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Educação e Filosofia

Print version ISSN 0102-6801On-line version ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.73 Uberlândia Jan./Apr 2021  Epub Jan 11, 2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n73a2021-50899 

Artigos

A aprendizagem filosófica na formação de professores: proposta de um Ateliê Filosófico Transdisciplinar 1

Philosophical learning in teacher education: proposal of a Transdisciplinary Philosophical Workshop

Aprendizaje filosófico en la formación docente: propuesta de un taller filosófico transdisciplinario

Alexsandro da Silva Marques* 
http://orcid.org/0000-0003-1230-2578; lattes: 2739874089245336

*Doutorando em Difusão do Conhecimento pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: amarques89@hotmail.com


Resumo

Este artigo é uma reflexão sobre a criação de um Ateliê Filosófico Transdisciplinar para fazer-pensar a formação de professores e a aprendizagem filosófica, a partir de oficinas didático-formativas que possibilitem aos estudantes de diferentes cursos de licenciaturas a experienciarem em seus processos formativos a prática da meditação como possibilidade didática para o desenvolvimento da aprendizagem filosófica do autoconhecimento. Busca-se fortalecer e promover experiências que estimulem a reflexão, o cuidado com a alteridade, a comunicação dialógica e a ética, a partir de uma visão complexa, fenomenológica, transdisciplinar e polilógica. A formação institucional tradicional é tensionada a repensar o papel da filosofia na formação de professores para além de uma disciplina monológica, específica de conteúdos da tradição canônica, porém sem discriminá-los, mas fazer vê-los emergir das inquietudes humanas dos sujeitos educadores em transformação.

Palavras-chave: Ateliê Filosófico; Aprendizagem Filosófica; Autoconhecimento; Formação de Professores

Abstract

this article is a reflection on the creation of a Transdisciplinary Philosophical Workshop to make teacher education and philosophical learning think-through, from didactic-formative workshops that enable students from different undergraduate courses to experience their formative processes. The practice of meditation as a didactic possibility for the development of philosophical learning of self-knowledge. We seek to strengthen and promote experiences that stimulate reflection, care for otherness, dialogical communication and ethics, from a complex, phenomenological, transdisciplinary and polylogical view. The traditional institutional formation is tensioned to rethink the role of philosophy in the formation of teachers beyond a monological discipline, specific of canonical tradition contents, but without discriminating them, but seeing them emerge from the human concerns of the changing educating subjects.

Keywords: Philosophical Studio; Philosophical learning; Self knowledge; Teacher training

Resumen

Este artículo es una reflexión sobre la creación de un Taller Filosófico Transdisciplinario para reflexionar sobre la formación docente y el aprendizaje filosófico, a partir de talleres didáctico-formativos que permiten a los estudiantes de diferentes cursos de pregrado experimentar sus procesos formativos. La práctica de la meditación como una posibilidad didáctica para el desarrollo del aprendizaje filosófico del autoconocimiento. Buscamos fortalecer y promover experiencias que estimulen la reflexión, el cuidado de la otredad, la comunicación dialógica y la ética, desde una visión compleja, fenomenológica, transdisciplinaria y polilógica. La formación institucional tradicional está tensada para repensar el papel de la filosofía en la formación de docentes más allá de una disciplina monológica, específica de los contenidos de la tradición canónica, pero sin discriminarlos, pero al verlos emerger de las preocupaciones humanas de las materias educativas cambiantes.

Palabras clave: Philosophical Studio; Aprendizaje filosófico; Conocimiento de sí mismo; Formación de profesores

Introdução

Este artigo apresenta uma experiência que vem sendo realizada na formação de professores, tensionando o modo como se trabalha o ensino de filosofia e a aprendizagem filosófica. É importante destacar a direção assumida ao compreender a filosofia como uma relação de convivência dialógica, a partir de agenciamentos criadores, portanto imprevisíveis, nos acontecimentos acêntricos e rizomático (GALEFFI, 2012). Um filosofar que permita o ato criador ser o que ele é: potência encarnada intercultural de escuta ao que se mostra pensando em língua de si.

A perspectiva de um Ateliê filosófico1 tem como objetivo possibilitar o desenvolvimento da aprendizagem filosófica do autoconhecimento, na formação de professores, a partir de oficinas didático-formativas de filosofia com práticas de meditação. O objetivo é promover uma compreensão filosófico-pedagógica a partir de uma questão central: Como oficinas experimentais de filosofia aliadas à prática de meditação podem contribuir para a construção e difusão do conhecimento tomando como base o aprendizado de Si?

O aprendizado de si compreende uma ênfase processual incessante, mesmo os aprendizados vividos gerando certa gradação de conhecimento, não se cristaliza em uma imagem de um referente exterior fixa, pois é sempre continuidade criadora de novos processos de Si. O educar é assumido como processo de autoconhecer-se inerente ao humano no mundo da arte de viver aprender, a libertar a mente da escravidão psicológica das próprias experiências condicionadas (SOARES, 2007). Nestes processos emergem elementos imprescindíveis, que necessitam de olhares atentos, visando ressignificar conhecimentos filosóficos/científicos/técnicos para a transformação de professores, bem como, a atitude filosófica como processo implicado. Nesta perspectiva não há centralidade no ensino - se entendido dentro da perspectiva já institucionalizada historicamente, na qual o professor ensina o que o estudante não sabe -, pois a atenção é voltada para os processos de aprendizagens cultural e social que constituem as experiências dos educadores no contexto de sua liberdade, autonomia e criatividade.

O trabalho em desenvolvimento, a partir do Ateliê Filosófico, leva em consideração algumas questões que nos foram motivadoras e nos serviram de força matriz, a saber: A filosofia se resumiria à leitura de obras clássicas e sistemas canônicos de metacognições excepcionais ou seu potencial faz emergir uma atitude dialógica com a existência humana, cotidianamente, independente de escolarização, gênero, classe social e cultura?

Estes processos nos levam à possibilidade de problematizar questões que não foram devidamente investigadas ou que ainda, segundo Galeffi (2012), não fazem parte dos mecanismos e dispositivos autorizados academicamente. Desse modo, o Ateliê Filosófico articula a possibilidade de um aprender-fazer docente articulado a uma aprendizagem filosófica, pautada no aprendizado de si, a partir de processos vivenciais de meditação com educadores em formação.

O Ateliê Filosófico encontra pressupostos teóricos na perspectiva poemático-pedagógica e polilógica (GALEFFI, 2001; 2017) e a pedagogia do autoconhecimento (SOARES, 2007), buscando tecer uma práxis filosófica implicada com a vida, a sensibilidade, os afetos e a inventividade, pois estes ainda são temas vistos na academia como não-filosóficos. Então, como nos constituirmos educadores agentes de transformações socio-existenciais emergentes e conscientes de suas práxis, sem que primeiro busquemos a nós mesmos em nossas derivas e encruzilhadas culturais? Segundo Boaventura de Sousa Santos (2011), é preciso superar o “desperdício da experiência” e construir um processo formativo em que o educador, a partir de um pensar situado e implicado possa dizer a sua palavra. Este é um movimento radical que intenta compreender a vida-formação de educadores, a partir da ampliação das percepções, em suas dimensões éticas, corporal, afetiva, espiritual e estética.

A relevância da proposta do Ateliê Filosófico articulada a tríade meditação-filosofia-autoconhecimento, está alicerçada na possibilidade de fazer-pensar uma formação implicada no aprendizado de modo próprio, apropriado e apropriador. Aproximar a meditação, compreendida como um estado de ser/viver, com o campo educativo, implica conectar-se aos paradigmas emergentes em educação. Assim, a meditação é assumida como um instrumento educativo “plenamente sintonizado com os novos desafios de construção de uma sociedade com consciência ecológica e planetária, de desenvolvimento de um ser multidimensional, integral, autônomo e reflexivo” (BARONTINI, 2009, p. 285).

O Ateliê Filosófico ao propor oficinas experimentais, articulando a meditação e a filosofia, busca superar a repetição de uma historiografia hegemônica segmentada a uma determinada técnica ou área do saber. As oficinas criam condições para o aprendizado da diferença ontológica de cada estudante, em ser o mais amplo de si, na emergência humana planetária, global e local, no mundo da vida, em suas múltiplas relações ecológicas.

Clareiras de inspirações paradigmáticas e teóricas

Os fundamentos do projeto Ateliê Filosófico encontram-se alicerçados nos pressupostos teóricos da Teoria da Complexidade, na abordagem Transdisciplinar (MORIN E DELGADO DÍAZ, 2016; NICOLESCU, 1999), na Polilógica (GALEFFI, 2001; 2012) e articulados à Pedagogia do Autoconhecimento ou à vivência da arte de aprender (SOARES, 2007).

A Teoria da Complexidade ressalta a importância de considerarmos o caráter subjetivo, qualitativo e criativo do processo da aprendizagem. Neste sentido, a aprendizagem torna-se uma busca do auto-referencial que emerge dos seres humanos em seu caminhar inconclusivo de si, para alcançar saltos qualitativos do seu entendimento da realidade. Faz-se necessário propiciar diálogos e compreensões no padrão organizacional da matéria-energia do universo, em articulação com as experiências dos sujeitos, em seus diversos níveis de complexidade.

É imprescindível legitimar e articular saberes onde a alteridade, a diferença e as singularidades possam constituir-se como elementos fundantes do processo educativo. Compartilho do pensamento de Freire (2010; 1996) e Brandão (2007) que a vida cultural e as experiências sociais são determinadas pelas relações de produção e reprodução, na apropriação que fazemos em nossa caminhada individual e coletiva. Consequentemente estes mecanismos influenciam em nossa forma de pensar, de sentir os desejos, o modo como fazemos nossas escolhas, interpretamos, transformamos e recriamos. Por isso, compreendo a educação e a filosofia intrinsicamente vinculada às visões de mundo, cultura e de transformação socio-existencial.

A sociedade de ordem capitalista na qual estamos inseridos trata o problema da nossa existência de forma alienada. A educação passa a atender aos anseios de uma pequena parte da sociedade, em detrimento da maioria, visando “a acumulação e a reprodução do valor, o que aliena o homem em relação a outros homens” (MESZÁROS, 2008, p. 20). Há um estranhamento da condição de ser humano passando a ser, a atividade vital de tal relação, a criação de mecanismos desumanizantes para garantia de sua existência. Paulo Freire, na Pedagogia do Oprimido, aponta a educação bancária como uma imposição alienante do professor sobre o educando em uma situação que impõe formas e conhecimentos sem relação com a vida e a historicidade dos educandos.

Contrário à toda forma de opressão e exclusão o educador Paulo Freire apresenta a Pedagogia da libertação como meta na qual todos possam realizar sua humanidade. Mas, para atingi-la é preciso superar a relação dicotômica existente na concepção bancária: um processo em que só o educador conhece e transmite seus achados. Ao contrário, a essência da pedagogia libertadora é o diálogo como elemento fundante do próprio processo de conhecimento. Há, portanto, a superação de antagonismos preeminentes e todos aprendem com todos em um processo de horizontalidade.

Emerge, neste cenário, a concepção de diálogo como inerente ao ser humano, na descoberta que ser humano - o ser cognoscente - faz de si como sujeito do processo histórico e ao conhecer sua realidade, apropria-se biografando-se, existenciando-se e tornando testemunha de sua história (FIORE, 2014).

Segundo Crema (2002), é necessário rompermos o adestramento racional de adquirir conhecimento sem levar em consideração uma visão global das emoções, dos sentimentos e da intuição. Nesta perspectiva, Galeffi (2011) nos abre horizontes frente ao autoconhecimento, como resultado originário inconcluso sobre o processo de aprendizagem, na convivência e na emergência do ente-espécie humano em conhecer a si mesmo (GALEFFI, 2011, p.21).

Estes caminhos nos levam a apropriação de novas estratégias de produção de conhecimento e de aprendizagem com a práxis filosófica. Romper tendências que privilegiam exclusivamente os conteúdos filosóficos ou pedagógicos, dependendo dos tipos de conhecimentos que foram internalizados ao longo da formação do professor, é buscar investigar, não o ensino como algo institucionalizado, mas a aprendizagem em seus sentidos e interações implicantes (GALLO, 2007; GALEFFI, 2001; MAZZOTTI & OLIVEIRA, 2000, MACEDO, 2015).

Segundo Galeffi (2001) a Filosofia sempre foi tratada no âmbito da educação básica brasileira como produto requintado, acessível à elite e fortemente impregnada de um discurso hegemônico da cultura eurocêntrica. Sua história é marcada pela exclusão, maltratada em sua prática educativa e ora exaltada nos discursos oficiais.

É importante destacar que as discussões acerca do ensino de filosofia, no Brasil, possuem vasta produção teórica, sejam elas refletindo sobre os aspectos referentes às questões que envolvam o ensino da filosofia no currículo da educação básica ou na tentativa de elucidar a filosofia da educação (no ensino superior), a partir de filósofos ou escolas teóricas específicas. Podemos observar estas discussões nas obras de Severino (2008); Gallo (1999); Tomazetti (2003).

Em 1994 tivemos a criação do Grupo de Trabalho (GT): Filosofia da Educação, cujo primeiro encontro ocorre na 17ª reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd). No período compreendido entre meados dos anos 90 e o início dos anos 2000, houve um grande esforço em prol da organização e mapeamento da produção teórica, bem como, delimitação temática e demais estudos sobre a identidade e especificidade da filosofia da educação (TOMAZETTI, 2003).

Na educação básica, encontramos em 2008, amparada na lei nº 11.684, a obrigatoriedade do ensino de filosofia e sociologia nas séries finais do Ensino Médio como necessária à formação cidadã e democrática dos estudantes. Segue uma crescente produção acadêmica, na área da educação, referindo-se às experiências com o ensino-didática-formação em filosofia, no trabalho de profissionais que atuam com adolescentes e jovens do Ensino Médio, na educação formal. Porém, diante dos diferentes contextos culturais e sociais do país, não vemos estudos significativos com ensino de filosofia, a partir de práticas inovadoras voltadas para a formação de professores.

Romper o paradigma da racionalidade técnica, baseado na lógica disciplinar e na transmissão de conteúdos que caracterizam a filosofia da educação - como reflexão sobre a educação ou como fundamentos da educação -, é compreender esses fenômenos à luz de uma abordagem complexa e conectada a matrizes e perspectivas que valorizem as singularidades culturais, sociais e plurais dos sujeitos aprendentes. Partir da própria experiência, do autoconhecimento, é tensionar e resistir uma perspectiva de universidade brasileira e de (re)produzir uma filosofia alicerçada em conhecimentos, epistemologias, que em muitos momentos, foram (e são) utilizados para o fortalecimento de uma lógica disciplinar e excludente.

As reflexões apresentadas acima estão articuladas a uma observação baseada na seguinte tríade:

  • ✓ Em nossa experiência pessoal e profissional, nas quais identificamos práticas pedagógicas, com a aprendizagem de filosofia, dissociadas de um sentido emancipador que leve em consideração os saberes populares-experienciais dos educadores. Os limites encontrados em nossa prática pedagógica referente a complexidade da docência universitária e os pressupostos epistemológicos que envolvem o ensino de filosofia e a formação de professores.

  • ✓ A constatação de pesquisas que apontam a formação de professores, de uma maneira geral, continuam seguindo o modelo clássico cartesiano, positivista e capitalista; ao invés de proporcionar reflexões acerca dos limites de tal modelo de ensino, tem contribuído, muitas vezes, para conservá-lo (SAMPAIO, 2011; NÓVOA, 2002; CUNHA, 2006).

  • ✓ A existência de parcos estudos acerca de abordagens compreensivas, alternativas, radicais e mobilizadoras com a práxis filosófica na formação de professores e de suas contribuições no fazer pedagógico, na difusão e construção do conhecimento GALEFFI, (2012; 2001); PIMENTEL (2014) SEVERINO (2008); GALLO (1999); TADEU & KOHAN (2005); TOMAZETTI (2003).

É urgente a discussão da formação de professores, levando em consideração a compreensão de experiências pedagógicas, onde educadores possam se organizar e compreender o sentido social de suas práxis. Este é um campo de ação complexo, multifacetado, dependente de inúmeras variáveis e de forma preponderante perpassam o tipo de Instituto de Ensino Superior, no modelo de universidade urgente, bem como, os saberes docentes e a formação para a docência.

As demandas sociais exigem competências dos docentes que vão além do instituído, porque devem ser capazes de elaborar e difundir saberes pautados numa prática educativa com vista à emancipação (PIMENTA; ANASTASIOU, 2002). Conforme Severino (2008) já assinalava acerca da necessidade da demanda por inovações pedagógicas, em todos os níveis de ensino, bem como, a necessidade de propiciar espaços formativos tensionados nas emergências sociais da educação contemporânea.

Recorrendo a trabalhos produzidos na área da educação com a temática “meditação”, destacam-se os estudos de Sampaio (2011); Barontini (2009); Arora (2007); Camelo (2011); Menezes (2011); Menezes & Dell’aglio (2009). Estes estudos demonstram o desenvolvimento de práticas em diversos espaços e instituições que utilizam a meditação, como por exemplo, para trabalhar a elaboração da atenção na percepção de si (a concentração), os processos de aprendizagem, a experiência com corpo e a mente a partir das técnicas de respiração, (re)elaborações cognitivas e emocionais.

Nos estudos citados acima, evidencia-se a relação da prática de meditação com os processos cognitivos e pedagógicos em vários âmbitos da educação, desde a escola básica à universidade e grupos de pesquisa. Estes movimentos demonstram a necessidade vital da academia, na valorização e pluralização de modos ressignificados de fazer e compreender a ciência, por lógicas curriculares transformativas que durante muito tempo encontrou barreiras nas complexas configurações da Universidade, e que atualmente demarcam a necessidade de uma reforma do pensamento (MORIN, 2002).

Vivemos em uma sociedade de relações fragmentadas, exemplificadora de atitudes violentas, mas também vivenciamos a possibilidade de regeneração do poético com a vida, com a estética que nos transporta ao contato com a sensibilidade e a nossa condição humana terrena-planetária. Morin (2012) chama a atenção para a realidade suportável que a dimensão da emoção estética possibilita ao humano. O homo carrega o gênero sapiens e ao mesmo tempo o demens, ordem e desordem, razão e emoção coabitando em fonte de élan criativo, amoroso, transformador e poético. Eclodem diferentes lógicas de objetivações e projeções, necessitando de presentificação constante nas práxis formativas dos nossos estudantes em formação.

A partir do Ateliê Filosófico defendemos uma perspectiva de fazer e aprender filosofia como experimentação do pensar, como criação de novos sentidos implicado na vida-trajetória dos estudantes em formação, diferente de um ensino de filosofia limitado ao mundo acadêmico territorializado e fronteirizado, aonde subestima os saberes populares-experienciais. Desse modo, para sentir, pensar e fazer na realidade implicada, no processo do autoconhecimento, responsáveis e participativos, questionadores e críticos de suas próprias condições de existência, é necessário que estudantes conheçam e vivenciem, em sua experiência formativa, essa constelação de saberes.

Constelando uma metodologia para uma práxis própria e apropriada

Pensar um processo metodológico numa práxis pedagógica com a filosofia na formação de professores é abrir-se ao acontecimento de constantes deslocamentos e enfrentamentos encontrados na possibilidade da saída de uma modelagem disciplinar do “ensinar” e adentrar-se em uma modelagem transdisciplinar transformativa.

É preciso romper os adestramentos que operam na prática pedagógica dos sistemas educacionais expressos na tríade “fabricação-modelagem-adestramento” e que ainda prevalecem na maioria das instituições de ensino-aprendizagem. O acontecimento existencial do serhumanohumanidade2 em seu potencial criativo e mente desperta é submetida a uma letargia e alienação que lhe impedem de apropriar-se da compreensão e do conhecimento de sua própria existência. Por isso, é preciso destacarmos o que Paulo Freire sempre ressaltou em suas obras: a vocação ontológica do serhumanohumanidade em suas historicidades e inconclusões sempre em busca do Ser Mais. É no acontecer inconcluso, em uma educação pautada no diálogo, na diferença que poderá emergir a compreensão do fenômeno humano em sua complexidade e o sujeito presente na sua relação com a corporeidade, a espiritualidade, a emocionalidade e a racionalidade.

Morin (2012) ressalta que o progresso do conhecimento científico necessita que o pesquisador-professor se inclua em sua práxis, de forma autocrítica e reflexiva, no conhecimento do contexto. Desse modo, inspira-me “rigores outros” de fazer-aprender que possibilite superar a dicotomia clássica entre sujeito e objeto, ciências da natureza e ciências do espírito (MACEDO, GALEFFI, PIMENTEL, 2009). As atividades do Ateliê Filosófico visam respeitar o processo histórico e biopsicoexistencial da caminhada dos sujeitos nele inseridos. Neste sentido, o Ateliê Filosófico, busca a partir da prática da meditação, o desenvolvimento do autoconhecimento e a aprendizagem filosófica na formação de educadores. Desse modo, o projeto em andamento tem inspiração fenomenológica e caracteriza-se por ser um processo de abertura a ação-reflexão-ação de retorno às coisas mesmas (GALEFFI, 2012, HUSSERL, 1990).

O Ateliê Filosófico é realizado segundo um percurso de construção do conhecimento que se configura em oficinas didático-pedagógicas experimentais que proporcione, não só o trato do conhecimento com filosofia, meditação e formação, mas um espaço-tempo experiencial e de vivências. O estudante em formação experimenta o objeto do conhecimento, privilegiando processos de aprendizagem através da descoberta e da construção de sentidos e significados para “si mesmo”.

O “Si mesmo” como abertura radical de investigação implicada, envolve o processo de autoproduzir-se, ciente do que se é, está sendo e do que virá a ser, sempre possibilidade brotante e aprendente de perspectivar e forjar modos, sentidos e formas próprias e apropriadas em derivas constantes. Diferentemente de um saber técnico que se aprende a partir de regras e normas padronizadas, o aprendizado de si rompe com os solipsismos do pensamento especulativo fundante do saber ocidental. Um presentificar-se incessantemente que mobiliza estados de consciência (conscientes ou não) pela capacidade de escuta. Entende-se a escuta em uma perspectiva amplificada para além da própria audição, mas de todo o corpo, pele, olhos, vísceras, coração, pensamentos, desejos, impulsos e etc.. Neste processo o auscultar faz-se necessário como processo de cura interior, onde a escuta atenta (como de um médico) precisa ir cada vez mais fundo, nos oceanos ocultos de nossas sombras pessoais. Todo o mundo interior psicológico do ser vivente em dialogia com o mundo da convivência, na experiência de si com o numinoso.

As oficinas didático-formativas que compõem o Ateliê Filosófico buscam criar oportunidade de imersão em práticas meditativas de modo próprio e apropriado, pois a meditação não se resume a um conjunto de técnicas, mas a um estado de ser/compreender. Este processo está articulado ao diálogo com temáticas que emergem da experiência realizada nos processos vivenciados pelos participantes e o professor das oficinas, estabelecendo conexões e aprofundamentos com a filosofia e demais áreas de conhecimento, conforme os objetivos do referido projeto.

Considerações finais

Fazer e pensar uma aprendizagem filosófica como transformatividade criativa e radical na formação de professores, é assumir a responsabilidade de comum-pertencimento a emergência que jorra das nossas vidas incertas e inseguras, das salas de aula, nos bancos universitários, nos processos formativos.

A perspectiva desenvolvida no Ateliê filosófico vem afirmar a necessidade de uma práxis criadora, articulada na emergência mundo de uma racionalidade aberta e implicada ao local, ao simples e complexo do existir humano em seu aprendizado próprio e apropriado de si mesmo. O aprendizado de si não é uma técnica de aplicação para o processo educacional. A viagem cósmica no mergulho do aprendizado de si mobiliza, em sua ousadia singular e coletiva, o conhecer/desconhecer, o conhecimento do desconhecimento.

Nosso interesse com o Ateliê Filosófico é o educador em Vida-Transformação, o humano como ente que primeiro há de mergulhar na investigação da natureza do próprio conhecimento aí disponível, como consciência encarnada individual, pessoal e transpessoal (coletiva). A prática que se deseja ser práxis político-pedagógica exige o sentimento de envolvimento e pertencimento.

Como educadores-pesquisadores estamos sempre em encruzilhadas de transições paradigmáticas, por isso, é fundamental buscarmos no aprendizado de si, no autoconhecimento, outras possibilidades de fazer e aprender filosofia na transformação de professores. É nesta condição humana que nos colocamos como educadores e pesquisadores. Um estar entre que indica a vida travessia, liberdade e destino. Destino compreendido como encontro e não rota previamente traçada e acabada. Por mais que desejamos, nossos desejos há de sempre dialogar com nossas origens, contextos, nascedouros nas derivas do aprendizado de si mesmo.

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1O Ateliê Filosófico faz parte de uma pesquisa em andamento no Programa de Pós-Graduação em Difusão do Conhecimento (PPGDC) na Universidade Federal da Bahia (UFBA), ligado à linha de pesquisa - Construção do Conhecimento: Cognição, Linguagens e Informação. Atualmente vem sendo desenvolvido na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) na condição de projeto de extensão intitulado: Ateliê Filosófico: Meditação, Filosofia e Autoconhecimento na Formação de Professores.

2Compartilhamos o uso do neologismo serhumanohumanidade criado por Noemi Soares (2007) a fim de ressaltar a compreensão semântica de que cada ser humano representa toda a humanidade.

Recebido: 05 de Outubro de 2019; Aceito: 22 de Setembro de 2021

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