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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.73 Uberlândia jan./abr 2021  Epub 11-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n73a2021-54851 

Artigos

A relação entre imaginação, moralidade, política e literatura: uma análise a partir de Adam Smith e Martha Nussbaum

The relation between imagination, morality, politics and literature: an analysis from Adam Smith and Martha Nussbaum

La relación entre imaginación, moralidad, política y literatura: un análisis de Adam Smith y Martha Nussbaum

Wesley Felipe de Oliveira* 
http://orcid.org/0000-0002-9294-8303; lattes: 1342140515469265

*Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pós-Doutorando na Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: wesley.filosofia@hotmail.com


Resumo

Este artigo analisa relação da imaginação com a moralidade e a política através da literatura. Parte-se da reflexão sobre o papel da imaginação na sociabilidade e na simpatia moral, segundo Adam Smith. Para o autor, a capacidade de compreender e sentir o que ocorre com o outro exige um exercício imaginativo. Smith considera que a simpatia moral está inseparável da imaginação. Essa questão é ampliada a partir do conceito de imaginação literária ou narrativa desenvolvido por Martha Nussbaum. Para a autora, a capacidade da imaginação pode ser cultivada através da literatura, pois ela possibilita a experiência de vivenciar emoções e compreender situações alheias. Isso promove e amplia uma imaginação moral capaz de proporcionar um entendimento mais amplo das relações humanas. Assim, este artigo sustenta que as humanidades e, em especial, a leitura literária, propicia uma espécie de experiência moral e uma reflexão ética e política. Isso confere à literatura um valor educacional, pois ela é capaz de promover as qualidades de uma cidadania condizente com a sociedade democrática pluralista e cosmopolita. A proposta aqui desenvolvida oferece elementos para se pensar a ética, a política e a educação na sociedade atual, valorizando e resgatando as humanidades e a cultura literária.

Palavras-chave: Imaginação; Ética; Política; Simpatia; Literatura

Abstract

This article analyzes the relation between imagination, morality and politics through literature. We start with a reflection on the role of imagination in sociability and moral sympathy, as understood by Adam Smith. For the author, the ability to understand and feel what happens to another requires an imaginative exercise. Smith considers that moral sympathy is inseparable from the imagination. This question is amplified from the concept of literary imagination or narrative developed by Martha Nussbaum. For the author, the capacity for imagination can be cultivated through literature, as it allows the experience of emotion and understand other people´s situations. This promotes and broadens a moral imagination, capable of providing a broader understanding of human relationships. Thus, this article maintains that the humanities and, especially, literary reading, provides a kind of moral experience and an ethical-political reflection. This gives literature an educational value, as it is capable of promote the qualities of a citizenship consistent with the pluralist and cosmopolitan democratic society. The proposal developed here offers elements for thinking about ethics, politics and education in today's society, valuing and rescuing the humanities and literary culture.

Key-words: Imagination; Ethics; Politics; Sympathy; Literature

Resumen

Este artículo analiza la relación entre imaginación, moralidad y política a través de la literatura. Comienza con una reflexión sobre el papel de la imaginación en la sociabilidad y la simpatía moral, según Adam Smith. Para el autor, la capacidad de comprender y sentir lo que le sucede a otro requiere un ejercicio imaginativo. Smith considera que la simpatía moral es inseparable de la imaginación. Esta pregunta se amplifica desde el concepto de imaginación literaria o narrativa desarrollada por Martha Nussbaum. Para el autor, la capacidad de imaginación se puede cultivar a través de la literatura, ya que permite a las personas experimentar emociones y comprender las situaciones de otras personas. Esto promueve y amplía una imaginación moral capaz de proporcionar una comprensión más amplia de las relaciones humanas. Así, este artículo sostiene que las humanidades, y especialmente la lectura literaria, proporcionan una especie de experiencia moral y una reflexión ético-política. Esto le da a la literatura un valor educativo, ya que es capaz de promover las cualidades de una ciudadanía consistente con la sociedad democrática pluralista y cosmopolita. La propuesta desarrollada aquí ofrece elementos para pensar sobre ética, política y educación en la sociedad actual, valorando y rescatando las humanidades y la cultura literaria.

Palabras clave: Imaginación; Ética; Política; Simpatía; Literatura

Introdução

A filósofa norte-americana Martha C. Nussbaum propõe, a partir da Teoria das Capacidades (Capabilities Approach), uma reflexão a respeito do desenvolvimento das capacidades humanas e que resultem numa melhor qualidade de vida. Seu pensamento filosófico abrange reflexões em torno da ética e da política, passando, entre outras questões, pelo papel cognitivo das emoções, da razão e, como abordaremos neste artigo, da imaginação. Constata-se, ademais, que os temas abordados em sua vasta bibliografia são coadunados com uma perspectiva educacional que os transpassa e se vinculam com a ideia de desenvolver, ou, mais precisamente, garantir o florescimento (flourishing) das capacidades humanas. Sua abordagem ética e política tem como eixo prático uma concepção de educação na qual se destaca a centralidade nas humanidades e o cultivo da imaginação em virtude de sua influência na simpatia moral. Isso, por sua vez, se desdobra na esfera das relações individuais e sociais e, como a autora enfatiza, na qualidade da democracia pensada no contexto contemporâneo das sociedades pluralistas e cosmopolitas.

Há, nesse sentido, uma inspiração do pensamento moral de Adam Smith na forma como Nussbaum compreende a simpatia ou a empatia moral, entendida como a capacidade tanto de compreender quanto de se colocar imaginativamente no lugar do outro. O presente artigo se concentrará em analisar como a teoria de Nussbaum aprofunda essa noção de imaginação simpática e o modo pelo qual ela pode ser desenvolvida. Analisaremos de que maneira essa capacidade ou habilidade imaginativa precisa estar vinculada ativamente ao seu cultivo, isto é, ao seu desenvolvimento e aprimoramento. Nesse sentido, buscaremos analisar como isso se concretiza através de uma formação educacional que valorize, de maneira abrangente, o ensino das artes e das humanidades e, de um modo especial, da literatura. Isso se deve, principalmente, em razão do seu potencial para formar uma imaginação moral que motive e predisponha o indivíduo a conhecer os elementos emocionais, históricos, culturais que constituem a vida de outras pessoas com as quais se convive na sociedade.

Assim, o objetivo neste artigo é compreendermos, na primeira parte, a concepção smithiana de que a simpatia está amparada na imaginação. Em seguida, partindo dessa noção de Smith, ampliaremos a questão e a refletiremos dentro do contexto mais específico de nosso tempo: a sociedade democrática pluralista e cosmopolita. Deste modo, o propósito, nesta segunda parte, é analisar como Nussbaum aborda o potencial moral formativo da literatura. Refletiremos, então, como as suas características e efeitos provocados no leitor contribuem para cultivar uma imaginação que, por sua vez, se desdobra numa maior capacidade ou habilidade simpática.

Uma vez que ao longo deste trabalho estaremos investigando o modo pelo qual a literatura cultiva a imaginação moral, propiciando o exercício da simpatia, examinaremos, de maneira breve, alguns romances a fim de compreendermos de mais concreta a reflexão aqui proposta. É deste modo, portanto, que faremos o uso de alguns exemplos de obras literárias, com o propósito de destacar a forma pela qual elas se relacionam com questões éticas e políticas presentes na vida individual e na própria sociedade.

Este artigo pretende, portanto, discutir e apresentar ao leitor um conjunto de fatores que envolvem a íntima relação da literatura com a ética e a política, enfatizando e valorizando a sua capacidade de formar uma imaginação moral, de modo a destacar, também, o seu potencial pedagógico para a reflexão e o ensino da ética. A própria influência que a literatura exerceu na trajetória de desenvolvimento da Teoria das Capacidades nos dará uma noção desse potencial. Buscaremos fundamentar a concepção de que o sujeito moral pode, portanto, cultivar e ampliar sua imaginação e, com isso, expandir os seus conhecimentos. Isso faz com que a literatura propicie uma espécie de experiência moral pelo qual o indivíduo, enquanto leitor atento, é capaz de vivenciar.

1 - A imaginação e a simpatia em Adam Smith

Em sua obra Teoria dos Sentimentos Morais, publicada em 1759, o filósofo e economista britânico Adam Smith (1723 - 1790) analisa já nas primeiras páginas a importância da faculdade da imaginação na moralidade. O autor ressalta, mais precisamente, a sua função no fenômeno da simpatia, assim como nas emoções, sentimentos e paixões humanas1. Influenciado por autores como David Hume (1711 - 1776), Smith compreende que há na natureza humana certos princípios e capacidades que nos tornam capazes e propensos a nos importarmos com os outros2. Smith observa, por exemplo, que a emoção da compaixão e da piedade que experimentamos perante a desgraça e o sofrimento alheio surge em nós mediante duas causas: “quer quando vemos, quer quando somos levados a imaginá-la de modo vivo” (SMITH, 1999, p. 05, grifo meu). Embora os homens interajam uns com os outros, não é possível nas relações humanas ter uma experiência direta e imediata a respeito do que exatamente as outras pessoas sentem ou pensam. Ao observarmos um indivíduo, os nossos sentidos, se deixados por si mesmos, são incapazes de acessar quais são as sensações vivenciadas por outrem. No entanto, dessa impossibilidade dos sentidos não se segue que não tenhamos algum tipo de percepção ou conhecimento a respeito do que uma pessoa experimenta e vivencia emocionalmente. Smith compreende que é por meio da faculdade da imaginação que se pode ir além dos limites dos sentidos. Sendo assim, “somente podemos formar uma ideia da maneira como são afetados se imaginarmos o que nós mesmos teríamos numa situação semelhante” (SMITH, 1999, p. 06). É a capacidade da imaginação juntamente com a própria experiência pessoal do espectador que o leva para além de si mesmo e a compreender o que ocorre com o outro. Ao observarmos alguém se deleitando com um alimento saboroso, nossos sentidos não tem acesso a este prazer que a pessoa está tendo. Mas é a imaginação, juntamente com a memória de nossas experiências com alimentos prazerosos, que fornece uma ideia a respeito disso.

A capacidade da imaginação atua como uma ponte entre as experiências de indivíduos fisicamente separados e distintos. Quando vemos ou sabemos a respeito de uma pessoa que está sendo torturada ou passando por uma grave enfermidade, não experimentamos, simplesmente ao vê-la, o que ela sente de uma mesma maneira que experimentaríamos caso fossemos nós quem estivéssemos enfermos ou sendo torturados. Mas, ao mesmo tempo, não ficamos impassíveis perante o que é percebido, e uma sensação ou emoção nos é ocasionada ao nos imaginarmos em tal situação. Smith considera que “pela imaginação nos é possível conceber em parte quais as suas sensações” (SMITH, 1999, p. 06, grifo meu). É a imaginação que nos habilita a compreendermos de maneira mais vívida a situação experimentada por outra pessoa, como as suas sensações físicas de dor ou as emoções da angústia, medo e ansiedade que tal situação ocasiona.

Mas, esse exercício imaginativo que nos habilita a compreender e até mesmo sentir em algum grau (ainda que menor) o que ocorre com o outro, parte de nossos próprios sentidos, isto é, de nossa experiência que forma em nós uma ideia e lembrança. Por não ser possível acessarmos a experiência daquilo que outra pessoa sente, concebemos uma ideia do quão afetadas elas são em suas sensações, emoções, alegrias ou sofrimentos quando imaginamos o que nós mesmos sentiríamos e como reagiríamos numa situação igual ou semelhante. A imaginação atua a partir dos dados que a experiência comum vivenciada pelos homens oferece aos sentidos. Diz Smith:

Embora nosso irmão esteja sendo torturado, enquanto nós mesmos estamos tranquilos, nossos sentidos jamais nos informarão sobre o que ele sofre. Pois não podem, e jamais poderão, levar-nos para além da nossa própria pessoa, e apenas pela imaginação nos é possível conceber em parte quais as suas sensações. Tampouco essa faculdade [da imaginação] nos pode ajudar senão representando para nós as próprias sensações se nos encontrássemos em seu lugar. Nossa imaginação apenas reproduz as impressões de nossos sentidos, e não as alheias. Por intermédio da imaginação podemos nos colocar no lugar do outro, concebermo-nos sofrendo os mesmos tormentos, é como se entrássemos no corpo dele e de certa forma nos tornássemos a mesma pessoa, formando, assim, alguma ideia das suas sensações, e até sentindo algo que, embora em menor grau, não é inteiramente diferente delas (SMITH, 1999, p. 06, grifo meu).

É por não termos essa impressão dos sentidos alheios que formamos imaginativamente uma ideia. Isso, no entanto, tem como base aquilo que nos é particularmente conhecido através das nossas impressões. A imaginação é uma faculdade humana fundamental para fazer com que tenhamos a simpatia, levando-nos, portanto, a nos interessarmos e nos importarmos com os outros3. Assim, Smith confere à capacidade da imaginação um papel tanto moral quanto político. Nesse sentido, ao dizer que uma pessoa se importa com algo ou alguém implica em trazer para dentro de si algo que lhe é externo. Um produto comercial importando é algo trazido de fora. Por isso, se importar simpaticamente com outra pessoa é trazer para dentro de si e com o auxílio da imaginação, aquilo que está ocorrendo (exteriormente) em outra pessoa. Ao pensarmos no exemplo de um indivíduo sofrendo uma tortura, pode-se considerar que é devido à simpatia que as suas sensações e angústias são importadas e incorporadas em nós:

Assim incorporadas em nós mesmos, adotadas e tomadas nossas, suas agonias começam finalmente a nos afetar, e então trememos e sentimos calafrios, apenas à imagem do que ele está sentido. Pois, assim como sentir uma dor ou uma aflição qualquer provoca a maior tristeza, do mesmo modo conceber ou imaginar que a estamos sofrendo provoca certo grau da mesma emoção, na medida da vivacidade ou embotamento dessa concepção (SMITH, 1999, p. 06 grifo meu).

A imaginação, portanto, é fundamental para originar a simpatia ou a preocupação solidária, que é a capacidade de compreender e participar, em alguma medida, das emoções ou sentimentos de outrem. Para Smith, “[...] é trocando de lugar, na imaginação, com o sofredor que podemos ou conceber o que ele sente ou ser afetados por isso” (SMITH, 1999, p. 06, grifo meu). Essa mudança de posição requer um exercício imaginativo. É a capacidade de imaginar algo ou situação além da própria experiência que possibilita desenvolvermos uma concepção sobre o que ocorre com outra pessoa ainda que não tenhamos tido exatamente o mesmo tipo de experiência. Um homem não tem, obviamente, a experiência da dor de um parto. No entanto, a partir de outras dores já experimentadas e conhecidas por ele, é possível formar e incorporar imaginativamente uma noção a respeito desta dor e do seu efeito numa mulher.

A simpatia, portanto, ocorre mediante uma inter-relação das experiências dos sentidos e a imaginação. Podemos ilustrar essa questão com o exemplo acerca do que nos ocorre diante de uma pessoa sofrendo um golpe violento em sua perna. Ao vermos, isto é, ao percebermos uma perna sendo ferida ou quebrada por um golpe, tendemos a instantaneamente encolher ou tocar a nossa própria perna, deixando transparecer em nosso rosto uma expressão de dor e aflição ainda que não tenhamos experimentado em nós mesmos essa sensação de ter um osso quebrado por um golpe. Ocorre que a emoção ou sensação análoga surge prontamente no espectador atento que espontaneamente se imagina na situação observada4. Outras experiências também podem gerar no espectador uma emoção ou sentido diretamente relacionado com aquilo que ele percebe. Smith descreve o modo como a reação e o comportamento humano expressam a manifestação da simpatia:

Ao admirar um bailarino na corda bamba, as pessoas na multidão naturalmente contorcem, maneiam e balançam seus corpos como o veem fazer, e como sentem que teriam de fazer se estivessem na mesma situação. Pessoas [...] queixam-se de que, olhando as feridas e úlceras expostas pelos mendigos nas ruas, com facilidade sentem desconforto ou coceira na parte correspondente de seus próprios corpos. O horror que concebem vendo o infortúnio desses desgraçados, afeta mais aquela parte específica do que qualquer outra, porque aquele horror se origina de se conceber o que elas próprias sofreriam se realmente fossem os desgraçados a quem contemplam, e se aquela parte específica de seu corpo fosse de fato afetada da mesma forma miserável (SMITH, 1999, p. 07, grifo meu).

Os sentidos, portanto, não atuam sozinhos e tampouco configuram parte principal para ocasionar a simpatia. Opera, de maneira conjunta e instantânea, a faculdade da imaginação que se manifesta em se conceber como é estar vivenciando tal situação contemplada, isto é, trocando de lugar. A expressividade dessa representação imaginativa é tamanha que ela também é capaz de provocar algum grau de sensação ou emoção. Nota-se, portanto, que Smith compreende que a experiência preceptoria e a imaginação são dois elementos envolvidos na simpatia, conferindo, porém, à segunda um papel crucial e indispensável. A faculdade da imaginação, portanto, é um meio pelo qual nos é possível conceber as sensações e emoções que não são originalmente nossas, sendo isso um fato importante para a sociabilidade humana.

Mas, a simpatia não é, em todos os casos, uma incorporação meramente passiva e que se estabelece instantânea e espontaneamente no espectador e de modo irrefletido5. Observa Smith:

Essas circunstâncias que produzem tristeza ou dor não são as únicas que provocam nossa solidariedade [ou simpatia]. Seja qual for a paixão que proceda de um objeto qualquer na pessoa primeiramente atingida, uma emoção análoga brota no peito de todo espectador atento ao pensar na situação das outras (SMITH, 1999, p. 07, grifo meu).

Existem situações nas quais o pensamento atento, a reflexão a respeito da situação observada e uma imaginação mais ativa e intencional atuam para estabelecer uma compreensão mais adequada do que é percebido. Certos comportamentos, acontecimentos, traços gerais de caráter, emoções ou ações que contemplamos podem, inicialmente, gerar uma aversão em relação a elas. Por exemplo, os atos que uma pessoa irada direciona à outra podem, em princípio, nos colocar contra ela, reprovando moralmente o seu comportamento irado. Isso, no entanto, se modifica quando conhecemos e refletimos sobre os possíveis motivos que geraram essa forte emoção. Diante de situações em que desconhecemos os motivos que originam uma paixão violenta numa pessoa, “a primeira pergunta que fazemos é: O que lhe ocorreu?” (SMITH, 1999, p. 09). A simpatia, portanto, também surge após um conhecimento e uma analise arrazoada dos fatos e situações que formam todo um contexto em torno do comportamento, da ação ou emoção que presenciamos.

O comportamento furioso de um homem irado provavelmente tende a nos exasperar mais contra ele do que contra seus inimigos. Como não estamos a par dos motivos que o provocaram, não podemos fazer nosso o seu caso, nem conceber nada parecido com as paixões que esses motivos excitam. Mas vemos claramente qual a situação daqueles com os quais está irado, e a que violência eles podem estar expostos, de parte de um adversário tão enfurecido. Por isso, prontamente simpatizamos com o medo ou ressentimento deles, e imediatamente nos dispomos a tomar partido contra o homem que aparentemente os põe em perigo (SMITH, 1999, p. 08, grifo meu).

Os juízos morais partem de uma combinação dos elementos da experiência comum concomitantemente à imaginação e à reflexão. Esse conjunto de exercícios possibilita que nos colocamos no lugar do outro e nas suas circunstâncias e nos simpatizemos com ele. Assim, a simpatia é um processo de percepção moral ativa sobre os outros. “O espectador deverá, antes de tudo, esforçar-se tanto quanto possível para colocar-se na situação de outro e tornar sua cada pequena circunstância de aborrecimento que provavelmente ocorre ao sofredor” (SMITH, 1999, p. 22). Aquele que observa, diz Smith, precisará empenhar-se no procedimento de “adotar todo o caso do seu companheiro com os mínimos incidentes; e empenhar-se por interpretar de maneira mais perfeita possível a mudança imaginária de situação sobre a qual se baseia sua simpatia” (SMITH, 1999, p. 22). Com a imaginação que se coloca ativamente no lugar do outro é que somos capazes de perceber as experiências e os sentimentos que não são originalmente nossos e, deste modo, adquirimos um conhecimento mais aproximado (ainda que não exato) a respeito do que ocorre com outra pessoa.

Assim como os sentidos não possibilitam acessar e sentir exatamente o que o outro vivencia, Smith observa que a imaginação, por si só, também não nos dá um acesso e uma experiência exata. Apesar de todo esse esforço da imaginação para a compreensão do que se sucede com outro indivíduo em suas emoções e sensações, as emoções do espectador nunca serão exatamente as mesmas. Mas elas ocorrerão, no entanto, em um grau menor do que ocorre com a pessoa observada. “[...] as emoções do espectador muito provavelmente ainda não alcançarão toda a violência do que o sofredor sente [...] O homem nunca concebe o que sobreveio a alguém com aquele grau de paixão que naturalmente anima a pessoa atingida” (SMITH, 1999, p. 22). O conjunto dos sentidos e do exercício da imaginação ampliam essa compreensão e capacidade de experimentar o que outra pessoa sente. Mas isso nunca se dá com a mesma intensidade e exatidão.

É importante destacarmos uma peculiar relação autor-leitor na obra de Smith que acompanha sua própria investigação ético-filosófica. Sua teoria (assim como toda teoria moral) se desenvolve, obviamente, a partir de um discurso, isto é, de uma argumentação que é estabelecida a fim de convencer o leitor acerca daquilo que se propõe explicar ou desenvolver6. No entanto, pode-se observar que a teoria smithiana a respeito da importância da imaginação para a moralidade é desenvolvida e compreendida justamente mobilizando as emoções e a simpatia do leitor com a participação ativa da sua imaginação. A maneira como Smith escreve acompanha, deste modo, a sua própria teoria. Os exemplos constantemente apresentados oferecem um conjunto de mostras dos traços de caráter, emoções, situações, sequências de ações, reações e escolhas protagonizadas pelos “personagens” em seus contextos e nos quais o leitor pode se colocar imaginativamente, experimentando, em alguma proporção, os dramas e emoções envolvidos nos exemplos narrados7.

1.1 - O cultivo da imaginação

Embora Smith considere a simpatia um princípio natural nos seres humanos, isso não significa, porém, que ela deva ser deixada por si mesma. Tudo aquilo que é natural no ser humano, como por exemplo, a força física ou a inteligência, tem a potencialidade de vir a ser aprimorada. Em certa medida é isso o que a educação faz. Ela amplia e desenvolve as potencialidades humanas. Nessa perspectiva, convém investigar se e como essa imaginação simpática pode vir a ser cultivada ou desenvolvida, sendo, portanto, um objeto digno de ser ensinado e apreendido. A própria teoria de Smith pode ser compreendida como um esforço pedagógico nesse sentido.

A partir disso, podemos refletir mais diretamente em torno de uma educação da imaginação que se efetiva através de um cultivo direcionado para o desenvolvimento e o exercício de nossa capacidade de nos colocar no lugar do outro. A questão, portanto, que cabe investigar aqui é: se a imaginação desempenha uma função na esfera moral e política do convívio humano, como ela pode vir a ser cultivada tendo em vista a simpatia e sua relevância para a vida humana?

Uma pista para analisar isso já é oferecida por Smith ao menos em dois sentidos: por um lado, através da própria natureza de sua Teoria, que convida o leitor a exercitar a imaginação através dos exemplos morais por ele mencionados em sua argumentação; e, por outro, quando Smith considera, em alguns momentos de sua obra, que a simpatia pode ocorrer também em relação aos personagens de tragédias e romances na medida em que através da leitura nos colocamos em seus lugares, exercitando, assim, uma imaginação moral:

Nossa alegria pela salvação dos heróis que nos interessam nas tragédias ou romances é tão sincera quanto nossa dor pela sua aflição, e nossa solidariedade para com seu infortúnio não é mais real do que para com sua felicidade. Partilhamos da sua gratidão para com aqueles amigos fiéis que não os desamparam em suas tribulações; e de boa vontade participamos do seu ressentimento contra aqueles pérfidos traidores que os ofenderam, abandonaram ou enganaram. Em todas as paixões de que é suscetível o espírito do homem, as emoções do espectador sempre correspondem àquilo que, atribuindo-se o caso, imagina seriam os sentimentos do sofredor (SMITH, 1999, p. 07, grifo meu).

Smith observa que tanto as tragédias quanto os romances nos oferecem uma experiência imaginativa de emoções antagônicas:

[...] os homens têm um fortíssimo senso das ofensas feitas a outrem. O vilão de uma tragédia ou romance é tanto objeto de nossa indignação quanto o herói é de nosso afeto e simpatia. Detestamos Iago tanto quanto estimamos Otelo; e nos deliciamos tanto com a punição de um, quanto com a desgraça do outro (SMITH, 1999, p. 39).

Importante mencionar ainda a indicação de que Smith, enquanto professor de Lógica e Filosofia Moral na Universidade de Glasgow entre 1751 e 1765, fazia uso da literatura para ministrar suas aulas e cursos. Isso é mencionado por Dougald Stewart (1753 - 1828), filósofo escocês, amigo e o primeiro biógrafo de Adam Smith. Em cartas recebidas de John Millar (1735 - 1801), aluno de Smith e posteriormente professor de Direito da mesma universidade, comenta-se que o professor Smith usava a literatura como uma forma didática das lições. Além disso, parte do seu curso era dedicada a “fornecer um sistema de retórica e literatura” (STEWART, 1999, p. XVII). Em relação à essa característica das aulas de Smith, Millar afirma que:

O melhor método de explicar e ilustrar os vários poderes do espírito humano - a parte mais útil da metafísica - surge de um exame dos vários modos de transmitir nossos pensamentos por meio de discursos, e da atenção aos princípios daquelas composições literárias que contribuem para a persuasão e entretenimento. Por essas artes, tudo que percebemos ou sentimos, cada operação de nosso espírito, expressa e delineia-se de modo tal que pode ser discernido e rememorado com clareza. Ao mesmo tempo, não há parte da literatura mais adequada à juventude em seu primeiro contato com a filosofia do que esta, que agrada ao seu gosto e aos seus sentimentos (MILLAR apud STEWART, 1999, p. XVII).

Nesse sentido, desenvolveremos a seguir uma reflexão a respeito do cultivo da imaginação a partir da literatura. Nessa análise, partiremos da perspectiva contemporânea de Martha C. Nussbaum8, sobre a relevância da leitura literária como meio de desenvolvimento de uma imaginação moral no sujeito, cujos desdobramentos se manifestam na ética e na cidadania em uma democracia pluralista e cosmopolita. Destacaremos a relação que a autora faz entre a imaginação literária ou imaginação narrativa com a simpatia, sendo isso um dos pilares da ética e da educação em uma sociedade contemporânea.

2 - A relação da literatura com a ética e política de Nussbaum

A filósofa norte-americana Martha C. Nussbaum analisa em diversas obras e artigos a relação da literatura com a ética e a política. Na obra que a projetou no cenário intelectual, The Fragility of Goodness: luch and ethics in Greek tragedy and philosophy (1986), são investigadas as questões éticas e filosóficas gregas em torno da tensa relação entre a fortuna na existência humana e a intenção de uma vida moralmente realizada. A autora faz tal análise a partir de um estudo das tragédias gregas do século V a. C. A partir dos anos noventa, seus livros Love´s Knowledge: essays on philosophy and literature (1990), Poetic Justice: the literaty imagination and public life (1997) e Cultiving Humanity: a classical defense of reform in liberal education (1997) alargam o conjunto dos temas éticos e políticos, ampliando o foco sobre como essas questões podem ser investigadas ou ainda ensinadas e refletidas em escolas e universidades através da leitura de romances e tragédias, que, acima de tudo, exercem um cultivo da imaginação.

Boa parte da argumentação nas obras mencionadas é resultado de uma reflexão que a autora faz em torno de suas próprias experiências enquanto pesquisadora e professora universitária, assim como de outros professores e instituições de ensino em relação ao uso da literatura em aulas de direito, filosofia, ética e ciência política. Nussbaum relata que:

O tema de minhas aulas era a narrativa, pois o curso que devia oferecer era “Direito e Literatura”. Meus alunos e eu lemos Sófocles, Platão, Sêneca e Dickens. Em relação com as obras literárias, falamos da compaixão e misericórdia, do papel das emoções nos juízos públicos, do que está implícito ao imaginar a situação de alguém que é diferente de nós. Falamos dos modos em que os diferentes tipos de textos apresentam os seres humanos: às vezes como fins em si mesmos, dotados de dignidade e individualidade, às vezes como unidades abstratas e indistinguíveis a meros meios para fins de outros [...] Também falamos de temas sociais mais concretos, como gênero, homossexualidade e raça (NUSSBAUM, 1997b, p. 16, grifo e tradução minha).

Nussbaum enfatiza também a influência que alguns romances tiveram não apenas na sua prática docente, mas também no desenvolvimento e fundamentação de algumas de suas teorias. Em Poetic Justice, por exemplo, a autora destaca de que modo o romance Tempos Difíceis, publicado em 1854 por Charles Dickens (1812-1870), inspirou ela e o economista Amartya Sen no conjunto de reflexões a respeito do que é relevante, do ponto de vista de uma vida humana, para se medir, de modo mais concreto, a qualidade de vida. A obra de Dickens chama atenção para aspectos que se colocam além dos dados econômicos quantitativos a respeito da produção de riqueza de uma nação que, por sua vez, nem sem sempre se refletem num melhoramento desta qualidade de vida e no exercício pleno e satisfatório de capacidades humanas, como a liberdade, as emoções etc. Essas são questões centrais da Teoria das Capacidades e que podem ser verificadas através das características dos personagens de Dickens:

Aqui também a narrativa desempenhou um papel importante. De fato, Sen e eu usamos Tempos Difíceis, de Dickens, para elaborar críticas aos paradigmas econômicos utilizados para avaliar a qualidade de vida, que nos pareciam reducionistas e carentes da complexidade humana e para ilustrar os tipos de informações que tais avaliações deveriam incluir para ser plenamente racionais, oferecendo bons guias do tipo preditivo e normativo. Uma vez mais atribuímos grande valor prático e público à capacidade para imaginar os modos concretos em que pessoas diferentes de nós enfrentavam suas desvantagens. Alegamos que uma ciência econômica necessita operar com uma concepção mais ampla da qualidade de vida para que suas indispensáveis investigações técnicas alcancem um êxito total (NUSSBAUM, 1997b, p. 18, grifo e tradução minha)9.

Além das obras anteriormente mencionadas, destaca-se também Not for Profit: why democracy needs the humanities (2010). Embora publicadas em anos diferentes e com temáticas variadas, um ponto comum nelas é uma argumentação a respeito da importância das humanidades na educação e, em particular, da literatura para cultivar a imaginação e a simpatia que é necessária para uma vida ética e cidadã. As reflexões de caráter ético-político se integram no pensamento de Nussbaum com uma perspectiva educacional que critica a desvalorização das disciplinas de humanidades e o seu consequente prejuízo à democracia e aos valores éticos e políticos necessários para sua sustentação e fortalecimento.

Por humanidades, entende-se um conjunto de estudos e saberes que são essencialmente vinculados às atividades críticas e criativas humanas: filosofia, ciências políticas, estudos de religião, economia, história, e, de um modo especial, as mais variadas formas de artes e de literatura. Conjuntamente a essa crítica da perda de espaço das humanidades nos currículos das escolas e universidades em diversos países, há, então, uma proposta de reintegração delas na educação devido à sua importância para o desenvolvimento de habilidades ou capacidades humanas fundamentais para a ética e a democracia. Segundo Nussbaum, essas capacidades são ao menos três:

A capacidade de pensar criticamente; a capacidade de transcender os compromissos locais e abordar questões mundiais como um ‘cidadão do mundo’; e, por fim, a capacidade de imaginar, com simpatia, a situação difícil em que o outro se encontra (NUSSBAUM, 2015, p. 08).

Cada uma dessas capacidades é analisada extensamente por Nussbaum, resultando numa proposta de dimensão ético-político-educacional a partir da qual se verifica uma ampla valorização e resgate dos: (i) princípios da ética-pedagógica socrática em seus aspectos relacionados com o autoexame e habilidade de diálogo; (ii) da visão de mundo segundo a ética cosmopolita de “cidadão do mundo”, e, (iii) na centralidade do exercício da imaginação moral desenvolvida principalmente pela literatura. Essas capacidades seriam os pilares ou valores almejados pela educação e fundamentais para a manutenção e sustentação da democracia no contexto das sociedades pluralistas contemporâneas. Apesar de considerar essas três habilidades como essenciais, há uma centralidade na terceira, pois, segundo a autora, ela propicia o exercício de uma melhor capacidade de colocar-se no lugar no outro na prática do diálogo e reflexão socrática. Além disso, a compreensão de como é a visão de mundo do ponto de vista de uma forma de vida histórica e culturalmente distinta, também exige a participação da imaginação.

2.1 - A democracia pluralista cosmopolita e a simpatia

O que é mais característico nas sociedades atuais (ao menos em grande parte do Ocidente) é o fenômeno do pluralismo e do multiculturalismo, ou seja, esse compartilhamento de espaços públicos por pessoas que não comparticipam dos mesmos valores, visão de mundo, opiniões, origem cultural etc. O fenômeno da globalização e os seus processos de aprofundamento da integração política, econômica, social e cultural, impulsionados principalmente pelo avanço tecnológico da informação, dos transportes e das comunicações, têm colocado os indivíduos e suas diferenças em um contato e convivência cada vez mais próximos. Para a autora, essa pluralidade e o cosmopolitismo se tornaram as principais características das sociedades democráticas contemporâneas:

Toda democracia moderna é também uma sociedade na qual as pessoas se diferenciam bastante segundo um grande número de parâmetros, entre eles, religião, etnia, riqueza e classe, incapacidade física, gênero e sexualidade, e na qual todos os eleitores fazem escolhas que têm um impacto significativo na vida das pessoas que discordam deles (NUSSBAUM, 2015, p. 11).

De fato, os contatos e relações entre indivíduos de diferentes povos, culturas, impérios, nações sempre ocorreram ao longo da história. No entanto, na atual configuração social mundial, verifica-se que a integração, o convívio, as necessidades e dependências econômicas, tecnológicas, alimentares, entre outros fatores, se tornaram muito mais complexos do que em qualquer outro momento. Não apenas porque a população mundial se tornou maior, mas também porque essa coexistência entre pessoas oriundas de diferentes culturas e nações tende a se tornar também cada vez mais presente e duradoura. Um brasileiro pode se formar em administração numa universidade norte-americana, trabalhar na Índia e fazer negócios com outros administradores no Japão. Situações como essas são comuns hoje. Isso coloca sobre os indivíduos, cidadãos e governantes (ao menos das nações democráticas) uma exigência ética e política maior em comparação aos outros tempos. A necessidade de compreender simpaticamente o outro em sua cultura, história ou contexto social é maior hoje em razão de toda essa complexidade relacional.

A forma de vida contemporânea se modificou de tal modo que essa interdependência faz com que muitas das decisões tomadas por indivíduos ou governos gerem impactos em outras nações e vidas distantes:

Mais do que em qualquer outra época do passado, dependemos de pessoas que nunca vimos, e elas dependem de nós. Os problemas que precisamos resolver - econômicos, ambientais, religiosos, políticos - têm alcance global [...]. Nenhum de nós escapa dessa interdependência global. A economia global deixou-nos todos ligados a vidas que estão distantes de nós. Nossas decisões mais simples como consumidores afetam o padrão de vida de pessoas de países diferentes que estão envolvidos na produção de bens utilizados por nós (NUSSBAUM, 2015, p. 80).

Mas, Nussbaum observa que “os cidadãos não conseguem se relacionar de maneira adequada com o mundo complexo que os rodeia unicamente por meio do conhecimento factual e da lógica” (NUSSBAUM, 2015, p. 95). É importante ressaltar outros elementos que desenvolvam uma compreensão empática que permeie essas relações entre as pessoas e também as instituições (NUSSBAUM, 1997b). Nesse sentido, a autora analisa a relevância da capacidade de imaginação para a compreensão simpática dessas diferenças individuais e culturais com as quais os cidadãos convivem de modo mais direto em sua própria sociedade e de modo indireto com outros cidadãos no mundo globalmente inter-relacionado.

2.2 - A imaginação literária e a simpatia moral

Além de outros dois valores considerados por Nussbaum como fundamentais para uma formação ética e cidadã numa sociedade democrática pluralista - capacidade de autoexame e raciocínio crítico-argumentativo de orientação socrática, juntamente com uma noção de uma ética e cidadania de perspectiva global -, o cultivo da imaginação moral proporcionado, não apenas, mas principalmente a partir da literatura, é outro componente constitutivo dos cidadãos.

Nesse sentido, Nussbaum designa essa capacidade imaginativa cultivada pela literatura de imaginação literária, ou também de imaginação narrativa. A semelhança da função que a faculdade da imaginação exerce na simpatia segundo Smith, essa imaginação literária vivificada pela ficção amplia o conhecimento a respeito do outro e desenvolve, principalmente:

[...] a capacidade de pensar como deve ser se encontrar no lugar de uma pessoa diferente de nós, de ser um intérprete inteligente da história dessa pessoa e de compreender as emoções, os anseios e os desejos que alguém naquela situação pode ter. O desenvolvimento da compreensão tem sido um elemento fundamental dos principais conceitos recentes sobre educação democrática, tanto nos países ocidentais como nos não ocidentais (NUSSBAUM, 2015, p. 96)10.

A literatura coloca o leitor em contato com uma biografia ficcional, isto é, a narrativa da história de um personagem (ou de vários numa mesma obra), proporcionando-lhe a capacidade em desenvolver e ter um conhecimento a respeito dos muitos elementos que compõe uma vida tanto em seu aspecto exterior, como origem, cultura, classe social, quanto em seu aspecto interior, isto é, as intenções, desejos, sentimentos, inquietações, esperanças etc., e o modo como tudo isso exerce uma influência nas escolhas e tomadas de decisões. A narrativa também possibilita ao leitor compreender e perceber, de maneira mais atenta, por exemplo, quais são os efeitos e as consequências que os eventos históricos têm na vida privada daqueles que vivenciam esses acontecimentos.

A cultura literária propicia que a pessoa acesse percepções e forme conhecimentos que ampliam a sua imaginação moral e desenvolvam essa habilidade de se colocar, imaginativamente, como considera Smith, no lugar de outrem O envolvimento atento do leitor na narrativa possibilita até mesmo que ele sinta, em algum grau, o que ocorre com os personagens.11 Como resultado, tem-se um significativo desenvolvimento da habilidade de comunicação e entendimento simpático com o outro na esfera da vida cotidiana, tanto em seu âmbito de vida privada quanto pública. Disso decorre o valor educativo que Nussbaum confere à literatura, considerando, portanto, que:

[...] É essencial colocar o estudo da literatura no coração de um currículo para a cidadania, porque ela desenvolve a arte da interpretação que é essencial para a participação cívica e consciente (NUSSBAUM, 1997a, p. 97).

A capacidade imaginativa é fundamental para intermear, conforme entendem Smith e Nussbaum, as relações entre as pessoas no convívio social na medida em que ela aprimora nossos juízos morais e a interpretação a respeito do que ocorre com o outro. Uma imaginação cultivada pela literatura habilita um entendimento mais preciso em torno das experiências existenciais de alguém (seja ele um personagem literário ou uma pessoa real) que é diferente ou completamente estranho a nós. Uma vez que, como Smith salienta, nós não podemos ter acesso imediato e direto dessas experiências de outrem mediante os nossos sentidos, a imaginação literária ou narrativa pode ser tomada como um canal pelo qual o leitor se informa, compreende e ao mesmo tempo se integra em algum grau com as experiências alheias, tornando-as imaginativamente como suas por um período de tempo.

O romance [...] em geral apela para um leitor implícito que compartilha com os personagens certas esperanças, temperamentos e preocupações gerais e que, por isso, pode formar laços de identificação e simpatia com eles, mas que também vivem em um campo diferente e precisa ser informado sobre a situação concreta dos personagens. Dessa maneira, a própria estrutura da interação entre o texto e seu leitor implícito convida-o a ver como as características mutáveis da sociedade e das circunstâncias afetam a realização - ainda mais, a própria estrutura - das esperanças e desejos comuns. (NUSSBAUM, 1997b, p. 32, grifo e tradução minha).

O gênero literário do romance expressa, de um modo peculiar, o valor moral e político do indivíduo. Podemos exemplificar essas questões a partir do romance realista Desonra, de J.M. Coetzee (2000). A obra se torna ao leitor uma fonte de informação e conhecimento a respeito da situação de violência em conflitos étnicos e sociais no contexto histórico pós-aparthaid na África do Sul. Embora existente, sua história e os seus desdobramentos sobre a vida dos indivíduos podem ser desconhecidos dos leitores ou conhecidos apenas superficialmente, o que significa, entre outras coisas, não compreender o seu significado no que diz respeito ao sentido e os efeitos na vida cotidiana dos que se encontram na situação histórica que serve como pano de fundo da narrativa. Nesse sentido, é importante ressaltar a observação de Nussbaum a respeito desse caráter moral e político intrínseco na própria estrutura e natureza do gênero literário do romance. Sua característica principal repousa justamente na notoriedade conferida à relevância das vidas individuais, ressaltando essa finitude, vulnerabilidade, fragilidade e limitação diante do mundo e de suas transformações, mas cuja importância e valor em si é digna de ser narrada12:

Devemos admitir que o compromisso do romance enquanto gênero, bem como em seus elementos emocionais, é direcionado ao indivíduo, visto como qualitativamente distinto e separado. [...] Embora o gênero enfatize a interdependência mútua das pessoas, mostrando um mundo onde todos estão envolvidos no bem e no mal uns dos outros, ele também insiste em separar a individualidade de cada pessoa e em vê-la como um centro separado de experiência. (NUSSBAUM, 1997b, p. 105).

Essas características potenciais da literatura são levadas em conta por Nussbaum ao fundamentar, então, o conjunto de qualidades e capacidades que o cidadão contemporâneo precisa dispor e que devem ser levadas em conta pela educação. Ser capaz de ver-se como um membro em uma nação democrática e tendo em vista, ao mesmo tempo, a complexidade do mundo globalizado, exige não apenas conhecimentos técnicos, científicos, econômicos, históricos, linguísticos, como também a habilidade para uma constante autorreflexão e argumentação socrática que é fundamental diante do encontro e no diálogo com o diferente ou mesmo opositor. No entanto, essas duas características devem ser entretecidas por uma capacidade de imaginação simpática, uma vez que numa conversação é necessário que ambos exercitem a imaginação de colocar-se um no lugar do outro, no esforço de compreender não apenas seus argumentos, mas também outros elementos, como as diferentes situações, emoções, motivações e valores que estão envolvidos numa conversação. Do mesmo modo, pensar globalmente exige que tenhamos em nossa imaginação a noção sobre formas de vida distantes que podem vir a ser afetas tanto por escolhas individuais quanto por decisões de níveis governamentais.

Nesse sentido, entendemos que “a literatura, com sua capacidade de representar circunstâncias e problemas específicos das pessoas de tipos muito diferentes, faz uma contribuição especialmente rica” (NUSSBAUM, 1997a, p. 86, tradução minha) para a ética e a política em uma sociedade cada vez mais pluralista e cosmopolita. A leitura é uma comunicação não apenas entre o escritor e o leitor, mas também entre os personagens e o leitor. A variedade de assuntos abordados, os infindáveis tipos de tramas que criam os sentidos numa narrativa e envolvem diversas tomadas de decisões e emoções, oferece aos leitores um conjunto de distintas visões de mundo e possibilidades de escolhas feitas pelos personagens e que refletem, em alguma medida, como é a vida de pessoas reais com as quais o leitor se encontra ou eventualmente se encontrará no convívio em uma sociedade pluralista. Além disso, a literatura trata de situações que o próprio leitor vive ou poderá viver (ou não) um dia, levando-o a pensar a respeito de sua própria existência e de como seria se aquilo que ele lê ocorresse com ele. Essa era a função dos festivais e encenações da tragédia na cultura grega e que foi, de certo modo, herdado pelo gênero literário do romance moderno e contemporâneo, que embora seja uma experiência mais solitária ou individual, também convida o leitor a se identificar e se simpatizar com o personagem. A literatura proporciona, em razão dessas potencialidades e características, uma espécie de experiência moral ao leitor.

A narrativa ficcional delineia os profundos fatores internos da mente do personagem e que estão envolvidas no curso de desenvolvimento das ações. Por isso, o romance encaminha o leitor a percorrer as diversas e muitas vezes impensáveis questões que, embora não estejam imediatamente presentes numa ação do personagem, são, no entanto, partes determinantes do seu caráter e que embasam suas escolhas e comportamentos. O narrador explicita o modo pelo qual as ações, preferências e escolhas dos personagens são moldadas ou influenciadas pelas características de uma vida interior profunda, dizendo respeito à sua vida íntima e o quanto os acontecimentos do passado geram efeitos nos seus comportamentos presentes. Deste modo, o leitor percebe de que forma o encadeamento de desejos latentes, medos, receios, ansiedades, traumas e outros traços de caráter estão envolvidos nas ações, tomadas de decisões e valores morais do personagem.

Em sua obra A Imaginação Liberal: ensaios sobre a relação entre literatura e sociedade, publicada originalmente em 1950, Lionel Trilling considera que esse aspecto biográfico subjacente ao romance desempenha uma influência na sensibilidade moral do leitor. Isso se dá em razão de sua “exploração de todas as modulações de motivos e por sua sugestão de que não devemos julgar uma pessoa por qualquer momento isolado de sua vida sem levar em conta seu passado determinante e seu futuro de expiação e realização” (TRILLING, 2015, p. 66). Antes mesmo de outras áreas do conhecimento, como a psicologia, se dedicarem em investigar e explicar sobre a mente, as emoções e os comportamentos humanos, pode-se dizer que “o romance nos ensinou, como nenhum outro gênero literário, a extensão da variedade da vida humana e o seu valor” (TRILLING, 2015, p. 266), levando os leitores a adentrarem nas camadas mais profundas da personalidade humana.

Segundo Nussbaum, esse é o potencial que a literatura tem em nos informar e ensinar a respeito da complexidade das variadas emoções, escolhas e ações humanas. Com isso, ela estimula a capacidade de imaginação que é fundamental para o sujeito moral desenvolver a simpatia e aprimorar o seu julgamento moral.

A arte narrativa tem o poder de nos fazer ver a vida dos diferentes com mais interesse do que o de um turista casual - com envolvimento e entendimento simpático [...]. Chegamos a ver como as circunstâncias moldam não apenas as possibilidades de ação das pessoas, mas também suas aspirações e desejos, esperanças e medos. Tudo isso parece altamente pertinente às decisões que devemos tomar como cidadãos. (NUSSBAUM, 1997a, p. 88, tradução minha).

Para ilustrar essa questão, tomemos como exemplo a obra A Balada de Adam Henry, do escritor britânico Ian McEwan (2014). Nesse livro, o narrador nos conduz a conhecermos os elementos que constituem a vida interior de diversos personagens cujas diferentes e conflitantes visões de mundo, princípios, sentimentos, escolhas e decisões morais se encontram em um tribunal da vara de família em Londres. Um jovem membro da religião das Testemunhas de Jeová está hospitalizado e o seu caso é o centro de uma ação judicial do hospital, que recorre à corte para ter a autorização legal de intervir contra a escolha do jovem e de sua família em não receber uma transfusão de sangue. Embora seja um procedimento médico comum (e promissor para o seu caso), ele não deve ser praticado segundo os princípios religiosos do paciente. A decisão, portanto, tem um profundo significado existencial para o jovem Adam Henry.

Entre os conflitos dos princípios morais e religiosos do jovem com os princípios bioéticos da equipe médica de salvar vidas e promover o bem-estar dos pacientes que estão sob seus cuidados, a juíza responsável pelo caso vive um conflito conjugal e uma crise emocional marcada pelo profundo arrependimento de não ter tido filhos devido à dedicação integral à sua carreira. Nessa situação, ela precisa tomar uma decisão urgente num processo que envolve discordâncias das partes por razões de princípios individuais, respeito à autonomia, deveres médicos e o conflito entre a lei a religião. McEwan nos coloca dentro da vida desta juíza, fazendo-nos perceber as relações da exigência de uma vida pública que ela precisa exercer a despeito de sua vida privada, suas preferências, sentimentos e emoções que não devem interferir nas decisões jurídicas. Ao conversar com o jovem, ela procura assegurá-lo de que ele está realmente consciente a respeito de suas perspectivas e possibilidades de escolhas, que se resumem em: abandonar o tratamento e morrer dolorosamente em pouco tempo, recusar o tratamento e sobreviver, mas ficar com sequelas irreversíveis que limitarão a sua qualidade de vida, ou permitir o promissor procedimento médico mesmo que isso contradiga e conflite com seus princípios.

Essa narrativa exemplifica como a literatura nos leva a vermos mais intimamente quais são as circunstâncias, os motivos, sentimentos, as aspirações, os princípios e valores que estão em questão. Ela nos traz a percepção daquilo que está por detrás das escolhas, como a natureza dos desejos que moldaram, influenciaram e distinguiram o caráter do jovem Adam e o influenciaram na tomada de decisão em recusar, por motivos religiosos, o tratamento para salvar a sua vida. Do mesmo modo ocorre em relação à posição secular verificada na representação dos advogados que defendem os interesses e o dever dos médicos em salvar vidas.

Deste modo, a leitura deste romance se configura como uma espécie de experiência moral pela qual o leitor passa. Ela desperta um interesse pela vida dos personagens e fornece o acesso aos conflitos e dilemas morais vividos por cada um deles. O leitor pode se colocar no lugar nos personagens e, ao mesmo tempo, exercer o papel de um espectador externo dos cenários morais e, assim, analisar imparcialmente os diversos pontos de vista envolvidos na questão: do adolescente, dos médicos, da juíza. Colocando-se ativamente na história narrada, o leitor percebe que as possibilidades de escolha e os dilemas envolvidos na trama poderiam, mesmo em aspectos diferentes, serem partes de sua vida. Nesse sentido, essa imaginação narrativa estimula no leitor uma autoanálise e uma avaliação de si mesmo e de seus valores. Essa experiência literária amplia sua percepção e compreensão sobre as várias possibilidades de escolha influenciadas pelos diferentes pontos de vista das partes diretamente envolvidas no problema moral. Como observa Nussbaum:

[...] a literatura se concentra no possível, convidando o leitor a fazer perguntas sobre si mesmo. Aristóteles está certo. Ao contrário da maioria das obras históricas, as obras literárias convidam os leitores a se colocar no lugar de pessoas muito diversas e a adquirir suas experiências (NUSSBAUM, 1997b, p. 30)13.

As obras literárias “da mesma forma que interpelam o leitor hipotético, transmitem a sensação de serem ligações de possibilidade, pelo menos em um nível muito geral, entre os personagens e o leitor” (NUSSBAUM, 1997b, p. 30). A literatura amplia a percepção do leitor a respeito das possibilidades de eventos que podem lhe suceder, principalmente se o leitor for, como no exemplo anterior, um médico, um juiz, um advogado ou um religioso. Mas, mesmo que ele não se identifique com as formas de vida que são narradas, ainda assim as narrativas possibilitam que, através da imaginação, se troque de lugar com os personagens. Como consequência, elas “ativam as emoções e a imaginação do leitor” (NUSSBAUM, 1997b, p. 30). Para Nussbaum, “o romance é uma forma viva de ficção que, além de servir de eixo para a reflexão moral, goza de grande popularidade em nossa cultura” (NUSSBAUM, 1997b, p. 31)14. Essa popularidade da literatura é o que a torna, portanto, um importante auxílio para a reflexão moral e ao mesmo tempo um instrumento para o ensino da disciplina de ética.

É justamente nesse sentido que Peter Singer e Renata Singer, na obra The Moral of the Story: na anthology of ethics through literature (2005), reúnem uma série de textos literários com reflexões éticas. Os autores consideram que tanto a popularidade quanto o prazer estético da leitura de ficção oferecem uma vantagem para a reflexão ética quando comparada com a própria filosofia moral, cuja forma de escrita não é tão atrativa como a da literatura.

É verdade que as explorações detalhadas e criativas de uma situação que pode emergir de um bom romance podem nos ajudam a entender mais sobre nós mesmos e como devemos viver. Em contraste com os exemplos discutidos em obras de filosofia, as discussões sobre questões éticas nas ficções tendem a ser concretas, e não abstratas, e fornecem um rico contexto para as visões ou escolhas morais distintas que são retratadas. Portanto, a literatura geralmente apresenta uma visão mais sutil do caráter e das circunstâncias do que as encontradas nos trabalhos dos filósofos. E, é claro, porque muitos leitores gostam de se envolver com personagens e ler obras com tramas, as obras literárias geralmente atingem um público mais amplo do que as obras de filosofia (SINGER; SINGER, 2005, p. xi, tradução nossa).

Compreende-se, então, que não apenas os dados empíricos e técnicos oferecem informações relevantes para um julgamento e escolha moral. O exercício da imaginação narrativa ou literária é importante (e necessário) na medida em que nos habilita a adentrar em outras perspectivas e observar (de dentro) os diversos motivos que permeiam as ações e escolhas, juntamente com as circunstâncias que interferem nas opções e interesses e no modo pelo qual os indivíduos lidam com as situações e dilemas. Essa atitude promovida pela literatura, no entanto, se estende para fora dela, isto é, ao mundo real se assim podemos nos referir para diferenciá-lo do mundo ficcional da narrativa. “É difícil tratar a postura intelectual do outro de forma respeitosa a não ser que se tente ao mesmo tempo perceber que perspectiva de vida e quais experiências de vida a produziram” (NUSSBAUM, 2015, p. 110). Deste modo, a literatura ensina e nos habilita a dirigirmos a atenção para além daquilo que surge em um primeiro instante e a adentrarmos na profundidade das questões que envolvem as ações e comportamentos alheios.

Mas essa não deve, no entanto, ser uma atividade meramente solitária, fechada em si mesmo. Ainda que a atitude de ler seja um ato individual, a obra literária é uma arte compartilhada e usufruída socialmente e pelas instituições de ensino. Por isso:

O ato de ler e avaliar o que temos lido é eticamente valioso porque sua estrutura exige tanto a imersão como a conversação crítica, porque nos incentiva a comparar o que temos lido, não apenas com nossa experiência senão também com as reações e argumentações de outros leitores (NUSSBAUM, 1997b, p. 34, tradução nossa).

Além de desenvolver esse entendimento simpático, a literatura também é um meio pelo qual se pode promover uma conversação crítica entre os leitores em torno da experiência moral literária. Da perspectiva educacional, isso se realiza através da leitura e conversação em sala de aula, no qual os estudantes podem ser incentivados a exercer de modo socrático, a colocação e discussão dos seus pontos de vista a respeito da obra lida. Consideramos, portanto, que conjuntamente à filosofia, a “literatura pode preparar melhor os cidadãos do mundo a tornarem-se verdadeiramente socráticos” (NUSSBAUM, 1997a, p. 108, tradução nossa).

Ainda que o caso narrado em A Balada de Adam Henry esteja no âmbito da criação literária, suas situações são reais e possíveis e, por isso, sua leitura é uma forma de exercer a reflexão ética. Eles representam ou simulam os dilemas morais e dramas alheios sobre os quais os leitores-espectadores podem refletir e, num esforço, até mesmo desempenhar imaginativamente algum dos papeis, pensando, por exemplo, ‘o que eu faria se fosse essa juíza em tal situação?’ ou ‘se eu fosse um membro de tal religião, como eu lidaria com este dilema entre minha fé e minha sobrevivência?’, ‘Como é estar vivendo este dilema’? ou ainda ‘Como poderia responder as objeções e argumentos dos advogados de ambas as partes?’.

Quando a juíza e o próprio Adam percebem que a escolha de recusar o tratamento se deve ao fato de que ao longo de sua vida nunca ter sido mostrado a ele outras possibilidades de formas de existência, de visão de mundo etc., passamos a nos simpatizar e compreender o que o faz optar por tal escolha e compreendemos melhor sua situação como um todo. O arrependimento da juíza em não ter filhos é um dos sentimentos que torna o caso de Adam um caso diferente de todos os outros. Lemos, portanto, de que modo uma série de razões estão fundamentando as escolhas e ações dos personagens, e que exigem um esforço para serem percebidas e compreendidas. Começamos, então, a nos solidarizar com as emoções, sentimentos e escolhas dos personagens quando conhecemos suas motivações internas e as circunstâncias cruciais do passado que geraram tal situação no presente.

A literatura, portanto, está relacionada também com o que ocorre nos âmbitos relacionais cotidianos, que, como vimos a partir de Smith, se opera um esforço continuo da imaginação para ler a história de outra pessoa e colocar-se imaginativamente no seu lugar. Isso origina a compreensão simpática de sua situação. É nesse sentido que a literatura cultiva essa imaginação fundamental para a simpatia moral.

A partir destas considerações aqui refletidas, compartilhamos com Nussbaum a relevância da literatura para ética e a cidadania em razão de seus efeitos positivos dentro de uma sociedade que preze pelos valores democráticos. O romance, tanto por sua forma quanto por seu conteúdo, ressalta o valor das vidas individuais e com isso inspira nos leitores e cidadãos uma percepção a respeito do significado da autonomia, liberdade, singularidade e inviolabilidade de cada vida humana. A imaginação cultivada amplia a simpatia, elemento que, como vimos ao longo deste artigo, permeia as relações humanas. No entanto, essa habilidade pode vir a ser desenvolvida pelo hábito, e, nesse aspecto, a literatura propicia uma prática imaginativa que se transforma numa experiência moral de colocar-se no lugar de outra forma de vida. Deste modo, concluímos, conforme sustenta Nussbaum, que:

A imaginação narrativa é uma preparação essencial para interação moral. Hábitos de empatia e conjecturas conduzem a certo tipo de cidadania e a uma forma de comunidade: aquela que cultiva uma resposta compreensiva às necessidades, respeitando a distinção e a privacidade. Isso ocorre devido à maneira pela qual a imaginação literária inspira imensa preocupação com o destino dos personagens e define esses personagens como tendo uma vida interior [...] O leitor aprende a ter respeito pelo conteúdo oculto desse mundo interior, vendo sua importância em definir uma criatura como completamente humana (NUSSBAUM, 1997a, p. 90).

A imaginação se mostra, portanto, um objeto digno de ser pensado e promovido por uma formação educacional ampla. Sua centralidade a partir da literatura se deve ao seu potencial em enriquecer a vida e a experiência moral dos indivíduos. Dentro da perspectiva da Teoria das Capacidades, essa concepção acerca do valor moral e pedagógico da literatura está intimamente vinculada com a uma ideia de dignidade humana. Portanto, quando desprovido de uma ideia de dignidade humana, não apenas a literatura, mas toda e qualquer forma de arte perde seu aspecto humanista e pode servir para fins que não elevam as capacidades humanas e tampouco promovem os valores democráticos do direito, da individualidade, da liberdade e igualdade.

Conclusão

Ao longo deste artigo, a questão central que direcionou nossa reflexão foi compreender como a literatura desenvolve a imaginação e a função que isso exerce na moralidade, mais precisamente, então, na simpatia. Diante disso, duas questões foram investigadas: primeiramente, de que modo ocorre o fenômeno da simpatia entre nos indivíduos. E, em segundo lugar, analisamos o que promove a capacidade e a habilidade da imaginação simpática. Para isso, trouxemos inicialmente a teoria de Adam Smith sobre a importância da imaginação no processo da simpatia. Ao mesmo tempo, analisamos como imaginar-se em uma situação alheia observada é capaz originar, naquele que observa e desempenha o exercício imaginativo, uma emoção análoga que se aproxima ao que é observado e imaginado. Ou seja, essa habilidade tem a capacidade de fazer com que o indivíduo sinta e experimente, em algum grau, aquilo que o outro sente.

Ampliamos, então, a investigação a respeito da relação entre imaginação e simpatia a partir da teoria de Martha Nussbaum. Essa perspectiva conferiu a esta pesquisa um aspecto mais prescritivo, isto é, analisando não apenas o que é e como ocorre o fenômeno da imaginação simpática, mas também o que devemos fazer para cultivar e desenvolver essa importante e fundamental capacidade humana. Nesse sentido, este trabalho teve como eixo central a valorização do papel da literatura no desenvolvimento de uma imaginação moral pensada, principalmente, na habilidade e no exercício de conceber imaginativamente situações morais.

Defendemos, aqui, que a literatura possibilita uma espécie de experiência moral, na medida em que ela oferece elementos a partir dos quais o sujeito desenvolve um senso moral que propicia a simpatia e a reflexão sobre questões éticas. Assim, sustentamos que a leitura literária contém elementos fortemente pedagógicos. O hábito da leitura possui valor não apenas porque cultiva a imaginação do indivíduo e enriquece esteticamente a sua vida; mas também porque os efeitos positivos e construtivos da literatura se estendem para sociedade como um todo. Conforme enfatizamos, a imaginação também é importante porque ela permeia a capacidade de argumentação, diálogo e autoexame no sentido socrático e contribui, também, para uma compreensão ética mais global. Pelas razões expostas ao longo deste artigo (e por muitas outras que aqui não abordamos), ressaltamos, então, a importância da presença das humanidades e, conforme enfatizamos aqui, da literatura nos currículos de escolas e universidades. Esse é um meio pelo qual a imaginação pode ser cultivada tendo em vista o melhor convívio entre os cidadãos.

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WOLF, M. O Cérebro no Mundo Digital: os desafios da leitura na nossa era. Tradução de Rodolfo Ilari e Mayumi Ilari. São Paulo: Contexto, 2019. [ Links ]

Financiamento de Pesquisa com apoio:PNPD/CAPES.

1Smith usa os termos paixão, emoção e sentimento, de maneira indistinta e intercambiável. Neste artigo, manteremos essa forma de uso dos termos, mas tendo sempre em vista a ideia de algo que é sentido, experimentado. Para um exemplo desse uso intercambiável dos termos, Cf. SMITH, 1999, p. 5, 8, 11.

2Cf. SMITH, 1999, p. 05; HUME, 2001, p. 351.

3É importante destacar que o significado original de simpatia está vinculado com a piedade ou compaixão, e que Smith busca expandir o conceito para uma noção sinônima de solidariedade para com as paixões e sentimentos humanos. “Piedade e compaixão são palavras que com propriedade denotam nossa solidariedade pelo sofrimento alheio. Simpatia, embora talvez originalmente sua significação fosse a mesma, pode agora ser usada, sem grande impropriedade para denotar nossa solidariedade com qualquer paixão” (SMITH, 1999, p. 08). Nesse sentido, os cientistas cognitivos Keith Oatley e Raymond Marr destacam que: “Nos tempos de Adam Smith e George Eliot, a simpatia incluía o que agora entendemos por empatia. A palavra empatia é uma invenção moderna; emergiu inicialmente na estética, como visto, por exemplo, com a ideia de arte de Lipps (1900) como um convite para que nos sentíssemos nela. Na psicologia, o termo deriva da tradução de Titchener (1909) do alemão para a palavra Einfuëhlung, que corresponde aproximadamente a “sentir vontade”. Enquanto a simpatia é agora definida como um sentimento de preocupação, compaixão ou tristeza por outra pessoa em uma situação particular, a empatia é agora definida como a qualidade de sentir as emoções de outra pessoa em certa medida (Eisenberg, 2000). A empatia com os outros emerge em crianças pré-escolares, e simpatia e identificação com os protagonistas das histórias de ficção provavelmente derivam disso (Oatley e Gholamain, 1997). Como as emoções são ativadas em nós mesmos durante o processo empático, temos (na vida e na arte) um sentimento de intimidade com a pessoa por quem estamos sentindo” (OATLEY; MAR, 2008, p. 180, grifo meu). Deste modo, trataremos, neste artigo, dos termos simpatia e empatia conjuntamente, isto é, como um único e mesmo princípio da natureza humana que possibilita tanto a capacidade ou habilidade de participar das emoções alheias e se importar com a situação de outra pessoa, quanto a capacidade de compreender e se solidarizar com o que ocorre com o outro.

4Muitas vezes essa imaginação ocorre involuntariamente e espontaneamente. Diante da percepção ou conhecimento de uma situação aterrorizante vivida por outra pessoa, é comum dizer: ‘não quero nem me imaginar nisso’, justamente num esforço de afastar os efeitos da reflexão imaginativa involuntária que nos coloca no lugar do outro e nos faz sentir uma forte sensação de desconforto ao conceber tal situação.

5Sobre essas diferenças, Cf. SMITH, 1999, p. 06, 08. Para Smith, ainda que em muitos casos a simpatia se origina simplesmente da visão das emoções de outra pessoa, não é o que ocorre de maneira mais geral.

6Uma característica importante na obra de Smith que o leitor contemporâneo precisa levar em conta é que ela segue uma forma de escrita peculiar de sua época. Tanto os escritos de filosofia quanto de outras áreas como ciência ou economia não eram exclusiva e unicamente voltados para um publico estritamente especializado e acadêmico como são as publicações de trabalhos de filosofia e ciência a partir do século XX. Como observa Mortimer Adler, “até mais ou menos o fim do século XIX, os grandes livros científicos eram escritos para uma plateia de leigos” (ADLER, 2010, p. 263). Numa época em que as especializações não eram institucionalizadas como são hoje, autores como Galileu, Newton, Darwin tinham a preocupação de que o grande público também lesse e tivesse o conhecimento de suas descobertas. Nesse sentido, percebe-se que o texto de Smith apela para experiências cotidianas de um público geral e leigo para quem sua obra também é dirigida.

7O trecho a seguir é um exemplo de como, em sua argumentação, Smith suscita constantemente o processo imaginativo de seu leitor para desenvolver sua reflexão moral. “Um estranho passa por nós na rua, com todos os sinais da mais profunda aflição, e imediatamente dizem-nos que ele acaba de receber a notícia da morte do pai. É impossível, neste caso, não aprovarmos sua dor. Contudo, pode acontecer, não raro, sem que isso indique desumanidade de nossa parte, que, impossibilitados de participar da violência de sua dor, mal pudéssemos conceber os primeiros movimentos de preocupação que o acompanham. Tanto ele quanto seu pai talvez nos sejam inteiramente desconhecidos, ou quem sabe estejamos ocupados com as outras coisas e não tenhamos tempo de representar em nossa imaginação as diferentes circunstâncias dolorosas por que necessariamente passa” (SMITH, 1999, p. 17).

8Sobre a influência de Smith no pensamento de Nussbaum, Cf. NUSSBAUM, 1997b.

9Ainda em Poetic Justice, Nussbaum aproxima a obra de Dickens com outros conceitos importantes da Teoria das Capacidades, como a noção de autonomia, liberdade de escolha e justiça social: “A capacidade das pessoas de escolher o modo de vida como agentes individuais é muito proeminente. Entre os muitos infortúnios da vida de Stephen, nenhum é maior que sua incapacidade de mudar de rumo, sua falta de acesso ao sistema judicial, sua falta de acordo contratual justo de seus empregadores. O romance representa os seres humanos como criaturas para as quais a liberdade de escolha tem uma importância profunda e apaixonada, uma importância que não se reduz ao prazer, mas estabelece condições nas quais uma pessoa pode ser verdadeiramente humana. Dessa maneira, mostra-nos que os trabalhadores de Coketown não sofrem apenas com privação econômica, porque mesmo que fossem bem alimentados e seguros, levariam vidas sub-humanas com relação à liberdade” (NUSSBUAM, 1997b, p. 57, tradução nossa).

10 Nussbaum (2015) se refere, mais propriamente, ao contexto da Índia e à filosofia educacional de Rabindranath Tagore (1861 - 1941), que em sua formação na Inglaterra recebeu grande influência do pensamento ocidental, principalmente de Sócrates, mas também da filosofia inglesa e francesa. “Tagore era versado no pensamento e na literatura ocidentais. (Com quinze anos, traduziu Macbeth de Shakespeare para o bengali). Sua filosofia educacional pode muito bem ter sido influenciada por Rousseau, e grande parte de seu pensamento revela a influência do pensador francês cosmopolita Augusto Conte, que também influenciou John Stuart Mill” (NUSSBAUM, 2015, p. 68). Assim, nota-se uma presença desse pensamento educacional democrático nas sociedades não ocidentais contemporâneas pela influência de Tagore e outras inter-relações intelectuais entre as culturas.

11Pesquisas na área da neurociência da literatura têm investigado os efeitos da literatura no cérebro e na mente humana. Alguns pesquisadores têm verificado que a leitura de um texto ficcional ativa partes do cérebro do leitor diretamente vinculadas com as sensações, emoções e até mesmo os movimentos físicos do personagem. Isso significa que em algum grau o leitor experimenta aquilo que lê. Isso tem levado muitas pesquisas a analisar a relação entre a literatura e a simpatia do ponto de vista da neurociência e da neuropsicologia (OATLER, MAR. 2008; WOLF, 2019).

12Essa preocupação sobre o que ocorre com indivíduo em particular é uma característica que marca o desenvolvimento do romance enquanto gênero literário no século XVIII. Nesse sentido, segundo alguns autores, não apenas o conteúdo, mas também a forma estrutural do romance, em especial o epistolar, está intimamente associada com o surgimento de determinados valores morais e políticos como a autonomia, igualdade, liberdade, individualidade e que são refletidos na ideia dos direitos humanos e na democracia moderna. Para uma leitura sobre a relação entre o advento do gênero literário do romance o os direitos humanos, Cf. HUNT, 2009.

13A autora refere-se à tese de Aristóteles segundo o qual a arte literária é mais filosófica se comparada com outras narrativas, como a histórica, uma vez que não se limita a mostrar o que aconteceu, mas antes, trata das possibilidades do que poderia acontecer (NUSSBAUM, 1997b, p. 29). Diz Aristóteles em Poética 1451b: “Pelo exposto se torna óbvio que a função do poeta não é contar o que aconteceu mas aquilo que poderia acontecer, o que é possível, de acordo com o princípio da verossimilhança e da necessidade. O historiador e o poeta não diferem pelo facto de um escrever em prosa e o outro em verso (se tivéssemos posto em verso a obra de Heródoto, com verso ou sem verso ela não perderia absolutamente nada o seu carácter de História). Diferem é pelo facto de um relatar o que aconteceu e outro o que poderia acontecer. Portanto, a poesia é mais filosófica e tem um carácter mais elevado do que a História. É que a poesia expressa o universal, a História o particular”.

14Singer e Singer observam que as questões éticas sempre estiveram vinculadas com formas populares, culturais, míticas e religiosas de narrativas desenvolvidas para ilustrá-las e transmiti-las: “Por muito tempo, antes da ascensão do pensamento filosófico sistemático, no entanto, as pessoas inventavam histórias para transmitir o que pensavam sobre como devemos viver. Inevitavelmente, contando histórias e escrevendo romances, peças, contos, poemas, os autores e narradores levantavam questões morais e sugeriam possíveis modos de respondê-las. Assim, a ética vem diretamente dentro do campo da literatura, tanto quando do campo da filosofia” (SINGER; SINGER, 2005, p. x, tradução nossa.).

Recebido: 18 de Maio de 2020; Aceito: 05 de Julho de 2021

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