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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.74 Uberlândia maio/ago 2021  Epub 15-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n74a2021-55175 

Artigos

Epistemologia de fronteiras em Walter Mignolo: compreensão, críticas e implicações na pesquisa em educação

Border thinking in Walter Mignolo: insight, reviews and implications in educational research

Epistemología fronteriza en Walter Mignolo: comprensión y crítica

Damião Bezerra Oliveira* 
lattes: 7717970084199162; http://orcid.org/0000-0002-8247-8803

Raphael Carmesin Gomes** 
lattes: 3067402692125478; http://orcid.org/0000-0002-0966-0174

*Doutor em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor na Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: damiao@ufpa.br

**Doutorando em Educação na Universidade Federal do Pará (UFPA). ¬E-mail: raphael.carmesin@gmail.com


Resumo

Este artigo objetiva compreender a “Epistemologia de Fronteiras” como uma categoria essencial para a crítica epistemológica do filósofo Walter Mignolo, a partir do pensamento decolonial, e descrever as principais questões e argumentos que problematizam este conceito, refletindo sobre as suas implicações para a pesquisa em educação. Desta forma, explicita-se as concepções fundamentais da Rede Modernidade/Colonialidade (M/C), a partir de uma investigação de perfil qualitativo e histórico-conceitual. Considera que a “Epistemologia de Fronteiras” possibilita a reflexão em torno da decolonialidade na produção de conhecimentos, ao mesmo tempo em que estimula a crítica epistemológica e metodológica à colonialidade do poder no âmbito da pesquisa em educação.

Palavras-chave: Epistemologia de Fronteiras; Pesquisa em Educação; Walter Mignolo

Abstract

This paper aims to understand “Border Thinking” as a relevant category to the epistemological critique of philosophy Walter Mignolo, from the decolonial thinking and to describe the main issues and arguments that question this concept critically, reflecting about its implications to the educational research. To this aim, analyze the main concepts of Modernity/Coloniality Group’s decolonial thinking, from an investigation of qualitative and historical-conceptual profiles. Consider that the Border Thinking is one of the most significant contributions to the decolonial epistemological critique, that allows critical thinking about the possibility of knowledge, while encourages the criticism and the epistemological and methodological reflection about the coloniality of power at the scope of educational research

Key-words: Border Thinking; Educational Research; Walter Mignolo

Resumen

Este artículo tiene como objetivo entender la "Epistemología Fronteriza" como una categoría esencial para la crítica epistemológica del filósofo Walter Mignolo, basada en el pensamiento descolonial, y en describir las principales preguntas y argumentos que problematizan este concepto, reflexionando sobre sus implicaciones para la investigación en educación. De esta manera, se explican las concepciones fundamentales de la Red Modernidad /Colonialidad (M/C), basadas en una investigación de perfil cualitativo e histórico-conceptual. Considera que la "Epistemología Fronteriza" permite la reflexión sobre la descolonialidad en la producción de conocimiento, al mismo tiempo en que estimula la crítica epistemológica y metodológica de la colonialidad del poder dentro del campo de la investigación educativa.

Palabras-clave: Epistemología Fronteriza; Investigación en Educación; Walter Mignolo

Introdução

O conhecimento científico é a faceta epistemológica da Modernidade1. Não se pode ignorar o surgimento do paradigma científico moderno como a principal e hegemônica forma de conhecimento da natureza e da sociedade propagada a partir do que ficou configurado como Hemisfério Ocidental (MIGNOLO, 2005, p. 33).

Ações aparentemente isoladas, como as do frade franciscano Guilherme de Baskerville, personagem de Umberto Eco (1985), que valorizava a empiria, a observação, o indutivismo e a matéria, em detrimento da especulação metafísica e da lógica escolástica, retratam, ainda que literariamente, as variadas transformações que mudaram a forma do ser humano de se relacionar com a natureza e trouxeram novas perspectivas filosóficas sobre a possibilidade de conhecer a realidade, impulsionando o desenvolvimento de novas tecnologias, transformando econômica, política e culturalmente a Europa e integrando-a a outras partes do globo.

Pode-se flagrar, no interior deste processo histórico, o modo de acordo com o qual a chamada ciência moderna irá se constituindo, estabelecendo os seus cânones e, concomitantemente, consagrando o seu panteão de filósofos, cujos discursos se põem a serviço da sustentação ontológica, epistemológica e axiológica da cosmovisão moderna.

É bem verdade que antes do século XVI, já se prenunciava o surgimento do que seria essa “ciência moderna”. Antes das elucubrações cosmológicas de Copérnico, dos experimentos e observações empíricas de Galileu, bem como dos cálculos e experimentos físicos de Isaac Newton, pensadores de matiz religiosa, mas que se contrapunham ao escolasticismo, se voltavam para o realismo e o empirismo, se destacavam no interior da Igreja, como Roger Bacon, Guilherme de Okham e Duns Scotus.

Em se tratando, no entanto, da sistematização filosófica dos fundamentos epistemológicos e axiológicos da ciência moderna, destacaram-se outros pensadores como Francis Bacon, Descartes, Hume, Leibniz e Kant, os quais constituem um ilustre grupo de filósofos que ajudaram a construir os cânones do método científico e trouxeram contribuições indeléveis para a Teoria do Conhecimento (HESSEN, 1999, p. 13).

Se a formação da ciência moderna se deu em um lugar específico - a Europa Ocidental -, a crítica epistemológica realizada posteriormente não seria diferente. De fato, tal crítica também estava localizada dentro de uma cosmovisão europeia, tendo em vista a tradição a que pertenciam e de que partiam todos os seus teóricos.

Assim, a crítica intra-europeia e pós-positivista representada por importantes autores do século XX, como Piaget, Bachelard, Foucault, Popper, Habermas, Morin, Boaventura de Sousa Santos e Fritjof Capra, entre outros, apesar da inegável relevância, ainda se colocam, em grande medida, no horizonte da tradição ocidental (CAPRA, 1986; 1989; 1996; PIAGET, 1970; BACHELARD, 1978; FOUCAULT, 1997; 2008; POPPER, 1980; MORIN, 2012; HABERMAS, 2002; SANTOS; MENESES, 2009).

Com isso, não se quer recusar o reconhecimento dos impactos epistemológicos que abalaram o século XX, a ponto de se poder falar no surgimento de revoluções científicas e de novos paradigmas de pesquisa (KUHN, 1998, p. 93). São casos emblemáticos de rupturas revolucionárias a emergência da física quântica einsteiniana, bem como do princípio da incerteza de Heisenberg, que trouxeram, inegavelmente, significativas contribuições para o estudo das limitações e potencialidades da ciência moderna.

Entretanto, no presente artigo, objetiva-se ressaltar um tipo de crítica que pretende avançar para além do horizonte revolucionário mencionado, mesmo que não se deixe de considerar algumas das suas repercussões nas ciências sociais e humanas. Trata-se, pois, de examinar o potencial da teoria decolonial para se repensar o conhecimento, a realidade e os valores à luz das especificidades de uma “Epistemologia de Fronteiras”, propugnada pelo filósofo e semiólogo argentino Walter Mignolo.

Além disso, pretende-se esboçar algumas reflexões específicas sobre as implicações epistemológicas desta “Epistemologia de Fronteiras” para a pesquisa em educação, isto é, que tipo de abordagens podem emergir das análises que anunciam ter a práxis decolonial por fundamento.

É importante ressaltar que a teoria decolonial tem sido construída, principalmente, a partir de autores latino-americanos - alguns radicados nos EUA - que decidiram refletir, desde as suas vivências em países que passaram pela experiência traumática da colonização, sobre os marcadores sociais, econômicos, políticos, epistemológicos, éticos, estéticos, religiosos e subjetivos (sexualidade, gênero, raça), deixados pelo colonialismo europeu.

A amplitude das análises da teoria decolonial possibilita o exercício de uma crítica multidimensional (social, política, cultural, filosófica, etc.). Neste sentido, destaca-se o recorte feito da análise epistemológica, a fim de se aprofundar na crítica a partir do que ficou conhecido como a colonialidade do saber.

Para este fim, a investigação, de perfil qualitativo e histórico-conceitual, se dará por meio da análise de textos de natureza acadêmico-filosófica - livros e artigos acadêmicos -, como parte de uma pesquisa maior de doutorado que investiga a relação entre universidade e pensamento decolonial.

O presente texto divide-se em quatro etapas: na primeira, esboçam-se as principais categorias oriundas da crítica epistemológica do pensamento decolonial. Em um segundo momento, analisam-se algumas reflexões de Walter Mignolo, a fim de se compreender o que o autor quer dizer quando fala de uma Epistemologia de Fronteiras. Após, realiza-se uma síntese dos argumentos e das principais críticas feitas à perspectiva da Epistemologia de Fronteiras. Finaliza-se com alguns comentários sobre as implicações epistemológicas desta crítica decolonial para a pesquisa em educação.

A crítica epistemológica no pensamento decolonial

Como já citada, a matriz conceitual proposta pela teoria decolonial propicia uma análise crítica diversificada da sociedade, tendo como local de enunciação privilegiado a América Latina e a experiência de intelectuais, em sua maioria latino-americanos, que passaram a desenvolver um programa de investigação em torno das implicações econômicas, políticas, éticas, epistemológicas e ontológicas de uma sociedade que fora colonizada por europeus (ESCOBAR, 2003, p. 52).

De certa maneira, o “giro decolonial” propugnado pelo Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C) parte do pressuposto de que o continente latino-americano foi o primeiro espaço que vivenciou a violência colonial inerente a um esquema colonial/imperial moderno, ainda no final do século XV, dentro de um Sistema-Mundo capitalista que hierarquizou e dividiu geopoliticamente o mundo pela primeira vez na história, partindo de uma posição eurocêntrica (BALLESTRIN, 2013, p. 103).

Mignolo (2003, p. 23) refere-se a este programa de investigação como um “paradigma outro”, isto é, um pensamento analítico, crítico e utópico que não tem um autor de referência ou uma origem comum, mas que congrega todos os pensamentos emergentes que foram subalternizados pela expansão colonial; que tem a diversidade pluritópica como um projeto universal, em contraposição aos universalismos abstratos (cristianismo, liberalismo, marxismo, etc.) que negam o potencial epistêmico das histórias locais.

Importa assinalar que o pensamento decolonial parte da constatação de que a ideia de Modernidade foi uma criação europeia, surgida a partir da criação do “Novo Mundo”, o qual, tal qual um espelho, refletia, de maneira invertida, e contrapunha os valores civilizatórios europeus aos valores dos povos colonizados, estabelecendo novas dicotomias (razão versus barbárie, progresso versus atraso, ciência versus superstição, etc.) e novas identidades (negros, brancos, mestiços, criollos, etc.). Nesse sentido, a própria criação da América foi um ato constitutivo do moderno sistema mundial capitalista (QUIJANO, WALLERSTEIN, 1992, p. 586).

Concomitante a este processo - e com a violência com que foi estabelecida a empreitada colonial - surgiu a colonialidade, conceito cunhado por Aníbal Quijano que transcende as relações político-econômicas e administrativas engendradas pelo colonialismo, e que exprime:

Um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno, mas que ao invés de estar limitado a uma relação formal de poder entre dois povos ou nações, refere-se a forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si, através do mercado capitalista mundial e da ideia de raça. Assim, mesmo que o colonialismo preceda à colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo. A mesma se mantém viva nos manuais de aprendizagem, no critério para um bom trabalho acadêmico, na cultura, no senso comum, na autoimagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos, e em tantos outros aspectos de nossa experiência moderna. Em um sentido, respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131).

A colonialidade perpassa a cultura, a economia, a política, também o simbólico, o epistêmico e o ontológico, ou seja, forma uma articulação heterárquica, uma rede de múltiplos regimes de poder, hierarquização e opressão (CASTRO-GÓMEZ, GROSFOGUEL, 2007, p. 14), a qual exige grande amplitude analítica, que costuma ser reproduzida em três dimensões não estanques, mas inter-relacionadas: a colonialidade do poder, do saber e do ser.

A colonialidade do poder diz respeito às instituições, aos processos políticos e aos econômicos; a colonialidade do saber possui uma dimensão epistêmica, filosófica e científica, relacionada à produção do conhecimento, à legitimidade dos sujeitos cognoscentes e à hierarquia entre os saberes e a colonialidade do ser refere-se à constituição de subjetividades (sexualidade, gênero, raças, etc.) e como elas se articulam com as relações de poder que foram instituídas a partir de processos colonizadores (MIGNOLO, 2010, p. 11).

A colonialidade, desde quando surgiu, gerou o seu oposto: a decolonialidade, isto é, um projeto que busca subverter os padrões de poder herdados da modernidade. Segundo Mignolo (2008, p. 246), o projeto decolonial passa, necessariamente, pela escolha de uma opção decolonial por parte do sujeito que expressa, através de sua práxis, o desprendimento e a abertura necessária para encontrar possibilidades de conhecimentos, memórias e histórias que foram encobertas (como não-saberes) e depreciadas pela colonialidade ou estigmatizadas como conhecimentos bárbaros, primitivos, míticos e supersticiosos.

O pensamento decolonial, desta forma, alimenta-se do que foi negado pela colonialidade e das experiências vividas por sujeitos que foram desumanizados nos territórios onde sofreram com o processo de submissão colonial. Por isto, é uma teoria que convida o sujeito a adotar uma postura não somente epistemológica, mas ético-política, denominada de atitude decolonial (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 63).

A atitude decolonial é traduzida como uma postura dos sujeitos perante o mundo, cujo ponto de partida é o horror e o espanto diante da morte e do aniquilamento do outro; é um estado ético-afetivo - o amor decolonial -, que se opõe a todas as consequências concretas da colonialidade como o genocídio, o epistemicídio, o racismo e o sexismo, adotando um compromisso com práticas decoloniais. (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 66).

À atitude decolonial contrapõe-se a atitude colonial, a qual, no âmbito epistemológico, por exemplo, revela-se como eurocentrismo. Segundo Castro-Gómez e Maldonado (2007, p. 20), o eurocentrismo é “uma atitude colonial frente ao conhecimento, que se articula de forma simultânea com o processo das relações centro-periferia e as hierarquias étnico-raciais”.

Dentro de uma perspectiva eurocêntrica, somente o conhecimento gerado em sociedades colonizadoras, dentro do Sistema-Mundo Moderno, pode ser considerado o “conhecimento verdadeiro”, aplicável a todas as sociedades, em todos os tempos e lugares.

O conhecimento científico, portanto, seria o “ponto zero” do conhecimento, isto é, um conhecimento não situado, ahistórico, capaz de distanciar-se do mundo a fim de explica-lo a partir de um ponto de vista universal, que se pretende neutro e absoluto e que ficou conhecido, conceitualmente, como a hybris do ponto zero. (CASTRO-GÓMES, 2005).

A crítica epistemológica decolonial se insurge contra essa pretensão universalista da ciência moderna ao preconizar que todo conhecimento é situado em um corpo, em um tempo e em um espaço e que não pode se desvencilhar dessa imanência.

Tendo em vista a existência das relações de poder oriundas das conexões estabelecidas na colonialidade do saber, alguns conhecimentos, uma vez situados geopolítica e historicamente ao lado dos colonizadores, possuiriam um maior “privilégio epistêmico”, enquanto outros - os conhecimentos dos colonizados - seriam inferiorizados, quando não de todo destruídos. Assim, a colonialidade do saber está diretamente articulada com a ideia de geopolítica do conhecimento, racismo epistêmico e diferença colonial.

Se todo o conhecimento possui um locus de enunciação e a colonialidade do saber explicita a hierarquização de saberes em virtude de relações corporais e geopolíticas, então, diz Mignolo (2002, p.59), existe uma geopolítica do conhecimento que opera a hierarquização de lugares, nos quais certas modalidades de conhecimento, produzidas e apropriadas no centro do Sistema-Mundo, são encaradas como modernas e universalizantes enquanto os conhecimentos produzidos em regiões colonizadas e periferizadas, são considerados pré-modernos (ou não-conhecimentos), por isso são subordinados e inferiorizados.

A situacionalidade do conhecimento, além do lugar de enunciação, está encarnada no corpo do sujeito cognoscente, inscrito nas relações de poder de uma corpo-política do conhecimento, também hierarquizado por meio do racismo epistêmico, o qual estabelece quais são os sujeitos capazes, legitimamente, de produzir conhecimento, ter racionalidade, bem como de ter acesso à verdade. Em um sentido extremo, aliás, o racismo epistêmico estabelece, por meio de critérios arbitrários, quem tem ou não humanidade (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 70).

A ideia de diferença colonial é imprescindível para se pensar o processo que oculta, sob o rótulo de “diferenças culturais”, o estabelecimento de valores e hierarquias (raciais, geopolíticas, etc.) e a violência epistêmica, dentro dos lugares de poder que a experiência colonial concebe.

A diferença colonial é o espaço onde emerge a colonialidade do poder; onde se confrontam histórias locais que se hegemonizaram, tornando-se universais, com histórias locais que adaptam, rechaçam, integram ou invisibilizam-se no seio da colonialidade; é onde, por fim, surgem as situações conflitivas, de fricção, em que põe-se em jogo a perspectiva subalterna como resposta à perspectiva hegemônica.

Como mostraremos na próxima seção, para Mignolo (2003, p. 36), não se pode pensar colonialidade e decolonialidade como fenômenos isoláveis, ao contrário, devem ser compreendidos nas suas interrelações. Desse modo, é da situação de colonialidade, por um processo de diferenciação afirmativa, que emerge o pensamento de fronteira; por consequência, pode-se dizer que é na casa da ferida colonial que reside a Epistemologia de Fronteiras.

Epistemologia de Fronteiras na obra de Walter Mignolo

Há diversas expressões para fazer referência ao esforço de “superação” onto-epistemológica da colonialidade, como: Pensamento Crítico de Fronteira, Pensamento Fronteiriço, Pensamento Liminar, Epistemes de Fronteira, Epistemologia das Margens, Gnose Liminar, Gnose Marginal. Aqui, utiliza-se “Epistemologia de Fronteiras”, que é a categoria desenvolvida pelo intelectual Walter Mignolo, talvez o mais empenhado dos intelectuais vinculados ao Grupo Modernidade/Colonialidade em erigir uma crítica epistemológica condizente com a decolonialidade.

Mignolo (2008, p. 252), embora avesso ao papel controlador e normativo das definições, afirma que o “pensamento fronteiriço é o método do pensamento e a opção decolonial”. Não obstante, uma certa flexibilidade conceitual (aliás, uma característica identificada no autor) e, ignorando as distinções tradicionais feitas entre método, metodologia e epistemologia, entende-se que a Epistemologia de Fronteiras opera uma crítica decolonial às teorias do conhecimento, forjadas nos centros geopolíticos de poder, que se pretendem universalistas.

Importante, primeiramente, ressaltar que a “fronteira” (a borda, a liminaridade) a que se refere o autor não é, tão somente, a fronteira física, no sentido do limite jurídico-político que demarca o território de um Estado ou de uma colônia, mas uma metáfora que denuncia que o conhecimento é incorporado por sujeitos carnais, atravessados por contradições sociais e lutas concretas que emergem de suas experiências vividas nas zonas de contato/conflito da colonialidade (CASTRO-GÓMES, GROSFOGUEL, 2007, p. 20).

A Epistemologia de Fronteiras é abordada, de forma mais distinta, em algumas obras de Mignolo (2003, 2015), como uma opção decolonial por parte do sujeito que quer se contrapor ao projeto eurocêntrico da Modernidade.

Diferentemente da epistemologia moderna, cartesiana, que privilegia o estabelecimento de múltiplas separações e rupturas ontológicas - como entre sujeito e objeto, consciência e realidade, teoria e prática, razão e empiria (HESSEN, 1999; LANDER, 2005) -, a Epistemologia de Fronteiras ainda pensa o sujeito e opera com o sujeito, mas a partir de uma perspectiva holística, na qual coexistem o conhecer, o sentir e o fazer, dentro de uma situacionalidade histórica conflituosa e ambígua, de resistência.

Toda fronteira é marcada pela ambiguidade. Ao mesmo tempo que ela opera a separação, a diferença e demarca os espaços, ela se realiza como zona conflitante de contato, área cinzenta permeada pelo encontro e pelo encobrimento do outro (DUSSEL, 1993, p. 35).

Da mesma forma, o sujeito “fronteiriço”, ou seja, o sujeito cuja subjetividade foi forjada dentro dessa ambiguidade separação/contato, própria da Modernidade/Colonialidade, se constitui dentro do processo de “dupla consciência” (oscilando de um lado ou outro da fronteira), conceito criado por Du Bois e retomado por Mignolo (2005, p. 38) para exprimir que a consciência do sujeito fronteiriço se forma e se define por meio da subalternidade colonial, no qual o sujeito olha para si com os olhos do “outro”, os olhos da metrópole colonial, mesmo fazendo parte da “exterioridade” da fronteira.

A fronteira, portanto, é o locus da subalternidade e da diferença colonial e, mesmo em virtude dessa assimetria de poder, é o espaço do atrito, do hibridismo, da reinscrição de identidades e da invenção, pois é onde se forjam estratégias de sobrevivência, inquietude e mestiçagem que tensionam e subvertem a geopolítica do conhecimento. É um processo, portanto, inconcluso e necessário. Por isso, a fronteira é sempre um lugar de passagem, não de pouso.

Anzaldúa (2005) diz mais, referindo-se à sua condição de mulher chicana: a fronteira é um lugar de luta, uma luta da carne, nas bordas, que exige da existência “mestiça” o movimento, a ambiguidade e a insubmissão diante de toda as formas cristalizadas de pensamento.

Essas inúmeras possibilidades deixam la mestiza à deriva em mares desconhecidos. Ao perceber informações e pontos de vista conflitantes, ela passa por uma submersão de suas fronteiras psicológicas. Descobre que não pode manter conceitos ou ideias dentro de limites rígidos. As fronteiras e os muros que devem manter ideias indesejáveis do lado de fora são hábitos e padrões de comportamento arraigados; esses hábitos e padrões são os inimigos internos. Rigidez significa morte. Apenas mantendo-se flexível é que ela consegue estender a psique horizontal e verticalmente. La mestiza tem que se mover constantemente para fora das formações cristalizadas do hábito; para fora do pensamento convergente, do raciocínio analítico que tende a usar a racionalidade em direção a um objetivo único (um modo ocidental), para um pensamento divergente, caracterizado por um movimento que se afasta de padrões e objetivos estabelecidos, rumo a uma perspectiva mais ampla, que inclui em vez de excluir. A nova mestiza enfrenta tudo isso desenvolvendo uma tolerância às contradições, uma tolerância às ambiguidades. Aprende a ser uma índia na cultura mexicana, a ser mexicana de um ponto de vista anglo-americano. Aprende a equilibrar as culturas. Tem uma personalidade plural, opera de um modo pluralístico, nada é posto de lado, o bom, o ruim e o feio, nada é rejeitado, nada abandonado. Não apenas sustenta contradições como também transforma a ambivalência em uma outra coisa. (ANZALDÚA, 2005, p. 706).

A Epistemologia de Fronteiras é uma estratégia, uma opção decolonial por parte de quem vivencia a fratura da colonialidade. Nesse sentido, ela não busca uma espécie de genealogia de saberes antimodernos ou uma cruzada em torno da restauração de saberes essencialistas (supostos conhecimentos “autenticamente” indígenas, ribeirinhos, quilombolas, etc.) em contraposição a saberes eurocentrados e deslegitimados, desde o início, por seu lugar de enunciação.

Fazer isso, segundo Grosfoguel (2008, p. 117), seria adotar “uma crítica anti-europeia fundamentalista e essencialista”, uma posição de tal natureza iria na contramão do próprio potencial crítico da Epistemologia de Fronteiras (e do pensamento decolonial), pois partiria da premissa de que há apenas uma “tradição epistêmica a partir da qual pode alcançar-se a Verdade e a Universalidade” (GROSFOGUEL, 2008, p. 117): a tradição epistêmica de quem habita a ferida colonial.

É importante, ainda, ressaltar que Mignolo (2003, p. 101) inspirou-se no conceito de “dupla crítica”, do intelectual marroquino Abdelkebir Khatibi, para compreender que não se trata de escolher um fundamentalismo em detrimento de outro. Para Mignolo, Khatibi já exercitava o que chamou em sua obra, de “pensamento outro”, ao reconhecer a necessidade de exame crítico da herança dual do Magreb (por si só, já considerado um espaço de fronteira entre “Oriente” e “Ocidente”), isto é, tanto das limitações da herança colonial, quanto da impossibilidade de se alcançar uma espécie de “via genuína” de retorno essencialista ao que seriam as sociedades magrebinas.

Assim, as limitações da perspectiva do colonizador de um lado, não possibilitam do outro, o encontro com uma via genuína, um discurso “puro”, “igualitário” e intocável, por parte do colonizado. Em virtude desta consciência teórica, a Epistemologia de Fronteiras não nega a Modernidade, tampouco se limita a se subjugar aos seus parâmetros, sendo uma crítica persistente e radical a ela, tornando-se uma espécie de reflexão sobre o trauma que constitui a subjetividade colonizada (DUSSEL, 2016, p. 67).

Para Mignolo, o compromisso da Epistemologia de Fronteiras é com a pluriversalidade enquanto projeto universal, na qual “os futuros globais não poderão mais ser pensados como um futuro global, em que uma única opção é disponível” (MIGNOLO, 2017, p. 14), mas que considerará um projeto transmoderno.

Esta epistemologia, que emerge no espaço intersticial entre a tradição e a modernidade, busca ancoragens contextuais em histórias locais, em cosmovisões subalternizadas, concretizadas em uma corpo-política, geopoliticamente situada.

Falar de ativar lugares, naturezas e conhecimentos locais contra as tendências imperiais do espaço, o capitalismo e a modernidade não é uma operação deus ex machina, mas uma maneira de ir além do realismo crônico fomentado por modos estabelecidos da análise. Sem dúvida, os lugares e as localidades entram na política da mercantilização de bens e a massificação cultural, mas o conhecimento do lugar e da identidade podem contribuir para produzir diferentes significados - de economia, natureza e deles mesmos - dentro das condições do capitalismo e da modernidade que o rodeiam (ESCOBAR, 2005, p. 73).

Além da concepção de “dupla crítica”, Mignolo (2003) utiliza o conceito de “outro pensamento” de Khatibi para desenvolver a sua concepção de Epistemologia de Fronteiras. O “outro pensamento” tem um potencial epistemológico e ético: epistemológico, por criticar a limitação de tradições epistemológicas universalistas e ético, porque, sendo universalmente “marginal, fragmentário e aberto, não é etnocida”. (KHATIBI apudMIGNOLO, 2003, p. 104).

Mignolo (2003) considera não somente a concepção de “outro pensamento”, mas outras noções como “consciência dupla” (Du Bois); “visão dupla” (Wright); “nova consciência mestiça” (Anzaldúa); “fronteiras da teoria” (Calderón e Saldívar) e “tradução dupla” (Subcomandante Marcos), como pertencentes a um mesmo léxico crítico que rompe com dicotomias, refletem criticamente sobre a colonialidade do Sistema-Mundo capitalista, que dialogam e inspiram o desenvolvimento de sua concepção de Epistemologia de Fronteiras.

Mesmo considerando que a genealogia do pensamento decolonial não se limita a indivíduos, mas incorpora-se a movimentos sociais, Mignolo (2008) cita o caso de Guaman Poma de Ayala como exemplo paradigmático do exercício de uma Epistemologia de Fronteiras.

Guaman Poma de Ayala foi um indígena que viveu no século XVI, no Vice-Reino do Peru. Descendente de dinastias andinas, foi versado na cultura hispânica desde muito cedo, o que lhe possibilitou escrever uma obra intitulada Nueva Crónica y Buen Governo e enviá-la ao monarca Felipe III. Por isso, Guaman Poma de Ayala, sendo um sujeito colonial, segundo Mignolo, viveu na liminaridade e na ambivalência.

Ademais, como sujeito colonial, Waman Puma teve uma subjetividade de fronteira (dupla consciência, consciência mestiça, na terminologia de hoje), subjetividade da qual não poderiam participar nenhum dos castelhanos, incluindo Juan de Betanzos que havia se casado com uma princesa inca. O pensamento fronteiriço surge da diferença colonial/imperial de poder na formação das subjetividades. Daí que o pensamento fronteiriço não seja conatural a um sujeito que habita a casa do império, mas seja na formação de sujeitos que habitam a casa da ferida colonial. (MIGNOLO, 2008, p. 260).

Somente através de sua subjetividade de fronteira que Guaman Poma de Ayala foi capaz de problematizar o conflito entre a cosmologia andina, em que fora formado, e a cosmologia cristã europeia, que lhe fora imposta, de tal maneira que poderia se distanciar da dualidade e das múltiplas separações e rupturas ontológicas da Epistemologia Moderna, a fim de assumir as ambivalências que habitavam o seu corpo.

Assim, Guaman explicitou uma teoria política em que articulou a concepção andina do mundo - o Tawantinsuyu - e o princípio do Buen Vivir, como crítica ao regime monárquico espanhol e ao capitalismo mercantil, tendo como objetivo construir a ideia de buen gobierno. O conhecimento de Guaman, no entanto, foi silenciado, deslegitimado e invisibilizado por séculos, pelos próprios castelhanos (MIGNOLO, 2008, p. 258).

Guaman, ao abrir-se para uma Epistemologia de Fronteiras, não buscou uma concepção “essencialmente” andina que pudesse suplantar, eliminar - como se fosse possível - a cosmologia do colonizador tal qual um ser que agoniza, condenado a escolher entre a luz ou a escuridão.

Ao contrário, como um ser “que questiona as definições de luz e de escuridão e dá-lhes novos significados” (ANZALDÚA, 2005, p. 708), Guaman produziu conhecimento para além das rígidas dicotomias dos cânones europeus, a partir de uma história local - suas memórias, seu corpo, sua biografia - construída dentro da diferença colonial.

Crítica à “Epistemologia de Fronteiras”

O pensamento de Walter Mignolo e, mais precisamente, a sua concepção de Epistemologia de Fronteiras tem gerado um fecundo debate, permeado por algumas críticas que buscam revelar as possíveis limitações - e mesmo as supostas contradições performativas - do pensamento decolonial.

Aqui se intentará fazer uma breve compilação dessas críticas a fim de estimular as reflexões em torno dos desafios que confrontam o pensamento decolonial, notadamente no âmbito epistemológico, sem que haja um posicionamento a respeito do argumento apresentado, tendo em vista o espaço reduzido do artigo.

Freitas (2019) ressalta o que, em sua opinião, seria um paradoxo: enquanto a Epistemologia de Fronteiras propugna a valorização de um conhecimento que deve emergir, geopoliticamente, do espaço colonizado - como o da América Latina -, a rede Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade se articula, originalmente, a partir do universo acadêmico de uma potência imperial (EUA).

Desta forma, sustenta o crítico que “soa paradoxal a tentativa de falar a partir da América Latina, mas com os pés firmes em um espaço gringo de uma chamada potência imperial e muitas vezes lançando a voz no idioma de Whitman” (FREITAS, 2019, p. 152).

Outrossim, Freitas (2019, p. 163) questiona até que ponto o pensamento fronteiriço, isto é, o pensamento oriundo de uma Epistemologia de Fronteiras, que é a marca do intelectual decolonial, foi assumido na própria práxis de Mignolo, tendo em vista a sua experiência (como docente, pesquisador, etc.) em um mercado acadêmico globalizado, autolegitimador e colonial, distante das possibilidades de diálogo com os sujeitos e agrupamentos sociais verdadeiramente subalternizados.

Se a Epistemologia de Fronteiras exige uma opção ético-política e uma práxis decolonial por parte do sujeito, torna-se natural que existam algumas críticas ad hominem, uma vez que as implicações epistemológicas do pensamento decolonial exigem que o sujeito de enunciação pertença à liminaridade - geopoliticamente e corpo-politicamente -, assumindo uma práxis decolonial, sob o risco de se incorrer no que Spivak (2010, p. 32) criticava em relação aos intelectuais pós-coloniais: de se falar, autoritariamente, pelo subalterno.

Cusicanqui (2010, p. 58), da mesma forma, é severa ao denunciar o que poderia ser uma contradição performativa de Mignolo, ao afirmar que o autor construiu “um pequeno império dentro do império”, orientado por marcadores simbólicos, culturais e hierárquicos de uma estrutura acadêmica eurocêntrica, que neutraliza as práticas decoloniais dos subalternos, desenvolvendo conceitos alheios às raízes dos coletivos habitantes da ferida colonial, bem como que se apropriando - em uma espécie de extrativismo epistêmico - de ideias de intelectuais indígenas sem lhes atribuir influência ou autoria.

Browitt (2014), Cheah (2006) e apresentam críticas diversas e de outra natureza, não mais voltada para a práxis do intelectual Mignolo, mas relacionadas a aspectos analíticos e epistemológicos.

Tais autores acusam os teóricos da decolonialidade - focando na produção de Mignolo, no entanto - de apresentar uma explicação redutora e estática do que seria a Europa, a Modernidade e o Ocidente, criando binarismos (como Europa-Periferia; europeu e não-europeu) que não dariam conta da fluidez das relações de poder e dominação que emergem da realidade, nem explicariam a origem complexa da Modernidade, em muitos aspectos anterior aos próprios movimentos colonialistas.

Nesse sentido, há uma crítica permanente à noção de Epistemologia de Fronteiras como um tour de force que reproduziria uma posição “essencialista” de Mignolo, em torno das formas de conhecimento e da existência do europeu, e do não europeu, principalmente do indígena, ignorando que tais identidades são problemáticas e dinâmicas.

Para Browitt (2014, p. 37), por exemplo, Mignolo tem uma concepção demasiadamente “edênica” - semelhante ao mito do “bom selvagem” - da cultura indígena, como se ela fosse necessariamente igualitária, não competitiva e capaz de promover formas legítimas de conhecimento, tão somente por serem não europeias.

Semelhantemente, Cheah (2006, p. 11) diz que “as línguas indígenas não são inerentemente igualitárias ou libertadoras somente por serem não europeias. As línguas não europeias podem ter registros hierárquicos, conservadores e reacionários”.

Browitt (2014, p. 32) prossegue em sua crítica ao dizer que Mignolo atribui um problemático “privilégio epistêmico” às comunidades e sujeitos, tão somente por terem vivenciado o lado etnocida e epistemicida do processo colonizador. Ao mesmo tempo, questiona se o racismo, o patriarcado, o etnocentrismo e o sentimento de superioridade cultural é prerrogativa apenas dos europeus ou se também estiveram presentes em outros arranjos societários, o que seria ignorado por Mignolo, ao relatar uma “versão rosada” da história pré-colombiana.

Para Browitt (2014, p. 37), Mignolo é nostálgico de uma “Arcádia” epistemológica e política, constituindo uma crítica monológica - que ignora a diversidade de grupos urbanos, indígenas, de afrodescendentes e suas dinâmicas, etc. - e um novo universalismo -, mesmo sob um discurso de pluriversidade e diversalidade - que impõem um novo maniqueísmo e novos estereótipos: a subjetividade não europeia transparente, estável e não problemática (indígena, quilombola, homossexual, mulher, etc.) em contraposição ao opressor homem branco heterossexual do Ocidente.

Desta maneira, tal argumento afirma que, ao se ignorar que todas as subjetividades são fenômenos cambiantes e adaptativos ao contexto em que operam, a Epistemologia de Fronteiras fundar-se-ia em uma violência simbólica das subjetividades que “essencializa” a subjetividade de indivíduos, estimulando “particularismos militantes”.

Por isso, a Epistemologia de Fronteiras tornar-se-ia um “espaço místico”, quase religioso, em que “seus devotos e sumo sacerdotes carismáticos falam com uma autoridade auto outorgada, baseada em antieuropeísmo, sem matizes”. (BROWITT, 2014, p. 44).

Por sua vez, Orellana (2015, p. 269) ressalta a ambiguidade do conceito de Epistemologia de Fronteiras ou, como denomina, pensamento fronteiriço: simultaneamente é um tipo de enunciação e o lugar do qual se enuncia, fundador de dicotomias, pois descreve as bordas assimétricas do Sistema-Mundo Moderno/Colonial, nas quais um dos lados (o exterior, o lado da vítima) não está em igualdade de condições com o outro (o interior, do colonizador). É do lado da exterioridade da fronteira que se produz subjetividades fronteiriças, as quais dão materialidade à diferença colonial.

Desta maneira, afirma Orellana (2015, p. 268), a Epistemologia de Fronteiras parte do pressuposto de que existem comunidades e sujeitos capazes de controlar e conservar para si mesmos, a sua própria perspectiva, conhecimentos e categorias instituindo um certo essencialismo da subalternidade e das chamadas “culturas originárias” (FRANZÉ, 2013, p. 238).

Crítica, assim, o que chama de “política da identidade”, que procura preservar e assegurar um fundo de “pureza cultural”, ignorando que o conhecimento local está sujeito à hibridização, à mestiçagem, à apropriação por terceiros, à canibalização (metafórica) de sujeitos e de processos culturais (CASTRO, 2008, p. 261; ORELLANA, 2018, p. 269).

Nesse sentido, Orellana (2015), Castro (2008) e Franzé (2013) parecem realizar uma crítica pós-estruturalista - baseada em Foucault, Deleuze, etc. - à concepção de identidade e de sujeito que está implícita no pensamento de Mignolo, a qual, segundo eles, é uma noção estática, essencialista e mistificadora.

É em favor deste sujeito “essencialmente” subalterno, colonizado, que Mignolo é acusado de estabelecer uma espécie de “privilégio epistêmico”, que condiciona o valor superior de uma perspectiva epistêmica a partir de critérios espaciais (o lugar de onde se enuncia) e étnico-raciais (o corpo do sujeito que enuncia). (CASTRO, 2008; ORELLANA, 2015; SALVATORE, 2006).

Tal legitimidade, segundo os seus críticos, possibilita a formação de espaços assimétricos e a criação de sujeitos privilegiados, isto é, uma forma de espelhamento dos mesmos processos adotados pelos europeus em relação aos colonizados, só que com o sinal trocado2.

Esta distinção (privilégio, para alguns, direito, para outros), segundo Orellana (2015, p. 9), resta presente na divisão feita por Mignolo entre pensamento fronterizo e pensamento fronterizo débil.

Enquanto o primeiro emerge das experiências, da história local, das memórias, da biografia do corpo que habita a ferida colonial, como no caso de Guamán Poma de Ayala, Frantz Fanon ou Henrique Dussel; o segundo padece de uma espécie de déficit cognoscitivo, pois não emergiria do sofrimento da vítima colonial, mas das experiências de sujeitos que, mesmo sendo pertencentes ao império colonial - “contaminados”, portanto, pela diferença colonial - tomariam a perspectiva e um compromisso crítico em favor dos colonizados, como Bartolomé de las Casas e Immanuel Wallerstein.

Essa “autoridade cognoscitiva” dos sujeitos fronteiriços faz com que Orellana (2015, p. 13) afirme que Mignolo seria mais honesto se reconhecesse, de forma explícita, que “o border thinking se fundamenta no privilégio da vítima para denunciar a ferida colonial”.

Salvatore (2006, p. 136) vai além ao dizer que Mignolo simplifica e aborda de forma reducionista e essencialista a história diversa da intelectualidade e das instituições de ensino na América Latina, chegando a questionar: quem iria atribuir a certos autores a representatividade étnico-racial dos subalternos em detrimento de outros? Seria o próprio Mignolo?

Franzé (2013, p. 244) ressalta que tal essencialismo é menos marcado por pretensas características “puras” e pré-definidas, inerentes a um sujeito ou coletividade, e mais pela existência de experiências, memórias individuais e coletivas que são essencializadas. Desta maneira, “o discurso subalterno legítimo somente pode ser enunciado pelos subalternos, pois só eles têm uma experiência direta de tal condição” (FRANZÉ, 2013, p. 245).

Aliás, isso faz com que haja um vínculo epistêmico privilegiado entre discurso e experiência (do negro, do branco, do europeu, da chicana, etc.) que diferencie, entre outras identidades, a experiência de ser negro e de ser branco e as suas respectivas posturas diante, por exemplo, da escravidão.

Assim, um teórico marxista branco teria propriedade para criticar a escravidão por suas bases teóricas, sem alcançar, no entanto, a legitimidade epistêmica e cognoscitiva de um negro de criticar a escravidão, pelo fato de ser negro, por ter vivenciado a experiência do racismo e do preconceito em seu corpo, em sua memória, em sua biografia.

Franzé (2013, p. 245) problematiza as bases que fundamentariam essa “metafísica decolonial” que definiria quem seria o subalterno, o damné, cuja condição não seria suficiente, mas necessária para o pensar a partir da Epistemologia de Fronteiras. Tal definição teria por base a cor da pele, a ancestralidade, o local de nascimento ou o idioma em que se expressasse? Tais definições não incorreriam no mesmo essencialismo metafísico que a proposta decolonial pretende superar?

Enquanto, por exemplo, Mignolo (2003) insere Francisco Bilbao em uma espécie de genealogia de pensadores dissidentes decoloniais - ao lado de Guaman Poma de Ayala e Ottobah Cugoano -, para Orellana (2014, p. 7), o pensador chileno, não obstante seu pensamento original em torno dos povos indígenas, ainda tinha um regime discursivo pautado por categorias moderno-europeias (como a ideia de nação, o pensamento liberal, a influência da Ilustração, etc.), não se propondo em ser anti-moderno ou a falar a partir de uma suposta “exterioridade” da fronteira.

A estas questões que emergem das implicações de uma Epistemologia de Fronteiras, Castro (2008, p. 263) acrescenta outras:

Estas novas formas de pensar estão realmente fora do capitalismo global? Não estamos convertendo a determinados subalternos e as suas perspectivas nos novos agentes privilegiados do futuro e na única maneira de ler a realidade? [...] Qual seria o diálogo possível entre os movimentos de emancipação que surgem no centro do Sistema-Mundo e o projeto decolonial?

Acrescente-se, ainda, que Mignolo (2003, p. 150) situa Frantz Fanon como intelectual pertencente à genealogia de sujeitos que pensaram o mundo a partir de uma Epistemologia de Fronteiras, desde a sua experiência como negro, argelino e militante das lutas anticolonialistas. Em sua atitude decolonial, Fanon teria se desprendido do imperialismo epistêmico europeu, mesmo aquele vinculado ao “pensamento de esquerda”.

Turrión, López e Galván (2008, p. 287), no entanto, afirmam que Fanon fez uma crítica da esquerda - notadamente da esquerda europeia - a partir do marxismo, sem abrir mão de categorias fundamentais para este referencial teórico, como classe social, alienação e trabalho.

Da mesma forma, Turrión, López e Galván (2008, p. 290) dizem não ser possível identificar nos movimentos históricos de luta mobilizados por negros e indígenas uma ruptura radical com a episteme ocidental. Ao contrário, tais movimentos - articulados sob a ideia de uma África Global ou, no caso dos indígenas, como movimentos étnico-políticos - foram influenciados por setores negros protestantes (cristãos liberais), bem como pelo internacionalismo comunista de matriz europeia, assim como muitas contribuições de intelectuais marxistas foram incorporadas nas práticas dos movimentos indígenas na América Latina.

Nesse sentido, o que Mignolo considera como pensamento fronteiriço, como Epistemologia de Fronteiras, seria problemático, pois nenhuma ideia, conceito ou valor propugnado estaria isento de “contaminação” por categorias da modernidade europeia, principalmente em se tratando de mundo plenamente globalizado como o nosso, sendo a “exterioridade” da fronteira, portanto, uma mera ficção.

Epistemologia de Fronteiras e pesquisa em educação

Não obstante as críticas supracitadas - a que se somam, a cada dia, novas leituras -, não se pode ignorar que a abordagem epistemológica decolonial tem influído na pesquisa em educação, principalmente enquanto exame de suas bases constitutivas, forjadas na modernidade. É a partir desta constatação que poderíamos esboçar algumas reflexões.

Se o sujeito atravessado pelas contradições, que emergem de suas experiências vividas nas zonas de confronto/contato da colonialidade, metaforicamente representadas pela fronteira, é o ponto de toque dessa epistemologia crítica, a pesquisa em educação que se propõem decolonial deve atentar para a realidade corporal, histórica e geográfica de seus sujeitos (sujeitos-pesquisadores e sujeitos-pesquisados).

Para que a pesquisa em educação seja decolonizada, portanto, faz-se imprescindível que a investigação surja das práticas sociais de sujeitos situados na ferida colonial. É por isto que se torna essencial pressupor que existem fenômenos educacionais nas experiências comunitárias, nos movimentos sociais, nos quilombos, nas comunidades indígenas e em outras formas de sociabilidade, não necessariamente vinculados a espaços institucionais surgidos na Europa, como a educação escolar e universitária.

Walsh (2017, p. 28) é assertiva, por exemplo, ao reconhecer que há um enlace entre o pedagógico e o decolonial, que ganha sentido ético-político e existencial a partir das ações e memórias coletivas de povos indígenas e de afrodescendentes. Por meio destas práticas seculares de sujeitos confrontados cotidianamente com a colonização e a colonialidade, é que se entretece o pedagógico e o decolonial sendo, portanto, a partir deste enlaçamento que surgem os grandes temas de pesquisa em educação, dentro uma perspectiva decolonial.

A pesquisa em educação fundada em uma Epistemologia de Fronteiras, desta forma, deve primeiramente enfocar as práticas sociais dos sujeitos de fronteira, reconhecendo o que há de pedagógico nelas.

Em um segundo momento, a Epistemologia de Fronteiras tensiona o próprio quefazer do pesquisador. Por isso é tão importante que a universidade seja atravessada por grupos sociais mais diversos, pelos seus conhecimentos, suas experiências comunitárias, suas formas de leitura do mundo que testemunhem o seu “privilégio epistêmico”, para elaborar pensamentos de fronteira.

A legitimação e a humanização da presença de sujeitos fronteiriços na universidade (quilombolas, indígenas, movimentos sociais, etc.), vinculados institucionalmente ou não, enquanto produtores de conhecimento, não passivos, com potencialidades críticas, é a porta de entrada para que o próprio espaço universitário seja objeto de crítica em suas bases coloniais, seja no ensino, na pesquisa ou na extensão.

Desta forma, poderia-se afirmar que a pesquisa em educação decolonial alimenta-se da presença desses sujeitos, dos corpos não esperados na Universidade, sendo a democratização desta instituição uma condição necessária para quaisquer práxis de investigação que se se proponham decolonial nos âmbitos teóricos, epistemológicos e metodológicos.

O Brasil, por exemplo, com a maior inserção da população afrodescendente e indígena nas universidades nos últimos 15 anos, por meio das políticas de cotas étnico-raciais, abriu-se à possibilidade de “incorporar a experiência negra e indígena, não apenas na formulação do conhecimento, mas também na busca de soluções para os problemas que enfrentamos (BERNARDINO-COSTA, GROSFOGUEL, 2016, p. 22).

Carvalho (2018, p. 79) ressalta que a discussão sobre as cotas e a sua inserção, enquanto política pública educacional de acesso ao Ensino Superior, possibilitou um movimento de decolonização da universidade, de seus padrões racistas e eurocêntricos, principalmente no tocante à discussão sobre os currículos acadêmicos.

Outrossim, o autor chama a atenção para o movimento do “Encontro de Saberes” como promotor de “cotas epistêmicas”, nas quais há a inclusão de mestres e mestras dos povos tradicionais (quilombolas, indígenas, culturas populares tradicionais) na universidade, como professores que, em matérias regulares, ao lado de docentes universitários, ensinam os seus conhecimentos a partir de seus lugares fronteiriços, como verdadeiros “Guamans Poma de Ayala” do século XXI (CARVALHO, 2018, p. 106).

É, portanto, neste contexto de inserção de discentes e docentes com conhecimentos outros, que a pesquisa em educação constrói os seus estudos, partindo da experiência social de sujeitos fronteiriços.

Araújo (2017, p. 93), por exemplo, realiza um estudo de caso do Mestrado Profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais (MESPT), da Universidade de Brasília (UnB), que intenta formar pesquisadores e docentes universitários com o fim de “dar visibilidade às experiências educativas em curso na UnB que subvertem a lógica da monocultura do conhecimento ocidental eurocêntrico, bem como o racismo e elitismo da universidade” (2017, p. 93).

Podemos ressaltar, ainda, o trabalho de Sousa (2017, p. 261), que esboça uma maneira outra de ser pesquisadora e fazer pesquisa acadêmica e intelectual em educação. Um modo que considera o pensar emocional, a intuição, o acaso e a dimensão do “corazonar”. Partindo de sua vivência junto a professores kaingang e mbya guarani na Ação Saberes Indígenas na Escola, de 2013 a 2017, a autora propõe uma postura intelectual, acadêmica e política de luta decolonial a partir do corazonamiento do saber, do poder e do ser, que religa a afetividade à racionalidade intelectual.

Outros exemplos relevantes, que denunciam as implicações da Epistemologia de Fronteiras nas pesquisas em educação, são as investigações que tratam das práticas formativas de povos - sujeitos fronteiriços - que se organizam para educar os seus membros a partir de currículos próprios, constituindo, até mesmo, universidades, muitas das quais não reconhecidas, oficialmente, pelos Estados Nacionais em que se localizam.

É o caso, por exemplo, da Universidade Intercultural Amawtay Wasi, uma experiência comunitária de Ensino Superior, no Equador, que se propõe intercultural, voltada para garantir aos povos indígenas uma educação fundada em premissas ligadas aos seus valores culturais, étnicos e morais.

Esta instituição tem gerando um fecundo debate no âmbito das pesquisas em educação (HUANCA SOTO, 2017; ROSA, 2016; CAVALAZZI, MELO, SOARES, 2018), ao lado de outras experiências pedagógicas que surgem nas comunidades e atravessam os sujeitos invisibilizados pelo padrão de poder da colonialidade.

Isto demonstra que o pensamento decolonial e a sua elaboração epistemológica correspondente - a Epistemologia de Fronteiras - tem conduzido a pesquisa em educação a desafios diversos, de maneira a fomentar outros problemas e objetos de estudo, a partir de novas lentes.

Considerações Finais

Como visto, a Epistemologia de Fronteiras - a partir da análise de Walter Mignolo - é uma categoria essencial que sintetiza a episteme do pensamento decolonial, tornando-se um verdadeiro ponto estratégico para a demarcação da crítica epistemológica da teoria decolonial em relação a qualquer crítica epistemológica intra-europeia, mesmo a pós-moderna.

Tal contribuição para a crítica epistemológica decolonial, possibilita a reflexão em torno da possibilidade de construir conhecimentos para além dos rígidos cânones europeus universalizantes de pesquisa, mas em corpos e locais situados no tempo-espaço de sociedades que vivenciam a colonialidade até os nossos dias.

A Epistemologia de Fronteiras não é um método no sentido do método científico - fechado sobre si mesmo, autorreferente, universalizado -, mas uma crítica decolonial às teorias do conhecimento forjadas nos centros geopolíticos de poder. De onde se segue que o conhecimento é situado em um espaço e em um corpo, de sujeitos atravessados por contradições sociais e lutas concretas, que emergem de suas experiências vividas nas zonas de contato da colonialidade, metaforicamente representados pela fronteira.

Como a fronteira é o local da subalternidade, da diferença colonial e, ao mesmo tempo, é o locus das estratégias de resistência, da opção decolonial e da emersão das histórias locais, seus saberes e suas memórias; a Epistemologia de Fronteiras torna-se um compromisso epistemológico, ético e político em favor da pluriversalidade, enquanto projeto universal que vai de encontro a quaisquer universalismos abstratos.

Desta forma, a Epistemologia de Fronteiras localiza e historiciza o conhecimento e os sujeitos de pesquisa, bem como contribui para pensar e operacionalizar métodos decoloniais de pesquisa, uma vez que toda epistemologia condiciona o caminho e o método de apreensão da realidade.

Porém, a Epistemologia de Fronteiras tem gerado controvérsias e críticas que alcançam os próprios fundamentos da teoria decolonial. Desta forma, sistematizamos as principais críticas em torno da Epistemologia de Fronteiras a fim de apresentarmos os argumentos, mesmo que de forma panorâmica, que problematizam algumas questões relevantes, principalmente em termos epistemológicos do pensamento decolonial.

Assim, intentamos contribuir para fecundar o debate em torno da teoria decolonial, a qual tem ganhando maior relevância nas pesquisas em educação, de tal forma que os pesquisadores possam atuar com maior consciência crítica em suas práxis acadêmicas, bem como possam entrever as potencialidades e as limitações da proposta decolonial.

Abaixo, sistematizamos as críticas e os argumentos mais comuns realizadas em torno da Epistemologia de Fronteiras, como forma de ordenar os argumentos, possibilitando o debate de forma mais apurada:

Ressaltamos, primeiramente, a crítica (ad hominem) à prática epistêmica de Walter Mignolo, que busca questionar até que ponto a Epistemologia de Fronteira - a marca do intelectual decolonial - foi assumida nas suas próprias análises, de forma a deslegitimar os seus posicionamentos epistêmicos, políticos e éticos.

Tendo em vista que o local de enunciação de Mignolo, bem como as suas experiências são oriundas do mundo universitário, acadêmico-globalizado, situado um espaço colonizador (EUA), desvinculado dos coletivos e movimentos sociais que confrontam a colonialidade, o semiólogo argentino foi admoestado, ainda, por realizar uma espécie de “extrativismo epistêmico” de sujeitos e coletividades, sem lhes atribuir a relevância ou mesmo a autoria de certas categorias teóricas (CUSICANQUI, 2010, p. 74).

Uma outra crítica, mais analítica e epistemológica (BROWITT, 2014; CHEAH, 2006), questiona o pensamento decolonial, principalmente o de Mignolo, por apresentar o que seria uma explicação reducionista e estática de categorias como Europa, Modernidade e Ocidente, forjando dicotomias, binarismos e fronteiras (como Europa-Periferia e Eurocentrismo-Epistemologia de Fronteiras) que não dariam conta da fluidez das relações de poder e dominação que regem a realidade, nem da própria origem da Modernidade, que seria anterior aos movimentos colonialistas do final século XV.

Mignolo é correntemente criticado por pós-estruturalistas por analisar os sujeitos e coletividades que habitam a diferença colonial a partir de uma ótica “essencialista”. Nesse sentido, seus críticos (CASTRO, 2008; FRANZÉ, 2013; ORELLANA, 2015) argumentam que a Epistemologia de Fronteiras parte do pressuposto de que existem comunidades e sujeitos que representariam “essencialmente” a subalternidade, pois estariam “do lado de fora” da fronteira instituída pela colonialidade.

Desta forma, Mignolo estaria instituindo uma “política da identidade”, preservacionista de uma mítica pureza cultural dos grupos subalternizados, ignorando que o conhecimento local está sujeito à hibridização, à mestiçagem, à apropriação por terceiros, à canibalização de sujeitos e de processos culturais.

Mignolo é contestado, de forma complementar (BROWITT, 2014; CHEAH, 2006), por apresentar uma perspectiva “edênica” - semelhante ao mito do “bom selvagem” - da cultura indígena, como se dela e de outros grupos que sofrem com a violência colonial, decorresse, necessariamente, valores éticos e perspectivas epistêmicas superiores, tão somente por serem de origem “não europeias”, que garantiriam a eles um “privilégio epistêmico” diante de outros sujeitos e coletividades, por seu lugar de enunciação ser a borda, a fronteira.

Outra crítica, em perspectiva ontológica (FRANZÉ, 2013), se depara com os desafios em identificar quais os critérios seriam apropriados para identificar o que une a todos os sujeitos e coletividades subalternas, a fim de se determinar quem possui um pensamento fronteiriço e sob qual ancoragem, sem que se recaia em uma politização epistêmica aleatória.

Em resumo, quais critérios definiriam, por exemplo, o que une ou separa o indígena que vive em sua comunidade isolada dos agrupamentos urbanos, do homossexual que habita em uma grande metrópole? Haveria convergências entre o intelectual filho de imigrantes, que pesquisa nos EUA, do intelectual negro quilombola que atua na educação do campo?

Pensamos que tais problematizações contribuem, de uma forma ou de outra, para o avanço das análises em torno da teoria decolonial, sendo necessário o confronto específico de cada crítica em outros estudos, de maneira transdisciplinar e colaborativa.

Por fim, tentamos iniciar algumas reflexões em torno das implicações da Epistemologia de Fronteiras para a pesquisa em educação. Constatamos que o ponto de toque dessa epistemologia, para uma pesquisa que se propõe decolonial, é a realidade corporal, histórica e geográfica de seus sujeitos (sujeitos-pesquisadores e sujeitos-pesquisados).

Desta forma, para que a pesquisa em educação seja decolonizada, faz-se imprescindível que a investigação surja das práticas sociais de sujeitos e coletivos situados na ferida colonial, cabendo à pesquisa em educação, fundada em uma Epistemologia de Fronteiras, enfocar as práticas sociais dos sujeitos de fronteira, reconhecendo o que há de pedagógico nelas como, por exemplo, no caso das universidades indígenas e interculturais.

Isto traz implicações para o quefazer do pesquisador, bem como para a própria organização da universidade. De certa forma, os compromissos ético-políticos e epistemológicos da práxis decolonial exigem a democratização da universidade, de forma que ela incorpore a experiência negra, indígena, dos movimentos populares, dos ribeirinhos, dentre outros grupos que são sujeitos de conhecimento e que podem contribuir, não apenas para a formulação do conhecimento, mas também para a busca de soluções para os complexos problemas que enfrentamos neste século.

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1Aqui, usa-se o termo “Modernidade” na acepção propugnada pelos teóricos latino-americanos da decolonialidade, isto é, como um longo processo histórico, iniciado em 1492, em que a passagem do feudalismo para o capitalismo, o Renascentismo, a Reforma Protestante, a emergência do circuito comercial do Atlântico, a Ilustração, a Revolução Industrial e as Revoluções Burguesas se articularam inextricavelmente com as políticas colonialistas adotadas por nações europeias em relação a populações não europeias. (DUSSEL, 1993; MIGNOLO, 2005).

2É importante ressaltar que Mignolo (2010, p. 32) rebate a crítica ao estabelecimento de um “privilégio epistêmico” em favor de sujeitos não europeus, ao dizer que os subalternos não têm um privilégio, mas um “direito epistêmico” em não serem assimilados, oriunda da luta em prol de uma “justiça epistêmica”, que reestabeleça a condição de serem tratados como produtores/criadores de conhecimentos, em seus próprios termos e condições.

Recebido: 01 de Junho de 2020; Aceito: 21 de Outubro de 2021

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