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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.74 Uberlândia maio/ago 2021  Epub 15-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n74a2021-63371 

Artigos

A filosofia na Pedagogia do Oprimido

Philosophy in Pedagogy of the Opressed

La philosophie en Pédagogie des Opprimés

João Wilson Sobral Santos* 
lattes: 5613795948202656; http://orcid.org/0000-0003-0263-8043

*Doutorando em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Filosofia (UERJ). E-mail: joaow95@gmail.com


Resumo

O artigo pretende realizar uma aproximação introdutória da filosofia presente na obra Pedagogia do Oprimido (1968) de Paulo Freire. Seguindo o fluxo original da obra em quatro seções, analisa-se como conceitos criados ou utilizados por Freire correspondem a ou dialogam com conceitos de algumas correntes filosóficas, sobretudo, a fenomenologia, o existencialismo, a dialética hegeliana e o pensamento marxiano e marxista em geral. Entre outros temas, também são abordados o cristianismo crítico de Freire, a legitimidade da violência do oprimido, a aderência do oprimido ao opressor (passando rapidamente por alguns conceitos psicanalíticos), a catarse da metodologia. Destaca-se ainda a forte influência sobre Freire exercida pelo filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto.

Palavras-chave: Pedagogia do Oprimido; Dialética; Fenomenologia; Marxismo

Abstract

The article intends to carry out an introductory approach to the philosophy present in the work Pedagogy of the Oppressed (1968) by Paulo Freire. Following its original flow in four sections, it is analyzed how concepts created or used by Freire correspond to or dialogue with concepts from several philosophical currents such as phenomenology, existentialism, Hegelian dialectics and Marxian and Marxist thought in general. Freire's critical Christianity, the legitimacy of the violence of the oppressed, the adherence of the oppressed to the oppressor (quickly passing through some psychoanalytic concepts) and the catharsis of methodology are also addressed topics. The strong influence of the Brazilian philosopher Álvaro Vieira Pinto on Freire is highlighted as well.

Key-words: Pedagogy of the Oppressed; Dialectics; Phenomenology; Marxism

Résumé

L'article vise à réalizer une approche introductive à la philosophie présente dans l'ouvrage Pédagogie des opprimés (1968) de Paulo Freire. Suivant sa flux original en quatre sections, il est analysé comment les concepts créés ou utilisés par Freire correspondent ou dialoguent avec des concepts de certains courants philosophiques, surtout la phénoménologie, l'existentialisme, la dialectique hégélienne et la pensée marxienne et marxiste en général. Le christianisme critique de Freire, la légitimité de la violence de l'opprimé, l'adhésion de l'opprimé à l'oppresseur (en passant rapidement par quelques concepts psychanalytiques) et la catharsis de la méthodologie sont themes également abordés. Il est remarqué aussi la forte influence du philosophe brésilien Álvaro Vieira Pinto sur Freire.

Mots-clés: Pédagogie Des Opprimés; Dialectique; Phénoménologie; Marxisme

Introdução

“o próprio educador tem de ser educado”1

Em comemoração ao centenário de Paulo Freire (1921-2021), este artigo pretende realizar uma modesta aproximação da filosofia presente na sua mais importante obra, Pedagogia do Oprimido, seguindo seu fluxo original em quatro seções. Optou-se por um estudo imanente, sem a presença de comentadores, privilegiando as referências teóricas indicadas pelo próprio Freire. Três parecem ser as principais correntes filosóficas por ele articuladas: a fenomenologia incorporada ao existencialismo; a dialética hegeliana; o marxismo. Além do conceito fenomenológico de intencionalidade (Husserl), Freire utiliza diversas categorias geralmente relacionadas à analítica existencial da condição humana: inconclusão, busca, ser-no-mundo, ser-com, situação-limite, projeto, engajamento, entre outras. No entanto, a energia motriz da Pedagogia do Oprimido advém da dialética hegeliana e do caráter político de algumas categorias marxianas, principalmente práxis, luta e revolução. Assim se compreende melhor, por um lado, a eleição da contradição como relação constituinte da própria realidade, cuja superação se dá por meio de um movimento dialético, e por outro, a tradução da paradigmática contradição entre senhor e escravo, da Fenomenologia do Espírito (1806), para opressor e oprimido, educador e educando.

1. A dialética hegeliana na Pedagogia do Oprimido

Em “Primeiras palavras”, espécie de preâmbulo da Pedagogia do Oprimido, Freire começa tratando do medo da liberdade que impede a conscientização, o desenvolvimento da consciência crítica no lugar da ingênua. Esse medo se manifesta na reprodução do discurso segundo o qual a conscientização é perigosa porque leva à desordem. Mas que tipo de conscientização, que tipo de desordem? Precisamente a conscientização de uma situação existencial concreta de opressão que limita a liberdade. Do ponto de vista opressor, a tomada de consciência do oprimido pode instabilizar a relação de dominação. É preciso então constrangê-lo com um aparente dilema: rebelar-se - mas como? Dada a severa desvantagem, a luta parece contraindicada, a menos que seja arrastada por um “fanatismo destrutivo”. Tão ruim quanto é a resignação, que pode levar a uma “sensação de desmoronamento total do mundo” (FREIRE, 2019, p. 32). Melhor seria então que a opressão não se tornasse um “percebido”, não fosse conscientizada; ou que fosse escamoteada por um “jogo manhoso”, disfarçando o medo em seriedade, em prudência (FREIRE, 2019, p. 33).

Para começar a pensar este impasse, Freire recorre a sua primeira referência filosófica: “o que teme a liberdade se refugia na segurança vital, como diria Hegel, preferindo-a à liberdade arriscada” (FREIRE, 2019, p. 32). Eis a passagem aludida, da Fenomenologia:

Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se comprova]... O indivíduo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa; mas não alcançou a verdade desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente. (HEGEL, 2019, p. 145).

O trecho faz parte do que passou à história da filosofia como a “dialética do senhor e do escravo”. Para Hegel, seguido por Freire, a liberdade é indissociável de risco. Não se trata aqui de apologia ao heroísmo. Arriscar a vida é ir ao encontro da alteridade, condição de um verdadeiro reconhecimento do outro e de si (como outro). Dialética é esse movimento. A alteridade na dialética aparece como contradição. A contradição se põe para a consciência quando ela se descobre ao mesmo tempo independente e dependente, autoconsciente de si, mas condicionada pelo outro. Pode-se parar por aí e, deliberadamente ou não, ignorar a contradição, seja porque, de um lado, o conforto de uma situação concreta o permite, seja porque de outro, a opressão concreta o impõe. Nos dois casos, há o que Freire chama de “segurança vital”. Isso não significa que o oprimido não esteja sofrendo, nem que o opressor seja sempre “mau”, mas que suas consciências não se radicalizaram a ponto de confrontarem a contradição.

A superação da contradição consiste em que ambas as posições saiam de si mesmas e se coloquem radicalmente em relação, abolindo qualquer polarização ou centralidade. A independência de uma se constituirá da independência da outra, e assim continuarão dependentes, mas de uma forma diferente. A dependência era o que antes negava o sujeito e o que precisava ser igualmente negado por ele para que se mantivesse independente. Mas agora, aquilo que o nega já não é simplesmente um objeto, mas sua própria constituição enquanto sujeito-objeto, isto é, a partir de seu outro. Toda vez que Paulo Freire, na Pedagogia do Oprimido, refere-se à relação entre “eu” e “não eu”, ele se serve da negatividade própria à dialética hegeliana, da negação determinada que objetiva não separando, mas relacionando um e outro, passando um no outro. Portanto, há uma saída de si para o outro, uma passagem no contrário, ou ainda uma mediação, e depois um retorno para si. A unificação desse movimento incessante é a consciência-de-si e seu resultado é o mútuo reconhecimento.

Freire estava atento às consequências pedagógicas da dialética. A própria Fenomenologia do Espírito já foi comparada a um “romance de formação” como o Wilhelm Meister, de Goethe, ou o Emílio, de Rousseau, com a diferença de que nela o personagem é a própria consciência.2 Nessa experiência de formação da consciência a dialética do senhor e do escravo é só um momento, mas é nele que Freire se mantém, provavelmente por seu caráter social e intersubjetivo e porque assim se evita que a mediação caia no subjetivismo. A conscientização implica concretamente eu e outro enraizados no mundo, é práxis, unidade dialética de ação e reflexão, objetividade e subjetividade. “É exatamente esta unidade dialética que gera um atuar e um pensar certos na e sobre a realidade para transformá-la” (FREIRE, 2019, p. 35).

1.2. A contradição dialética opressor-oprimido e sua superação

O primeiro capítulo da Pedagogia do Oprimido começa com o problema da humanização e da desumanização enquanto possibilidades ontológicas do homem. A primeira é considerada vocação do homem ao mantê-lo na busca de seu ser mais e na consciência de sua inconclusão; a segunda, situação histórica injusta que limita os homens ao ser menos. Segundo Freire, a desumanização “não se verifica apenas nos que têm sua humanidade roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam” (FREIRE, 2019, p. 40). Aí está o caráter dialético da contradição opressor-oprimido que a distingue da simples oposição. A relação de opressão implica uma espécie de reciprocidade ou solidariedade entre os antagonistas. Eles só existem em relação e não antes dela. Por isso, a superação da contradição não pode significar a mera inversão dos termos (FREIRE, 2019, p. 60), mas a humanização de ambos por meio dos oprimidos: “aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos - libertar-se a si e aos opressores” (FREIRE, 2019, p. 41). A prerrogativa do oprimido é intransferível, assim como para Hegel “a verdade da consciência independente é a consciência escrava” (HEGEL, 2019, p. 148). A libertação não pode se dar através dos opressores. No máximo eles chegam a chamada falsa generosidade3, que pressupõe a conservação da injustiça.

Mas como poderão os oprimidos, sofrendo sua condição, conduzir a si e a seus opressores à superação da contradição entre eles? Para Freire, o maior problema está na própria dialética dessa relação que faz com que o oprimido seja “hospedeiro” do opressor e viva uma “dualidade na qual ser é parecer e parecer é parecer com o opressor” (FREIRE, 2019, p. 43). Como se seu “ideal do Eu” fosse ser opressor.4 Essa identificação à ideologia dominante é chamada por Freire de “aderência ao opressor”. O oprimido adere a uma consciência prescrita, alheia, e ao sentir aquele medo da liberdade, pode-se dizer que parte dele é o medo que seu próprio “opressor interno” tem de ser desalojado.

Nota-se que, para caracterizar o oprimido, Freire emprega algumas noções psicanalíticas sem a preocupação de referencia-las teoricamente: identificação, introjeção, sombra.5 A identificação com o opressor se dá pela introjeção de um caráter apropriador ou proprietário: “...querem a reforma agrária, não para se libertarem, mas para passarem a ter terra e, com esta, tornar-se proprietários ou, mais precisamente, patrões de novos empregados” (FREIRE, 2019, p. 45).6 Essa introjeção tem pelo menos dois aspectos: o oprimido introjeta a sua própria liberdade perdida, como sombra, o que remete à estrutura freudiana da melancolia: a sombra do objeto perdido recai sobre o Eu (FREUD, 2006, p. 108); mas também introjeta sua liberdade tomada, alienada, constituindo-se como objeto, coisa, ser para outro - expressão que Freire associa ao escravo da dialética hegeliana.

Já o opressor é marcado por dois aspectos principais e interligados: violência e posse. Violenta é a própria situação objetiva em que os homens são proibidos de ser mais e, segundo Freire, a violência é prerrogativa do opressor. “Inauguram a violência os que oprimem, os que exploram, os que não se reconhecem nos outros” (FREIRE, 2019, p. 58). Uma vez inaugurada, a violência implica todos os envolvidos. Aqui temos um dos momentos mais ousados da obra. Mesmo sem desenvolver mais longamente o tema, Freire não teme justificar a violência do oprimido no curso do processo de sua libertação. Essa questão polêmica surge reiteradamente ao longo do século XX, desde as Reflexões sobre a violência (1905), de Georges Sorel, passando pela Crítica da violência (1921), de Walter Benjamin. Contudo, a referência freireana provavelmente é Os condenados da Terra (1961), de Fanon.7 Em suma, para Freire, a violência dos oprimidos é legítima porque pode inaugurar o amor e porque busca o direito de ser mais para ambos, oprimido e opressor. Além disso, a violência do opressor pressupõe uma consciência possessiva, “necrófila” e sádica, que trata tudo e todos como objetos de consumo.8

Um dos efeitos da aderência ao opressor é a produção de homens passivos, conformados em serem coisas para o outro. Passividade muitas vezes falsificada ideologicamente como cordialidade ou, como afirma Freire, docilidade, mostrando seu olhar crítico para as fantasias sociológicas da mestiçagem e da democracia racial implantadas no Brasil:

Este fatalismo, às vezes, dá a impressão, em análises superficiais, de docilidade, como caráter nacional, o que é um engano. Este fatalismo, alongado em docilidade, é fruto de uma situação histórica e sociológica e não um traço essencial da forma de ser do povo. (FREIRE, 2019, p. 67).

A pergunta persiste: como os oprimidos podem superar sua situação? As respostas ficam para os próximos capítulos, enquanto no primeiro o caráter é mais geral e preparatório. Além de enfatizar diversas vezes que a superação é um ato de amor, que ela demanda a crença no povo e um permanente diálogo, Freire insiste muito na definição do conceito de práxis, “reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 2019, p. 52). No final do primeiro capítulo, outro importante conceito vem se somar à práxis para apoiar a inserção crítica do oprimido na realidade opressora: a intencionalidade. Ela aparece no interior de uma citação ainda inédita da obra Ciência e Existência (1969), de Álvaro Vieira Pinto, diretor do Departamento de Filosofia do ISEB de 1955 a 1961, e companheiro de Freire no exílio no Chile. Conforme a citação, consciência equivale a método no sentido de caminho para algo que não é ela, que está fora dela, mas inevitavelmente com ela. A intencionalidade é esse caráter fundamental da consciência, segundo a fenomenologia husserliana (recepcionada neste ponto pelo existencialismo sartreano9), de ser consciência de algo, intencionada para algo outro que ela. Freire, cuja pedagogia essencialmente dialógica implica o encontro de consciências, propõe então a cointencionalidade:

Educador e educandos (liderança e massas), cointencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvela-la e, assim, criticamente conhece-la, mas também no de recriar este conhecimento. Ao alcançarem, na reflexão e na ação em comum, este saber da realidade, se descobrem como seus refazedores permanentes. Deste modo, a presença dos oprimidos na busca de sua libertação, mais que pseudoparticipação, é o que deve ser: engajamento. (FREIRE, 2019, p. 77-78).

A influência de Álvaro Vieira Pinto na Pedagogia do Oprimido e no pensamento freireano em geral dificilmente pode ser superestimada. Na verdade, ela já se fazia sentir na distinção do início do primeiro capítulo entre consciência crítica e ingênua, extraída do relato de um operário, mas indubitavelmente relacionada à obra Consciência e realidade nacional (1960). Vieira Pinto tem o mérito de absorver criticamente diversas influências filosóficas e convertê-las à realidade brasileira do subdesenvolvimento em prol da formação de uma ideologia de massa nacional-desenvolvimentista. Esta perspectiva, ao lado da revolucionária marxista, são os dois principais eixos da política pedagógica freireana.

2. Educação bancária versus educação como prática de libertação

O segundo capítulo da Pedagogia do Oprimido localiza a contradição dialética opressor-oprimido no contexto educacional e faz a famosa distinção entre educação bancária, prática opressora, e educação problematizadora, prática libertadora. Na educação bancária, como se sabe, a relação de conhecimento se torna mero depósito; não há intencionalidade, mas apenas uma incidência unilateral sobre o oprimido, como se sua consciência fosse oca; reproduz-se o que Freire chamou de “absolutização da ignorância” (FREIRE, 2019, p. 81), a ideia de que a ignorância está sempre no outro - maneira sumária de negá-lo. “Os educandos, alienados, por sua vez, à maneira do escravo na dialética hegeliana, reconhecem em sua ignorância a razão da existência do educador, mas não chegam, nem sequer ao modo do escravo naquela dialética, a descobrir-se educadores do educador” (FREIRE, 2019, p. 81). A absolutização da ignorância também justifica a falsa generosidade assistencialista que trata os assistidos como se estivessem “fora” da sociedade, sempre paliativamente, perpetuando a opressão.

Na verdade, porém, os chamados marginalizados, que são os oprimidos, jamais estiveram fora de. Sempre estiveram dentro de. Dentro da estrutura que os transforma em “seres para outro”. Sua solução, pois, não está em “integrar-se”, em “incorporar-se” a esta estrutura que os oprime, mas em transformá-la para que possam fazer-se “seres para si”. (FREIRE, 2019, p. 84-85).

Os termos da crítica acima estão presentes por toda a obra. A princípio Freire parece operar uma dicotomia entre ser para si e ser para outro. Este último seria o homem reificado, coisificado10. Já o ser para si seria o homem em sua plena e livre vocação ontológica de ser mais. Até aí talvez fosse possível afirmar que Freire subscreve o existencialismo sartreano: enquanto o para si é dotado de uma liberdade radical, o para outro, em que pese proporcionar a dialética do olhar, acaba por inevitavelmente alienar o para si11. No entanto, há maior proximidade com a dialética hegeliana. Nela, tanto o para si (do senhor) pode ser falso quanto o para outro (do escravo) pode conter a verdade da relação. Pode-se dizer, então, que Freire suplementa o subjetivismo do existencialismo com a dialogicidade da dialética, evitando que a ideia de liberdade se esvazie: “...porque são [os homens] consciência de si e, assim, consciência do mundo, porque são um “corpo consciente”, vivem uma relação dialética entre os condicionamentos e sua liberdade” (FREIRE, 2019, p. 125). Nesse sentido, até a sociedade vem a ser considerada “para si”.12

O conceito de intencionalidade se complexifica na medida em que a consciência também intenciona a si mesma. Ela é como que cindida em para fora e para dentro. Porém, o sentido que Freire dá a esta autoconsciência ou apercepção não é o transcendental kantiano, nem o nadificador sartreano, mas o reflexivo dialético: “não há eu que se constitua sem um não eu. Por sua vez, o não eu constituinte do eu se constitui na constituição do eu constituído” (FREIRE, 2019, p. 99). É apenas mediada pela realidade objetiva, mediação dialógica da qual participam outras consciências, que uma consciência pode conhecer o objeto e a si mesma (saída e retorno, exteriorização e reflexão), remetendo assim ao conceito anterior de “cointencionalidade”.

Todo o sentido do segundo capítulo é a retomada da contradição opressor-oprimido como contradição educador-educando com vistas a sua superação. Para tanto, Freire combina intencionalidade e dialética. A partir daí surgem novas figuras, o educador-educando e o educando-educador, e um princípio político-pedagógico: “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2019, p. 89).

3. Dialogicidade, conteúdo programático e codificação-descodificação

O terceiro capítulo da Pedagogia do Oprimido discute a dialogicidade da educação problematizadora. A palavra é o coração do diálogo. Ela é destacada analiticamente por Freire em duas dimensões, ação e reflexão, cuja interação dialética se torna práxis, capacidade de pronunciar, isto é, transformar o mundo (FREIRE, 2019, p. 107-110).

Para Freire, a prática do diálogo demanda três virtudes que coincidem com as conhecidas virtudes teologais declaradas na 1ª carta de São Paulo aos Coríntios (1 Cor 13, 13): fé, esperança e caridade (também chamada graça ou amor). A diferença é que o ânimo dessas virtudes não é mais transcendente e sim, radicalmente imanente; não mais a salvação em outro mundo, mas a transformação dos homens neste mundo. O amor é a disposição para o encontro13, a fé reside na vocação de ser mais do homem e a esperança “está na própria essência da imperfeição dos homens, levando-os a uma eterna busca” (FREIRE, 2019, p. 113-114).

Freire nunca escondeu sua religião católica, mas sua relação com o cristianismo é decididamente crítica e não doutrinária. Sabe-se que a experiência de Angicos e outras tantas não seriam possíveis sem o engajamento de movimentos sociais cristãos (por exemplo, ACB, JUC, JOC, MEB, AP), os mesmos movimentos que depois participaram da elaboração da teologia da libertação no Brasil e na América-Latina. Pode-se considerar Freire um importante elo nessa genealogia que Michael Lowy (2016) chamou de “cristianismo da libertação”. De resto, termos como comunhão, vocação, amor, testemunho, certamente são sintomáticos. Além disso, em vários momentos se fala em crença, mas no povo, e não em Deus. Há um firme propósito de denunciar o ópio da transcendência, mas nada comparável a uma teologia negativa. Assim, São Gregório de Nissa e João XXIII aparecem de maneira quase profana (FREIRE, 2019, p. 42; 189).

O foco na filosofia da Pedagogia do Oprimido não autoriza a desconsiderar sua parte mais prática, quando se sabe que a práxis é um dos conceitos centrais da obra. Nesse sentido, tanto a elaboração do conteúdo programático, que elege os temas geradores, quanto o método proposto por Freire da codificação-descodificação das situações envolvidas nesses temas são processos intrinsecamente dialéticos e dialógicos.

O diálogo com os educandos revela não só a objetividade em que estão, mas a consciência que têm dela, “os vários níveis de percepção de si mesmos e do mundo em que e com que estão” (FREIRE, 2019, p. 119). Se a educação pretende promover a emancipação e a conscientização, a apreensão pelos educadores da situação concreta de opressão é tão importante quanto à aferição do nível de consciência que os oprimidos têm dela, para só então planejar o processo pedagógico necessário. Na harmonização do pensamento e da linguagem de educadores e educandos, emergem os primeiros grandes grupos temáticos que os envolvem e cuja tomada de consciência se impõe cada vez mais: os temas geradores.

Freire elege como tema geral da sua época o da dominação/libertação. Mas este tema geral pode e deve ser particularizado, personalizado, através da investigação em “círculos concêntricos”. As “situações-limite” frequentemente residem nos círculos mais restritos, “imediatos”, impedindo a visualização de interações mais abrangentes e diacrônicas e contribuindo para calcificar e mitificar o status quo. O método didático que Freire sugere para romper a situação, fazer os temas emergirem e iniciar sua transformação é o da codificação-descodificação, um processo intrinsecamente dialético14. “A codificação de uma situação existencial é a representação desta, com alguns de seus elementos constitutivos, em interação. A descodificação é a análise crítica da situação codificada” (FREIRE, 2019, p. 135).

A codificação é uma saída da situação concreta para um contexto maior e mais abstrato, representativo ou figurado. Uma situação existencial codificada pode ser uma música, uma fotografia, um filme “que remete, por abstração, ao concreto da realidade existencial” (FREIRE, 2019, p. 135). Em seguida, volta-se ao concreto, descodificando dialogicamente aquela abstração. Nessa volta, o concreto já não aparece tão rígido, mas como cisão ou parte interagente de um todo. A cada ida e volta, adquire-se um novo nível de consciência15 e a progressiva descoberta de que “os temas, em verdade, existem nos homens, em suas relações com o mundo, referidos a fatos concretos” (FREIRE, 2019, p. 137), e por isso são passíveis de transformação.

As codificações, de um lado, são a mediação entre o “contexto concreto ou real”, em que se dão os fatos, e o “contexto teórico”, em que são analisadas; de outro, são o objeto cognoscível sobre o que o educador-educando e os educandos-educadores, como sujeitos cognoscentes, incidem sua reflexão crítica. (FREIRE, 2019, p. 151).

Portanto, a codificação tem um duplo aspecto. Ela é objeto de conhecimento e ao mesmo tempo mediadora da reflexão. Os resultados desse processo são descritos de várias maneiras por Freire: emersão da imersão para inserção crítica na realidade (FREIRE, 2019, p. 141); re-admiração da ad-miração (FREIRE, 2019, P. 147), indicando a recuperação da capacidade de admirar, isto é, de por em relação, de objetivar (cf. FREIRE, 2019, p. 44); percepção da percepção anterior possibilitando novas percepções (FREIRE, 2019, p. 153).

Mas definitivamente a imagem mais forte desses resultados da descodificação é a do efeito catártico da metodologia: “os participantes do “círculo de investigação temática” vão extrojetando, pela força catártica da metodologia, uma série de sentimentos, de opiniões, de si, do mundo e dos outros, que possivelmente não extrojetariam em circunstâncias diferentes” (FREIRE, 2019, p. 157). Note-se que a catarse é inteiramente dependente de uma boa codificação, de que o sujeito descodificador possa se reconhecer na codificação e, mediado por ela, supere a consciência anterior (extrojetada) com a emersão de uma nova consciência mais crítica, ampliada e criativa. E uma vez que a codificação pode se dar através de produtos culturais ou artísticos, não fica longe do conceito aristotélico de catarse (Política, VIII; Poética, VI). Sem entrar no campo minado de interpretações deste conceito, mas tendo a práxis como guia, pode-se dizer que a catarse em questão tem menos a ver com a noção psicopatológica de alívio ou de mera formação moral - isso seria instrumentaliza-la a serviço da ação antidialógica. Ela é mais a combinação de dois aspectos, um de ordem intelectual (conscientização), outro de ordem estética (criação), pois a catarse não é um processo passivo, mas ativo. Assim, ela já opera como superação da contradição, transformação das situações-limite, prática da liberdade para recriar o homem.

3.1. Desvio por Marx

O sentido estético também orienta um desvio ou excurso feito por Freire sobre a distinção entre homem e animal a respeito da capacidade que só o primeiro tem de “separar-se de sua atividade”, o qual deriva quase literalmente da leitura dos manuscritos econômico-filosóficos de Marx (1844).16 Considerando a íntima ligação entre Marx e Hegel, pode-se dizer que este ponto faz parte dos elementos dialéticos da pedagogia do oprimido. Na dialética do senhor e do escravo, Hegel estabelece que o trabalho forma este último precisamente na medida em que o escravo se constitui mediado pelo objeto que trabalha, mediação que Marx descreve como auto-separação.

Segundo Freire, sendo inseparável de sua própria atividade, o animal não pode refletir sobre ela e refletir-se nela, o mesmo que “não poder objetivar-se nem à sua atividade” (FREIRE, 2019, p. 123). Sua relação com o mundo não se dá objetivamente como relação com um “não eu” que poderá então ser refletido na constituição de um eu. O animal é um com seu mundo, mundo que lhe dá suporte. Já o homem é consciente de si e de seu mundo, o qual já não é mero suporte, mas campo de relações e transformações. Em Aristóteles, essa diferença se dá entre o mero viver e a existência política, propiciada pela linguagem (ARISTOTELES, 1998, p. 55; 217). Não só simplesmente viventes, os homens têm existência histórica, pois “vivem uma relação dialética entre os condicionamentos e sua liberdade” (FREIRE, 2019, p. 125). Essa relação só é possível porque o homem pode ser livre para se separar do mundo, objetiva-lo, separando-se da sua atividade.17 Assim ele é capaz de continuamente transformar as situações-limite nas quais está inscrito em atos-limite que superam aquelas situações (FREIRE, 2019, p. 126). Estes dois últimos conceitos remetem novamente a Álvaro Vieira Pinto. Seguindo a indicação de Freire, reproduzimos aqui trechos do texto original e descobrimos que a expressão ser mais, tão cara à filosofia de Freire, também pode ter tirado daí sua inspiração:

As massas dos países subdesenvolvidos vivem coletivamente o que certa concepção da filosofia da existência, em relação ao homem individual, chamou de “situações-limite”. São condições de existência nas quais, de acordo com o pessimismo ingênuo do criador de tal conceito, se revela a precariedade do ser humano... Coletivamente, o país subdesenvolvido vive em condição limite. Podemos afirmar que o subdesenvolvimento é em conjunto uma “situação-limite”... para conjura-las, exigem atos livres, que irão constituir no plano da história o que chamaremos de “atos-limite”... Interpretado como modo de estar histórico de uma comunidade nacional em ascensão, as “situações-limite” não são a fronteira entre o “ser” e o “nada”, mas a fronteira entre o “ser” e o “mais ser”.” (VIEIRA PINTO, 2020, p. 283-284).

Freire insere estes conceitos no seu desvio por Marx para reforçar que se o animal é limitado, o homem tem em si mesmo seu limite. Para o animal os limites são o próprio suporte de sua vida (a relação da sua espécie com o ambiente - habitat); se ele estivesse em relação com seu suporte, “o suporte seria mundo” (FREIRE, 2019, p. 127) e ele seria homem. “Em relação” significa produzir-se para além de si mesmo e assim fazer o mundo. A capacidade de se separar da própria atividade é plena de consequências para o homem: significa ter consciência de que seu produto vai compor o mundo com outros produtos18, o que certamente implica uma exteriorização ou objetivação (Vergegenständlichung), mas não necessariamente estranhamento (Entfremdung) ou alienação (Entäusserung)19. Esta diferença é o ponto fundamental do escrito de Marx em que Freire se baseia: diferença entre trabalho estranhado e ser genérico.

O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua consciência. Ele tem atividade vital consciente... [e] só por isso, ele é um ser genérico... Eis por que sua atividade é atividade livre. O trabalho estranhado inverte a relação a tal ponto que o homem, precisamente porque é um ser consciente, faz da sua atividade vital, da sua essência, apenas um meio para sua existência... o trabalho estranhado reduz a auto-atividade, a atividade livre, a um meio, ele faz da vida genérica do homem um meio de sua existência física... um ser estranho a ele, um meio da sua existência individual. (MARX, 2008, p. 84-85).

Diante de textos como esse, muitos pensadores importantes quiseram ver um corte entre o “jovem Marx” e o “Marx maduro”, o primeiro um humanista idealista às voltas com conceitos como “ser genérico” e “essência”; o segundo o precursor de uma ciência chamada materialismo histórico cujo ápice teria sido O Capital. Foge ao escopo deste artigo aprofundar este debate. Mas quando Marx afirma no primeiro livro d’O Capital, capítulo V, que o pior arquiteto se distingue da melhor abelha pelo “fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera”, seria isso um conceito de trabalho tão diferente do de autoatividade dos Manuscritos?20 Se não, a essência enquanto ser genérico que certamente fundamenta o humanismo de Marx, baseada precisamente no trabalho humano como autoatividade (não qualquer trabalho), nada pode ter a ver com um princípio meramente metafísico, formal, e sim com a capacidade de transformação da própria existência, a qual, se é livre, é livre para lidar com seus condicionamentos históricos, exatamente como Freire entende. E isso está intimamente ligado ao conceito de práxis, tradicionalmente localizado nas Teses sobre Feuerbach, de 1845, às quais Freire também faz referência. Nas Teses, Marx faz a crítica tanto do idealismo, quanto do materialismo dogmáticos, que devem ser superados pela práxis, conforme a terceira tese: “A coincidência entre a alteração das circunstâncias e a atividade ou automodificação humanas só pode ser apreendida e racionalmente entendida como prática revolucionária” (MARX; ENGELS, 2007, p. 534).

A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores desta realidade e se esta, na “inversão da práxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens” (FREIRE, 2019, p. 51).

4. Ação dialógica versus ação antidialógica

Talvez o quarto e último capítulo da Pedagodia do Oprimido seja ainda mais político que os anteriores. Há um forte apelo à formação de uma massa revolucionária, voltada para a ação e dotada de uma liderança que não monopolize ou simplesmente dirija a luta, mas esteja em comunhão com o povo e seja autenticada na sua práxis com a do povo. É o momento de enfrentar a ação antidialógica com a ação dialógica. Para Freire, a ação cultural se distingue da revolução cultural, a primeira prepara a segunda: “...a “revolução cultural” é a continuação necessária da ação cultural dialógica que deve ser realizada no processo anterior à chegada ao poder” (FREIRE, 2019, p. 214).

4.1. Ação antidialógica

A ação antidialógica tem quatro características: conquista, divisão, manipulação, invasão cultural. Conquista é sinônimo de dominação, violência e coisificação do oprimido. A dualidade do oprimido, seu caráter alienado, o deixa mais suscetível aos mitos perpetuadores da dominação. E alguns desses mitos catalogados por Freire são assustadoramente atuais (FREIRE, 2019, p. 188-189):

  • Mito de que a ordem vigente é democrática e livre, pois todos são livres para trabalhar com o que quiserem e, se insatisfeitos, para trocarem de trabalho.

  • Mito da meritocracia: basta não ser preguiçoso para ser bem-sucedido.

  • Mito do empreendedorismo: como se táticas desesperadas e precárias de sobrevivência fossem sinônimo de trabalho.

  • Mito do heroísmo ou messianismo das classes opressoras, mas também mito do heroísmo dos oprimidos, baseado numa ideologia moralizante que adoça o sacrifício, a “superação” das dificuldades, convertendo a humilhação (a alienação da vergonha) em mérito.21

  • Mito da propriedade como base sagrada para o desenvolvimento do homem. Este mito se atualiza na captura de movimentos de emancipação no interior das lógicas reprodutoras da ordem opressora hegemônica (por exemplo, lutas identitárias tornando-se identitarismo).

Todos esses mitos e mais outros que o leitor poderá acrescentar, cuja introjeção pelas massas populares oprimidas é básica para a sua conquista, são levados a elas pela propaganda bem organizada, pelos slogans, cujos veículos são sempre os chamados “meios de comunicação com as massas”. (FREIRE, 2019, p. 189).

A doutrinação das massas via mídia hegemônica se faz não só pela inoculação dos mitos, mas também pelo puro divertimento, o que remonta à velha política do “pão e circo”, segundo a fórmula do sátiro romano Juvenal, mais atual que nunca (FREIRE, 2019, p. 189). Isso contribui para a divisão da classe oprimida, a segunda característica da ação antidialógica. A união, a organização dos oprimidos precisa ser considerada perigosa, vergonhosa, e para tanto não raro eles são ameaçados, chantageados, cooptados, dissuadidos (FREIRE, 2019, p. 195).

A manipulação, terceira característica da teoria da ação antidialógica, faz-se através dos mitos da ideologia dominante que manipula toda a sociedade, mas também através de pactos entre as classes dominantes e massas dominadas que simulam o diálogo. A manipulação ocorre quando as massas ameaçam emergir da situação de opressão, reivindicando direitos, mudanças, ainda que timidamente. É a ocasião perfeita para o surgimento do populismo. O líder populista (exemplificado por Vargas, contraposto posteriormente a Fidel) também é ambíguo, anfíbio: transita tanto pelas oligarquias dominadoras quanto pelo povo dominado. O assistencialismo paternalista, mais uma vez, é o típico instrumento divisor/manipulador. “Fracionam as massas populares em grupos de indivíduos com a esperança de receber mais” (FREIRE, 2019, p. 204). Não obstante, Freire vê uma oportunidade de conscientização no próprio assistencialismo, no momento em que se percebe que ele não pode assistir a todos e, por isso mesmo, é complacente com as verdadeiras causas da opressão (FREIRE, 2019, 204).

A última característica da ação antidialógica, a invasão cultural, consiste na hegemonia de uma estrutura opressiva com todos os seus mecanismos antidialógicos em operação.

É importante, na invasão cultural, que os invadidos vejam a sua realidade com a ótica dos invasores e não com a sua. Quanto mais mimetizados os invadidos, melhor para a estabilidade dos invasores... O eu social dos invadidos, que, como todo eu social, se constitui nas relações socioculturais que se dão na estrutura, é tão dual quanto o ser da cultura invadida. É esta dualidade, já várias vezes referida, que explica os invadidos e dominados, em certo momento de sua experiência existencial, como um eu quase “aderido” ao tu opressor. É preciso que o eu oprimido rompa esta quase “aderência” ao tu opressor, dele “afastando-se”, para objetiva-lo, somente quando se reconhece criticamente em contradição com aquele. (FREIRE, 2019, p. 206-207).

A propósito da invasão cultural, Freire importa alguns conceitos de Louis Althusser, responsável por uma das abordagens mais pujantes do pensamento marxista na segunda metade do século XX. O principal conceito tratado é o de sobredeterminação. Althusser elege como pedra de toque da dialética marxista, que ele distingue da hegeliana como joio do trigo, a Contribuição à Crítica da Economia Política (1859), em cujo prefácio lê-se que a estrutura (ou base) econômica da sociedade, o modo de produção material do “ser social” é a instância determinante da superestrutura jurídico-política ou das formas de consciência desse ser. Essa primazia da determinação material ou estrutural da consciência deveria trazer enormes dificuldades para qualquer processo de conscientização e de crítica da ideologia como “falsa consciência”, afinal de contas “as ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes” (MARX; ENGELS, 2007, p. 47). Há, portanto, sobredeterminação, não só estrutural, mas também superestrutural e ainda por outras instâncias em diferentes escalas que integram um todo complexo estruturado social. Mas o caráter sobredeterminado do complexo significa que a contradição estrutural se reproduz de maneira desigual, com ritmos desiguais - e é neste ponto, principalmente, que estaria a diferença em relação à dialética hegeliana, segundo Althusser: ela implicaria o autodesenvolvimento de uma unidade simples através da sua alienação que não passa de fenômeno momentâneo da sua própria reconciliação (trabalho do negativo, negação da negação), ao passo que a contradição só pode ser verdadeiro motor da dialética marxista se implicar a complexidade e a desigualdade de seu desenvolvimento. Somente assim se explica a própria possibilidade da prática teórica e política de um Marx, de um Freire, ficando afastados do pensamento althusseriano o estruturalismo e o determinismo mais vulgares. Por isso mesmo ele também pode chamar a sobredeterminação de reflexão (ALTHUSSER, 2015, p. 167; 173).

Com efeito, na medida em que uma estrutura social se denota como estrutura rígida, de feição dominadora, as instituições formadoras que nela se constituem estarão, necessariamente, marcadas por seu clima, veiculando seus mitos e orientando sua ação no estilo próprio da estrutura. Os lares e as escolas, primárias, médias e universitárias, que não existem no ar, mas no tempo e no espaço, não podem escapar às influências das condições objetivas estruturais. Funcionam, em grande medida, nas estruturas dominadoras, como agências formadoras de futuros “invasores”. (FREIRE, 2019, p. 208).

É curioso como a descrição freireana, à luz do conceito de sobredeterminação, prefigura o futuro conceito de “aparelhos ideológicos de Estado” que Althusser trabalhou na década de 1970. “Nem sempre se leva a sério a existência da ideologia como prática; no entanto, esse reconhecimento prévio é condição indispensável para toda teoria da ideologia” (ALTHUSSER, 2015, p. 136). O caráter material da ideologia demonstra como cada célula social (familiar, educacional, jurídica, religiosa) termina reproduzindo as relações de dominação. Mas a reprodução social não é a única função prática da ideologia, pois ela também está sujeita à dinâmica complexa da contradição sobredeterminada. Mesmo que a ideologia dominante seja a da classe dominante, isso não significa que ela seja totalmente instrumentalizada por esta classe, como se a falsa consciência fosse simplesmente consciência falseada, cujo desmascaramento resultaria em transformação real. Para Althusser, toda consciência, como ponta de um iceberg ideológico inconsciente (isto é, material, prático), é em certa medida “falsa”, o que significa: 1) que a própria classe dominante está à mercê da “sua” ideologia; 2) que a ideologia pode servir tanto para a reprodução, quanto para transformação social; e 3) que até uma sociedade sem classes, a princípio, não passaria sem ideologia.

Esse panorama conceitual não é ocioso, pois a Pedagogia do Oprimido foi contemporânea de uma polêmica em torno do humanismo iniciada com a recusa de um artigo de Althusser (Marxismo e Humanismo, em: ALTHUSSER, 2015, p. 183-208) para compor uma coletânea organizada por Erich Fromm. Visto que os dois pensadores parecem ser fundamentais para Freire, sua combinação seria indicativa de alguma inconsistência? Nem tanto. Enquanto Erich Fromm buscava fazer uma crítica ao socialismo soviético afirmando um “humanismo real”, Althusser fazia a crítica do caráter burguês e metafísico do próprio conceito de humanismo, ou seja, as propostas eram simplesmente diferentes. Certamente a divergência piorava quando a proposta de Fromm se baseava no humanismo do “Jovem Marx” e a crítica de Althusser no suposto “anti-humanismo” do “Marx maduro”22. Mas a questão se resume à função ideológica do humanismo. Segundo Althusser, ela é muito mais adequada à reprodução da sociedade burguesa, não impedindo, contudo, em virtude da contradição sobredeterminada, que também desempenhe uma função crítica prático-política como mostrou o próprio “Jovem Marx”. Porém, com o materialismo histórico e científico, o humanismo quase sempre se torna uma “sobrevivência” da ideologia dominante e já não pode representar uma ideologia revolucionária por conta de seu atraso teórico. Isso caberia então, embora não seja mencionado no referido artigo, ao proletariado e não ao humano.

Diante disso tudo, Freire assume uma posição incrivelmente equilibrada. Não abre mão da exortação política baseada em conceitos afirmativos de teor essencialista23, tais como humanização, vocação, ser mais, mas também não deixa de marca-los com o signo da contradição, presente em conceitos como luta, revolução e na escolha do oprimido, o equivalente do proletariado, para o papel principal na transformação social. Não obstante, nota-se que Freire conserva a crítica da alienação e mantém a dialética hegeliana naquilo que julga válido para a libertação e o reconhecimento intersubjetivos.

4.2. Ação dialógica

Freire passa então às características da ação dialógica: colaboração, união, organização e síntese cultural. É novamente um esquema dialético de intersubjetividade que descreve a colaboração, desta vez empregando a terminologia de Martin Buber (Eu e Tu, 1923):

O eu dialógico, pelo contrário, sabe que é exatamente o tu que o constitui. Sabe também que, constituído por um tu - um não eu -, esse tu que o constitui se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um tu. Desta forma, o eu e o tu passam a ser, na dialética destas relações constitutivas, dois tu que se fazem dois eu. Não há, portanto, na teoria dialógica da ação, um sujeito que domina pela conquista e um objeto dominado. Em lugar disto, há sujeitos que se encontram para a pronúncia do mundo, para a sua transformação. (FREIRE, 2019, p. 227).

A colaboração é por essência dialógica. O diálogo é comunicação, não impõe, não manipula, não sloganiza. A comunicação dialógica com as massas, mediada pela realidade, permite a livre coincidência das opções, que distingue a adesão revolucionária da aderência ao opressor (FREIRE, 2019, p. 228). A adesão permite a união e a organização dos oprimidos baseada no testemunho de uns aos outros e da liderança a todos. Entre os elementos constitutivos do testemunho estão a coerência de palavra e ação, o risco implicado no que se testemunha, a radicalidade que estimula o engajamento (FREIRE, 2019, p. 241). A liberdade do testemunho é a fonte natural da autoridade das lideranças revolucionárias, pois a ação dialógica rejeita tanto o autoritarismo quanto o liberalismo. “Toda liberdade contém em si a possibilidade de vir a ser, em circunstâncias especiais (e em níveis existenciais diferentes), autoridade” (FREIRE, 2019, p. 244).

Por fim, a síntese cultural, última característica da ação dialógica, não significa nenhum tipo de reconciliação última, mas a sustentação da unidade dialética das contradições sociais no sentido de sua contínua superação. Nas páginas finais da Pedagogia do Oprimido, Freire mostra como a educação problematizadora já é síntese cultural quando a investigação temática e o conteúdo programático são produzidos na relação entre educadores e educandos. E, além disso, a síntese é exemplificada no caso concreto de uma reivindicação salarial. Síntese é simultaneamente apoiar a reivindicação e problematiza-la como não sendo a solução da contradição, e sim um momento transitório dessa solução que deve ser mais radical. A problematização deve poder criticar a própria condição do trabalho estranhado, muitas vezes análogo à escravidão, e assim organizar a luta por sua reapropriação, recuperando a capacidade de autocriação e de ser mais dos homens por meio do trabalho, o qual se torna autoatividade (MARX, 2007, p. 72-74).

Inconclusão

Ao realizar esta aproximação introdutória de algumas das principais referências filosóficas da Pedagogia do Oprimido, o presente artigo buscou contribuir para qualquer práxis pedagógica que se pretenda emancipadora e superadora da opressão social, mas também foi uma maneira singela de prestar homenagem ao centenário de Paulo Freire. Observamos uma habilidosa e potente combinação de fenomenologia, existencialismo, dialética e marxismo, de pensamento estrangeiro e nacional. Nesse sentido, além de outras tantas lacunas, fica a dívida de um maior aprofundamento em relação à influência da filosofia de Álvaro Vieira Pinto. O artigo termina na esperança por desdobramentos, pois o diálogo entre Freire e a filosofia é consciente de sua inconclusão.

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1Cf. Terceira tese sobre Feuerbach (MARX; ENGELS, 2007, p. 533).

2HYPPOLITE, Jean. Gênese e Estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel. São Paulo: Discurso Editorial, 2003, p. 27.

3Também chamada por Freire de “humanitarismo” (diferente do humanismo), a falsa generosidade é bastante discutida ao longo do livro, desde a seção “Primeiras Palavras” (FREIRE, 2019, p. 34).

4Este quadro perturbador, que Freire certamente presenciou no Brasil e em muitos outros países, foi explicitamente tomado de duas obras fundamentais a respeito da condição do oprimido colonizado: Os condenados da Terra (1961), de Frantz Fanon, e Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador (1957), de Albert Memmi.

5É possível que Freire tenha absorvido tais noções de Erich Fromm, que além de sociólogo da Escola de Frankfurt era psicanalista.

6Talvez a referência oculta aqui seja o existencialismo cristão de Gabriel Marcel com sua distinção básica entre ser e ter. “...para os opressores, o que vale é ter mais e cada vez mais, à custa, inclusive, do ter menos ou do nada ter dos oprimidos. Ser, para eles, é ter e ter como classe que tem” (FREIRE, 2019, p. 63).

7Sabe-se que esta obra de Fanon já começa por um estudo detalhado da violência colonial. Destaca-se também o prefácio de Sartre, visivelmente entusiasmado com a possibilidade da violência do oprimido: “Essa violência irreprimível, ele [Fanon] o demonstra cabalmente, não é uma tempestade absurda nem a ressurreição de instintos selvagens e nem mesmo um efeito do ressentimento; é o próprio homem que se recompõe” (FANON, 1968, p. 14).

8Freire caracteriza a relação de dominação como amor patológico: “sadismo em quem domina; masoquismo nos dominados” (FREIRE, 2019, p. 110-111). Essa economia sadomasoquista pode ser inadvertidamente encontrada na forma como Gilberto Freyre descreve a relação entre senhores e escravos, entre casa grande e senzala. Já a necrofilia (noção extraída de Erich Fromm) do opressor certamente antecipa a noção mais recente e popularizada de necropolítica (cf. MBEMBE, 2018).

9Cf. citação de Sartre a propósito da coexistência de consciência e mundo (FREIRE, 2019, p. 98).

10O conceito lukacsiano de reificação aparece várias vezes no quarto capítulo da Pedagogia do Oprimido. No primeiro capítulo, Lukacs também é bastante citado a respeito da tarefa revolucionária de conscientização das massas oprimidas, que é o próprio tema da obra de Freire. O conceito de fundo aí é o de “consciência de classe”.

12“Se, agora, analisamos uma sociedade também como ser, parece-nos concludente que, somente como sociedade “ser para si”, sociedade livre, poderá desenvolver-se” (FREIRE, 2019, p. 218).

13O exemplo de amor dado por Freire está na liderança revolucionária de Che Guevara (FREIRE, 2019, 110; 230-232).

14De certo modo, esse processo realiza a transformação das “visões de fundo” em “percebidos destacados” que Freire aborda à luz da intencionalidade husserliana no segundo capítulo (FREIRE, 2019, p. 99-100).

15Freire utiliza a terminologia de um dos maiores discípulos de Lukacs, Lucien Goldmann (Sciences humaines et philosophie, 1966): a “consciência real” que parte da percepção inicial das situações-limite como destino fatal progride em direção à “consciência máxima possível” para a qual começa a surgir o “inédito viável”, sendo este último conceito cunhado pelo próprio Freire.

16Cf. “Trabalho estranhado e propriedade privada”. In: MARX, K. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Trad. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 79-90.

17“...na medida em que dele [mundo] podem separar-se e, separando-se, podem com ele ficar, os homens, ao contrário do animal, não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica” (FREIRE, 2019, p. 124).

18Neste caso, o sentido de produto e de produção pode ser explicado de acordo com o seguinte trecho: “E é como seres transformadores e criadores que os homens, em suas permanentes relações com a realidade, produzem, não somente os bens materiais, as coisas sensíveis, os objetos, mas também as instituições sociais, suas ideias e concepções” (FREIRE, 2019, p. 128).

20Sabe-se que Louis Althusser foi talvez o principal defensor da noção de corte epistemológico em Marx. Uma posição diferente podemos encontrar em Leandro Konder: “O Capital comprova, portanto, a fidelidade do filósofo à teoria que concebeu na juventude. O trabalho continuou a ser para ele, na sua essência, a atividade de autocriação do homem. Pelo trabalho, o homem fez-se - e faz-se, ainda - a si mesmo. Nisso consiste, a meu ver, a originalidade da concepção do homem elaborada por Marx: o ser humano existe elaborando o novo, através da sua atividade vital, e com isso vai assumindo sempre, ele mesmo, novas características” (KONDER, 2018, p. 113).

21 “Fazer o que deve ser feito” é a mensagem motivacional do anúncio televisivo de um grande banco, pregando uma falsa superação e fingindo solidariedade com milhões de pessoas afetadas pela pandemia (2020). Omite-se que num quadro de estagnação econômica mundial os bancos continuam com altíssimas taxas de lucro, inclusive por causa dos altos juros cobrados e de várias condições abusivas exigidas para contração de empréstimos, sabotando cinicamente a própria propaganda.

22Sobre este ponto, devido aos limites deste artigo, não é possível ir além do que foi afirmado no item 3.1 acima.

23Freire insiste ao longo da obra sobre seu caráter antropológico (FREIRE, 2019, p. 40; 131).

Recebido: 25 de Setembro de 2021; Aceito: 01 de Dezembro de 2021

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