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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.73 Uberlândia jan./abr 2021  Epub 11-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n73a2021-54303 

Artigos

Crer, experimentar, fabular: ensaio sobre a experiência?

Believe, experience, fable: an essay about experience

Creer, experimentar, fábula: ensayo sobre experiência

Christian Fernando Ribeiro Guimarães Vinci* 
lattes: 5118505331417877; http://orcid.org/0000-0003-2914-3032

*Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor-pesquisador da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Integrante do grupo CNPq CoPERP - Coletivo de Pesquisadores de Educação e Relações de Poder. E-mail: christian.guimaraes.vinci@gmail.com


Resumo

Partindo da concepção deleuziana e deleuzo-guattariana da crença nesse mundo, esse ensaio procurará pensar a temática da experiência dentro do campo educacional. Para tanto, procuraremos pensar o modo como os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari concebem uma espécie de crença imanente, voltada para a experimentação vital das forças constitutivas do mundo, capaz de ultrapassar os condicionantes transcendentes da experiência. Para a devida compreensão de uma tal crença, devedora daquilo que Deleuze denomina de empirismo transcendental, retomaremos o diálogo travado pelos autores de O que é a Filosofia? com a noção de fabulação preconizada por Henri Bergson. Buscaremos apresentar o modo como se dá a articulação entre os conceitos de fabulação e crença, importante na medida em que permitirá pensarmos uma experiência não condicionada por nenhuma instância transcendente, experiência a qual Deleuze e Deleuze-Guattari denominarão de experimentação. O conceito de experimentação, acreditamos, pode contribuir para as discussões recentes sobre experiência presentes no campo educacional, mormente aquelas empreendias por Jorge Larrosa Bondia e Julio Groppa Aquino.

Palavras-chave: Crença imanente; Experiência; Fabulação; Gilles Deleuze e Félix Guattari; Henri Bergson

Abstract

This article starting from the Deleuzian and Deleuzo-Guattarian conception of belief in this world and will try to think the theme of experience in the educational field. Therefore, we trying to think the way in which the philosophers Gilles Deleuze and Félix Guattari conceive a kind of immanent belief, focused on the vital experimentation of the constitutive forces of the world and capable of overcoming the transcendent conditions of experience. For the proper understanding of such a belief, indebted to what Deleuze calls transcendental empiricism, we will resume the dialogue carried out by the authors of What is Philosophy? with the notion of fabulation advocated by Henri Bergson. We will present the way in which the concepts of fabulation and belief take place, which is important in that it will allow us to think about an experience that is not conditioned by any transcendent instance, an experience that Deleuze and Deleuze-Guattari will call experimentation. The concept of experimentation, we believe, can contribute to the recent discussions on experience present in the educational field, especially those undertaken by Jorge Larrosa Bondia and Julio Groppa Aquino.

Keyword: Immanent believe; Experience; Fable; Gilles Deleuze and Félix Guattari; Henri Bergson

Resumen

A partir de la concepción Deleuzian y Deleuzo-Guattarian de creencia en este mundo, este ensayo tratará de pensar el tema de la experiencia dentro del campo educativo. Por lo tanto, trataremos de pensar en la forma que los filósofos Gilles Deleuze y Félix Guattari conciben una especie de creencia inmanente, centrada en la experimentación vital de las fuerzas constitutivas del mundo, capaz de superar las condiciones trascendentes de la experiencia. Para la comprensión adecuada de tal creencia, en deuda con lo que Deleuze llama empirismo trascendental, reanudaremos el diálogo llevado a cabo por los autores de ¿Qué es la filosofía? con la noción de fabulación defendida por Henri Bergson. Intentaremos presentar la forma en que tienen lugar los conceptos de fabulación y creencia, lo cual es importante ya que nos permitirá pensar en una experiencia que no está condicionada por ninguna instancia trascendente, una experiencia que Deleuze y Deleuze-Guattari llamarán experimentación. El concepto de experimentación, creemos, puede contribuir a las discusiones recientes sobre la experiencia presente en el campo educativo, especialmente las emprendidas por Jorge Larrosa Bondia y Julio Groppa Aquino.

Palabras clave: Creencia imanente; Experiencia; Fábula; Gilles Deleuze y Félix Guattari; Henri Bergson

Introdução

Sim, o problema mudou. Com essa singela assertiva, Gilles Deleuze e Félix Guattari (1992, p. 99) encerraram um dos exemplos oferecidos em O que é a Filosofia? para discutir aquilo que denominaram de personagens conceituais1. O problema em questão? A mudança de uma perspectiva filosófica transcendente para uma dita imanente. Em algum momento na aurora da modernidade, argumentam os autores, o pensamento filosófico modificou-se sensivelmente graças ao surgimento de novos personagens conceituais, interessados não mais em afirmar a existência divina, mas preocupados “somente com possibilidades imanentes infinitas que traz a existência daquele que crê que Deus existe” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 98). A busca por valores transcendentes ou divinos, aqueles capazes de regular e justificar nossas experiências, viu-se interrompida ou atacada, cedendo espaço para uma preocupação de caráter mais vitalista. A filosofia, doravante, procurou intensificar a vida, a vida independente do vivente e do vivido2. Abdicou, assim, da incessante investigação por um alhures capaz de regular e/ou justificar o mundo sensível, engajando-se em fabular espaços de experiência outro. O problema, por conseguinte, passou a dizer respeito

à existência daquele que crê no mundo, não propriamente na existência do mundo, mas em suas possibilidades em movimentos e intensidades, para fazer nascer ainda novos modos de existências, mais próximos dos animais e dos rochedos. Pode ocorrer que acreditar neste mundo, nesta vida, tenha se tornado nossa tarefa mais difícil, ou a tarefa de um modo de existência por descobrir, hoje, sobre nosso plano de imanência. É a conversão empirista (temos tantas razões de não crer no mundo dos homens, perdemos o mundo, pior que uma noiva, um filho ou um deus...). Sim, o problema mudou. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 99, grifos nossos)

A mudança de problema aventada pelos autores de O que é a Filosofia? apresentaria uma difícil tarefa, prenhe de significações político-existenciais, qual seja: a elaboração de uma crença outra. Não se trata mais de acreditar em um alhures, seja um Deus ou um apanhado de Ideias suprassensíveis, mas crer nas possibilidades de experimentar o mundo, a despeito de suas imperfeições e problemas, entregando-se aos seus movimentos e às suas intensidades, extraindo a força capaz de nos permitir fabular outros modos de existência3. O mundo, perdido graças aos problemas metafísicos, deve ser recuperado e experimentado4. Contrapondo-se à tradição filosófica dita transcendente, a crença deleuziana e deleuzo-guattariana almeja deslocar o alvo de nossa fé: não se trata mais de uma entrega a um alhures prenhe de potenciais promessas redentoras, antes devemos nos engajar em criar uma relação imanente com o mundo. Convém, portanto, abdicar de qualquer critério preexistente, qualquer instância transcendente capaz de regular nossa experiência - o Bom, o Belo, o Justo, a Verdade etc. Deleuze e Guattari, arautos dessa crença imanente, insistem em conclamar:

não temos a menor razão para pensar que os modos de existência tenham necessidade de valores transcendentes que os comparariam, os selecionariam e decidiriam que um é “melhor” que o outro. Ao contrário, não há critérios senão imanentes, e uma possibilidade de vida se avalia nela mesma, pelos movimentos que ela traça e pelas intensidades que ela cria, sobre um plano de imanência; é rejeitado o que não traça nem cria. Um modo de existência é bom ou mau, nobre ou vulgar, cheio ou vazio, independente do Bem e do Mal, e de todo valor transcendente: não há nunca outro critério senão o teor da existência, a intensificação da vida. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 98)

A busca por critérios imanentes capazes de nortear a escolha de modos de existência, pautados apenas na intensificação da vida, é uma constante no pensamento de Deleuze e Deleuze-Guattari. Não seria descabido afirmar que a filosofia deleuziana e deleuzo-guattariana se engajou no combate a qualquer instância transcendente, procurando produzir uma espécie de guinda vitalista. A dificuldade em produzir uma tal guinada decorre da recusa em apreender o intolerável do mundo por parte dos viventes, uma vez que estes se viram presos a promessa de um mundo melhor. Sobre essa questão, acerca dos modos como formos enredados por certas promessas transcendentes, Deleuze argumenta.

Pois não é em nome de um mundo melhor ou mais verdadeiro que o pensamento apreende o intolerável nesse mundo, é, ao contrário, porque o mundo é intolerável que ele não pode mais pensar um mundo, nem pensar em si próprio. O intolerável não é mais uma grande injustiça, mas o estado permanente de uma banalidade cotidiana. O homem não é um mundo diferente daquele no qual sente o intolerável e se sente encurralado. O autômato espiritual está na situação psíquica do vidente, que enxerga melhor e mais longe na medida em que não pode reagir, isto é, pensar. Qual é, então, a saída sutil? Acreditar, não mais em outro mundo, mas na vinculação do homem e do mundo, no amor ou na vida, acreditar nisso como no impossível, no impensável, que, no entanto, só pode ser pensado: “um pouco de possível, senão eu sufoco”. E nessa crença que faz do impensado a potência distintiva do pensamento, por absurdo, em virtude do absurdo. (DELEUZE, 2018, p. 204-5, grifos nossos)

A saída sutil proposta por Deleuze, apta a produzir uma nova vinculação do homem com o mundo, ancora-se já ideia da crença imanente, aquela capaz de fazer do impensável um possível passível de ser pensado e que só pode ser pensado. Crer nesse mundo, defendemos, significaria confiar na potência fabulatória dos seres finitos, sua capacidade de pensar o impensável e criar novos e mais alegres vínculos com o mundo, fabular outros possíveis. Criações que não obedeceriam às leis da recognição, que não buscariam criar nesse mundo um protótipo ideal de sociedade a partir do vislumbre de algum alhures. Crer nesse mundo implicaria, portanto, adotar uma problemática imanente, realizar uma conversão empirista radical capaz de nos possibilitar vivenciar experimentações outras.

Esse ensaio procurará seguir as sendas abertas pela temática deleuziana e deleuzo-guattariana da crença, suas implicações político-existenciais, experimentando o problema apresentado por esses pensadores e buscando extrair suas implicações para o campo pedagógico. Por qual razão o campo pedagógico? Há muito, conforme argumentam alguns autores (PARAÍSO, 2004; VINCI; RIBEIRO, 2018), a filosofia de Deleuze e Deleuze-Guattari começou a atrair a atenção dos pesquisadores em educação, dado a possibilidade de renovarem o campo com sua filosofia da imanência. Pensadores utilizados, ao lado de tantos outros, para romper com a submissão do campo a certos condicionantes transcendentes, ou certa metafísica pedagógica como denuncia Julio Groppa Aquino (2015). Acreditamos que, ao abordarmos a questão da crença deleuziana e deleuzo-guattariana, conseguiremos deslocar e ressignificar o conceito de experiência, tão caro aos pesquisadores em educação e aos educadores, e despi-lo dos pressupostos reguladores. Ademais, conseguiremos recuperar o lastro vitalista dessa noção, perdida quando de sua absorção pelo pensamento utilitária da modernidade e, assim, fortalecer a busca por uma outra experiência educacional - tal qual outros pesquisadores em Educação têm buscado, como é o caso de Jorge Larrosa Bondia (2014).

Dado esse preâmbulo, propomos experimentar o seguinte excurso de pensamento: começaremos apresentando a questão da experiência dentro do campo educacional a partir das discussões empreendidas por autores como Larrosa (BONDIA, 2002; 2014) e Julio Groppa Aquino (2015). Na sequência, discutiremos como o programa de uma crença imanente nesse mundo, proposta por Deleuze e Deleuze-Guattari, permitem retomarmos a questão da experiência sob um outro olhar, atrelando-a ao conceito de fabulação. Por fim, pensaremos a implicação dessas questões para o campo educacional, buscando pensar em consonância com Larrosa e Aquino estratégias para produzirmos um outro espaço de experimentação em Educação.

A experiência e o campo educacional

Deleuze (2008), em uma aula ministrada no ano de 1981, diz desconfiar do conceito de experiência. Para o filósofo francês, a experiência, ao menos tal qual compreendida vulgarmente, remeteria sempre a um conhecimento relativo ao passado ou, em outras palavras, expressaria uma “racionalização retroativa sobre algo ocorrido alhures” (DELEUZE, 2008, p. 431). Ademais, prossegue Deleuze (2008), tratar-se-ia de um conhecimento com pretensões abrangentes e universais, descontados os desvios passíveis de serem produzidos pelas ditas variáveis, capazes de nortear futuras ações de indivíduos quaisquer. Nessa concepção vultar, argumenta o filósofo, a experiência atuaria como uma espécie de saber transcendente, regulador de nosso espaço de experiência. Jamais vivenciaríamos a experiência de modo imanente, dada a distância entre a experiência em si e o saber dela derivado. O saber da experiência, em outros termos, estagnaria as forças do passado em uma imagem, buscando extrair constantes e relações causais capazes de gerar protocolos aptos a serem replicados em situações as mais diversas, os ditos condicionantes. Como contraponto a essa ideia de experiência, estática e incapaz de ser vivenciada em ato, Deleuze (2008) sugere operarmos com o conceito de experimentação, compreendido como uma espécie de experiência ativa.

Para Deleuze (2008), a experimentação seria um processo vital infinito, impossível de chegar a termo, por vezes confundida com o próprio pensar. Em outro momento de sua obra, conjuntamente com Guattari, o filósofo chegou a argumentar:

Pensar é experimentar, mas a experimentação é sempre o que se está fazendo - o novo, o notável, o interessante, que substituem a aparência de verdade e que são mais exigentes que ela. O que se está fazendo não é o que acaba, mas menos ainda o que começa. A história não é experimentação, ela é somente o conjunto das condições quase negativas que tornam possível a experimentação de algo que escapa à história. Sem história, a experimentação permaneceria indeterminada, incondicionada, mas a experimentação não é histórica, ela é filosófica. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 143)

Haveria, pois, uma indissociabilidade entre experimentação, pensamento e experiência. Essa tríade, imanente, necessitaria ser vivenciada como um processo contínuo, um fluxo, sempre o que se está fazendo. A-histórica, a experimentação não busca produzir um conhecimento do passado. A história só surge na experimentação como campo do qual deve-se escapar, os condicionantes históricos seriam uma espécie de negativo a ser combatido ao mesmo tempo que dariam o material empírico para ser experimentado. Diferentemente de outras concepções, a experimentação deleuziana e deleuzo-guattariana não está preocupada com a verdade, a essência dos objetos ou algo similar, apenas com a criação de outros possíveis ou espaços de experiência não condicionados por um transcendente5. Ora, essa noção parece destoar daquela de experiência consolidada na modernidade, denunciada por Deleuze como a noção vulgar da experiência, e deveras influente no campo educacional, ao menos tal qual defendido por autores como Jorge Larrosa e Julio Groppa Aquino.

Jorge Larrosa (BONDIA, 2002), ao discutir a noção de experiência em Educação, argumenta sobre o modo como esta restou refém dos pares “ciência-técnica” e “teoria-prática”. Qual o problema dessa submissão? Para o pensador espanhol, enquanto o primeiro par, “ciência-técnica”, propagaria a necessidade de um conhecimento positivo, pautado em cálculos e fórmulas capazes de serem aplicados em situações as mais diversas; o segundo, aquele da “teoria-prática”, perder-se-ia em reflexões críticas que jamais chegariam a termo, dado que a realidade educacional amiúde deixa de se enquadrar em perspectivas políticas formatadas de véspera. Larrosa, assim, argumenta: “nas últimas décadas o campo pedagógico tem estado separado entre os chamados técnicos e os chamados críticos, entre os partidários da educação como ciência aplicada e os partidários da educação como práxis política” (BONDIA, 2002, p. 20)6. Ambos os pares, para o autor espanhol, teriam esgotado aquilo passível de ser dito sobre o campo pedagógico.

Quer dizer que tanto os cientistas, os que se situam no campo educativo a partir da legitimidade da ciência, os que usam esse vocabulário da eficácia, da avaliação, da qualidade, dos objetivos, os didatas, os psicopedagogos, os tecnólogos, os que constroem sua legitimidade a partir de sua qualidade de experts, os que sabem, os que se situam em posições de poder através de posições de saber..., tanto eles como os críticos, os que situam no campo a partir da legitimidade da crítica, os que usam esse vocabulário da reflexão sobre a prática ou na prática, os que consideram a educação como uma prática política encaminhada para a realização de certos ideais como a liberdade, a igualdade ou a cidadania, os que criticam a educação enquanto produz submissão e desigualdade, enquanto destrói os vínculos sociais, os que se situam em posições de poder por meio da conversão em porta-vozes desses ideais constantemente desmentidos, repetidamente desenganados... para mim, e falo na primeira pessoa, tanto os positivistas quanto os críticos já pensaram o que tinham de pensar e disseram o que tinham de dizer sobre a educação. (BONDIA, 2014, p. 36)

Diante do supramencionado, Larrosa propõe pensar a educação a partir de um outro par, qual seja: o par experiência-sentido, compreendido como um par de caráter mais vitalista. A guinada vitalista é importante, uma vez que a gramática dos pares “ciência-técnica” e “teoria-prática” calou a vida ao transmutar a experiência em um mero experimento, para os cientificistas, ou dotou-a de certa autoridade, como o fizeram os pragmatistas. Seja pela via do cientificismo ou do pragmatismo, a vida deve sempre ser regulada pela experiência pregressa transmutada em fórmula ou modelo de ação. Os pares denunciados por Larrosa, assim, não permitiriam a existência de uma experiência viva, não mediada ou balizada. Uma guinada vitalista, nas discussões sobre experiência, faz-se necessária para podermos uma lembrança, a lembrança de que

A experiência seria o modo de habitar o mundo de um ser que existe, de um ser que não tem outro ser, outra essência, além da sua própria existência corporal, finita, encarnada, no tempo e no espaço, com outros. E a existência, como a vida, não pode ser conceitualizada porque sempre escapa a qualquer determinação, porque é, nela mesma, um excesso, um transbordamento, porque é nela mesma possibilidade, criação, invenção, acontecimento. (BONDIA, 2014, p. 43)7

Escapar-se-ia, por meio dessa guinada proposta por Larrosa, dos pares responsáveis por construírem um espaço regulador de nossa experiência no campo educacional. Essa percepção também está presente nas discussões empreendidas por Julio Groppa Aquino.

Para Aquino (2015), a seara educacional lida há muito com destinações humanitárias e universais expressas em palavras de ordens tais quais: “a construção da cidadania; o fomento do espírito crítico; a edificação da cultura democrática; o cultivo do respeito às diferenças etc.” (p. 353). Funcionando como horizontes prescritivos, as palavras de ordem originaram aquilo denominado pelo autor de metafísica pedagógica, um campo transcendente responsável por colocar limites ao campo de experiências dos educadores e pesquisadores em educação. Diante desse campo metafísico, limitar-nos-íamos a concordar ou discordar com as palavras de ordem vigentes: ou se aceita, por exemplo, que o papel da escola é formar cidadãos críticos ou se recusa essa premissa. Restamos reféns, ademais, de duas forças de ordem marcadamente metafísica presentes na área. A primeira, defensora do progresso educacional e de caráter cientificista, prega a necessidade de, por meio da implementação de inovações técnicas, “arrancar das trevas a horda de indivíduos ignorantes” (AQUINO, 2015, p. 357). Alinha-se, portanto, ao par “ciência-técnica” apresentado por Larrosa (BONDIA, 2002). A outra, por sua vez, de acento mais pragmático, dialogando com o par “teoria-prática”, procura convocar:

os educadores por meio de comandos não mais amparados cientificamente, nem enredados no sonho de autoatualização, mas engajados à forja de um suposto bem comum educativo que a todos abarcaria. Para seus signatários, trata-se de conduzir as massas educacionais - agora não mais ignorantes, mas ingênuos e úteis - a um estado de consciência tal que elas pudessem se insurgir, por conta própria, contra as arbitrariedades desse mundo. (AQUINO, 2015, p. 357)

Ambas as forças atuam na domesticação do pensamento, ao elegerem os objetos passíveis de serem ou não pensados, bem como os horizontes de problematização. Instauram uma “cultura metafísica no seio das práticas educacionais” (AQUINO, 2015, p. 359) e demandam dos educadores e pesquisadores modos de agir e pensar frente aos problemas educacionais.

Corroborando essa leitura, outra autora, Cintya Regina Ribeiro (2011), argumentou que essa cultura metafísica teria sido a responsável por produzir um consenso investigativo no campo. Fazer pesquisa em educação, para aqueles inebriados por uma ou outra das forças descritas acima, implicaria discutir certas temáticas - currículo/conhecimento, metodologia de ensino, sujeito-aluno, sujeito-professor, relação professor-aluno, didática, ensino, aprendizagem, gestão etc. - a luz de certas metodologias ou a partir de certos problemas já configurados socialmente. Não há espaço, portanto, para outra experiência que não aquela configurada de véspera.

Os autores supramencionados, assim, parecem concordar com o prognóstico de que vigoraria no campo educacional uma noção de experiência limitadora, responsável por condicionar as maneiras de pensar a educação e instaurar essa estranha sensação de que “quase nada nos acontece” (BONDIA, 2002, p. 21). Sensação acentuada na sociedade da comunicação nascente, responsável por colocar alguns entraves ou criar alguns inimigos à experiência vital. Na visão de Larrosa (BONDIA, 2002) seriam quatro os inimigos atuais da experiência, responsáveis por transmutá-la em algo raro. O primeiro inimigo, o mais importante, é o excesso de informação. Sobre este, o autor argumenta:

O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, cada vez sabe mais, cada vez está mais bem informado, porém, com essa obsessão pela informação e pelo saber (mas não pelo saber no sentido de sabedoria, mas no sentido de estar informado), o que consegue é que nada lhe aconteça. (BONDIA, 2002, p. 20)

Esse inimigo, na concepção do autor, é um dos mais perigosos para a educação. Em uma sociedade da informação, o saber não diz mais respeito à aprendizagem, mas sim ao estar informado. Gera-se um acúmulo de fatos irrelevante, de pouca monta formativa, e a experiência, compreendida por Larrossa (BONDIA, 2014) como um processo formativo, torna-se algo impossível. Em consonância com esse primeiro inimigo, surge o segundo: o excesso de opinião. É natural que, em uma sociedade da informação, a opinião torne-se um imperativo social. Necessitamos ter uma opinião sobre tudo, todos devem opinar sobre os assuntos em pauta. Nesse processo, os indivíduos são compreendidos como o “suporte informado da opinião individual” (BONDIA, 2002, p. 20), agentes passivos diante do fluxo constante de informação que os atravessa e sobra as quais devem emitir opiniões, normalmente já formatas de véspera também8.

A necessidade de se informar e opinar, demandas constantes da sociedade da informação na qual vivemos, produz o terceiro grande inimigo da experiência: a falta de tempo. A voracidade das notícias, atualizadas constantemente, e a obrigação de nos mantermos informados sobre os últimos acontecimentos, impede a construção de cadeias significativas entre os fatos. Larrosa (BONDIA, 2002) apresenta então o grande paradoxo produzido pela falta de tempo, embora cada vez mais disponhamos de acesso a acontecimentos os mais diversos e possamos acompanhá-los em tempo real, por conta da rede mundial de computadores, não conseguimos nos conectar com os mesmos a contento, pois o imperativo de nos mantermos sempre informados nos coloca uma demanda infinita que jamais pode ser saciada e, por esse motivo, não nos sobra tempo para experienciarmos o noticiado. Falta-nos tempo, em suma, para experimentarmos a notícia, experimentarmos o mundo. E isso, prossegue o autor, ocorre inclusive nas escolas9. Embora passemos cada vez mais tempo nas instituições escolares, não dispomos de tempo para vivenciarmos experimentações formadoras. Larrosa, nesse sentido, argumenta:

Cada vez estamos mais tempo na escola (e a universidade e os cursos de formação do professorado são parte da escola), mas cada vez temos menos tempo. Esse sujeito da formação permanente e acelerada, da constante atualização, da reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o tempo como um valor ou uma mercadoria, um sujeito que não pode perder tempo, que tem sempre de aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer coisa, que tem de seguir o passo veloz do que se passa, que não pode ficar para atrás, por isso mesmo, por essa mesma obsessão por seguir o curso acelerado do tempo, este sujeito já não tem tempo. E na escola o currículo se organiza em pacotes cada vez mais numerosos e cada vez mais curtos. Com isso, também em educação estamos sempre acelerados e nada nos acontece. (BONDIA, 2002, p. 23)

Por fim, o último inimigo da experiência decorre do excesso de trabalho. Como fica claro no excerto acima, o imperativo da informação ata-nos a uma série de obrigações e precisamos sempre parecer ativos, sempre em busca de novas formações e de novas opiniões. Sempre em busca, pode-se dizer, de novas experiências, experiências vendidas em pacotes de viagem, em cursos profissionalizantes e assim por diante. Experiências pautadas em um saber construído de véspera, experiências pouco vitais.

Percebemos, no pensamento do educador espanhol, a emergência de uma temática afeita, de algum modo, ao problema sentido por Deleuze (2008) e Deleuze-Guattari (1992) quando da aurora da modernidade: o problema da experiência; uma experiência não mais regulada por valores transcendentes, mas pautada em uma crença imanente nesse mundo, em suas potencialidades inventivas. Procuraremos, adiante, aproximar a ideia de crença em Deleuze e Deleuze-Guattari do conceito de experimentação, buscando abrir um campo de diálogo com o problema da experiência aqui exposto. Antes, porém, será preciso realizar um pequeno excurso, resgatando as discussões sobre fabulação em Deleuze e Deleuze-Guattari. Por qual razão? O lastro vitalista da experimentação, defendemos, reside na sua potência inventiva, potência capaz de abrir o nosso espaço de experiência para a emergência de novos modos de existência. Tal potência, contudo, emerge quando da criação de um plano de imanência, para o qual é necessário tanto a crença quanto certa espécie de empirismo. Esse espaço, dito imanente, surge quando se modifica o problema filosófico, quando abdicamos dos falsos problemas impostos por certa cultura filosófica transcendente. Ora, essa abdicação passa por um movimento complexo, no qual a vida em toda sua potência criativa ganha fôlego em detrimento das falsas categorias da inteligência. Esse movimento, notou certa feita Deleuze (2012), expressou-se de maneira mais forte no pensamento de Henri Bergson, em sua discussão sobre uma chamada função fabuladora. Tal função, resgatada por Deleuze em alguns momentos de sua obra, será a base da crença deleuziana nesse mundo e norteará sua tentativa de experimentar o mundo de uma maneira outra.

Fabular outros possíveis: um diálogo com Bergson

O conceito de fabulação em Deleuze e Deleuze-Guattari, como nota Eduardo Pellejero (2008)10, deve muito ao pensamento de Henri Bergson. O autor de As Duas Fontes da Moral e da Religião há muito definiu a fabulação como uma espécie de habilidade inata aos seres vivos, utilizada no mais das vezes para garantir, “à falta de experiência real, uma contrafação de experiência” (BERGSON, 1978, p. 91). Espécie de “alucinação nascente”, a fabulação procura “contrariar o juízo e o raciocínio, que são as faculdades propriamente intelectuais” (BERGSON, 1978, p. 90) e propicia uma ficção capaz de imitar a percepção e modificar a ação dos agentes. Trata-se, pois, de um simulacro de experiência. Qual a razão de ser desse simulacro? Ora, embora a natureza tenha criado seres inteligentes, argumenta Bergson (1978), ela não os dotou de conhecimentos concretos sobre o mundo, sobre a vida. Tais conhecimentos deveriam advir das experimentações às quais os seres se veem envolvidos; estas experimentações, porém, podem resultar mortíferas e, para colocar em segurança os experimentadores, a fabulação ofereceria uma espécie de “experiência sistematicamente falsa” capaz de frear “os ímpetos da inteligência” (BERGSON, 1978, p. 91) quando estes se mostram danosos. Funcionando como uma espécie de “instinto virtual”, a fabulação ergue-se diante da inteligência e procura detê-la “no momento em que ela vá muito longe nas consequências que tire da experiência verdadeira” (BERGSON, 1978, p. 91). A fabulação, portanto, coloca-se ao lado da vida e em contraposição à inteligência.

Em A Evolução Criadora, Bergson (2010) atentara para o papel pernicioso passível de ser interpretado pela inteligência. Originada visando permitir ao homem sua adaptação ao meio, a inteligência seria incapaz de apreender a vida em sua complexidade, em seu movimento próprio. Não obstante essa sua incapacidade, a inteligência impõe suas demandas para a vida, acreditando que a experiência “caminha atrás dela e invariavelmente lhe dará razão” (BERGSON, 2010, p. 8). Bergson, partindo desse pressuposto, questiona:

O nosso pensamento lógico, sob a forma puramente lógica, é incapaz de representar a verdadeira natureza da vida, o significado profundo do movimento evolutivo. Criado pela vida, em determinadas circunstâncias, para agir sobre determinadas coisas, como o pensamento apreenderia a vida, do qual não é senão uma emanação ou um aspecto? (BERGSON, 2010, p. 8)

A inteligência, em Bergson, possui um fim instrumental apenas, qual seja: permitir aos homens agir sobre o seu meio, e seria incapaz de apreender e/ou explicar a vida. O homem, por ser tratar de um ser preocupado com sua sobrevivência mais do que qualquer outra coisa, acredita que os bons resultados obtidos pela inteligência na preservação de sua espécie, garantir-lhe-iam o poder de explicar e legislar sobre o vivido. Esse poder, contudo, acabou gerando falsas noções, imbuídas de uma “metafísica estéril” (BERGSON, 1978, p. 96), incapazes de nos permitir experienciar nossa existência a contento. Bergson, assim, defende a necessidade de recusarmos alguns pressupostos científicos, cria dileta da inteligência, sobre a vida, bem como passarmos a buscar apreender esta em sua realidade própria, adotando uma outra forma de conhecê-la e experimentá-la. Essa outra forma, Bergson denominará de intuição e irá contrapô-la à análise, modo de conhecimento típico da ciência. Sobre ambos os modos de conhecimento, diz-nos o autor:

A primeira [análise] implica que rodeemos a coisa; a segunda, que entremos nela. A primeira depende do ponto de vista em que nos colocamos e dos símbolos pelos quais nos exprimimos. A segunda [intuição] não se prende a nenhum ponto de vista e não se apoia em nenhum símbolo. (1989, p. 133)

Enquanto a análise proporcionaria um saber relativo, uma vez que pressupõe uma perspectiva apartada do objeto de análise - metafísica, portanto -; a intuição buscaria acessar as forças constitutivas dos objetos de modo imanente. A intuição, como a define Bergson (1978), permitiria acessarmos os reais movimentos da vida, aquilo denominado pelo autor de impulso vital, por meio da criação de um olhar imanente para as coisas do mundo. A intuição, nesse sentido, não se coadunaria com a inteligência, responsável por criar o modo de conhecimento chamado de análise, mas sim com a fabulação, aproximando-se de uma “alucinação nascente” que não cessa e acompanha seu objeto em ato. Uma outra forma de experimentar o real, pois.

Deleuze (2012), em Bergsonismo, reconhece na intuição bergsoniana um dos maiores métodos filosóficos11. Único método, prossegue, capaz de esvaecer os falsos problemas impostos pela cultura, ardil maior da inteligência12, e permitir a invenção de verdadeiras problemáticas. Interessa notar como, a partir de Bergson tal qual lido por Deleuze (2012), a verdade não resta mais atrelada ao preconceito “infantil e escolar” responsável por delegar problemas sobre os quais nada resta senão “descobrir-lhes a solução” e, assim, nos manter “em uma espécie de escravidão” (DELEUZE, 2012, p. 11)13. Essa delegação de problemas prontos, passados adiante pelos professores e outras figuras sociais, expressaria o jogo próprio da inteligência imposto ao campo social por meio da cultura. Ora, para Bergson (2010), a inteligência buscaria adaptar o homem ao seu meio e, por esse motivo, os problemas por ela apresentados possuiriam sempre um fim utilitário, não poderiam jamais restarem destituídos de solução ou função e ditariam aquilo que podemos ou não pensar e fazer em prol da preservação da espécie. Tanto ciência quanto filosofia, nesse diapasão, não procurariam descobrir novas sendas de pensamento e problematização, não permitiriam o livre desenvolvimento do pensamento, antes debruçar-se-iam sobre questões vistas como de maior importância; todas elas formatadas de véspera e preocupadas em promover o progresso da espécie humana ou coisa que o valha. Questões de ordem marcadamente metafísica, pouco capazes de explicarem algo sobre a existência concreta dos seres singulares ou sobre o fluxo vital que os gerou. A vida ultrapassaria esse vão utilitarismo, não restaria presa a qualquer determinação e procuraria apenas criar livremente14.

O acesso a esse movimento vital criador, portanto, exige o abandono do papel de meros estudantes, esse papel servil no qual somos obrigados a responder sim ou não para problemas impostos por outrem, e a busca por uma autonomia criativa em nossa problematização. Necessitamos, pois, aprender a construir os nossos próprios problemas. Sobre essa questão, Deleuze sentencia:

Se é relativamente fácil definir o verdadeiro e o falso em relação às soluções, parece muito mais difícil, uma vez colocado o problema, dizer em que consiste o verdadeiro e o falso, quando aplicados à própria colocação de problemas. A esse respeito, muitos filósofos parecem cair em um círculo: conscientes da necessidade de aplicar a prova do verdadeiro e do falso aos próprios problemas, para além das soluções, contentam-se eles em definir a verdade ou a falsidade de um problema pela sua possibilidade ou impossibilidade de receber uma solução. (DELEUZE, 2012, p. 12)

Percebe-se, assim, como a verdade gradativamente deixa de ser associada a um jogo de perguntas e respostas, passando a se relacionar com um processo criativo. A autonomia intelectual, doravante, diz respeito à possibilidade de criarmos nossas próprias problematizações. Ora, disso segue a importância da função fabuladora bergsoniana. Fabular outras questões, inventar problemas outros em um diálogo imanente com os fluxos intensivos da vida, apenas é possível por meio dessa outra forma de conhecimento denominada de intuição, filha dileta da fabulação. A intuição reabriria o campo do pensável, por conseguinte do vivível, à outras experiências, outras experimentações. A experiência, desse modo, não mais seria norteada por problemas modelados de véspera, não mais visaria fornecer dados capazes de condicionarem nossas vivências, antes visaria experimentar a si própria. A experiência, destarte, passa a ser imanente algo imanente, deixando de responder a qualquer condicionante exterior.

Deleuze (2012) enfatiza o modo como a intuição possibilita-nos ultrapassar a experiência vulgar e encontrarmos aquilo denominado pelo autor de Bergsonismo de condições de experiência. Tratam-se de condições particulares, jamais atreladas a uma experiência universal. Para Bergson (1978), bem como para o projeto empírico transcendental de Deleuze (2006), não é possível falarmos em uma experiência geral, em condicionantes universais, uma vez que isso implicaria cessar o fluxo vital da experiência em uma fórmula estática. Existiriam, antes, articulações do real. Essas articulações, naturais à vida, seriam sempre singulares e tenderiam a ser caladas pelas análises filosóficas clássicas, mais preocupadas em apreender conceitualmente as condições para qualquer experiência geral - tal qual Immanuel Kant - do que em seguir os movimentos criadores da própria vida. Em Bergson, podemos notar, Deleuze encontra a base para o seu projeto maior, exposto com detalhes em Diferença e Repetição. Ali, lemos:

As questões e os problemas não são atos especulativos que, por esta razão, permaneceriam totalmente provisórios e marcariam a ignorância momentânea de um sujeito empírico. São atos vivos, investindo as objetividades especiais do inconsciente, destinados a sobreviver ao estado provisório e parcial que, ao contrário, afeta as respostas e as soluções. (DELEUZE, 2006, p. 159-161)

Os verdadeiros problemas, defende Deleuze (2006), não decorrem da experiência empírica de sujeitos individuais, condicionadas por universais ou problemas culturalmente impostos, mas assemelham-se a atos vivos singulares incapazes de serem calados em um sistema ou algo similar. Dizem respeito, pois, a movimentos intensivos ímpares, movimentos que, para serem apreendidos em sua complexidade, necessitam da intuição, da fabulação. Tais movimento ultrapassam em muito o espaço da inteligência, visto que esta preocupa-se apenas com a sobrevivência da espécie humana, e remetem ao movimento evolutivo da própria vida, movimento criador expresso também no mundo mineral, animal etc. Ciente dessa questão maior do pensamento bergsoniano, do qual Deleuze é devedor, o autor de Bergsonismo compreende a fabulação como um modo de abrirmo-nos “ao inumano e ao sobre-humano (durações inferiores ou superiores a nossa...), ultrapassar a condição humana” (DELEUZE, 2012, p. 22). Fabular, portanto, implica ultrapassar o espaço empírico, o campo da experiência vulgar erigido pela inteligência e pela cultura, e nos conduzir a uma dimensão vital do problema, dimensão na qual nada resta senão experimentar inventar problemas outros.

Sobre a dimensão política dessa ideia de fabulação deleuziana, importante e inédita conforme argumenta Pellejero (2008), podemos reconhece-la nas experimentações empíricas do cinema produzido no dito terceiro mundo. Em Cinema: Imagem-movimento, por exemplo, o filósofo francês diz encontrar nas películas de Glauber Rocha um impasse: “o diretor de cinema se vê diante de um povo duplamente colonizado, argumenta Deleuze, do ponto de vista da cultura: colonizado por histórias vindas de outros lugares, mas também por seus próprios mitos, que se tornaram entidades impessoais a serviço do colonizador” (DELEUZE, 2018, p. 321). Romper com a dominação cultural, com o jogo de verdade e mentira, torna-se também uma função do cinema que, impelido a pensar outras experiências que não àquelas impostas aos colonizados, vê-se imbuído da missão de fabular. Para Deleuze (2018, p. 321), a fabulação é uma “palavra em ato, um ato de fala” capaz de produzir enunciados coletivos passíveis de expressar aquilo que ainda não existe, o impensável que só pode ser pensado15. Aquele mesmo impensável, percebe-se, regedor da fórmula deleuziana “um pouco de possível, senão eu sufoco...”, atrelado a potência distintiva do pensamento. A fabulação, por conseguinte, seria a expressão máxima, condição necessária, da crença nesse mundo proposta pelo filósofo francês. Confundir-se-ia, assim, com a própria experimentação. Experimentar, doravante, seria fabular. Mas, como fabular outros possíveis? Acreditando nesse mundo, afirmamos.

Crer nesse mundo, experimentar

A fabulação, conforme leitura apresentada nas páginas precedentes, concede certo lastro político-vital ao pensamento de Deleuze e Deleuze-Guattari, mormente nas discussões sobre aquelas experimentações estéticas interessadas em ultrapassar certos condicionantes expressivos - o cinema do terceiro mundo, por exemplo. Roberto Machado (2009) aponta a necessidade de interpretarmos a função fabuladora em Deleuze como atrelada à busca por novos modos de expressão, mais radicais, e passíveis de criarem uma fissura no campo representacional. Para Machado, a fabulação expressaria o modo como “o escritor decompõe, desarticula, desorganiza sua língua materna para inventar uma nova língua, uma língua marcada por um processo de desterritorialização” (MACHADO, 2009, p. 207). Tal desterritorialização, marcadamente política, permitiria ao escrevente, por meio da linguagem, vislumbrar um mundo outro. Realizando, assim, o prognóstico rimbaudiano do escritor como um vidente. A escrita, nesse diapasão, configura-se tanto como uma crítica quanto como uma clínica, permitindo àquele que escreve “captar forças, tornar sensíveis forças invisíveis e inaudíveis, e libertar a vida de uma prisão, traçar linhas de fuga” (MACHADO, 2009, p. 212). Fabular, defende Machado (2009), implica construir um estilo16. O mesmo caminho argumentativo pode ser vislumbrado em Eduardo Pellejero (2008), autor para quem a fabulação seria um modo de criar um plano de expressão revolucionário.

Ambas as leituras, não obstante privilegiarem o elemento vitalista da fabulação - sempre associada a possibilidade de criação de um povo por vir ou de uma língua menor capaz de abrir a vida para outros possíveis -, pouco dizem sobre o caráter empirista desse conceito. A fabulação, defendemos, dialoga de maneira imediata com a noção de empirismo transcendental forjada por Deleuze (2006) e, por meio desse diálogo, relaciona-se com a crença nesse mundo deleuziana e deleuzo-guattariana. Por qual razão afirmar que a fabulação opera uma espécie de empirismo? Deleuze (2016) não titubeia em afirmar que o objetivo de seu empirismo transcendental é possibilitar uma experiência apta a experimentar a si própria, por meio da criação de um campo de experimentação no qual seria possível acessar novas multiplicidades vitais (p. 339). Por não restar refém de qualquer experiência pregressa, a experimentação não preexiste ao campo empírico experimentado, antes deve construí-lo, inventá-lo. Empirismo, pois, como condição da criação, da fabulação. Como é possível se abster dos elementos empíricos ou dos condicionantes históricos?, pode-se indagar. Uma resposta possível pode advir do diálogo travado com a imagem do pintor diante da tela em branco, resgatada por Deleuze ao discutir a obra de Francis Bacon. Diz-nos o filósofo francês:

O pintor tem várias coisas na cabeça, ao seu redor ou no ateliê. Ora, tudo o que tem na cabeça ou ao seu redor já está na tela, mais ou menos virtualmente, mais ou menos atualmente, antes que ele comece o trabalho. Tudo isso está presente na tela, sob a forma de imagens, atuais ou virtuais. De tal forma que o pintor não tem de preencher uma superfície em branco, mas sim esvaziá-la, desobstruí-la, limpá-la. Portanto, ele não pinta para reproduzir na tela um objeto que funciona como modelo: ele pinta sobre imagens que já estão lá, para produzir uma tela cujo funcionamento subverta as relações do modelo com a cópia. Em suma, o que é preciso definir são todos esses “dados” que estão na tela antes que o trabalho do pintor comece. E, entre esses dados, quais são um obstáculo, quais são uma ajuda ou mesmo os efeitos de um trabalho preparatório. (DELEUZE, 2009, p. 91)

A criação, nesse caso, não ignora o campo empírico, os condicionantes históricos ou similares, mas rearranja-os ou, retomando a discussão sobre estilo privilegiada por Machado (2009), acaba por fazê-los variar. Esse rearranjo, em muitos momentos, produzirá um rompimento ou uma subversão do mundo. Produzirá mundos outros, portanto, capazes de expressar o não vivido, o não pensado, o não experimentado etc. Eis, pois, o estilo, compreendido como um procedimento de variação contínua. Essa variação não passas da expressão maior do empirismo proposto por Deleuze (2006), parte-se do campo empírico como um condicionante negativo que deve ser ultrapassado em direção a um espaço que, inventando a si próprio, inventa também experiências outras, imanentes.

O empirismo transcendental deleuziano e deleuzo-guattariano, pode-se afirmar, possui com a fabulação a mesma relação que a intuição bergsoniana. Ambas as noções expressam tanto um modo de ultrapassar qualquer experiência universal, qualquer condicionante empírico, quanto uma busca por um campo de forças indomadas, forças capazes de permitir à vida criar outros possíveis. Ambas as noções, por esse motivo, partilham daquela dita crença nesse mundo, partilham a confiança na possibilidade de tomá-lo a contrapelo, rearranjando-o ou algo similar, para produzir algo totalmente diferente.

A crença deleuziana e deleuzo-guattariana, além disso, apresentam uma aposta no contingente, confiam na potência passível de ser extraída dos encontros os mais diversos. Em Diferença e Repetição, Deleuze (2006) defendeu que o pensamento não é algo natural, sendo antes o resultado de uma violência produzida quando do encontro com um signo que nos força a pensar. É a contingência de um encontro que nos força a pensar, não uma predisposição inata ou um amor pela verdade (DELEUZE, 2006). Para vivenciarmos um tal encontro, porém, necessitamos aprender a ultrapassar os universais transcendentes responsáveis por mediar nossa relação com o mundo, precisamos ressignificar e rearranjar o mundo. Necessitamos, pois, do empirismo transcendental, apenas ele permitirá um encontro não mediado e, para os fins que interessam Deleuze, possibilitará também a criação de novos conceitos capazes de expressar modos de existência outros.

É este o segredo do empirismo. De modo algum é o empirismo uma reação contra os conceitos, nem um simples apelo à experiência vivida. Ao contrário, ele empreende a mais louca criação de conceitos, uma criação jamais vista ou ouvida. O empirismo é o misticismo do conceito e seu matematismo. Ele trata o conceito como o objeto de um encontro, como um aqui-agora, ou melhor, como um Erewhon, de onde saem inesgotáveis os “aqui” e os “agora” sempre novos, diversamente distribuídos. Só o empirista pode dizer: os conceitos são as próprias coisas, mas as coisas em estados livre e selvagem, para além dos “predicados antropológicos”. Eu faço, refaço e desfaço meus conceitos a partir de um horizonte móvel, de um centro sempre descentrado, de uma periferia sempre deslocada que os repete e os diferencia. Cabe à Filosofia moderna ultrapassar a alternativa temporal-intemporal, histórico-eterno, particular-unversal. Graças à Nietzsche, descobrimos o intempestivo como sendo mais profundo que o tempo e a eternidade: a Filosofia não é Filosofia da história, nem Filosofia do eterno, mas intempestiva, sempre e só intempestiva, isto é, “contra este tempo, a favor, e assim o espero, de um tempo por vir” (DELEUZE, 2006, p. 17, grifos nossos)

A criação deleuziana, pode-se perceber, retoma o mundo como esse horizonte móvel com o qual os conceitos brincam experimentando. Acreditar nesse mundo, para Deleuze e Deleuze-Guattari, significa nada menos do que uma abertura aos encontros não mediados, encontros capazes de gerar conceitos aptos a forçar o pensamento a pensar o impensável (DELEUZE, 2006). Cada conceito aponta para um modo de existência singular, modo de existência não conformado ao real e capaz de produzir uma fuga, um espaço de respiro, em relação ao espaço empírico. Cada conceito, portanto, traça uma linha de fuga17, produz uma ruptura capaz de nos conduzir para outras espécies de experiência, possibilitando a experimentação-vital tão almejada por Deleuze e Deleuze-Guattari:

Sobre as linhas de fuga, só pode haver uma coisa, a experimentação-vida. Nada se sabe antecipadamente, porque não há futuro nem passado. “Eu, eis como sou”, tudo isso já acabou. Já não há fantasma, mas apenas programas de vida que se modificam à medida que se fazem, traídos à medida que se aprofundam, como margens que se desdobram ou canais que se distribuem para que corra um fluxo. Já só há explorações em que se reencontra sempre a oeste aquilo que se pensava estar a este, órgãos invertidos. Cada linha de desencadeamento é uma linha de pudor, por oposição à porcaria laboriosa, pontual, encadeada, dos escritores franceses. Já não há o infinito desfile das interpretações sempre um pouco sujas, mas antes processos finitos de experimentação, protocolos de experiência. Kleist e Kafka passavam o tempo a fazer programas de vida: os programas não são manifestos, e ainda menos fantasmas, mas meios de orientação para conduzir uma experimentação que ultrapassa as nossas capacidades de previsão. (DELEUZE; PARNET, 2004, p. 64)

As linhas de fuga, seguindo tanto a leitura de Machado (2009) quanto a de Pellejero (2008), carecem de um novo meio de expressão, uma nova forma de apreender o mundo. Não negamos que, para fabularmos, necessitamos de uma nova linguagem, apenas insistimos na necessidade de que essa nova linguagem deve passar por uma certa ideia de empirismo e partilhar de uma crença nas potências inventivas do mundo. É preciso, em resumo, a tudo experimentar, mas abdicando de qualquer apriorismo para tanto. Só assim poderemos abrir nosso campo de experiência para outras vivências, só assim poderemos nos entregar aos problemas colocados pela e na imanência.

Considerações finais

Larrosa (BONDIA, 2014), receoso dos caminhos seguidos pelo pensamento educacional contemporâneo, defende a necessidade de construirmos uma outra linguagem em Educação. A linguagem educacional, defende o autor, estaria empobrecida pelos ditames dos pares “ciência-técnica” e “teoria-prática”, teria sido vitimada pela doxa pedagógica da qual tais pares bebem.

Por um lado, diz-nos Larrosa, a língua em que se anuncia o que nos dizem que existe, o que nos dizem que é: essa língua em que parece que é a realidade aquela que fala... embora já saibamos que se trata da língua que falam os fabricantes, os donos e os vendedores da realidade. Por outro lado, a língua em que se enuncia o que nos dizem que deveria haver, o que nos dizem que deveria ser: essa língua das possibilidades, das finalidades, das intenções, dos ideais, das esperanças... embora já saibamos que se trata da língua que falam os que produzem e vendem ideias, os proprietários do futuro. A linguagem da realidade e a linguagem do futuro. (BONDIA, 2014, p. 62-63)

Entre ambas as linguagens, uma voltada para a essência do real e outra para um mundo pregresso, nada resta. Não há experiência possível em nenhuma dessas linguagens, prossegue Larrosa. A experiência, na concepção do autor espanhol, não pode ser antecipada, como almejam os interessados em falar a linguagem do real, e tampouco pode ser prevista, como desejam os fluentes na linguagem do futuro. Caso queiramos vivenciar as experiências, necessitamos criar uma outra linguagem. Como construir essa outra linguagem? Talvez dos escombros das linguagens precedentes, por meio de uma experimentação radical daquilo apresentado por elas. Ou, pelo contrário, abdicando de todas essas linguagens, tentando limpar a tela em branco dos clichês tal qual o pintor, e procurando emergir no campo educacional sem qualquer mediação. Experimentação, pois. Para experimentar, precisamos aprender a nos reapropriar da educação, reapropriar como outros se reapropriaram do mundo para construir seus modos de expressão. Convém voltar a acreditar na educação, pois. Não em seus potenciais emancipadores, como querem os adeptos do par “teoria-prática”, tampouco em sua capacidade de ensinar qualquer coisa a qualquer um, como insistem os entusiastas do par “ciência-técnica”. Acreditar em uma educação que ainda está por ser inventada. Por esse motivo, insistimos, as discussões deleuzianas e deleuzo-guattarianas sobre a crença nesse mundo são importantes, pois permitem retornarmos a certo empirismo capaz de nos permitir um gesto radical há muito esquecido: fabular.

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1Deleuze e Guattari compreendem os personagens conceituais como inerentes a toda e qualquer filosofia, são eles quem expõem os conceitos de um determinado autor e expressam tanto o plano de imanência quanto os problemas mobilizados por um filósofo. Eles não personificam um filósofo, não são tipos psicossociais. Sobre eles, dizem Deleuze e Guattari: “o personagem conceitual não é o representante de um filósofo, é mesmo o contrário: o filósofo é somente o invólucro de seu principal personagem conceitual e de todos os outros, que são os intercessores, os verdadeiros sujeitos de sua filosofia” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 86). Para uma discussão mais aprofundada sobre as personagens, sobretudo em relação ao seu lastro expressivo, remetemos o leitor ao livro de Fernando Pacheco (2016), autor defensor da tese de que por meio dos personagens conceituais encontramos o ponto de contato da filosofia deleuziana com a não-filosofia, mormente com o campo artístico. Os personagens conceituais, em outros termos, seriam uma ferramenta literária transportada para o coração da filosofia.

2Em Imanência: uma vida... Deleuze denominará essa vida de uma vida, aquela passível de ser considerada como a pura imanência. Em seu texto, o filósofo assim a denomina: “Um vida está em toda parte, em todos os momentos que atravessa este ou aquele sujeito vivo e aos quais certos objetos vividos dão a medida: vida imanente levando consigo os acontecimentos ou singularidades que nada fazem senão atualizar-se nos sujeitos e nos objetos. Esta vida indefinida, ela mesma não tem momentos, por mais próximos que estejam uns dos outros, mas apenas entre-tempos, entre-momentos” (DELEUZE, 2016, p. 410). Abordaremos adiante essa questão, relacionando-a com a questão da crença nesse mundo deleuziana e deleuzo-guattariana bem como com a noção bergsoniana de função fabuladora.

3David Lapoujade, em Deleuze: movimentos aberrantes, defende a tese de que o grande problema do filósofo francês é justamente a lógica desses movimentos intensivos que ultrapassam qualquer vivente e qualquer vivido. Movimentos capazes de nos aproximar de formas de vida inumanas, minerais ou animais, propiciando uma experiência outra. Argumenta, então, o comentador: “Determinar o problema consiste, primeiro, em estabelecer o próprio fato dos movimentos aberrantes. Quid facti? Tal questão se coloca tanto mais se admitirmos, com Deleuze, que esses movimentos aberrantes ultrapassam qualquer vivência, superam qualquer experiência. Com efeito, acaso Deleuze não afirma que os movimentos aberrantes nos transportam para o que já de impensável no pensamento, de invivível na vida, de imemorial na memória, constituindo o limite ou o ‘objeto transcendental’ de cada faculdade? É isso que eles têm de propriamente aberrante: excedem o exercício empírico de cada faculdade e forçam cada uma delas a se superar rumo a um objeto que a concerne exclusivamente, mas o qual ela só atinge no limite de si mesma” (LAPOUJADE, 2015, p. 19).

4É curioso como a noção de crença deleuzo-guattariana evocará a noção deleuziana de empirismo transcendental. François Zourabichvili (2009) argumenta que tal conceito diz respeito a uma busca pela experimentação de uma experiência não condicionada a nenhum a priori. Resume assim o empirismo transcendental deleuziano: “a descoberta da experiência supõe ela própria uma experiência no sentido estrito: não o exercício ordinário ou empírico de uma faculdade, pois os dados do vivido empírico não informam o pensamento sobre o que ele pode, mas essa mesma faculdade levada a seu limite, confrontada com aquilo que a solicita em sua potência exclusiva e própria. (...) Empirismo transcendental significa em seguida que as condições nunca são genéricas, mas declinam-se segundo os casos: daí o enunciado capital segundo o qual elas não poderiam ser maiores do que aquilo que elas condicionam” (ZOURABICHVILI, 2009, p. 55-56). Essa é também a concepção de Anne Sauvagnargues (2009), para quem o empirismo transcendental desloca toda as formulações ocidentais acerca da experiência. Não será nosso intento discorrer sobre o empirismo transcendental deleuziano, tal discussão será evocada amiúde para justificar alguns pontos da crença proposta por Deleuze.

5Coadunando-se, assim, com a defesa da Filosofia como criação e não recognição ou reflexão, tal qual defendido em O que é a Filosofia? (DELEUZE; GUATTARI, 1992).

6É curioso notar como essa afirmação aparece em autores de diapasões teóricos totalmente distintos daquele de Larrosa, como é o caso de Demerval Saviani. Em O pensamento pedagógico brasileiro: da aspiração à ciência à ciência sob suspeição, Saviani (2007) reconhece o quanto a pedagogia brasileira se deixou embalar pelas promessas de um cientificismo exasperado, capaz de ser questionado e balizado apenas por uma veia crítica que por vezes acaba sendo ignorada pelos pesquisadores da área. Em seu texto, podemos reconhecer o embate travado entre ambas as perspectivas notadas por Larrosa (2002).

7Empreendimento busca realizar Deleuze que, em consonância com o pensamento de Friedrich Nietzsche, procura elaborar um pensamento que leva à vida para além dos limites a que foi condicionada. Em Nietzsche e a Filosofia, Deleuze argumenta: “De todo modo a razão ora nos dissuade ora nos proíbe de ultrapassar certos limites, porque é inútil (o conhecimento está aí para prever), porque seria mau (a vida está ai para ser virtuosa), porque é impossível (nada há para ser visto nem para ser pensado atrás do verdadeiro). Mas então a crítica, concebida como crítica do próprio conhecimento, não exprimiria novas forças capazes de dar um outro sentido ao pensamento? Um pensamento que iria até o fim do que a vida pode, um pensamento que conduziria a vida até o fim do que ela pode. Em lugar de um conhecimento que se opõe a vida, um pensamento que afirme a vida. A vida seria a força ativa do pensamento, e o pensamento seria o poder afirmativo da vida. Ambos iriam no mesmo sentido, encadeando-se e quebrando os limites, seguindo-se passo a passo um ao outro, no esforço de uma criação inaudita. Pensar significaria descobrir, inventar novas possibilidades de vida” (DELEUZE, 1976, p. 83).

8Larrosa, ao apontar os inimigos da educação, aproxima-se da denúncia de Deleuze e Guattari (1992) sobre o papel danoso da comunicação em nossa sociedade. Os autores de O que é a Filosofia? denunciam a comunicação como uma das principais inimigas da filosofia e, por conseguinte, do pensamento. Em sua obra, lemos: “não nos falta comunicação, ao contrário, nós temos comunicação demais, falta-nos criação. Falta-nos resistência ao presente. A criação de conceitos faz apelo por si mesma a uma forma futura, invoca uma nova terra e um povo que não existe ainda” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 140). O conceito, enquanto criação e não reflexão sobre o já existente, implicaria uma experiência de um não condicionado, uma experimentação a-histórica por conseguinte.

9Diagnóstico similar é apresentado por Jan Masschelein e Maarten Simons (2014), autores para quem a escola restou refém de uma ideia utilitária de tempo. Para os autores, deve-se retornar uma concepção de escola como espaço na qual as lógicas da produção são suspensas em prol do tempo livre. Nesse espaço, o mundo poderia ser experimentado de modo outro.

10Pellejero defende que o autor francês retomou o conceito bergsoniano de fabulação e concedeu-lhe uma matriz política, compreendendo-a como o campo a partir do qual pode-se elaborar uma verdadeira política da expressão (2008). Para o comentador, Deleuze recupera essa noção para pensar modos de expressão capazes de confrontar o real, a fabulação atuaria como uma espécie de “movimento projetivo que, a partir do movimento próprio da expressão, propicia a reconfiguração dos territórios que atravessa ou habita intempestivamente” (PELLEJERO, 2008, p. 67).

11“A intuição não é um sentimento nem uma inspiração, uma simpatia confusa, mas um método elaborado, e mesmo um dos mais elaborados métodos da filosofia. Ele tem suas regras estritas que constituem o que Bergson chama de ‘precisão’ em filosofia” (DELEUZE, 2012, p. 9).

12Para Bergson (2010), a natureza não pode ser dissociada da cultura, ambas convivem em constante tensão, porém a inteligência, por meio de seus ardis, conseguiu dissociar ambas para efeitos de análise. A cultura, dentro do cientificismo vulgar, tende a ser vista como dissociada do processo evolutivo e compreendida como o acúmulo quantitativo de bens materiais produzidos pelo homem. Há, nesse processo, uma suposição da cultura como produto da inteligência humana, suposição recusada por Bergson. A cultura, bem como a sociedade, são algumas das maiores invenções da vida, em sua evolução criadora, e não podem ser dissociadas de sua natureza primeira.

13À guisa de curiosidade, é interessante notar como muitas das questões propostas pelo filósofo francês em Bergsonismo irão ecoar em outras de suas obras. Sobre essa temática, por exemplo, leremos em Diferença e Repetição: “É um preconceito infantil, segundo o qual o mestre apresenta um problema sendo a nossa tarefa resolvê-lo e sendo o resultado desta tarefa qualificado de verdadeiro ou de falso por uma autoridade poderosa. E é um preconceito social, no visível interesse de nos manter crianças, que sempre nos convida a resolver problemas vindos de outro lugar e que nos consola, ou nos distrai, dizendo-nos que venceremos se soubermos responder: o problema como obstáculo e o respondente como Hércules. É esta a origem de uma grotesca imagem da cultura, que se reencontra igualmente nos testes, nas instruções governamentais, nos concursos de jornais” (DELEUZE, 2006, p. 228)

14“O papel da vida consiste em inserir indeterminação na matéria. Indeterminadas, quer dizer, imprevisíveis, são as formas que ela cria à medida que evolui. Cada vez mais indeterminada também, isto é, cada vez mais livre, é a atividade à qual essas formas devem servir de veículo” (BERGSON, 2010, p. 144). A ciência, diz Bergson, em seu afã utilitarista, busca compreender aquilo que é passível de determinar, calando o indeterminável, e de servir de modelo para elaboração de constantes. Nesse processo, calaria a própria vida, indeterminável e inapreensível em seu movimento evolutivo infinito.

15É o caso da temática do povo por vir explorada pelos autores em Kafka: por uma literatura menor (DELEUZE; GUATTARI, 2014). Na literatura kafkiana, argumenta os autores, haveria uma recusa por parte do autor tcheco de operar com noções maiores, Kafka supri um modo de expressão nacionalista e fala em nome de um povo que falta, fabulado e ainda incriado. A expressão literária, desse modo, vê-se imbuída de uma função política, ao fabular “uma outra comunidade potencial, [a] forjar os meios de uma outra consciência e de uma outra sensibilidade” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 27).

16Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari assim definem o estilo: “o que denominamos um estilo, que pode ser a coisa mais natural do mundo, é precisamente o procedimento de uma variação contínua. (...) sendo um estilo não uma criação psicológica individual, mas um agenciamento de enunciação, não será possível impedi-lo de fazer uma língua dentro da língua” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 41-42).

17Deleuze define as linhas de fuga como espécie de desterritoralizações ativas, capazes de nos guiar para o novo ou o inexistente: “a linha de fuga é uma desterritorialização. Os franceses não sabem bem o que é isso. É claro que eles fogem como todo mundo, mas eles pensam que fugir é sair do mundo, místico ou arte, ou então alguma coisa covarde, porque se escapa dos engajamentos e das responsabilidades. Fugir não é renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do imaginário. É também fazer fugir, não necessariamente os outros, mas fazer alguma coisa fugir, fazer um sistema vazar como se fura um cano. (…) Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia. Só se descobre mundos através de uma longa fuga quebrada” (DELEUZE; PARNET, 2004, p. 49).

Recebido: 29 de Abril de 2020; Aceito: 22 de Setembro de 2021

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