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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.74 Uberlândia maio/ago 2021  Epub 15-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n74a2021-60609 

Artigos

A potencialidade na filosofia da educação antiga e medieval 1

Potentiality in the philosophy of ancient and medieval education

Potencialidad en la filosofía de la educación antigua y medieval

*Doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: laisboveto@hotmail.com

**Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Professora Titular da Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: teleoliv@gmail.com


Resumo

O texto aborda a potencialidade, na filosofia da educação antiga e medieval, como a capacidade de aperfeiçoamento da razão. A noção de paideia conduz essa reflexão, uma vez que perpassa o pensamento educacional desde a antiguidade clássica até a baixa Idade Média. Essa continuidade explicita a tradição da formação integral do homem que considerava os aspectos morais e políticos como uma totalidade indissociável. O encaminhamento teórico segue a concepção de História Social de Braudel (1902-1985), já que o foco é a compreensão da herança teológica e filosófica, que exprime os fundamentos da educação. Para refletir sobre esse legado do conhecimento, três momentos foram estudados: a paideia grega na perspectiva aristotélica e platônica; a patrística, por meio do entendimento de Clemente de Alexandria (150-215 d.C.) e de Agostinho de Hipona (354-430 d.C.); e a escolástica, analisada nas concepções de Hugo de São Vítor (1096-1141) e Tomás de Aquino (1225-1274). Assim, nos autores apresentados, há a permanência da compreensão de que o aperfeiçoamento da razão significava a transformação em ato da potência essencial do homem: a razão. A principal finalidade da educação, portanto, era a formação da consciência de cada pessoa, pois entendia-se que esse era o principal meio para o êxito da vida em comum.

Palavras-chave: Filosofia da Educação; Potencialidade; Paideia; Patrística; Escolástica

Abstract

The text addresses the potentiality, in the philosophy of ancient and medieval education, as the ability to improve reason. The notion of paideia guides this reflection since it pervades educational thought from classical antiquity to the low Middle Ages. This continuity explains the tradition of the integral formation of man which considered the moral and political aspects as an inseparable totality. The theoretical approach follows Braudel’s conception of Social History since the focus is on understanding the theological and philosophical heritage, which expresses the fundamentals of education. To reflect on this legacy of knowledge, three periods were studied: the Greek paideia in the Aristotelian and Platonic perspective; patristic, through the understanding of Clement of Alexandria and Augustine of Hippo; and scholasticism, analysed in the conceptions of Hugh of Saint Victor and Thomas Aquinas. Thus, there is a continuing understanding in the authors presented that the improvement of reason meant the actualization of man's essential potency: reason. The main purpose of education was the formation of the conscience of each person, as it was understood that this was the main means for the success of life in common.

Key words: Philosophy of education; Potentiality; Paideia; Patristic; Scholastic

Resumen

El texto aborda la potencialidad en la filosofía de la educación antigua y medieval, como capacidad para mejorar la razón. La noción de paideia orienta esta reflexión ya que impregna el pensamiento educativo desde la antigüedad hasta la baja Edad Media. Esta continuidad explica la tradición de la formación integral del hombre que consideraba los aspectos morales y políticos como una totalidad. El enfoque teórico sigue la concepción de Braudel de Historia Social, ya que el enfoque está en la comprensión de la herencia teológica y filosófica, que expresa los fundamentos de la educación. Por tanto, se estudiaron tres períodos: la paideia griega en la perspectiva aristotélica y platónica; la patrística, a través del entendimiento de Clemente de Alejandría y Agustín de Hipona; y escolasticismo, analizado en las concepciones de Hugo de San Víctor y Tomás de Aquino. Por lo tanto, existe un entendimiento continuo en los autores presentados de que la mejora de la razón significó la actualización de lo potencial del hombre: la razón. El propósito principal de la educación era la formación de la conciencia de cada persona, pues se entendía que este era el principal medio para el éxito de la vida comunitaria.

Palabras-clave: Filosofía de la educación; Potencialidad; Paideia; Patrística; Escolástica

Introdução

A finalidade do texto é salientar a noção de potencialidade como conceito fundamental na filosofia da educação antiga e medieval. O fio condutor é a consideração de que a potencialidade de transcender a matéria e aperfeiçoar a alma é constante em diferentes períodos da antiguidade e da medievalidade e é uma premissa basilar para a compreensão do pensamento educacional. A formação decorrente de uma compreensão da alma humana como potência permanente está presente na paideia grega, na patrística e na escolástica e no desenvolvimento das artes liberais2 como forma de aprimoramento da alma. A potencialidade se refere à possibilidade de libertação relativa a uma realidade de servidão à vida vegetativa e sensitiva. É a saída da condição de existência puramente material, de dependência das necessidades dos sentidos, para uma condição de vida intelectual, de liberdade para a busca da verdade que conduz ao aperfeiçoamento. O entendimento de alma e de formação humana se alinham com a constituição do homem (corpo e alma) e, sobretudo, com as características que podem ser desenvolvidas. Tornar ato as potencialidades para o bem e para a verdade não é um objetivo considerado simples, em meio a tantos vícios, porém, é uma ação percebida, pelos homens que se dedicam à filosofia, como essencial para a vida em comum.

A perspectiva teórica utilizada para a elaboração do texto parte da analogia de Braudel (1902-1985) sobre as três dimensões da história e o oceano. A história propriamente dita seria o movimento mais profundo e quase invisível do oceano e a história social seria como um ritmo intermediário, um pouco superior ao das profundezas do oceano. A história tradicional, por seu turno, estaria vinculada ao evento, seriam as ondas visíveis da superfície (BRAUDEL, 2011). A perspectiva social é que revelaria os elementos permanentes da ação humana no decorrer da história que, nesse artigo, são vinculados às raízes do pensamento educacional e, portanto, à filosofia. A educação, nesse sentido, é entendida pelo seu papel de conservação e transformação do conhecimento.

Dessa maneira, o texto iniciará com o entendimento da paideia grega, considerado em sua forma platônica e aristotélica. Como pensadores basilares na história da educação, Platão (428-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) são o fundamento das ideias sobre a formação moral do ‘animal político’. Posteriormente, com foco na patrística, Clemente de Alexandria (150-215 d.C.) e Agostinho de Hipona (354-430 d.C.) serão abordados especialmente por meio de suas noções da paideia ‘perfeita’ do cristianismo, segundo a qual Cristo é o logos, o paedagogus por excelência. Educar é exortar para a fé, cuja origem está no logos, na razão (bem e verdade). Em seguida, a escolástica, ao sintetizar o helenismo e a patrística, traz uma instituição educacional como ápice do percurso da paideia. A tradição da formação integral para a vida política se consubstancia na Universidade, na reunião de homens do saber em torno do objetivo de formar um todo em termos de conhecimento. Para refletir sobre esse momento, dois mestres que dedicaram seus estudos ao ensino serão analisados: Hugo de São Vítor (1096-1141) e Tomás de Aquino (1225-1274). Esses pensadores representam o vigor intelectual em diferentes circunstâncias e, ao reuni-los em uma mesma reflexão, ainda que de modo conciso, espera-se que a potencialidade seja evidenciada como conceito intrínseco ao homem e, portanto, à educação.

Paideia: formação política

A concepção grega de paideia expressa a essência da educação na antiguidade e, também, no medievo3. Conforme Jaeger (1888-1961), tudo o que hoje entendemos como civilização, cultura, tradição, literatura e educação está contido no termo paideia. No entanto, nenhuma dessas palavras é capaz de exprimir sozinha a noção de formação e cultura empregada, especialmente a partir do século V a.C., pelos gregos. Segundo o autor:

Cedo se fez sentir a necessidade de uma nova educação capaz de satisfazer os ideais do homem da pólis. [...] Por mais forte que fosse o sentimento da individualidade, era impossível conceber que a educação se fundamentasse em outra coisa que não a comunidade da estirpe e do Estado. O nascimento da paideia grega é o exemplo e o modelo deste axioma capital de toda a educação humana. A sua finalidade era a superação dos privilégios da antiga educação para a qual a areté só era acessível aos que tinham sangue divino. (JAEGER, 2013, p. 336-337).

Para Jaeger, o desenvolvimento do Estado, da vida política, ensejou a educação tanto da nobreza, quanto dos homens livres de Atenas. A partir do século V, a paideia dá origem a uma educação que ofereceria aos cidadãos de Atenas os princípios da areté. O autor destaca ainda o vínculo com a tradição, a paideia não era uma novidade, não representava algo distinto, antagônico, ou sem precedentes. Ao contrário, seguia os passos da educação da nobreza (JAEGER, 2013), mas avançava ampliando o público a ser instruído. Esse foi o passo inicial para o que seria considerado como cultura, ou seja, a educação ética e política daqueles que poderiam tomar decisões pelo Estado. Para Jaeger, nas raízes gregas é que se encontra todo o sentido do humanismo mais recente.

Essa formação integral foi assimilada de maneira distinta pelos pensadores em cada período, mas sem perder o caráter de teorizar a condição potencial do homem em sua vida pública. Assim, no diálogo Fédon, Sócrates afirma que ao tratar com outros sobre assuntos humanos é necessário, minimamente, conhecer as ‘coisas humanas’, para não cair em engano.

A similaridade [entre argumentos e seres humanos] reside no seguinte: quando alguém a quem falta a necessária habilidade com respeito a argumentos deposita confiança na verdade de um argumento e, posteriormente, o julga falso - quer realmente o seja ou não - e isso ocorre reiteradamente. Sabes como especialmente aqueles que despendem seu tempo lidando com prós e contras acabam por acreditar que são os mais sábios e que foram eles, com exclusividade, que descobriram que nada há de íntegro ou certo em coisa alguma, argumento ou qualquer outra coisa, mas que tudo oscila para cima e para baixo, como no Euripo, em nada havendo estabilidade durante tempo algum. [...] seria lamentável na suposição de haver um argumento verdadeiro e confiável, além de compreensível, que um indivíduo, pelo fato de ter topado com algum desses argumentos que por vezes parecem verdadeiros, por vezes falsos, não responsabilizasse a si mesmo por sua falta de discernimento ou habilidade, mas acabasse, em sua frustração, por jovialmente lançar a culpa nos [próprios] argumentos, passando a odiá-los e maculá-los pelo resto de sua vida, privando-se assim [no seu ódio da discussão racional] da verdade e conhecimento das coisas que são. (PLATÃO, Fédon, 90c).

Nessa parte do diálogo, aborda-se a misologia (aversão à razão ou argumento) e a misantropia (aversão ao homem) como consequências de um desconhecimento da natureza do próprio homem. Sócrates explica que, ao não compreender que na vida humana os extremos são raros e tudo que há entre os extremos é muito mais frequente, espera-se que os raciocínios, argumentos e ações do homem sejam perfeitos e infalíveis. Afirma que, no máximo, uma pequena parte deles pode alcançar essas qualidades e a decepção com o fato de que muitos raciocínios se mostram falsos ou sem solidez resulta do desconhecimento da arte de raciocinar. Pode ser, também, decorrente do hábito de, ao analisar prós e contras frequentemente, julgar como grande e infalível compreensão a ausência de estabilidade, como se a verdade não fosse possível. Essa conduta leva os homens a colocarem em dúvida a necessidade da razão, privando-os do verdadeiro objeto do conhecimento. “Admitamos, muito pelo contrário, que é a nós mesmos que ainda falta uma condição íntegra e que temos que nos empenhar corajosa e ardentemente para conquistarmos essa condição [...]” (PLATÃO, Fédon, 90e). Sócrates ressalta o valor do conhecimento da verdade e, sobretudo, do autocontrole e autoconhecimento daquele que se empenha em alcançar o entendimento. Assim, o único meio de evitar a falsidade seria manter a disposição para apreender a verdade, raciocinar e falar sobre ela.

Sem conhecer a arte do raciocínio, o filósofo não pode cumprir sua função de buscar a verdade, pois raciocinar é uma ação a ser aprendida, na medida em que a razão é inata somente como potencialidade e não ato. Na analogia elaborada no Mito da caverna, o homem que sai da caverna precisa, muitas vezes, de orientação, pois, num primeiro momento, sofre ao enxergar a luz, preferindo inclusive retornar à escuridão. As imagens falsas da realidade, as sombras, são para ele a única realidade, o que torna necessário que ele crie um novo hábito ao se deparar com o sol e enxergar o ambiente fora da caverna.

A presente discussão indica a existência dessa faculdade na alma e de um órgão pelo qual aprende; como um olho que não fosse possível voltar das trevas para a luz, senão juntamente com todo o corpo, do mesmo modo esse órgão deve ser desviado, juntamente com a alma toda, das coisas que se alteram, até ser capaz de suportar a contemplação do Ser e da parte mais brilhante do Ser. A isso chamamos bem. [...] A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira mais fácil e mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de o fazer obter a visão, pois já a tem, mas, uma vez que ele não está na posição correcta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios para isso (PLATÃO, A república, 518 c, d).

Platão salienta a existência de uma faculdade da alma e de um ‘órgão que aprende’, por meio dos quais é possível sair da ignorância para a luz da sabedoria. O bem - ‘a parte mais brilhante do ser’ - é o saber de mais difícil compreensão, porque é necessário que a razão esteja num estado máximo de contemplação. Corpo e alma devem estar disciplinados, os sentidos controlados e o homem, em sua totalidade, convergido para a sabedoria. Essa condição depende, portanto, da educação, que consiste não em gerar algo que não existe, mas em conduzir, da maneira mais eficaz, o corpo e alma para uma posição correta, oferecer meios que permitam que a alma apreenda os objetos iluminados. Conduzir as faculdades da alma (tanto a visão dos sentidos, quanto a visão da sabedoria) para fora da caverna é uma ação, geralmente, realizada com a ajuda do outro. Contudo, Platão observa que para se obter a firmeza e a solidez no pensamento é necessário esforço pessoal, consciente e esclarecido, uma vez que a capacidade de pensar é decorrência do permanente exercício de controlar as faculdades da alma.

Tanto no Fédon, como em A República, é possível compreender que, para Platão, debater sobre o raciocínio, ou sobre a virtude, não torna um homem sábio ou virtuoso. É o raciocinar constante, introspectivo e a realização de atos virtuosos que caracterizaria um ‘bom ser humano’4. Por esse motivo, Sócrates não foge do castigo ao qual foi condenado, mas o aceita e demonstra que o mais importante é conservar sua alma e, portanto, jamais praticar a injustiça5 - é o agir de forma reta e justa que o qualifica como uma pessoa justa e não seus discursos ou debates em favor da justiça. Conforme Jaeger (2013), Sócrates expressou a consciência grega plenamente6, entendeu que a existência moral do homem está em harmonia com a ordem natural do universo (eudaimonía). A ética exprime a existência humana bem entendida, ou seja, em relação à potencialidade da razão que determina o autodomínio alcançável pelo exame da própria alma. Jaeger (2013, p. 541) considera que Sócrates representa a ordenação da eudaimonía moral com os fatos da realidade e, portanto, com a própria política, uma vez que é no caráter moral que se encontra o cerne da existência humana em geral e da vida coletiva, em particular7.

No entendimento platônico e socrático, a potencialidade de que o homem seja iluminado pela realidade expressa-se tanto na formação moral quanto na vida em comum. A paideia, como ideal de formação da moralidade, pressupõe a educação do corpo e da alma. A natureza possibilitou ao homem uma existência moral, na qual a alma é que deve exercer o controle do corpo. Essa existência não está dada no nascimento, depende da vida coletiva, pois é transmitida de uma geração para outra, no interior de normas e finalidades definidas pela própria capacidade humana de pensar e de associar-se. Esse ideal de formação é compartilhado por Aristóteles e sintetizado na definição do homem como ‘animal político’ - animal capaz de organizar a vida coletiva. “É certo que possuímos certas capacidades por natureza, mas não nascemos bons ou maus por natureza [...]” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, liv. II, 1106a1), assim, é a potencialidade para o bem que é objeto de discussão da ética - e, portanto, da política8. Tanto em Platão, quanto em Aristóteles, o homem é considerado como um animal conduzido, mais frequentemente, pelos seus desejos. Contudo, também é naturalmente um ser com potência para desenvolver a razão como forma de domínio de todas as outras potências (sensitiva, desiderativa, nutritiva, locomotiva). Assim, ainda que haja diferenças em relação ao modo como consideram a possibilidade do conhecimento para a vida humana, ou entre a concepção da alma e da apreensão da verdade, para ambos os filósofos, a capacidade racional precisa ser desenvolvida. Em Platão, a finalidade é a independência máxima em relação aos sentidos (ao corpo) para alcançar o ‘mundo das formas’ ideais. Para Aristóteles, a matéria e a alma formam uma substância única e indivisível e, portanto, todo composto de sentidos e razão é que alcança o conhecimento. A noção de potencialidade em Aristóteles é determinante para o conjunto de suas teorias, sobretudo no que concerne à definição do homem.

É importante salientar que os estudos aristotélicos abrangeram os aspectos biológicos, ontológicos, psicológicos e sociológicos do homem. Portanto, a definição do ‘animal político’ é relacionada ao que o filósofo denomina, na Metafísica, como causas primeiras, universais, aquelas que permitem conhecer mais precisamente cada coisa particular. No início da obra, explicita a importância das ciências especulativas nessa tarefa, bem como aponta quatro tipos de causas: a essência, a matéria, o princípio do movimento e a finalidade ou ‘bem’ (ARISTÓTELES, Metafísica, liv. I, 3, 983a25). Suas considerações apontam para uma ‘fórmula’ que é a definição de um objeto único formado por partes, o que torna necessário entender a causa que leva o objeto a ser uma coisa individual. “‘Por que esses materiais são uma casa?’. Porque a essência da casa está presente neles. E esta matéria, ou o corpo que contém esta forma particular, é homem.” (ARISTÓTELES, Metafísica, liv. VII, 17, 1041b1). O que Aristóteles observa, adiante, é que nem sempre há coincidência entre a essência de uma substância e o objeto propriamente dito. Assim, “A alma e a essência da alma são idênticas, mas homem e essência do homem não são idênticos [...]” (ARISTÓTELES, Metafísica, liv. VIII, 3, 1043b1). Sua preocupação é demonstrar que uma única substância pode ser composta por partes e ser, ao mesmo tempo, uma totalidade cuja integridade seria comprometida, caso uma dessas partes fosse suprimida - e, consequentemente, a definição do objeto perderia o sentido.

O que então torna o homem uno, e por que é ele uno e não múltiplo? Por exemplo animal e bípede, sobretudo considerando-se que, como alguns afirmam, há uma Ideia de animal e uma Ideia de bípede. Por que não são estas Ideias o homem Ideal, de maneira que os homens existissem por participação não em homem, nem em uma Ideia, mas em duas, animal e bípede? E em geral homem não seria uma, mas mais de uma coisa, animal e bípede. Evidentemente, se prosserguirmos nessa linha de raciocínio, como é costume quando se visa definir e explicar, será impossível dar solução e resposta à dificuldade. Mas se, como sustentamos, o homem é parte matéria e parte forma - a matéria sendo o homem em potência, e a forma o homem em ato - o ponto que estamos investigando não parecerá mais ser uma dificuldade (ARISTÓTELES, Metafísica, liv. VIII, 6, 1045a15).

Para Aristóteles, as características que dão forma ao homem não podem ser independentes da substância a qual pertencem e, por isso, o homem não é múltiplo, a essência pertence à substância e não a uma de suas partes. É possível observar nessa passagem que potência e ato são decomponíveis, mas não são dissociáveis, pois fazem parte de uma mesma fórmula, ou de uma mesma definição. Isso indica que a potência só existe em função da existência do ato, mesmo que este não tenha ainda se realizado ou não esteja em operação. O princípio básico de toda potência, segundo o filósofo, seria a transformação, seja por atuar ou por sofrer ação em objetos inanimados ou animados (racionais ou irracionais). Quando se consideram as potências irracionais apenas um resultado é possível, mas as potências racionais são, por princípio, passíveis de resultados contrários. “Por exemplo, o calor só é capaz de produzir calor, ao passo que a medicina é capaz de produzir doença e saúde. A razão disso é que a ciência é uma fórmula racional e a mesma fórmula explica tanto a coisa quanto sua privação, ainda que não da mesma maneira [...]” (ARISTÓTELES, Metafísica, liv. IX, 2, 1046b5). A fórmula racional, portanto, pode produzir um resultado que não necessariamente significa produzir ‘bem’ esse resultado e, por isso, na Ética a Nicômaco, Aristóteles explica que é da ação de tocar a lira que se manifestam tanto os bons quanto os maus tocadores de lira. “Se assim não fosse, não haveria qualquer necessidade de mestres de artes e ofícios, uma vez que todos já nasceriam bons ou maus profissionais conforme fosse o caso. O mesmo, assim, se revela verdadeiro quanto às virtudes” (Ética a Nicômaco, Liv. II, 1103b5). A potência se refere a ter capacidade para a ação e não a realizar a ação da melhor forma possível, o que só pode ser alcançado por meio do exercício constante - que forma o hábito.

Como todas as potências são ou inatas, como os sentidos, ou adquiridas pela prática, como a capacidade de tocar flauta, ou pelo aprendizado como nas artes, as que são adquiridas pela prática ou por uma fórmula racional têm que ser adquiridas por nós mediante prévio exercício. Entretanto, naquelas que não são dessa natureza e que envolvem passividade isso não é necessário (ARISTÓTELES, Metafísica, liv. IX, 5, 1047b35).

O exercício constante necessário para as potências adquiridas é aquele que desenvolverá o hábito e, por conseguinte, qualificará as ações individuais. Para Aristóteles, as virtudes são desenvolvidas pelo hábito, por uma fórmula racional que tanto pode resultar em virtude, quanto em vícios. Assim, ainda que o desenvolvimento seja impreciso, uma vez que é inerente a cada pessoa, a potencialidade do uso da razão é comum a todos - quando a razão é utilizada, significa que o homem seguiu sua natureza e a ação resultará em virtude. Aristóteles observa que é por não ser inata que a virtude é valorosa, uma vez que é resultado de esforço, consequência das inúmeras formas de interação entre o indivíduo e a sociedade. Nesse aspecto reside o ponto central da definição ‘animal político’: o homem é biologicamente um animal que precisa viver em associação com muitos outros da mesma espécie para realizar sua potência superior. A política, nesse sentido, é o modo de ordenação da vida em comum de acordo com a razão - o logos - e não, apenas, com a sobrevivência (nutrição e segurança), o que torna a vida humana diferente da vida de outros animais gregários (ARISTÓTELES, Política, liv. 1, cap. 2, 9).

Para Aristóteles (Ética, liv. I, 3), não é possível alcançar precisão ao dedicar-se à mais elevada de todas as ciências - a política - pois é um assunto que abrange inúmeras formas de comportamento, de opiniões e incertezas. Busca-se um delineamento da verdade, uma forma de apresentar conclusões gerais, pois para o filósofo é “[...] marca de uma mente instruída esperar aquele grau de precisão em cada modalidade que é permitido pela natureza do assunto em particular”. Por tratar-se de uma ciência voltada para a ação, é necessário que se determine, como premissa, um objetivo geral para a ação de todos os homens, ou ao menos da grande maioria. Aristóteles considera que a ação humana tem por finalidade o bem, sendo este bem a felicidade. E, portanto, é necessário pensar sobre qual seria o bem mais elevado, que resulta em felicidade, para entender as características das ações correspondentes. “As pessoas ordinárias a identificam [felicidade] com algum bem óbvio e visível, tais como o prazer, ou a riqueza, ou a honra [...]” e há quem pense ser aquilo que lhe falta numa determinada circunstância, “[...] quando fica doente, pensa ser a saúde a felicidade; quando é pobre, julga ser a riqueza a felicidade” (ARISTÓTELES, Ética, liv. I, 4). Nessa digressão, o filósofo pretende compreender qual é o bem maior, aquele que o ser humano, colocando em uso suas melhores capacidades, pode alcançar. O propósito de Aristóteles não é encontrar um bem circunstancial, pois nenhum bem que dependa de algo externo ao próprio homem pode ser considerado como possível a todos os homens. É necessário que dependa, não de uma necessidade ou eventualidade, mas de uma potencialidade inerentemente humana: a razão.

É importante ressaltar que Aristóteles caminha de acordo com a tradição filosófica de seu tempo, mas procura formular um raciocínio particular, sua própria teoria para explicar a ética como subordinada à ciência política. Para o filósofo, o bem de um indivíduo só seria melhor do que nada e, portanto, a ética só faria sentido como parte da vida política - do bem comum - e não como forma de aprimorar ou enaltecer a conduta de uma única pessoa ou de um pequeno grupo. Assegurar o bem coletivo, do Estado, é uma realização muito mais nobre. Por esse motivo, a política tem como finalidade o bem humano, ou seja, o bem de muitos indivíduos. A pessoa que se ocupa da política, a mais elevada de todas as ciências - uma ciência prática, é importante salientar -, deve compreender o mais elevado de todos os bens e a mais elevada de todas as potencialidades. Esse é um raciocínio muito relevante para entender que, segundo o filósofo, a potencialidade é o alvo no qual mirar. Há mais possibilidades de agir mal do que de agir bem: “[...] o êxito somente é possível de uma única maneira (razão pela qual é fácil falhar e difícil obter êxito - fácil errar o alvo e difícil acertá-lo) [...]” (ARISTÓTELES, Ética, liv. II, 6, 1106b30). Acertar o alvo é potencialidade de todos os homens e pode se tornar ato por meio do hábito, que é o caminho para a aquisição da virtude moral. É importante salientar que a dificuldade em desenvolver a virtude é, justamente, a característica que lhe confere maior valor.

A virtude [moral] é, então, uma disposição estabelecida que leva à escolha de ações e paixões e que consiste essencialmente na observância da mediania relativa a nós, sendo isso determinado pela razão, isto é, como o homem prudente o determinaria.

E é um estado mediano entre dois vícios, um constituído pelo excesso e outro constituído pela deficiência. Acresça-se que é um estado mediano no qual, enquanto os vícios carecem ou se excedem no que é certo tanto nas paixões quanto nas ações, a virtude encontra e adota a mediania. (ARISTÓTELES, Ética, liv. II, 6, 1107a1).

A definição geral de virtude moral apresenta-se, assim, classificada quanto ao gênero (são disposições de caráter) e à essência (mediania), em relação a uma reduzida e pontual possibilidade de que o homem encontre, em meio aos vícios que correspondem ao excesso ou à carência do que é certo nas ações e paixões, o equilíbrio que corresponde à mediania. Estudar a potencialidade para a virtude, nesse sentido, permite entender melhor as possibilidades de todo homem para o bem agir, independentemente das circunstâncias. Tanto em Platão como em Aristóteles, a percepção de formação do homem passa pela ideia da ética como a conduta ideal para a vida em sociedade. Isso porque a vida de todos é beneficiada com a ética, mas, sobretudo, o homem só pode almejar a felicidade pelo caminho da virtude. O benefício alcançado para a sociedade é uma decorrência da necessidade e da capacidade humana de buscar sua felicidade por meio do aprimoramento da razão. E esse processo só pode ser desenvolvido em associação com outras pessoas, ou seja, a felicidade humana é inerente à vida em comum, pois ainda que a potencialidade seja inata, os caminhos e ferramentas para torná-la ato são adquiridos nas relações sociais.

A transformação do termo paideia na patrística

Essa estrutura da filosofia e da paideia é assimilada pelo cristianismo primitivo e dá forma à patrística. Conforme Jaeger (2014), inicialmente, houve hostilidade na assimilação da filosofia helênica pelos cristãos, porém, é importante perceber a continuidade. No período do renascimento e da modernidade, é comum encontrar análises que pensam no helenismo e no cristianismo como duas correntes com distinções claras e puras. No entanto, o autor salienta que essa forma de analisar desconsidera o modo como as relações humanas e, portanto, a história, tendem a ocorrer. “Na realidade, as ideias culturais gregas e a fé cristã se misturaram, não obstante nossa ansiedade em manter cada um deles imaculados [sic]. Houve, de ambos os lados, um forte desejo por se misturar [...]” (JAEGER, 2014, p. 53)9. A assimilação de pensamentos e interpretações do mundo é produto das relações políticas, portanto, não é imposição de um grupo em detrimento de outro, mas também, não ocorre em plena estabilidade e harmonia, depende de embates, oposições, divergências e conflitos. O que é importante compreender é que era estratégico para os primeiros cristãos formular uma compreensão sobre o homem que oferecesse fundamento para os princípios do cristianismo. A base para essa compreensão só poderia ser a filosofia grega e a mitologia.

Silveira (2013), na apresentação da obra Exortação aos gregos, afirma que Clemente de Alexandria (145-215 d.C.) foi o pioneiro na defesa da ideia de que a filosofia foi uma espécie de ‘preâmbulo racional da fé’. Formado pelo helenismo e convertido ao cristianismo, Clemente formula seu programa de exortação, educação e ensino, com a finalidade de converter aqueles que ainda desconheciam a possibilidade de viver como um filho de Deus. A defesa que o teólogo fazia dos preceitos cristãos, do logos como mestre divino, valeu-se explicitamente da filosofia grega que constava nos cinco graus de conhecimento (propedêutica dos parvos; sete disciplinas - trivium e quadrivium; filosofia; fé; gnose - estado contemplativo habitual)10.

Assim, em sua Exortação, Clemente de Alexandria percorreu primeiramente todo o universo dos deuses, explorando especialmente o caráter passional, corrupto e dissoluto das narrativas mitológicas. Buscou demonstrar que deuses eram escravos das paixões, conduzidos pela condição humana e não poderiam ser objeto eterno de adoração e culto.

Ainda bem que esse Zeus só existiu enquanto realmente existiu como homem; agora, até os vossos mitos - segundo me parecem - também já envelheceram. [...] Onde está Zeus, ele mesmo? Envelheceu junto com suas asas; com certeza não é porque se haja arrependido de suas aventuras eróticas, tampouco porque tenha aprendido os ensinamentos da prudência e da temperança. Nós vos desvelamos o mito: Leda morreu, morreu o cisne, morreu a águia... Procuras o teu Zeus? Então não te ocupes do céu, mas sim da terra. [...] Portanto (não te irrites), Zeus morreu [...] (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Exortação aos gregos, cap. II, 37).

O teólogo expressou a efemeridade e fragilidade de Zeus, diante do qual não seria possível ao homem realizar a potencialidade para o bem e para a verdade, ou ocupar-se do céu, da iluminação divina, da perfeição, da eternidade. Diante de Zeus, um deus tão enraizado à terra e aos vícios humanos, somente os bens terrenos e transitórios seriam possíveis ao homem. Para realizar essa crítica detalhada aos cultos pagãos, Clemente de Alexandria fez uma síntese da mitologia, com referência a diferentes autores no decorrer dos quatro primeiros capítulos. Posteriormente, no capítulo V, o teólogo discorreu sobre os filósofos e poetas que passaram a adorar a obra divina e não Deus, ao se referir, em especial, aos pré-socráticos. Em seguida, nos capítulos VI e VII, apresentou os filósofos e poetas que foram inspirados pela verdade, que reconheceram Deus, ainda que na ausência da revelação, com destaque a Platão, Xenofonte e Pitágoras. Nos capítulos finais, passou à exortação por meio das escrituras sagradas, indicando que Deus ilumina os homens por meio do logos e, portanto, torna possível a salvação dos pecados, da ignorância e dos vícios.

Clemente de Alexandria expôs, dessa maneira, um conjunto de razões para que os homens deixassem de lado a adoração aos deuses, bens e paixões terrenos e se aplicassem à fé no Deus que tudo criou. Era uma mudança de entendimento da existência e, sobretudo, uma transformação de conduta que levaria os homens à contemplação de suas potencialidades como filhos e herdeiros de Deus. Os ímpios não compreendiam a sua própria escravidão e desdenhavam a liberdade de optarem por serem filhos de Deus. A possibilidade desse reconhecimento da paternidade divina estava, segundo Clemente (Exortação, cap. IX, 84, 5-6), sempre presente: “Grande é, em verdade, a graça de sua promessa, se, hoje, escutarmos a sua voz; e esse ‘hoje’ se estende a cada novo dia [...]. Até o final dos tempos durarão o hoje e a possibilidade de aprender”. Essa potencialidade de ser iluminado pelo logos divino em qualquer tempo, permitiria ao homem, como filho de Deus, a salvação. Assim, o teólogo questionava: “Quem, pois, em nome da verdade, sendo sensato, abandona o bem para se prender ao mal? Quem, pois, se priva de Deus para viver com os demônios? Quem, podendo ser filho de Deus, sente prazer em ser escravo?” (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Exortação, cap. X, 92, 3). E, em seguida, conclama:

Arrependamo-nos, pois, convertamo-nos da ignorância à ciência, da demência à sabedoria, do deboche à prudência, da injustiça à justiça, da impiedade para com Deus. [...] Bela e amável herança, não é o ouro, nem a prata, nem vestimentas, tudo coisas da terra, em que se introduzem os vermes e que são visadas pelos ladrões que olham com inveja a riqueza da terra; mas é outro esse famoso tesouro da salvação, em direção ao qual é preciso nos apressarmos, uma vez tornados amigos do Logos; então, daqui debaixo, sobem conosco nossas ações de boa qualidade, elas voam conosco sobre as asas da verdade. (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Exortação, cap. X, 93, 1).

A exortação, portanto, constituía-se em demonstrar, primeiramente, as paixões humanas, os vícios, os pecados. E, então, salientar o quanto era insensato o homem que, com a potencialidade de ser sábio, prudente, justo e próximo da luz divina, mantinha-se apegado aos bens terrenos e à ignorância. O esforço era no sentido de modificar hábitos, para que fosse possível iniciar em um novo caminho. Posteriormente, Clemente de Alexandria passa a abordar a educação, ou seja, oferecer os instrumentos necessários para aqueles que, após serem convencidos, desejassem aprender o caminho para a salvação. O logos, como paedagogus por excelência, instruía, mas sobretudo, exortava, para que fosse possível criar uma disciplina no corpo e na alma, que tornasse o homem apto a receber os ensinamentos divinos.

Percebe-se que, novamente, a ação do indivíduo é que importava, não era o discurso ou o mero desejo de ser virtuoso que expressavam o homem político em Platão e Aristóteles, nem expressavam o cristão em Clemente de Alexandria. “A vida cristã, da qual falamos agora, é um ajuntamento de ações razoáveis, isto é, que são conduzidas pela razão. É isso o que chamamos de fé, que é um hábito firme e constante, com o qual não podemos nos desviar.” (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O pedagogo, liv. I, cap. XIII). Era a potencialidade para o bem e para a verdade que Clemente, bem como muitos outros pensadores cristãos, buscou acessar por meio da exortação. Educar e instruir para formar o cristão significava orientar as potências, tidas como dádivas da graça divina, e a formação efetiva precisava ser manifestada pelas obras, pelas ações e condutas. Perfeito e livre de pecados eram prerrogativas somente atribuídas a Deus - verdade e bem em essência. Ao homem, imagem e semelhança de Deus, cabia a possibilidade de não pecar e de, por seu próprio empenho e ação, tornar-se iluminado pelo logos. Justamente porque o homem era pecador precisava estar aos cuidados do Pedagogo. Clemente de Alexandria explicou em boa parte da obra O pedagogo a importância da ideia de que, em relação a Deus, o homem se sentisse sempre criança (sempre potência), ou seja, sempre estivesse na condição de um aprendiz que necessita de cuidados. Isso não significava manter a imaturidade, ou não refletir e fazer uso da razão, mas sim, a humildade e reconhecimento de que era necessária uma base, um apoio para se sustentar. Compreendia que o homem devia ‘tocar a terra somente com as pontas dos pés’, estar ciente de que o acúmulo de conhecimentos pode gerar uma falsa impressão de plena sabedoria, mas que é a permanente busca pela iluminação do logos que encaminharia para a salvação. “Deus nos chama de filhos e pequenos, pois estamos mais dispostos a caminhar rumo à salvação que os sábios do mundo, estes falsos sábios, que, orgulhosos de sua sabedoria, cegam-se a si mesmos com a fumaça de seu orgulho” (CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O pedagogo, cap. VI, §12). Essa percepção de que é um ser sempre, por natureza, mais próximo do erro, da ignorância, do vício e do pecado é que torna ainda mais relevante conhecer o que é potencial e pertencente a uma segunda natureza aprendida. A educação, assim, tinha uma finalidade definida que era mostrar ao homem que ele não precisava viver para sempre numa condição de vício, pecado e ignorância, uma vez que possuía, em potência, as capacidades necessárias para desenvolver virtudes e a sabedoria.

Era a alma humana que se esperava formar e, portanto, era necessário, cada vez mais, compreendê-la para identificar de que modo seria possível transcender às necessidades da matéria. Considerado o primeiro teólogo a tratar da alma de maneira organizada, Agostinho de Hipona (354-430), na obra Sobre a potencialidade da alma, considera que ‘a pátria de origem da alma humana é Deus’. A potencialidade significava a grandeza ou dimensão da alma, no sentido qualitativo, uma vez que a alma é incomensurável. A obra é apresentada em forma de diálogo entre o teólogo e Evódio, que desejava entender a origem da alma, sua natureza, potencialidade, por que foi unida ao corpo, como atua nele e quando está dele separada. O diálogo revela as considerações sobre a natureza da alma como algo imaterial, impossível de ser apreendido pelos sentidos. Para explicar ao aluno que a alma procede de Deus como imagem e semelhança e que isso não significa igualdade, afirmou: “Do mesmo modo que a imagem ou representação do seu corpo não pode ser o mesmo que esse corpo, da mesma forma não é motivo de espanto que a alma não tenha poder de efetuar o mesmo que o Criador, a cuja imagem foi criada” (AGOSTINHO, Sobre a potencialidade da alma, cap. 2, 3). Esse é um ponto importante para compreendermos que a potencialidade, a qual o pensamento patrístico se referia, é inerente à natureza da alma humana. Por ser imagem e semelhança, jamais a alma de cada homem será igual a Deus, mas é potencialmente capaz de se elevar em relação ao corpo, voltar-se para si mesma e renascer para Deus. “Isto significa despir-se do homem velho e se revestir do homem novo” (AGOSTINHO, Sobre a potencialidade..., cap. 28, 55). A noção de que, potencialmente, o homem era capaz do desenvolvimento de uma segunda natureza manteve a sua importância na patrística e corresponde, como em Platão e Aristóteles, ao controle dos sentidos - o autocontrole.

A alma humana, porém, não adere ao corpo, e pela racionalidade e a inteligência, potências superiores ao sentido corporal, é superior ao corpo, dele tende a se desligar por sua potencialidade, e se dirige mais aos bens interiores do espírito.

Se a nossa alma permitir que dominem os sentidos corporais, torna-se de algum modo semelhante aos irracionais, e isso explica que certas crianças de peito, ainda não chegadas à idade da razão, possam distinguir pelos sentidos corporais a presença ou o contato de suas amas de leite, e mal suportam até o cheiro de quem não lhes é familiar. (AGOSTINHO, Sobre a potencialidade..., cap. 28, 54).

A alma intelectiva, para Agostinho, não adere ao corpo no sentido de que possui a potência de realizar todas as atividades da vida vegetativa e sensitiva por meio da razão. Quanto mais o homem permite que os sentidos dominem suas ações, mais próximo estará dos irracionais, ou seja, não exerce a forma natural de seu ser, que é a forma racional e humana. Agostinho usou como exemplo a infância, período no qual os sentidos estão mais aguçados, porque a razão ainda não foi suficientemente desenvolvida. A forma humana ou a alma intelectiva, portanto, é um processo de aquisição e desenvolvimento11, não está dada no nascimento, é uma potencialidade que depende da memória, da imaginação, dos hábitos (virtudes), do afastamento das paixões e da retidão que levam à vida contemplativa. Esta só pode ser alcançada após muito esforço para evitar o que Agostinho denominava de ‘seduções do mundo’. Tratava-se de uma noção muito semelhante ao ‘alvo’ aristotélico, à dificuldade com a qual o homem precisa lidar para que a virtude seja, de fato, um bem valoroso. Em Agostinho, essa dimensão está associada à fé que é tanto o caminho a ser seguido, quanto a finalidade a ser alcançada, pois é a razão que possibilita ao homem ter fé. A vida contemplativa é um estado próximo a Deus e, portanto, próximo da verdade e do bem supremo e só ao homem foi oferecida essa possibilidade, uma vez que só ele possui a alma intelectiva passível de transcender às necessidades corpóreas - só ele foi criado a imagem e semelhança de Deus.

Escolástica: paideia como síntese do helenismo e a patrística

É possível entender a paideia escolástica como um movimento que sintetizou o pensamento grego pagão e o pensamento dos primeiros padres da igreja. Os escritos sagrados, a teologia e a filosofia somados à progressiva consolidação institucional e política do cristianismo, passaram a fazer parte de um conjunto que se traduziu em um modo de ensinar, na medida em que aperfeiçoou um sistema de concepção do mundo e do homem. A escolástica é um conceito que passou a expressar uma ideia maior do que o significado original da palavra scholasticus (OLIVEIRA, 2013), ou aquele que ensinava as artes liberais nas escolas monásticas. Era uma forma de entender a existência que se fundamentava na visão metafísica do homem como ser que pode transcender às limitações do mundo material. A compreensão sobre a potencialidade se mantém como a capacidade de que o homem, por meio da graça divina e do esforço para desenvolver sua racionalidade, exerça a fé e renasça para um estado de transcendência.

Ainda que tenha se originado nas escolas medievais, a Universidade é a principal instituição resultante dessa síntese propiciada pela escolástica - uma expressão do desenvolvimento histórico da paideia. A aplicação da ratio, da reflexão filosófica, sobre os auctoritas, as obras sagradas e filosóficas, deram à universidade não só um método, mas uma conduta institucional basilar, segundo a qual o debate, a argumentação, a investigação e o raciocínio são fundamentais12. Para que essa reflexão fosse possível, a formação por meio das artes liberais era condição imprescindível, pois a aquisição dos conhecimentos do trivium e do quadrivium exercitavam a terceira potência da alma: a razão.

Hugo de São Vítor (1096-1141), mestre do Mosteiro de São Vítor e professor de teologia, iniciou sua obra Didascalicon apresentando as artes como potências que integram a alma humana. Como representante da escolástica, recorreu, nas primeiras linhas de seu texto, ao escrito no trípode de Apolo: ‘conhece-te a ti mesmo’, pois um homem que conhece a si mesmo, não esquece sua própria origem. Para o teólogo, a natureza da alma humana é intrínseca, nada fora dela pode se constituir em bem ou verdade, uma vez que ambos só podem ser alcançados pela aplicação da inteligência. O conceito de entelechia, considerado na perspectiva platônica, é alinhado a noções de Agostinho e Boécio, na definição da potencialidade do espírito. “Portanto, o espírito, capaz de captar todas as coisas, independente da substância e da natureza, representa, por sua própria imagem, a semelhança com todas as coisas [do universo]” (HUGO DE SÃO VITOR, Didascalicon, liv. 1, cap. 1). Essa reflexão tem como base os ‘dogmas pitagóricos’, segundo os quais os semelhantes podem ser compreendidos por meio de outros semelhantes.

O Didascalicon é diretamente voltado ao ensino, à formação de homens que, por meio do estudo, poderiam alcançar a verdade e, por conseguinte, o bem. Conforme Hugo de São Vítor, é na alma humana que ocorre a renovação do espírito, pelo conhecimento da própria natureza.

Portanto, como o ato do espírito humano sempre se funda na compreensão das coisas presentes, na inteligência acerca das ausentes ou na busca incessante pelo esclarecimento e aquisição das coisas ignoradas, então há dois objetivos para os quais a força da alma racional despende todo o empenho: o primeiro referente ao conhecimento da natureza das coisas pela investigação racional; o segundo, iniciando-se pelo conhecimento, e que, em seguida, a dignidade da moral concretizará. (HUGO DE SÃO VITOR, Didascalicon, liv. 1, cap. 3).

Para o teólogo, portanto, a busca pelo conhecimento, por meio da potencialidade racional - imaginação, memória e inteligência - concretizava-se na dignidade moral, ou seja, na ação efetiva. Seguia Agostinho, ao considerar que a terceira potência da alma, inerente à natureza somente do homem, abrangia as outras duas potências nutritiva e sensitiva e que toda a vida do homem poderia ser dominada pela razão. A memória e a imaginação limitadas dos animais que possuem no máximo a percepção sensível não são suficientes para a potência racional, que é divina. Só ao homem seria possível a ação moral, fruto do uso da razão, e conquistar esse complexo estado do espírito, em que a reflexão filosófica é expressa pelo conhecimento de si mesmo e reflete-se na ação efetiva, significava alcançar a sabedoria.

Hugo de São Vitor acompanhava a tradição filosófica e teológica, ao observar que as sete artes do trivium e quadrivium eram os instrumentos que treinavam a alma racional, como se fossem caminhos pelos quais o espírito adentra ‘nos segredos da sabedoria’. Lembrava que Pitágoras “[...] tinha o seguinte costume, entre seus discípulos: até que eles completassem sete anos de estudos [...] nenhum deles podia perguntar ao mestre qualquer coisa sobre o tema ensinado.” (HUGO DE SÃO VITOR, liv. 3, cap. 3). Pretendia-se que o aluno, ao fim das lições das sete artes, pudesse, ele mesmo, solucionar dúvidas e raciocinar sobre os conhecimentos - esse era o sentido de liberdade dessas sete artes.

Portanto, o fundamento de toda a doutrina se encontra nas sete artes liberais, e justamente por isto devem estar à mão dos homens, antes de todas as outras. Sem elas a disciplina filosófica não é capaz de nada explicar ou definir, sendo que elas necessitam aproximarem-se mútua e continuamente entre si, de modo que, faltando uma delas, não será possível que se forme um filósofo completo, isto é, não há sábio de uma só arte. Tenho convicção de que caem no erro as pessoas que, não se atentando para tal coerência entre as artes, escolhem algumas para si [tornando-se especialistas em uma ou duas delas], deixando as outras intocadas, e, ainda assim, acreditam que poderão se tornar perfeitos no conhecimento delas. (HUGO DE SÃO VITOR, liv. 3, cap. 4).

A sabedoria demandava, também em Hugo de São Vitor, o esforço constante e disciplinado, treinado no aprendizado das sete artes liberais. Era necessário que o espírito estivesse instrumentalizado, o solo preparado, para que as sementes da sabedoria pudessem vingar. E, nesse sentido, o estudante que não dominasse o fundamento de todo o conhecimento, contido nas sete artes (basicamente, a linguagem e a matemática), não poderia confrontar, questionar de modo articulado - ou, como contemporaneamente costuma-se esperar, ser crítico. O planejamento da educação de um jovem passava por etapas bem definidas, mas é possível observar que Hugo de São Vítor considerou importante registrar que, mesmo com uma finalidade clara, havia muitos estudantes em seu tempo que optavam por parecer sábios, em vez de serem, de fato, sábios. Assim, mesmo não dominando os conhecimentos elementares de uma ciência, vangloriavam-se por terem lido ou ouvido algo sobre os escritos filosóficos. Por isso, entre os comportamentos essenciais para desenvolver a potencialidade da sabedoria, o teólogo destacava a humildade e fazia uma crítica aos homens de seu tempo que, mesmo sem nada saber, discutiam temas relacionados às escrituras. Eram pessoas que defendiam os textos sagrados, mas por sua própria falta de aptidão para o estudo, afirmavam que os mestres mais velhos eram ingênuos e seus ensinamentos desnecessários, pois os textos sagrados eram facilmente acessíveis à inteligência, mesmo despreparada. “Eles franzem o nariz e ‘fazem bico’ para os mestres, enquanto estes explicam os textos sagrados e não percebem que injuriam a Deus, cujas palavras eles defendem belamente como sendo simples [...]” (HUGO DE SÃO VITOR, liv. 3, cap. 13). Eram homens, portanto, que desconheciam sua própria condição potencial ou, de forma ainda mais nociva, utilizavam suas próprias limitações como parâmetro para definir o que era importante ser aprendido.

A diligência para os estudos significava, em Hugo de São Vitor, não desdenhar o conhecimento, independentemente da fonte. Isso significava, principalmente, ler os autores antigos e ouvir os mestres que poderiam contribuir para a assimilação não dos textos, mas da verdade. A humildade, nessa perspectiva, era uma conduta mental fundamental para o aprendizado, pois só poderia ser praticada por aquele que tinha dimensão de sua própria ignorância e, portanto, assumia sua condição de estar sempre em potência para o conhecimento.

A escolástica, portanto, expressa a força e o movimento mental voltados para a instrução, a formação de um homem cujas potencialidades são consideradas, desde a filosofia antiga, como supremas, divinas ou transcendentais. Isso porque a alma humana, segundo os autores aqui apresentados, é passível de todo o conhecimento da realidade, bem como é ativa ao tentar alcançar a verdade. Foi na originalidade das formulações de Tomás de Aquino que a escolástica encontrou seu ápice em termos de síntese da tradição filosófica e teológica. Conforme Gilson (2006, p. 234-235), sucessivamente os pensadores cristãos buscaram uma solução para o problema da imortalidade em Platão e em Aristóteles. Tomás de Aquino foi quem, segundo o autor, estabeleceu um novo sistema, no qual foi possível conciliar uma “[...] ideia do homem tal que a imortalidade da sua alma fosse concebível ao mesmo tempo que o destino futuro do seu corpo fosse garantido”.

Na questão 79 da primeira parte da Suma teológica, Tomás de Aquino tratou das potências intelectivas e explicou que a essência da alma humana não é o intelecto, uma vez que “[...] somente em Deus conhecer é a mesma coisa que seu ser. Portanto, só em Deus o intelecto é sua essência; nas outras criaturas dotadas de intelecto, ele é uma potência do que conhece” (TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Iae, q. 79, a. 1, Resp.). O intelecto é a mais excelsa força da alma humana, mas não sua essência, pois a inteligência do homem é imperfeita, potencial. Mesmo quando conhece, o intelecto parte da potência para o ato, o que torna a linguagem e a educação necessárias para que chegue ao conhecimento.

Conhecer é simplesmente apreender a verdade inteligível. Raciocinar é ir de um objeto conhecido a um outro, em vista de conhecer a verdade inteligível. [...] Os homens [...] chegam ao conhecimento da verdade inteligível, procedendo de um elemento a outro e por isso, são chamados racionais. O raciocínio está, portanto, para a intelecção como o movimento está para o repouso, ou a aquisição para a posse; desses, um é próprio do que é perfeito, outro do imperfeito. Mas pelo fato de sempre um movimento proceder do que é imóvel e terminar no repouso, o raciocínio humano procede, pelo método de pesquisa ou de invenção, de alguns conhecimentos tidos de modo absoluto, os primeiros princípios; depois pelo método de dedução, volta a esses primeiros princípios, à luz dos quais examina o que descobriu. (TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Iae, q. 79, a. 8, Resp.)

Tomás de Aquino explica, assim, que a razão e o intelecto não são potências distintas, tendo em vista que fazem parte de uma mesma finalidade que é a apreensão da verdade inteligível. A razão é o movimento e o intelecto é o repouso, ou seja, o movimento de aquisição da verdade (imperfeito) ocorre antes da verdade assimilada (perfeito). Essas definições são apresentadas segundo a hierarquia dos intelectos: há Deus, sobre o qual não se fala em potência intelectiva, pois é ato puro; os anjos que são só potência intelectiva, estão sempre em ato em relação a sua potência; e os homens, que possuem muitas potências, entre elas, a intelectiva, que os tornam passíveis de participação no intelecto divino.

Tomás de Aquino, no artigo 2 da mesma questão, explica que a passividade do intelecto é característica do homem, uma vez que seu intelecto foi criado por Deus, mas está muitíssimo afastado da perfeição do intelecto divino, por isso, é potencial em relação aos inteligíveis.

Mas o intelecto humano, o último na ordem dos intelectos e muitíssimo afastado da perfeição do intelecto divino, está em potência em relação aos inteligíveis, e no começo ele é como “uma tábula rasa em que nada está escrito”, segundo diz o Filósofo no livro III da Alma. Isso fica claro pelo fato de que estamos primeiramente em potência de conhecer, e só depois estamos em ato. - É, portanto, evidente que nosso conhecer é padecer, segundo a terceira maneira [o que está em potência recebe aquilo para o qual está em potência sem que nada lhe seja tirado]. Por conseguinte, o intelecto é uma potência passiva. (TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Iae, q. 79, a. 2, Resp.).

Retoma, assim, Aristóteles e a noção de tabula rasa, para considerar que a passividade tem o sentido de ausência da ‘posse’ dos inteligíveis que não pertencem ao homem e nem mesmo dependem dele para existir. A mente humana reúne as condições necessárias para conhecer e a passividade, nessa perspectiva, não pode ser a falta de atividade e sim a potência de receber - ou padecer (no sentido de admitir) - os inteligíveis. Considerar o intelecto como algo ativo seria considerá-lo pronto, já em posse da verdade, ou seja, já teríamos nascido com a potência predeterminada para o ato e não precisaríamos aprender como agir - teríamos, portanto, outra natureza. É muito relevante observar que a tabula rasa não desconsidera a atividade racional, mas sim, expressa a necessidade de que seja colocada em movimento para que a potência se manifeste ou se realize como ato.

Para Tomás de Aquino é importante evidenciar que esses princípios são pertencentes a cada pessoa, ou seja, a cada alma como parte de um corpo particular. No artigo 5, da mesma questão 79, indaga se o intelecto agente é um só para todos, ao que responde:

Ora, nenhuma ação pode ser atribuída a alguma coisa, a não ser por um princípio que lhe seja formalmente inerente, como foi dito a propósito do intelecto possível. É necessário, portanto, que a potência, que é o princípio dessa ação, seja parte da alma. - Por isso, Aristóteles compara o intelecto agente à luz que é algo difundido no ar. Platão, ao contrário, comparou o intelecto separado ao sol que imprime sua luz em nossas almas [...].

Mas, o intelecto separado, conforme o ensino de nossa fé, é o próprio Deus, criador da alma, e em quem unicamente ela é bem-aventurada, como se dirá adiante. É portanto por ele que a alma humana participa da luz intelectual [...]. (TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Iae, q. 79, a. 4, Resp.).

Nessa passagem, é possível observar que a paideia que caracterizou a escolástica foi assimilada na síntese dos conceitos aristotélicos e platônicos que, ainda no século XIII, eram a base para o debate filosófico e teológico. Tomás de Aquino acompanha Aristóteles ao refletir sobre o intelecto humano por meio do entendimento de autonomia e responsabilidade, afinal, era necessário que os princípios da ação fossem intrínsecos ao homem, ou este não poderia ser o ‘senhor’ de suas ações. O intelecto agente participa do intelecto superior (Deus) e, por isso, ilumina as imagens para que o intelecto possível possa recorrer a elas para a formulação do conhecimento em ato. Esses princípios são inerentes ao homem, indissociáveis de sua constituição orgânica na totalidade, ou seja, não estão em um órgão corporal específico, pois dependem do conjunto que forma a substância.

Em A unidade do intelecto contra os averroístas, Tomás de Aquino (Liv. IV, 83) considera a possibilidade de o intelecto agente ser único para todos os homens, mas, como é possível observar, na Suma, sustentou que não é possível que isso ocorra. Afirma: “Só nos resta, pois, fora de qualquer dúvida, sustentar esta tese, não por causa de uma revelação da fé como eles dizem, mas porque negá-la seria ir contra toda a evidência” (TOMÁS DE AQUINO, Unidade do intelecto..., cap. I, 78). Portanto, tendo em vista que a vontade reside no intelecto, para que o homem seja responsável por seus atos, o intelecto possível precisa formar uma unidade com cada pessoa. Esse fato é evidente para o teólogo medieval, pois ele concebe cada homem como responsável por si mesmo e por suas ações. Na perspectiva de Tomás de Aquino, Deus não é uma luz externa como o sol platônico, ou o ar aristotélico, mas é uma iluminação que atua como ‘motor’ interno que reside em cada alma. Por ter sido criado por Deus, como imagem e semelhança, o homem participa da luz intelectual divina e possui em si todos os princípios e potências necessários para subsistir. Com isso, Tomás de Aquino atribui ao homem não só a potencialidade, mas a responsabilidade por aprender a realizar suas potências, tornando-as atos.

Considerações finais

A potencialidade como premissa para o pensamento educacional da antiguidade e do medievo e, portanto, como um fundamento da educação, permite pensar sobre a conduta dos filósofos e teólogos que dedicaram-se a compreender a alma humana para pensar a formação do homem e a sociedade. É possível entender a potencialidade como causa determinante para que a educação seja um processo inerente à existência do homem. A necessidade de que uma geração eduque a outra, no interior de uma vida em comum, ordenada por princípios racionais, aumenta conforme a sociedade se torna mais complexa. Em Platão, os mesmos princípios que regiam a organização da vida social, regeriam a conduta moral do indivíduo. Em Aristóteles, a política define a natureza do homem, ou seja, não está desvinculada de sua constituição biológica. É da união entre o intelecto (potencialidade suprema da alma humana) e o meio externo (natureza e relações sociais) que emerge o conhecimento, em forma de sabedoria instruída e comportamentos virtuosos. A noção de ‘animal político’ enseja uma teorização sobre o homem como ser pertencente à natureza e com características potenciais que não só permitem, como exigem, a vida coletiva e, sobretudo, a convivência política e, portanto, ética. Para que essa teorização fosse possível, era necessário analisar não só o comportamento que os homens já praticavam, mas, principalmente, a conduta que poderiam ter, desde que colocassem em desenvolvimento suas capacidades racionais.

O entendimento de que, ao homem, é possível o desenvolvimento de uma segunda natureza foi base para a paideia grega, bem como para a patrística e para a escolástica. O ideal grego de virtude como algo relativo à ação humana e que depende, portanto, da formação do hábito de agir conscientemente de um determinado modo, está diretamente vinculado ao convívio social. É nas relações sociais que o homem pode apreender as ferramentas para desenvolver a razão e, por esse motivo, a educação moral das gerações mais jovens é necessária.

Na patrística, Clemente de Alexandria assimila esse ideal como algo transcendente às necessidades terrenas e questiona: como é possível a um ser que pode compreender a verdade, escolher permanecer na ignorância? O propósito era salientar que os deuses da mitologia jamais poderiam oferecer o que Deus tornava possível. Aquele que tudo criou deu, somente ao homem, a possibilidade de voltar-se para a perfeição do criador. A educação era a exortação para a fé que pode ser entendida como a convicção de que o bem e a verdade existem e, ao homem, é permitido deles participar. O ideal platônico de que o homem, ao conhecer a si mesmo, compreenda que é ele, e não a verdade, que possui defeitos, é expresso em Clemente de Alexandria por meio da noção de humildade. Assim, desde que o homem entenda sua própria condição potencial, estará mais bem preparado para receber a luz do logos. A potencialidade passa a ter um caráter de perfeição eterna, sempre presente para que o homem salve sua alma do vício e da ignorância. Tanto para Clemente, quanto para Agostinho a potencialidade da alma é superior a qualquer potencialidade do corpo, pois significa o poder de aproximação com a ‘sua pátria’, que é Deus.

A alma intelectiva como ponto de participação do homem no intelecto divino torna-se, também, o tema recorrente da escolástica. A apropriação do conhecimento da tradição filosófica e teológica é aperfeiçoada pelos escolásticos - especialmente por Tomás de Aquino - a tal ponto de criar um novo sistema de explicação da alma, segundo o qual era possível ao homem se perpetuar por meio do desenvolvimento intelectivo. Em Hugo de São Vítor, desenvolver a potência racional significava a concretização da dignidade moral, pois, se ao homem foi dada tão elevada potencialidade, a ação só poderia ser aprimorada diante da atualização da potência. O mesmo ocorre em Tomás de Aquino que explica que a inteligência humana é imperfeita, pois precisa raciocinar para chegar à verdade, parte da potência para o ato sempre. Em Tomás de Aquino é possível identificar tanto a importância da graça divina - que criou a potencialidade - quanto a necessidade de que o próprio homem, como ‘senhor’ de suas ações, assuma sua forma humana, desenvolvendo a atualidade de suas potências.

É importante compreender que os autores aqui apresentados vivem circunstâncias muito distintas, a aproximação entre eles incide na determinação em demonstrar que ao homem é possível fazer predominar a razão. Trata-se não de uma obrigatoriedade do indivíduo, mas de uma escolha possível devido à constituição de sua própria substância humana. Todavia, é o único meio de encontrar a felicidade, ou a salvação eterna, e é determinante na constituição da vida em comum. O bem e a verdade estão presentes como potência por toda a vida de cada homem e determinam suas ações, na medida em que são apreendidos. Aquele que educa ou exorta não retira o homem da condição potencial, mas pode contribuir para a atualização das potências. O mestre exorta, orienta, aponta caminhos, instrui sobre as ferramentas que podem tornar o estudante apto a buscar a luz do logos. A efetiva atualização da potencialidade, seja por meio do desenvolvimento dos hábitos virtuosos, seja pela fé em Deus, é uma escolha pessoal, individual, que não parte de necessidades externas à própria alma intelectiva. Esse entendimento orientava a formação que harmonizava a alma com a realidade e a moralidade - o conhecimento formulado pelas gerações anteriores é que se constituiu como raiz para o aprimoramento dessa concepção da alma humana. A paideia considerava o que o homem poderia ser, pois entendia-se que a vida em comum só poderia ser aprimorada com a formação e aperfeiçoamento da consciência. Para tanto, era necessário um padrão que estivesse acima dos desejos circunstanciais dos homens de cada tempo e esse padrão foi desenvolvido na antiguidade e no medievo com base na tradição teológica e filosófica.

Referências

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1Artigo desenvolvido com base na tese Hábito e subjetividade na educação: aproximações entre Aristóteles, Tomás de Aquino e a neurociência, defendida por Lais Boveto, orientada por Terezinha Oliveira. Pesquisa com bolsa doutorado CAPES.

2O trivium e o quadrivium representavam não só um currículo a ser seguido e vencido, mas sim, a condução do jovem para o domínio da linguagem, da lógica e das teorias dos números e do espaço. Conforme Miriam Joseph (1898-1982), as artes liberais tem como principal característica sua intransitividade e a possibilidade de que a pessoa viva uma vida intelectual. “O carpinteiro aplaina a madeira. A rosa floresce. A ação de um verbo transitivo (como aplaina) começa no agente, mas ‘cruza’ e termina no objeto (a madeira). A ação de um verbo intransitivo (como floresce) começa no agente e termina no agente (a rosa, que se aperfeiçoa por florescer)” (JOSEPH, 2008, p. 29).

3Segundo Vaz (2006), o caráter de cultura intelectual superior levou Cícero e Quintiliano a traduzir paideia para o latim humanitas, expressando a noção de educação integral.

4Como a principal atividade do homem, que o diferencia dos demais animais, é relativa à razão e ao intelecto, o bom desenvolvimento é, necessariamente, alcançado com o aprimoramento da razão, que só pode ser percebido por meio das ações praticadas.

5O diálogo Críton revela essa preocupação do filósofo.

6 Jaeger (2013) afirma que Sócrates expressa a síntese da consciência grega tanto de seu tempo, quanto de períodos anteriores e posteriores. É importante considerar que a essência do pensamento socrático, da paideia grega, é fruto de uma tradição filosófica que, desde Homero, já valorizava a formação de um homem de ação, cuja conduta revelasse a nobreza de seu espírito. Jaeger (2013, p. 28) exemplifica: “E é altamente significativo que seja o velho Fênix, educador de Aquiles, o herói-protótipo dos gregos, quem exprime esse ideal. Numa hora decisiva, Fênix recorda ao jovem o fim para que foi educado: “Para ambas as coisas: proferir palavras e realizar ações”.

7Para Jaeger, essa é uma noção de difícil apreensão para o homem moderno, devido ao seu ‘desentendimento moral’ com o mundo. Como a ética não é compreendida como a harmonia entre realidade e moralidade, a base da educação dos jovens é fatalmente abalada.

8Para Aristóteles, a ética é a ciência do bem, subordinada à política, pois o homem sozinho não existe como homem. A ética está contida na política e, portanto, uma não difere da outra.

9Segundo Jaeger, seria, portanto, equivocada a tese defendida pela reforma protestante no século XVI de que a ‘helenização’ prejudicou a pureza da fé cristã primitiva.

10 Silveira (2013) considera que este, provavelmente, era o programa de estudos da Escola de Alexandria, na qual Clemente de Alexandria foi aluno e, posteriormente, diretor.

11Agostinho (Sobre a potencialidade, cap. 33) lista os sete graus da alma que iniciam com a sobrevivência, imaginação, memória, virtudes, até chegar ao estado de contemplação.

12Esse fundamento expressa a própria finalidade do estudo da filosofia. Nunes (2018, p. 270) cita o comentário de Tomás de Aquino sobre o De caelo de Aristóteles: “O estudo da filosofia não tem por objeto saber o que os outros pensaram, mas conhecer a verdade das coisas”.

Recebido: 22 de Abril de 2021; Aceito: 22 de Setembro de 2021

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