavras: ‟A despeito de ser gerada por práticas sociais, a aspiração a ser uma pessoa íntegra é o cerne da moralidade (...). O apelo a ser moral não é nada mais do que o apelo a ser uma pessoa com integridade: uma pessoa integrada com os comprometimentos adequadamente sustentáveis” (PETTIT, 2018, p. 9).

12Importante notar que este exemplo é dado no capítulo de Justice for Hedgehogs em que Dworkin trata da relação entre direito e moral, no qual ele explica sua posição anterior ligada ao interpretativismo. A teoria interpretativa do direito nega que direito e moral sejam sistema de regras totalmente independentes. Assim, o direito incluiria regras que decorrem de princípios que proporcionam a melhor justificação moral para essas regras promulgadas. Reconhecendo que esta posição contém uma falha fatal que é a circularidade, Dworkin passa a defender a tese de que o direito é parte da moral, especificamente da moralidade política. Ver DWORKIN, 2011, p. 402-405.

13Darwall faz uma interessante distinção entre a obrigação period, que seria um dever moral como equivalente a atos que seriam errados não fazê-los, como na forma de que “não cumprir a promessa seria errado” e a obrigação bipolar que pressuporia sempre dois polos. Para ele: “As obrigações bipolares sempre envolvem uma relação entre dois ‘polos’: um agente que está obrigado (the obligor) e um indivíduo, grupo etc., a quem ele está obrigado (...) (the obligee)” (DARWALL, 2013, p. 20).

14Para Darwall, a responsabilidade moral deve ser pensada em termos interpessoais, a partir da concepção de atitudes reativas de Strawson. Em suas palavras: “Por exemplo, eu defendo que é parte da própria ideia de um direito moral (reivindicação) que o titular do direito tem a autoridade de fazer a reivindicação de uma pessoa contra àquelas a quem os direitos são exigidos e responsabilizá-las pelo seu cumprimento. Como P. F. Strawson argumentou de forma influente em “Freedom and Resentment” a meio século atrás, a responsabilidade é, em sua natureza, em segunda pessoa (como ele coloca, é interpessoal)” (DARWALL, 2013, p. xi).

15Importante observar que para Miranda Fricker a virtude da justiça é tanto moral como intelectual, tendo o papel de mitigar o impacto negativo da injustiça epistêmica sobre o falante. Outra importante característica da virtude da justiça é que ela deve ser possuída tanto por indivíduos como por instituições, como no caso do judiciário, polícia e mesmo o mercado de trabalho, por exemplo. Ver FRICKER, 2007, p. 169-175; p. 120-128.

16Parto da definição de desobediência civil como a apresentada por H. A. Bedau em “Civil disobedience and personal responsibility for injustice”. Para ele, os casos paradigmáticos de desobediência civil são os atos que são ilegais, cometidos abertamente (publicamente), de forma não-violenta e consciente, que respeitam a moldura do Estado de Direito, mas possuem a intenção de protestar contra alguma lei, política ou decisão de governo que se toma como injusta. Ver BEDAU, 1970, p. 51. Em que pese o termo ter sido introduzido por Thoreau no século XIX, não tomaremos a desobediência civil como uma reponsabilidade pessoal pela injustiça, como faz Thoreau, uma vez que este ato estaria no campo da consciência moral individual, como uma objeção de consciência. E o problema é que o que afeta a consciência de um pode não significar nada para o outro.

17Em A Theory of Justice, Rawls apresenta uma reflexão sobre a desobediência civil, abordando sua definição, justificação e o seu papel específico, pensando especificamente nos casos da guerra do Vietnã, independência da Índia e movimentos por direitos civis e similares. Para ele, este fenômeno surge apenas em uma sociedade mais ou menos justa e democrática, em que os cidadãos reconhecem a aceitam a legitimidade da Constituição, mas, por outro lado, tem um forte compromisso com a justiça. Seria um fenômeno em que ocorre um conflito de deveres entre o dever de cumprir as leis e o dever de se opor às injustiças. Ver RAWLS, 1999, p. 319.

18Em Law and Disagreement, Jeremy Waldron defende a irrelevância da objetividade da moralidade para o direito. Ele diz que independentemente de haver uma resposta correta sobre a objetividade da moralidade, isto é, se existiriam ou não verdades morais objetivas, isto seria irrelevante para o direito, uma vez que inexistiria uma metodologia aceita por todos para justificar os juízos morais e, assim, o direito deve ser entendido de tal maneira que decisões legais possam ser realizadas sem o exercício de juízos morais. A função central da separação entre moral e direito, então, seria a de evitar a arbitrariedade da decisão. Ver WALDRON, 1999, p. 164-187.

Recebido: 17 de Fevereiro de 2021; Aceito: 05 de Julho de 2021

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