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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.74 Uberlândia maio/ago 2021  Epub 15-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n74a2021-54824 

Artigos

Especificidades e usos da noção de signo em A Arqueologia do Saber

Specificities and uses of the notion of sign in The Knowledge Archeology

Especificidades y usos de la noción de signo en La Arqueología del conocimiento

*Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: erenildojc@gmail.com


Resumo

O reconhecimento da noção do signo em diferentes domínios do saber com significados, sentidos e usos diversos sinaliza sua relevância estruturante e operante nos processos de produção do conhecimento, da comunicação e da sociabilidade humana. Considerando esse fato, o presente ensaio objetivou identificar e localizar as formas de aparecimento da noção de signo em A Arqueologia do Saber (2008), a fim de analisar e sistematizar seu status na Análise Arqueológica do Discurso - AAD - e de refletir sobre ele. Recorrendo à própria AAD para escandir o referido livro, verificamos que Foucault tocou, inúmeras vezes e de modos diferenciados, na questão do signo, sempre em conexão com a problemática do discurso, seja como uma estratégia de sua elisão, seja como limiar de sua constituição. O ensaio concluiu que Foucault operou, em A Arqueologia do Saber (2008), um deslocamento do sentido e do uso corrente da noção de signo para a de discurso-enunciado, como uma formação discursiva fundamental para os estudos e as pesquisas analítico-arqueológicas.

Palavras-chave: Signo; Discurso; Foucault; Análise Arqueológica do Discurso

Abstract

The recognition of sign notion in different domains of knowledge with meanings, senses and many uses, signalize its structuring relevance and operant in the knowledge production processes, communication and human sociability. Considering this fact, this essay had as objective identify and localize the ways of appearance of sign notion in the Knowledge Archeology (2008), in order to reflect, analyze and systematize its status in Archaeological Discourse Analysis - ADA. Using ADA itself to scan the referred book, it was verified that Foucault touched in different ways in the sign question, Always in conexion with the discourse problematic, such as an elision strategy or as threshold of its constitution. The essay concluded that Foucault operated in Knowledge Archeology (2008) a displacement of meaning and current use of sign notion to the speech-utterance, as a fundamental discursive formation to the studies and analytical archaeological researches.

Key-words: Achaeological Discourse Analysis; Foucault; Sign; Speech

Resumen

El reconocimiento de la noción de signo en diferentes dominios del conocimiento con significados, sentidos y muchos usos, señala su relevancia estructurante y operante en los procesos de producción de conocimiento, comunicación y sociabilidad humana. Teniendo en cuenta este hecho, este ensayo tuvo como objetivo identificar y localizar las formas de aparición de la noción de signo en la Knowledge Archaeology (2008), para reflejar, analizar y sistematizar su estado en el Análisis del Discurso Arqueológico - ADA. Utilizando la propia ADA para escanear el referido libro, se verificó que Foucault tocó de diferentes maneras la pregunta del signo, siempre en relación con la problemática del discurso, como una estrategia de elisión o como umbral de su constitución. El ensayo concluyó que Foucault operaba en Knowledge Archaeology (2008) un desplazamiento del significado y el uso actual de la noción de signos a la expresión oral, como una formación discursiva fundamental para los estudios y las investigaciones arqueológicas analíticas.

Palabras-clave: Análisis del discurso arqueológico; Foucault Firmar; Habla

Introdução

Sabe-se que a noção de signo atravessa diferentes domínios do saber1 com significados, sentidos e usos diversos. Parece-me que há uma evidência plausível de que a questão do signo não é um problema menor, sem importância. Ao contrário, sinaliza sua relevância tanto como um dispositivo de produção, sistematização e difusão do saber sobre diferentes tipos de objetos e assuntos, quanto como um acontecimento, cuja presença demonstra ser estruturante e operante para os processos intersubjetivos da comunicação e da sociabilidade humana, que se põe em nosso cotidiano e história como algo inerente, ineliminável e constitutivo da dinâmica do existir humano.

Considerando que o signo atravessa várias esferas da existência humana, como, por exemplo, a produção, a circulação e a apropriação da informação, do conhecimento e da comunicação, pretendo registrar alguns achados sobre a especificidade e o uso que Foucault fez dessa noção, em seu livro A Arqueologia do Saber (2008), texto em que desenhou a Análise Arqueológica do Discurso - AAD - como estratégia teórico-metodológica de investigação.

O signo como objeto de reflexão, estudo e investigação da AAD

Tendo em vista identificar e localizar as formas de aparecimento da noção de signo em A Arqueologia do Saber (2008), a fim de analisar e sistematizar seu status para a AAD e refletir sobre ele, indago, preliminarmente, se seria pertinente ou não estudar e investigar a questão do signo como objeto de interesse da AAD e refletir sobre ela. Entendo que sim, porque o signo é o que constitui a linguagem, território cultural em que se encontram os terrenos, os solos e os sítios onde estão postos artefatos discursivo-enunciativos. Em face dessa posição, resolvi dedicar-me a examinar o assunto. Para isso, catalizei atenção, tempo, inteligência e paciência arqueológica.

Inquieto e instigado pela curiosidade e pela vontade de saber, formulei algumas perguntas propulsoras de minha reflexão analítico-arqueológica. De certo modo, embora não seja meu intuito respondê-las, devido à complexidade que cada uma delas contempla, meu desejo se resume apenas em formulá-las a fim de utilizá-las estrategicamente como norte, farol de minha escavação. São elas: Qual seriam a importância e o lugar da noção de signo na AAD? Que luzes a problematização do signo traz para a AAD? Poderíamos dizer que 'há um algo a mais' sobre o signo no modo como Foucault operou com essa noção na AAD? Ou seja, Foucault acrescentou algo de novo à noção de signo ou só se apropriou do saber existente, utilizando-se dele em função de suas pesquisas sobre o discurso?

A partir de um horizonte de questionamentos, retomei o livro A Arqueologia do Saber (2008) e lancei-me no estudo criterioso do texto, a partir do objetivo mencionado e dos procedimentos analítico-descritivos da própria AAD2. Ao escandi-lo, deparei-me com o seguinte achado: o tema História das Ideias perpassa o livro da introdução à conclusão e, em seu interstício, encontra-se um tópico exclusivo para o assunto, tendo em vista especificá-lo e diferenciá-lo da Arqueologia. Resumida e genericamente, Foucault definiu a História das Ideias da seguinte maneira:

Em sua forma mais geral, podemos dizer que ela descreve sem cessar - e em todas as direções em que se efetua - a passagem da não-filosofia a filosofia, da não-cientificidade à ciência, da não-literatura à própria obra. Ela é a análise dos nascimentos surdos, das correspondências longínquas, das permanências que se obstinam sob mudanças aparentes, das lentas formações que se beneficiam de um sem-número de cumplicidades cegas, dessas figuras globais que se ligam pouco a pouco e, de repente, se condensam na agudeza da obra. Gênese, continuidade, totalização: eis os grandes temas da história das ideias, através dos quais ela se liga a uma certa forma, hoje tradicional, de análise histórica. (FOUCAULT, 2008, p. 156. O grifo é nosso.)

Vale destacar um duplo reconhecimento de Foucault sobre esse assunto: de um lado, ele constatou que certas questões teórico-metodológicas, assumidas pelo domínio da História das Ideais, não davam mais conta de elucidar determinados acontecimentos, isto é, não eram suficientes para conhecer e explicar a especificidade de uma série de acontecimentos (rupturas singulares, diferenças, transformações) localizados em níveis distintos dos investigados em suas pesquisas; de outro, que a História das Ideias exercia um poder hegemônico significativo na produção do saber histórico de então, isto é, na definição dos objetos de interesses, dos pressupostos, das noções operatórias (influência, continuidade, tradição, permanência etc.) e dos procedimentos metodológicos investigativos, assumidos nos estudos dos acontecimentos históricos, conforme registra, por exemplo, o seguinte fragmento de seu livro A Arqueologia do Saber (2008):

Neste ponto se determina uma empresa cujo perfil foi traçado por Histoire de la folie, Naissance de la clinique, Les mots et les choses, muito imperfeitamente. Trata-se de uma empresa pela qual se tenta medir as mutações que se operam, em geral, no domínio da história; empresa onde são postos em questão os métodos, os limites, os temas próprios da história das ideias; empresa pela qual se tenta desfazer as últimas sujeições antropológicas; empresa que quer, em troca, mostrar como essas sujeições puderam-se formar. Estas tarefas foram esboçadas em uma certa desordem, e sem que sua articulação geral fosse claramente definida. Era tempo de lhes dar coerência - ou, pelo menos, de colocá-las em prática. O resultado desse exercício é este livro. (FOUCAULT, 2008, p. 17. O grifo é nosso.)

Parece-me que o duplo reconhecimento de Foucault se apresenta como razoável para justificar seu desejo de conhecer, pormenorizadamente, a importância e as implicações do domínio da História das Ideias na feitura do saber histórico, de entender seus limites e impossibilidades, bem como de operar nas zonas do saber não contempladas pelo referido domínio, tal como realizou por meio de uma série de três empreendimentos: a História da Loucura (2014), o Nascimento da Clínica (1977) e As palavras e as Coisas (1999), que demonstraram a potencialidade e a produtividade do processo analítico-descritivo que esboçou, desenvolveu e efetivou, denominado por ele mesmo de Arqueologia, com o intuito de adentrar a zona histórica dos acontecimentos não valorizados e não contemplados pelo domínio das Histórias das Ideias. Nesse sentido, assinala Foucault:

O emprego dos conceitos de descontinuidade, de ruptura, de limiar, de limite, de série, de transformação, coloca, a qualquer análise histórica, não somente questões de procedimento, mas também problemas teóricos. São estes os problemas que vão ser aqui estudados (as questões de procedimento serão consideradas no curso das próximas pesquisas empíricas, se eu tiver, pelo menos, a oportunidade, o desejo e a coragem de empreendê-las). Entretanto, só serão considerados em um campo particular: nessas disciplinas tão incertas de suas fronteiras, tão indecisas em seu conteúdo, que se chamam história das ideias, ou do pensamento, ou das ciências, ou dos conhecimentos. (FOUCAULT, 2008, p. 23. O grifo é nosso).

Com efeito, o exame cuidadoso empreendido por Foucault sobre o domínio da História das Ideias não só demonstrou a existência de uma variedade de acontecimentos, excluídos e marginalizados, como objetos merecedores de atenção, como também a necessidade de modos de questionar e de tratar diferentes séries de conceitos operativos, distintos dos tradicionais, que considerassem a efetividade da existência histórica desses acontecimentos, de seu surgimento, de sua formação, de suas especificidades e de seus modos próprios de funcionar, em vez de, simples e arbitrariamente, silenciá-los, marginalizá-los, elidi-los, negá-los e desprestigiá-los.

Nesse contexto analítico-argumentativo específico de Foucault sobre a problematização da História das Ideias em A Arqueologia do Saber (2008), no entremeio da discussão que opera sobre a existência do discurso como um dos acontecimentos elididos, marginalizados e silenciados pelo domínio da História das Ideias, encontra-se o meu objeto de interesse e de incursão, ou seja, a noção de signo e seus vínculos com a questão do discurso.

Certamente, embora esse não tenha sido seu propósito, ao examinar meticulosamente o domínio da História das Ideias e do uso da noção de discurso em seu âmbito, Foucault tocou, inúmeras vezes e de modos diferenciados, na questão da relação entre discurso e signo, ao mesmo tempo em que reconhecia e desejava uma maneira de contar a história diferente do modo tradicional, porque, como constatou, o discurso poderia ser elidido, silenciado e marginalizado mediante o uso da noção do discurso como signo, cujo emprego, de certa maneira, atravessava recorrentemente os domínios investigativos da história.

Nota-se que a identificação do discurso com o signo, que estrutura o modo corrente de historiografar o referente, no âmbito da História das Ideias, corrobora o desejo tradicional de se fazer uma descrição fiel dos acontecimentos ocorridos no cotidiano, na experiência, nas situações e nas circunstâncias factuais produzidas socialmente. Do ponto de vista analítico-arqueológico, isso evidencia a regularidade do discurso-signo nos domínios da História das Ideias, ou seja, o de se referir a algo distinto e fora da instância própria do discurso, como uma estratégia de contar, narrar, escrever e documentar os acontecimentos ditos relevantes historicamente.

[…] Em uma palavra, quer-se, na verdade, renunciar às "coisas", “despresentificá-las”; conjurar sua rica, relevante e imediata plenitude, que costumamos considerar como a lei primitiva de um discurso que dela só se afastaria pelo erro, esquecimento, ilusão, ignorância ou inércia das crenças e das tradições ou, ainda, desejo, inconsciente talvez, de não ver e de não dizer; substituir o tesouro enigmático das "coisas" anteriores ao discurso pela formação regular dos objetos que só nele se delineiam; definir esses objetos sem referência ao fundo das coisas, mas relacionando-os ao conjunto de regras que permitem formá-los como objetos de um discurso e que constituem, assim, suas condições de aparecimento histórico; fazer uma história dos objetos discursivos que não os enterre na profundidade comum de um solo originário, mas que desenvolva o nexo das regularidades que regem sua dispersão. (FOUCAULT, 2008, p. 53-54. O grifo é nosso).

Posso dizer que estamos diante de um dispositivo de elisão do discurso, expresso no que Foucault denominou de a 'história dos referentes', ou seja, dos acontecimentos empíricos e concretos. Esse dispositivo trata o discurso como signo, cujo efeito imediato é o de situar o discurso em um lugar distante e diferente do que lhe seria próprio. Nessa perspectiva, insisto, não seria sobre o discurso que se diria algo, mas a partir dele e através dele se diria algo sobre um referente qualquer. Essa via argumentativa e explicativa dos acontecimentos históricos se caracteriza como uma estratégia de elisão do discurso.

Assim, no horizonte do discurso-signo, seja qual for o objeto considerado relevante para ser contado, caberia ao domínio da História das Ideias a tarefa de “[...] interpretar o discurso para fazer, através dele, uma história do referente [...]” (FOUCAULT, 2008, p. 53). Esse dispositivo narrativo foi rejeitado veementemente por Foucault, como um procedimento da Arqueologia, conforme pode ser lido no fragmento abaixo, em que ele aborda a questão da loucura. Essa passagem esclarece que, diferentemente do domínio da História das Ideias, na análise arqueológica da loucura,

[...] não se procura saber quem era louco em tal época, em que consistia sua loucura, nem se suas perturbações eram idênticas às que nos são, hoje, familiares. Não se questiona se os feiticeiros eram loucos ignorados e perseguidos ou se, em um outro momento, uma experiência mística ou estética não foi indevidamente medicalizada. Não se procura reconstituir o que podia ser a própria loucura, tal como se apresentaria inicialmente em alguma experiência primitiva, fundamental, surda, apenas articulada, e tal como teria sido organizada em seguida (traduzida, deformada, deturpada, reprimida talvez) pelos discursos e pelo jogo oblíquo, frequentemente retorcido, de suas operações. […]. (FOUCUALT, 2008, p. 53).

Ora, considerando que o objeto da ocupação das reflexões, dos estudos e das investigações arqueológicas não é o referente empírico e que sua concreticidade se efetiva no desenrolar das relações sociais cotidianas, de seus desdobramentos e de suas capitalizações circunstanciais e experienciais, em cujo horizonte os seres humanos se situam no fazer existencial, quais seriam, então, seus objetos de interesse? Certamente, não seriam as coisas, as palavras nem seus correlatos, como, por exemplo, a enunciação, a escrita, os textos e os documentos, conforme registram várias passagens de A Arqueologia do Saber (2008), como a seguinte:

[…] Sem dúvida, semelhante história do referente é possível; não se exclui, de imediato, o esforço para desenterrar e libertar do texto essas experiências "pré-discursivas". Mas não se trata, aqui, de neutralizar o discurso, transformá-lo em signo de outra coisa e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que permanece silenciosamente aquém dele, e sim, pelo contrário, mantê-lo em sua consistência, fazê-lo surgir na complexidade que lhe é própria. […]. (FOUCUALT, 2008, p. 53. O grifo é nosso).

A íntima relação entre o discurso e o signo informa, de um lado, a possibilidade de se conceber e de se empregar o discurso como signo, como algo que se refere a alguma coisa que não seria ele mesmo, algo que o discurso esconderia ou mencionaria, mas que não diria respeito a ele, propriamente dito; de outro, demonstra a necessidade e a possibilidade de superar essa elisão, tarefa primordial da Arqueologia, que, embora reconheça a existência dos signos e de seus nexos com o discurso e com a realidade, não confunde um com o outro.

[…] Já que é preciso, às vezes, acentuar ausências, embora as mais evidentes, direi que, em todas essas pesquisas em que avancei ainda tão pouco, gostaria de mostrar que os "discursos", tais como podemos ouvi-los, tais como podemos lê-los sob a forma de texto, não são, como se poderia esperar, um puro e simples entrecruzamento de coisas e de palavras: trama obscura das coisas, cadeia manifesta, visível e colorida das palavras; gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intricamento entre um léxico e uma experiência; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursa. […]. (FOUCAULT, 2008, p. 54-55. O grifo é nosso.).

Pelo visto, para a Arqueologia, o signo e a palavra não são sinônimos nem correlatos do discurso. Diferentemente, esse domínio trata o discurso como discurso, quando se refere a ele mesmo, não a outra coisa, nele, através ou além dele. Portanto, ao considerar que o signo não é uma noção que identifique, nomeie, descreva, defina, explique ou explicite a particularidade da natureza da existência do discurso, haja vista entendê-lo como enunciado, não como signo, Foucault esclarece que seria um investimento

[…] inútil procurar o enunciado junto aos grupamentos unitários de signos. Ele não é nem sintagma, nem regra de construção, nem forma canônica de sucessão e de permutação, mas sim o que faz com que existam tais conjuntos de signos e permite que essas regras e essas formas se atualizem. Mas se as faz existirem, é de um modo singular que não se poderia confundir com a existência dos signos enquanto elementos de uma língua, nem tampouco com a existência material das marcas que ocupam um fragmento e duram um tempo mais ou menos longo. É esse modo singular de existência, característico de toda série de signos, desde que seja enunciada, que se trata agora de questionar. (FOUCAULT, 2008, p. 99)

Como se lê, estamos diante de uma maneira de conceber o discurso diferente da assumida pela História das Ideias, ou seja, que identifica o signo como um equivalente do discurso. Entretanto, o modo como a Arqueologia concebe o discurso não produz a elisão do signo. Isso quer dizer que a noção arqueológica do discurso não opera com a negação do signo, como registra A Arqueologia do Saber (2008). Ao contrário, afirma sua existência. Em outros termos, embora a Arqueologia entenda o signo como algo específico e com usos diversos, sem os quais vários modos de conceber o discurso não existiriam, seu interesse consiste em investigar os artefatos discursivos situados no nível arqueológico da linguagem, no qual o signo não desaparece, mas funciona como enunciado.

Certamente, em A Arqueologia do Saber (2008), Foucault traz à luz a questão do signo no interstício de seu empreendimento de definir o discurso como enunciado. Essa é uma passagem que assinala a problemática do signo correlacionada a um modo de existir singular, no domínio arqueológico do discurso-enunciado3, em que Foucault se desloca do exame da História das Ideias para travar um diálogo com outros domínios do saber, como a Linguística e a Filosofia, por exemplo. Nesse ínterim, ao analisar o discurso-enunciado, o signo aparece implicado como um correlato específico da questão. Assim, cabe à Arqueologia

[...] não mais tratar os discursos como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse "mais" que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever. (FOUCAULT, 2008, p. 55. O grifo é nosso.).

Em face de meus achados e da análise que efetuei até aqui, concluí que, no esforço realizado para problematizar e explicitar a existência do discurso, como um objeto singular e relevante a ser investigado no âmbito de vários domínios das ciências, Foucault se deparou com a questão da linguagem e do signo, apropriando-se e utilizando-se do saber corrente de um modo específico, no seio da configuração de suas pesquisas arqueológicas e do desenho que esboçou sobre a noção de discurso, assumida como a mais apropriada para a AAD.

A noção de signo: significado e funções

Nesta seção, tratarei da semântica e de algumas funções correntes do signo que atravessam o livro A Arqueologia do Saber (2008). Na seção anterior, mencionei que Foucault utilizou o saber corrente sobre o signo, ao questionar sobre o modus operandi da História das Ideias, que identificava o discurso como uma espécie de signo de outra coisa e, por isso, tendia a contar a história dos referentes concretos, existenciais e empíricos e as experiências singulares, como, por exemplo, o que poderia ser dito sobre o louco ou a história da loucura em determinadas sociedades e períodos históricos, conforme registra o seguinte fragmento:

[…] Sem dúvida, semelhante história do referente é possível; não se exclui, de imediato, o esforço para desenterrar e libertar do texto essas experiências "pré-discursivas". Mas não se trata, aqui, de neutralizar o discurso, transformá-lo em signo de outra coisa e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que permanece silenciosamente aquém dele, e sim, pelo contrário, mantê-lo em sua consistência, fazê-lo surgir na complexidade que lhe é própria. […]. (FOUCAULT, 2008, p. 53. O grifo é nosso).

Em última análise, a crítica feita por Foucault à concepção do discurso-signo pôs em evidência, concomitantemente, a existência do saber corrente sobre o signo como algo posto no lugar de outra coisa, demonstrando sua natureza, que supõe uma relação de não identidade entre o signo e a coisa referida, e o discurso como não sendo algo que se refere, lembra, nomeia, informa, menciona, remete, designa, classifica, ordena, identifica e diferencia uma coisa 'pré-discursiva' ou que 'permanece silenciosamente aquém dele', seja qual for essa coisa - um referente da realidade, um segredo escondido nas entrelinhas da escrita de um texto ou a pronúncia de uma fala. Lembra Foucault que esta seria uma espécie de sina da linguagem: a de ser assombrada pelo fantasma da ausência do que representa. Nesse sentido, indaga:

[…] A linguagem parece sempre povoada pelo outro, pelo ausente, pelo distante, pelo longínquo; ela é atormentada pela ausência. Não é ela o lugar de aparecimento de algo diferente de si e, nessa função, sua própria existência não parece se dissipar? […]. (FOUCAULT, 2008, 126)

Foucault não deixou de considerar, em A Arqueologia do Saber (2008), a noção de signo como algo relevante no seio de sua discussão sobre o discurso, seja por ter rejeitado o dispositivo da ligação automática entre discurso e signo, seja porque tenha tratado, indireta, aleatória, pontual e dispersamente, o assunto ao longo do livro, ao utilizar o saber corrente na ordem de sua análise argumentativa, discutindo sobre temas e objetos diversos, como a loucura, a sexualidade e o domínio das ciências ou, ainda, apropriando-se dessa noção, de um modo peculiar, em sua definição arqueológica do discurso como enunciado, tão cara para a AAD.

Ao escavar o referido livro, deparei-me com uma série de passagens em que Foucault argumenta que, embora a perspectiva arqueológica reconheça o signo como necessário à formação do discurso em geral, no nível enunciativo, seu modo de funcionar difere de seu uso corrente, como dispositivo de indicação e/ou designação. Por isso Foucault disse que as análises que se ocupam de escandir o discurso-enunciado, seja ele qual for, não devem mais tratá-los

[...] como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. [...]. (FOUCAULT, 2008, p. 55. O grifo é nosso).

Encontram-se sinteticamente, nesse fragmento, as duas ideias centrais que me interessam nesta seção, a saber: (1) a do significado, que vincula o signo a algo, ou seja, 'elementos significantes que remetem', no caso exemplificado, 'a representações e a conteúdos' diversos; (2) e a de sua função, ilustrada na assertiva de que, no nível arqueológico, o discurso-enunciado faz muito mais do que utilizar os signos 'para designar coisas'. Esses dois aspectos da existência do signo integram o saber corrente de que os 'discursos são feitos de signos'.

Destarte, embora as ideias de que o signo se 'vincula a algo' e de que ele serve para 'designar coisas', informando sobre dois aspectos fundamentais da noção de signo, seus significados não são, arqueologicamente dizendo, apropriados para se entender, analisar e descrever o discurso-enunciado, seja como uma espécie de categoria da AAD, seja como um conceito produtivo da análise de diversas formações discursivas, vez que os discursos, para a AAD, devem ser considerados “[...] práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam [...]” (FOUCAULT, 2008, p. 55).

Assim como constatei o uso do saber corrente da noção de signo no seio da discussão entre discurso e História das Ideias, também verifiquei seu emprego em outras situações, como, por exemplo, quando Foucault problematizou a questão do livro, da obra e do autor ou do vínculo entre eles. Entretanto, vale informar que esse assunto fora discutido por Foucault em A Arqueologia do Saber (2008), com o intuito de demonstrar que o livro, a obra e o autor, tal como as unidades clássicas tipificadas, como 'tradição', 'espírito', 'mentalidade', 'literatura', 'politica' ou 'ciência', não seriam parâmetros para se entender uma possível e suposta unidade do enunciado, até porque não passam de estratégias para mantê-los, de formas de continuidade que precisam ser questionadas e rejeitadas, pois, além de não contemplar as rupturas e as transformações dos acontecimentos históricos ou discursivos, não expressam a particularidade do discurso-enunciado. Sobre isso, Foucault ressalta:

É preciso pôr em questão, novamente, essas sínteses acabadas, esses agrupamentos que, na maioria das vezes, são aceitos antes de qualquer exame, esses laços cuja validade é reconhecida desde o início; é preciso desalojar essas formas e essas forças obscuras pelas quais se tem o hábito de interligar os discursos dos homens; é preciso expulsá-las da sombra onde reinam. E ao invés de deixá-las ter valor espontaneamente, aceitar tratar apenas, por questão de cuidado com o método e em primeira instância, de uma população de acontecimentos dispersos. (FOUCAULT, 2008, p. 24).

Quando tratou da vinculação entre autor e obra, Foucault não conferiu o mesmo teor analítico que teve quando buscou esclarecer a noção de sujeito arqueológico, ou sujeito do enunciado, como distinta, por exemplo, da noção de autor. Diferentemente, nesse caso, a problemática da função-autor aparece nitidamente relacionada à ideia do signo-nome, como dispositivo de identificação, indicação ou nomeação da autoria de um conjunto de escritos, marcados por traços específicos que possibilitam reconhecer quem é seu produtor. Isso demonstra o uso da noção de signo cumprindo funções específicas, quanto ao seu papel de relacionar o autor à sua produção mediante o signo-nome, no ínterim dessa análise particular. Sobre isso, Foucault afirma:

[...] Individualização material do livro que ocupa um espaço determinado, que tem um valor econômico e que marca por si mesmo, por certo número de signos, os limites de seu começo e de seu fim; estabelecimento de uma obra que se reconhece e que se delimita, atribuindo um certo número de textos a um autor. […]. (FOUCAULT, 2008, p. 25, o grifo é nosso).

Como mostra essa passagem, a expressão genérica 'certo número de signos' cumpre a função de reconhecer um conjunto de marcas que assinalariam o pertencimento de certos textos, escritos e livros como parte de uma obra determinada. Ao fim e ao cabo, o conjunto geral de uma produção constituiria o que pode ser denominado de obra. A obra, por sua vez, seria identificada por meio de um signo qualquer que serviria de dispositivo de individualização do conjunto de material escrito por alguém, que, sinteticamente, poderia ser “[...] denotado pelo signo de um nome próprio. […]” (FOUCAULT, 2008, p. 26, o grifo é nosso). Em face desse saber, indaga Foucault:

[…] o nome de um autor denota da mesma maneira um texto que ele próprio publicou com seu nome, um texto que apresentou sob pseudônimo, um outro que será descoberto após sua morte, em rascunho, um outro ainda que não passa de anotações, uma caderneta de notas, um “papel”? (FOUCAULT, 2008, p. 24. O grifo é nosso).

Considerando o pressuposto do saber corrente sobre a noção de signo e seus usos, a resposta para essa questão, formulada por Foucault, seria sim, pois o nome cumpriria a função-autor, estabelecendo vinculações do tipo nome-texto, nome-livro ou nome-obra. Entretanto, sabe-se que identificar e designar algo por meio de um nome, seja ele próprio ou não, informa apenas uma das possibilidades funcionais do signo, um dos papéis ou tarefas que poderíamos realizar com a noção de signo como conceito operativo.

Essa e outras possibilidades do uso do signo encontram-se anotadas em A Arqueologia do Saber (2008). Exemplo disso também pode ser verificado quando Foucault retoma alguns de seus achados de pesquisa, registrados minuciosamente em seu livro As Palavras e as Coisas (1999), e afirma que a atividade de designar seria uma dentre outras funções possíveis no campo da teoria do signo da representação, implicada na constituição das epistemes clássicas, expressas na produção de saberes diversos, como os elaborados pelo domínio da história natural e, em especial, pela gramática geral que, “[…] nos Séculos XVII e XVIII, aparece como um modelo particular da teoria geral dos signos e da representação. […]” (FOUCAULT, 2008, p. 74). Sobre isso, registra:

[…] pode-se notar também que a história natural e a gramática geral se opõem entre si como uma teoria dos caracteres naturais e uma teoria dos signos de convenção; todas as duas, por sua vez, se opõem à análise das riquezas, como o estudo dos signos qualitativos se opõe ao dos signos quantitativos de medida; cada uma, enfim, desenvolve um dos três papéis complementares do signo representativo: designar, classificar, trocar. […]. (FOUCAULT, 2008, p. 74. O grifo é nosso).

Não cabe discutir, obviamente, sobre a complexidade dos achados foucaultianos referentes ao tema ‘teoria dos signos ou da representação’, mencionado nessa passagem, como faz, específica e pormenorizadamente, em seu livro As Palavras e as Coisas (1999). Basta-me, no contexto desta minha análise, destacar o fato de que o caráter designativo do signo expressa tão-somente um dos possíveis usos do signo, já que existem outros, como classificar e trocar, e que passagens como essa demonstram a presença da noção e seu emprego, cumprindo funções específicas no ínterim da análise e da argumentação de Foucault em A Arqueologia do Saber (2008).

Em suma, nesta seção, minha modesta vontade foi de problematizar o fato de que, embora Foucault não tenha discutido sistematicamente sobre a existência, o significado e as funções do signo, no livro A Arqueologia do Saber (2008), destinando um tópico ou capítulo exclusivo para analisar o assunto, como fez com outros, como os temas 'continuidade', 'Histórias das Ideias', 'discurso', 'formação discursiva', 'pratica discursiva', 'arquivo', dentre outros, constatei a regularidade do aparecimento dessa noção e de seu uso na dispersão de diferentes e distintos lugares do livro. Resta-me, agora, tratar do status conferido ao signo por Foucault no nível arqueológico.

A relevância da noção de signo para a Análise Arqueológica do Discurso

Nesta seção, refletirei sobre a importância e a especificidade do signo na definição do discurso no âmbito do domínio da AAD. Como visto, as escavações e as análises anteriores demonstram que a problematização da noção de signo surge em razão de que seu significante e seu significado correntes aparecem, predominantemente, entrelaçados com alguma dimensão da questão do discurso.

Constatei que, quando Foucault examinou o modus operandi da História das Ideias, no que tange à produção do saber histórico; quando acionou seus achados de pesquisa referentes às epistemes da época clássica, registrados em seu livro, As Palavras e as Coisas (1999); ou, ainda, quando retomou o resultado de suas investigações sobre o louco e a Psiquiatria, ou a doença e a Medicina, advindos de suas investigações anotadas em a História da Loucura e Nascimento da Clínica, como fundamento de sua argumentação a favor da Arqueologia, o tema e o objeto de sua ocupação em A Arqueologia do Saber (2008) eram, indubitavelmente, o discurso-enunciado, e não, o signo.

Ressalte-se, no entanto, que os achados encontrados em minhas incursões me possibilitaram reconhecer a evidência, em um primeiro momento, de que não há como falar em enunciado sem abordar o signo, porque não há linguagem nem discurso sem signo; e, num segundo momento, que, ao tratar arqueologicamente o discurso como enunciado, seria necessário romper com o modo de existir e de funcionar do saber corrente sobre o signo, vez que o enunciado contemplava modos de funcionar não antagônicos a ele, mas distintos dele. Esse duplo movimento de reconhecimento presente no percurso arqueológico trilhado na definição do discurso-enunciado expressa-se de muitas maneiras, como, por exemplo, nesta indagação feita por Foucault:

[…]. Poderíamos falar de enunciado se uma voz não o tivesse enunciado, se uma superfície não registrasse seus signos, se ele não tivesse tomado corpo em um elemento sensível e se não tivesse deixado marca - apenas alguns instantes - em uma memória ou em um espaço? Poderíamos falar de um enunciado como de uma figura ideal e silenciosa? […]. (FOUCAULT, 2008, p. 112. O grifo é nosso).

Com efeito, estaríamos em face de um ente ideal e abstrato, mágico ou intuitivo, sempre à espera de uma pessoa iluminada capaz de decifrá-lo, desocultá-lo e revelá-lo, se o enunciado não pudesse ser acessado, identificado, analisado, descrito e explicitado, inicialmente, por meio de 'marcas' fixadas em uma 'superfície' 'sensível', que deixasse seu rastro e 'registrasse seus signos', sua 'memória' e sua existência em algum lugar e 'espaço'.

Não obstante a importância de tal limiar, o nível enunciativo não se confunde com as outras regiões do terreno da linguagem, sejam elas constituídas pelo significante, que confere visibilidade e memoria empírica ao signo; pelo significado, que sintetiza abstratamente, no plano das ideias, o sentido e a cognoscibilidade que o signo carrega; nem pela referência, coisa específica à qual o par significante-significado se vincula, identifica, nomeia e lembra.

O fato é que, embora pressuponha o signo, nem ele nem o jogo de remissões e de centralidades que ele possibilita, por meio de cada um de seus elementos tricotômicos ou de seus entrecruzamentos, representam o nível enunciativo, muito menos, isso seria possível por meio da coisa ausente à qual o signo se refere. Por razões como essas, Foucault orienta que, para

[…] descrever o nível enunciativo, é preciso levar em consideração justamente essa existência; interrogar a linguagem, não na direção a que ela remete, mas na dimensão que a produz; negligenciar o poder que ela tem de designar, de nomear, de mostrar, de fazer aparecer, de ser o lugar do sentido ou da verdade e, em compensação, de se deter no momento - logo solidificado, logo envolvido no jogo do significante e do significado - que determina sua existência singular e limitada. […]. (FOUCAULT, 2008, 126, o grifo é nosso)

Assim, seria possível concluir, equivocadamente, que estaríamos diante de uma impossibilidade da existência do enunciado, caso acreditássemos que fosse viável dizer algo sobre alguma coisa sem signo; ou, ainda, diante de uma espécie de contradição, em que o enunciado, para existir, precisasse negar o signo e vice-versa.

Ora, o achado arqueológico encontrado não demonstra nenhuma dessas conclusões ou inferências interpretativas. Na verdade, o que se pôs evidente foi o acontecimento da ruptura entre o limiar do signo e liame do enunciado, entre uma coisa e outra. O que se pôs à luz foi o problema da passagem, do deslocamento de uma coisa para outra, de um nível da linguagem para o outro, a fim de que o objeto-enunciado aparecesse como tal e que o nível arqueológico pudesse ser encontrado em sua especificidade.

A questão não seria a de rejeitar a linguagem em si nem de conflitar o enunciado com o signo, mas de reconhecer que existem níveis e artefatos específicos no território da linguagem, cujos funcionamentos operam de maneira diferente da estrutura geral do signo. Por isso, Foucault assevera:

Trata-se de suspender, no exame da linguagem, não apenas o ponto de vista do significado (o que já é comum agora), mas também o do significante, para fazer surgir o fato de que em ambos existe linguagem, de acordo com domínios de objetos e sujeitos possíveis, de acordo com outras formulações e reutilizações eventuais. (FOUCAULT, 2008, p.126)

Portanto, seja qual for o caso enfocado ou o tema correlato ao discurso, em que pese a dispersão de seu aparecimento na superfície e no local do texto, acionado por Foucault em A Arqueologia do Saber (2008), verifiquei um intenso trabalho analítico-arqueológico, tendo em vista elucidar a maneira como a questão do signo deveria ser tratada, acionada, correlacionada, tematizada, refletida, problematizada, analisada e descrita em seu limiar, tarefa que Foucault assume mediada pelo crivo metódico do enunciado como princípio de análise e do discurso, “[…] constituído por um conjunto de sequências de signos, enquanto enunciados, isto é, enquanto lhes podemos atribuir modalidades particulares de existência. […]” (FOUCAULT, 2008, p. 121-122. O grifo é nosso). Considerando o pressuposto teórico-metodológico de cunho analítico-arqueológico, Foucault indaga:

[…] O limiar do enunciado seria o limiar da existência dos signos. Entretanto, ainda aqui, as coisas não são tão simples, e o sentido que é preciso dar a uma expressão como "a existência dos signos" precisa ser elucidado. O que queremos dizer quando afirmamos que há signos, e que basta que haja signos para que haja enunciado? Que status singular atribuir a esse "há"? (FOUCAULT, 2008, p. 96. O grifo é nosso).

Tendo em vista que elucidar a 'existência dos signos' implica tratá-los como o 'limiar do enunciado', urge rejeitar a compreensão do enunciado como estrutura, como, por exemplo, a frase e a proposição, e renunciar as análises correntes dos domínios da gramática e da Filosofia, vez que a AAD não se ocupa “[...] nem com a "aceitabilidade" gramatical nem com a correção lógica [...]” (FOUCAULT, 2008, p. 130). Isso significa não conceber, obviamente, o enunciado como a continuidade do modo de ser e de funcionar do signo. Entendido desse modo, o elucidar do enunciado exige um trabalho de análise e de descrição que possibilite explicitar a natureza específica da ruptura que ele guarda, conforme escreveu Foucault:

[…] Descrever um enunciado não significa isolar e caracterizar um segmento horizontal, mas definir as condições nas quais se realizou a função que deu a uma série de signos (não sendo esta forçosamente gramatical nem logicamente estruturada) uma existência, e uma existência específica. […]. (FOUCAULT, 2008, p. 126, o grifo é nosso).

Com efeito, se a 'série de signos', que tipifica a especificidade da existência do enunciado, não é 'forçosamente gramatical nem logicamente estruturada' e, consequentemente, não ‘obedece às suas leis', como se organiza um enunciado? Quais são os critérios, os princípios e as leis que regem a transformação de uma série de signos qualquer (frase, proposição, listas, gráficos, quadros, figuras) em enunciados? Em outras palavras, quais seriam as condições efetivas de existir do signo como enunciado?

Indubitavelmente, são muitos os caminhos analítico-arqueológicos que poderíamos percorrer a fim de responder a essas perguntas que, em certo sentido, foram respondidas ao longo deste ensaio, em cujo desdobrar assinalamos uma série de pistas, registradas, ora no conjunto dos fragmentos e das passagens supracitadas, que integram o corpus de minha escavação, ora nos apontamentos e nos argumentos consubstanciados a partir dos referidos achados.

Então, posso dizer, em razão dos supramencionados achados, que determinada série de signos supera seu limiar e se torna um enunciado em função de uma série de correlatos enunciativas que estabelece, que são: um princípio de diferenciação (referência) qualquer, considerado legítimo; um lugar determinado e vazio (a posição de sujeito), que pode ser ocupado por qualquer pessoa/indivíduo/instituição/segmento social, situados em tempos e lugares diferentes; um conjunto de enunciados coexistentes (um campo associado), com os quais se relaciona, justificando-se, validando-se, legitimando-se e retroalimentando uns aos outros; e, por fim, de um status específico e de suas possibilidades de emprego (uma materialidade4), que conferem valor e produtividade ao signo, por meio de determinadas ordens e práticas discursivas.

Portanto, para a AAD, uma série determinada de signo, disposta na superfície do discurso, tem importância na medida em que transpõe o limiar de seu modo particular de existir, ou seja, de ser algo que se põe no lugar de outra coisa e passa a assumir uma modalidade de existência distinta, assinalada pela regularidade de uma presença e de uma utilização, definida pelos elementos constitutivos do enunciado, que funcionam como as condições de sua existência em determinada formação discursiva.

Considerações finais

Concluo este ensaio, tecendo algumas considerações complementares que visam elucidar a complexidade das questões teóricas de cunho analítico-arqueológico, afeitas à problemática do signo em A Arqueologia do Saber (2008), discutidas até aqui. Nesse sentido, vale destacar, em primeiro lugar, que, pelo fato de o signo integrar o limiar das condições possíveis do aparecimento e da existência do enunciado, conforme tenho demonstrado, ele é o ponto de partida da análise do enunciado, seja qual for o formato que assuma - de frases, proposições, textos, livros, documentos, listas, tabelas, quadros, gráficos, fórmulas, imagens visuais, falas etc. Portanto, se o signo não é o enunciado, o que nos interessa analisar arqueologicamente, em diferentes séries de signos, não é o que nelas “[...] se apresenta ou a maneira pela qual são delimitadas, mas o próprio fato de serem apresentadas e a maneira como o são [...]” (FOUCAULT, 2008, p. 126).

Em segundo lugar, ao operar o deslocamento do interesse dos artefatos discursivos, situados nas regiões do território da linguagem dominadas pelo signo e seus funcionamentos, a fim de adentrar o nível enunciativo, Foucault descobriu que o enunciado não se organiza a partir do pressuposto da unidade ou da estrutura sígnica, como se considera correntemente, por exemplo, com a palavra, a frase ou a proposição, mas como “[...] uma função que se apoia em conjuntos de signos […]. (FOUCAULT, 2008, p. 130).

Nessa perspectiva, ele conserva a ideia do signo, porém como 'limiar', como 'apoio' ou 'suporte' do enunciado, ao mesmo tempo em que assinala o corte, o ponto de inflexão, a ruptura que faz erigir o enunciado como algo distinto do signo-unidade, do signo-estrutura. No nível enunciativo, o enunciado se põe como uma função.

Em terceiro lugar, descrever o enunciado como uma função pressupõe reconhecer que essa função se caracteriza como uma modalidade de relação que denota a possibilidade efetiva de variação do sentido, do significado, do valor e do uso de determinadas séries de signos, de acordo com os nexos existentes e possíveis, postos em um conjunto complexo de relações, constituintes de uma formação discursiva específica.

Se o enunciado-função se apresenta como um complexo de relações de relações postas, o aparecimento do signo só será possível a partir de um feixe determinado de relações de relações, que cumpre a tarefa de produzir as condições efetivas que interditam ou possibilitam a emergência, o desdobramento e o emprego desta ou daquela 'palavra', 'frase', 'proposição', desta ou daquela série de signos qualquer. Portanto, no nível arqueológico, “[…] uma série de signos se tornará enunciado com a condição de que tenha com "outra coisa" […] uma relação específica que se refira a ela mesma - e não, à sua causa, nem a seus elementos (FOUCAULT, 2008, p. 100).

Em quarto lugar, dizer que o enunciado é 'uma relação específica que se refere a ela mesma' significa afirmar que ele é uma relação de relação, uma dobra sobre si mesmo, razão pela qual seria mais apropriado dizer que ele é autofundante, autorreferenciado, causa de si. Sua referência é ele mesmo, e não, 'outra coisa', como ocorre com o signo.

O signo não é nem pode ser signo de si, pois o que o define é precisamente ser 'algo que se põe no lugar de outra coisa'. Aqui reside a ruptura central produzida pelo enunciado em relação ao signo, porque, para existir, requer, necessariamente, uma causa exterior a ele. Nesse sentido, uma série de signos, para existir e funcionar como enunciado, requer

[…] um referencial (que não é exatamente um fato, um estado de coisas, nem mesmo um objeto, mas um princípio de diferenciação); um sujeito (não a consciência que fala, não o autor da formulação, mas uma posição que pode ser ocupada, sob certas condições, por indivíduos indiferentes); um campo associado (que não é o contexto real da formulação, a situação na qual foi articulada, mas um domínio de coexistência para outros enunciados); uma materialidade (que não é apenas a substância ou o suporte da articulação, mas um status, regras de transcrição, possibilidades de uso ou de reutilização). (FOUCAULT, 2018, p. 130, o grifo é nosso.).

Portanto, tendo em vista o exposto, concluo que a existência específica do signo, quando investigada em A Arqueologia do Saber (2008), em conexão com o discurso-enunciado, encontra-se diretamente associada a um complexo de relações distintas das ligações que definem a natureza específica do signo e dos entrecruzamentos dos elementos que o constituem.

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1A exemplo dos conhecidos domínios em que se situam os estudos antropológicos de Eliade (1991); linguísticos, de Saussure (1996), semiológicos, de Barthes (1997), semióticos, de Pierce (2005), filosóficos da linguagem, de Bakhtin (1995), analítico-discursivos, de Michael Pêcheux (1995), psicanalíticos, de Jung (2008) ou sociológicos, de Bourdieu (1998).

2Sobre esse assunto, ler: ALCANTARA, Marcos Angelus Miranda de; CARLOS, Erenildo João. Análise Arqueológica do Discurso: uma alternativa de investigação na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Intersecções: Revista de Estudos sobre Práticas Discursivas e Textuais, Jundiaí, v. 11, n. 3, nov. 2013, p. 59-75.

3Para um maior aprofundamento, consultar: Achados sobre a noção arqueológica do discurso em Foucault. Revista Dialectus, Ano 4, n.11, p. 176-191, ago./dez, 2017.

4Sobre essa noção foucaultina, consultar: O pensamento arqueológico de Michel Foucault sobre materialidade e referencial. Conjectura: Filosofia e Educação (UCS), v. 25, p. 1-11, 2020.

Recebido: 17 de Maio de 2020; Aceito: 22 de Setembro de 2021

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