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Educação e Filosofia

Print version ISSN 0102-6801On-line version ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.74 Uberlândia May/Aug 2021  Epub Jan 15, 2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n74a2021-63280 

Dossiê Colóquio Medieval

Corpus Paraensis

Corpus Paraensis

Corpus Paraensis

Lúcio Álvaro Marques* 
lattes: 1088648968757632; http://orcid.org/0000-0002-7571-0977

*Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor do Adjunto na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e no Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE/UFTM). E-mail: lucio.marques@uftm.edu.br


Resumo

A condição de possibilidade primária para a existência de uma filosofia é que os seres humanos pensem e, pensando, transmitam suas memórias e reflexões em escritos, ou seja, que exista uma traditio philosophica - uma herança e uma transmissão - desse pensar. O que identifica, grosso modo, a experiência do pensamento é seu registro na palavra-texto (escrita) e não apenas na palavra-oral (discurso). A condição secundária, portanto, é a existência de textos ou escritos filosóficos e, neste caso, a hipótese a se levantar refere-se aos escritos filosóficos coloniais do Pará, que nomeamos Corpus Paraensis. Provar a existência de uma filosofia colonial brasileira depende, por um lado, de reconhecermos o que resta daquela traditio philosophica colonial e, por outro, da análise desses escritos enquanto exercícios de pensar consignados em textos. Por isso, este artigo não só identificará alguns escritos filosóficos coloniais paraenses quanto exemplificaremos essa herança com a edição de dois inéditos: um texto de caso de consciência (ou filosofia moral) e um de filosofia transnatural ou teodiceia (metafísica teológica). Com isso, convencemo-nos de que existiu uma traditio philosophica colonial brasileira?

Palavras-chave: Corpus Paraensis; Segunda Escolástica; Filosofia Moral; Filosofia Transnatural

Abstract

The condition of primary possibility for the existence of a philosophy is that human beings think and, thinking, transmit their memories and reflections in writing, that is, that there is a traditio philosophica - an inheritance and a transmission - of this thinking. What roughly identifies the experience of thought is its registration in the text-word (written) and not just in the oral-word (discourse). The secondary condition, therefore, is the existence of philosophical texts or writings and, in this case, the hypothesis to be raised refers to the colonial philosophical writings of Pará, which we named Corpus Paraensis. Proving the existence of a Brazilian colonial philosophy depends, on the one hand, on recognizing what remains of that colonial traditio philosophica and, on the other, on analyzing these writings as exercises in thinking contained in texts. Therefore, this article will not only identify some colonial philosophical writings from Pará, but we will also exemplify this heritage with the edition of two unpublished papers: a text on a case of conscience (or moral philosophy) and one on transnatural philosophy or theodicy (theological metaphysics). With that, are we convinced that there was a Brazilian colonial traditio philosophica?

Key words: Corpus Paraensis; Second Scholasticism; Moral Philosophy; Transnatural Philosophy

Resumen

La condición de posibilidad primaria para la existencia de una filosofía es que el ser humano piense y, pensando, transmita sus recuerdos y reflexiones por escrito, es decir, que haya una traditio philosophica - una herencia y una transmisión - de este pensamiento. Lo que identifica a grandes rasgos la experiencia del pensamiento es su registro en la palabra-texto (escrita) y no solo en la palabra-oral (discurso). La condición secundaria, por tanto, es la existencia de textos o escritos filosóficos y, en este caso, la hipótesis a plantear se refiere a los escritos filosóficos coloniales de Pará, a los que denominamos Corpus Paraensis. Probar la existencia de una filosofía colonial brasileña depende, por un lado, de reconocer lo que queda de esa traditio philosophica colonial y, por otro, de analizar essos escritos como ejercicios de pensamiento contenidos en textos. Por tanto, este artículo no solo identificará algunos escritos filosóficos coloniales de Pará, sino que también ejemplificaremos esta herencia con la edición de dos artículos inéditos: un texto sobre un caso de conciencia (o filosofía moral) y otro sobre filosofía o teodicea transnatural (metafísica teológica). Con eso, ¿estamos convencidos de que hubo una tradicio philosophica colonial brasileña?

Palavras clave: Corpus Paraensis; Segunda Escolasticismo; Filosofía Moral; Filosofía Transnatural

Zu Herr Professor Jakob Hans Josef Schneider, mit Bewunderung!

I

Com justa atenção e sincera deferência, dedico este texto ao Professor Schneider. Sua sinceridade e delicadeza ao convidar-me para a XXIII Semana de Filosofia e o II Colóquio de Estudos Medievais da UFU felizmente estão registrados eletronicamente (em um e-mail de 24 de setembro de 2019) e faço questão de partir desse convite, que agora transcrevo na parte que interessa: “lembro bem sua palestra sobre a edição de um livro de aprendizagem da filosofia na escolástica colonial. (…) Com relação ao tema de apresentação, gostaria de sugerir uma continuação do tema apresentado no I Congresso da Sociedade Brasileira pelo Estudo da Filosofia Medieval em Porto Alegre 2019. Eu gostaria que você apresentasse sua palestra neste evento, pois gostei muito. Talvez você tenha novos resultados, ou seja, se seu trabalho na edição está fazendo progresso”. Sim, senhor Prof. Schneider, fiz a palestra e farei este artigo conforme soliticado.

O livro mencionado é, justamente, A lógica da necessidade (2018) em que consta a edição bilíngue de sete inéditos do professor Rodrigo Homem que lecionou no Colégio do Maranhão entre 1720-1725. No livro, apresentamos o Catalogus Eborensis que reúne trinta e quatro escritos provenientes dos Colégios do Maranhão e Pará e outros quinze de Coimbra e Évora. No II Colóquio apresentei, de fato, uma continuidade desta pesquisa que reunia um catálogo de escritos mais amplo que aquele presente nesse livro, pois incluímos escritos dos colégios jesuíticos e beneditinos do Rio de Janeiro, do colégio lazarista do Caraça-MG e do colégio franciscano do Mato Grosso (Marques, 2021). Na ocasião, reuni tais registros ainda algo dispersos e em início de edição, inclusive os textos que se seguem do Corpus Paraensis. E fazendo juz à conversa que tive com o Prof. Schneider após o Colóquio, ele sugeriu que pudesse reunir os novos resultados em uma publicação e faço-o agora, embora preferisse que ele os lesse conosco neste artigo. Dada a impossibilidade, dedico-lhe os mesmos.

A traditio philosophica em que se inclui o pensamento da segunda escolástica não é outra que o pensamento medieval vazado nos poros da modernidade europeia e fundido no calor do trópicos. É improdutivo e bizarro negar a herança do pensamento das escolas coloniais, afinal, um ensino feito pelos lentes religiosos, dedicado em grande parte aos alunos internos (seminaristas) e externos (filhos das elites coloniais, com raras exceções) em que predominou o latim eclesiástico, não assimilou imediatamente os ares modernos. Ao contrário, mesmo quando Pombal pretendia modernizar esse ensino, em meados do século dezoito, ele admitia que o pensamento cartesiano seria algo licencioso para mentes lusitanas. Enfim, prevaleceu o óbvio, o ensino colonial é uma segunda escolástica tanto na forma quanto no conteúdo.

A herança da forma prevaleceu, de algum modo, até o surgimento das primeiras instituições laicas de ensino no século vinte, uma vez que o ensino não abandonou o latim de vez, e permaneceu largamente influenciado pelas ordens religiosas católicas. Quanto ao conteúdo, a considerar os principais pensadores do século dezenove, há forte viés religioso no pensamento, a ponto de Paulo Margutti (2020, p. 651) ainda caracterizar a “filosofia como ancilla religionis”. Como herdeiros da forma e do conteúdo medieval, a filosofia colonial desenvolveu-se em torno de uma traditio philosophica possível. Seria torpe pensarmos que o Brasil-colônia acompanhou a modernidade filosófica europeia. A nossa herança teórica trás o fenótipo e o genótipo da escolástica, em uma versão tropical. A escolástica tardia ou segunda escolástica é, nesse sentido, nossa primeira matriz teórica tropical, porque defrontou-se com realidades inauditas ao pensamento europeu: os povos originários multilíngues e multiculturais e, depois da segunda metade do século dezesseis, os povos africanos, também multilíngues e multiculturais.

Infelizmente, o pensamento europeu, demasiado eurocêntrico, foi incapaz de abrir-se às culturas e tradições dos povos originários e africanos. Como Narciso acha feio tudo que não é espelho, os europeus foram incapazes de se abrirem à economia da trocas simbólicas e produziu, tanto quanto pôde, uma planificação cultural e uma imposição etnocêntrica de valores. Mas, isso não foi tudo. A escolástica colonial tropicalizou-se de algum modo, pois os problemas relativos à humanidade do homo americanus (povos originários e africanos) e as condições de possibilidade de exploração e escravidão dos novos povos obrigou o pensamento a efetivar verdadeiros malabarismos, por exemplo, religiosos, que se diziam cristãos, defendiam ardorosamente a escravidão e, não poucas vez, outros religiosos da mesma sepa contestavam-na e, não poucas vezes, ambos tinham escravos a seu serviço sem suas casas e fazendas. Talvez não se trate de uma razão cínica, no sentido que Peter Slojterdijk atribui a zynismus, que equivale à distorção moral, mas que exige um bom grau de retórica o fato de alguém subir ao púlpito, como cristão, e conservar escravos, certamente exige. Enfim, o europeu, imbuído do desejo de “civilizar e cristianizar”, teve, por um lado, que negar a humanidade do homo americanus para escravizá-lo e, por outro, foi obrigado a se abrir ao aprendizado de línguas originárias e esperar até o século dezenove para impôr definitivamente o português como língua comum. É nesse cenário que a escolástica se tropicalizou, pois não bastava pensar, era necessário pensar o lugar e a condição em que se encontrava, o que é perceptível nas temáticas dos escritos que compõem o Corpus Paraensis: a escravidão, a injúria, a encarnação e a física aristotélica.

Os dois primeiros escritos - Conclusiones morales pro servitute e Conclusiones morales pro injuris circa bonum famae - enquadram-se nas teias dos casos de consciência e, mais precisamente, nas análises da filosofia moral, cujo fim último é o ordenamento da vida ética em sociedade. O primeiro, teve publicação recente (Marques e Pereira, 2020, p. 135s). Curiosamente, integra um raro grupo de escritos anônimos e critica um famoso religioso que pontificava no Pará em defesa da escravidão. O segundo escrito, sairá do anonimato na segunda parte deste texto e retoma um tópico clássico do estoicismo moral - a fama - pois, Epicteto já afirmava (Encheirídion 1.1): “não são encargos nossos o corpo, as posses, a reputação (dóxai), os cargos públicos - em suma: tudo quanto não seja ação nossa”. A opinião pública sobre o indivíduo, o direito de gozar de fama ou reputação não estava, segundo o estoico, sob o domínio da pessoa. Por isso, como o autor anônimo da segunda escolástica pensou esse mesmo tema? Como entendeu o direito de reputação de pessoas sentenciadas? O terceiro escrito - Conclusiones theologicas de ineffabili Incarnatione Mysterio - retoma uma discussão cara ao franciscanismo e, não por acaso, foi escrito no Convento Carmelita do Pará por frades dessa ordem. E, por fim o escrito de destaque impressionante e que, por hora, só posso atribuir a esse corpus e não ao Maragnoniensis é um comentário em forma de teses de toda a obra física de Aristóteles. A versão indexado ao Corpus Paraensis deve-se ao fato de estar anônimo, como é o caso dos escritos sobre filosofia moral. No entanto, há uma segunda versão desse comentário assinada por Bento da Fonseca, SJ, que foi aluno de Rodrigo Homem, SJ, e o sucedeu no colégio maranhense. A razão de não atribuir os dois escritos ao Corpus Maragnoniensis deve-se, em primeiro lugar, ao fato de ser anônimo, como os precedentes que já mencionamos; segundo, por ter um estilo mais completo e primitivo em relação à versão assinada por Bento da Fonseca, isto é, trás as citações que identificam cada tese; e terceiro, por ser uma versão muito rasurada, emendada e reescrita, o que indica ser uma versão mais antiga. Por essas e outras razões, ainda não afirmamos que ambos são de origem maranhense, apenas o segundo por se tratar de professor que lá atuou e o outro, ainda apresentaremos editados e estudados com os devidos cuidados.

Finalmente, que reflexões estão presentes nos escritos do Corpus Paraensis? Não nos propomos resumir os textos a seguir, pois dispensaria a leitura dos mesmos. Apenas queremos aguçar o olhar para alguns aspectos presentes nestes dois exemplares do corpus. No Catalogus Eborensis estão identificados pelas cifras [47.167-170] e [43.149-153] (Marques, 2018, p. 143-4), a saber: os números 47 e 43 correspondem à numeração escrita no fólio inicial, canto direito superior segundo a numeração posta pela Biblioteca Pública de Évora, os demais números identificam os fólios. As Conclusiones morales pro injuriis constam de quatro fólios, sendo os três primeiros recto et versu. No primeiro, coloca e caracteriza-se o debate sobre a fama, injúria ou reputação pública de uma pessoa. Hoje diríamos, trata-se de divulgação de informações privadas e/ou de sigilo judicial. Os dois fólios seguintes recto et versu apresentam duas conclusões, cada uma subdividida em três pontos e no último in recto, há um casus extra materiam relativo ao cumprimento das normas religiosas. O texto escrito em português trás inúmeras expressões e, sobretudo as conclusões em latim e, nesse caso, apresentamos uma versão útil à compreensão básica do sentido do texto. O especialista lerá o latim, naturalmente. Os termos latinos e/ou sublinhados serão transcritos em itálico. O debate central do primeiro escrito inquire o sentido de boa ou má fama de alguém, a saber, qual é o sentido de pensar e se ocupar com a vida e os costumes de outra pessoa (multitorum existimatio de vita, et moribus alterius)?

O segundo escrito trás uma contra capa, pouco significativa para o que se segue, e uma capa que integra o primeiro fólio. Embora sendo apenas dois fólios recto et versu, as Conclusiones theologicas de ineffabali Incarnatione Mysterio são exercício completo de apresentação de uma questão toda redigida em latim, com uma tradução sugerida por nós. A forma dessas Conclusiones é característica do gênero, excetuando as conclusões referentes à filosofia moral. As demais conclusões sempre refletem o padrão do que se apresentava como trabalho conclusivo de um ciclo de licenciatura e, inclusive as que se chegaram a imprimir, como as Conclusiones metaphysicas de ente reali (Marques, 2015). As Conclusiones theologicas estruturam-sem em quatro conclusõess, respectivamente, acerca da conveniência, da causa e da possibilidade da encarnação e a quarta sobre a união hipostática das naturezas humana e angélica no Verbo encarnado. A questão em debate investiga o tempo oportuno à encarnação: Conuenienti tempore facta fuit Incarnatio?

Historiar o ensino colonial não se reduz à construção de uma narrativa meramente erudita sobre colégios, professores e escritos. Ao contrário, o que se busca é saber o grau e o sentido do ensino colonial e, com isso acercar-nos da questão em torno da origem e desenvolvimento da educação e da filosofia colonial brasileira. Em Filosofia colonial brasileira (Marques, 2021) interrogamos a forma dos escritos e seu alcance, neste artigo cabe, não apenas a nós, mas ao leitor ponderar se ainda há a razões para excusarmos nossa herança filosófica. Enfim, o testemunho dos escritos que se seguem não se dirige apenas a quem os edita, mas sobretudo ao leitor, afinal, convencemo-nos de que existiu uma traditio philosophica colonial brasileira ou insistimos em negar essa história do pensar?

II

Conclusiones morales por injuriis circa bonum famae1

Conclusões morais sobre a injúria acerca da boa fama

[167r] São estas conclusões de moral das injúrias feitas ao próximo tocantes ao bem da fama: antes de entrarmos a provar cada uma das conclusões havemos de advertir que a fama se deriva de fando (que se pode dizer), à qual somada em geral pela boa fama, e má [fama] se define multitorum existimatio de vita, et moribus alterius (conjunto de pensamentos e expressões sobre a vida e os costumes alheios): porém tomada somente pela fama boa, que é aquela, que se ofende pela murmuração, se define multorum existimatio bona de vita, et moribus alterius (conjunto de bons pensamentos e expressões sobre a vida e os costumes alheios): posto que se derive deste verbo faris vel fare que significa falar, contudo consiste principalmente na opinião interna dos homens, posto que também a prolação externa de palavra seja aquilo para se manifestar a opinião interna: não compreende sem a fama boa opinião interna da virtude, engenho[sidade], e sabedoria do próximo, mas também se ofende aos bens corporais, e externos, como, por exemplo, nobreza, forças, e riquezas, e tudo aquilo, por onde os homens se constituem capazes de serem louvados. Distingue-se a boa fama da honra em que a fama consiste na opinião interna, a qual se profere exteriormente em ordem a se divulgar; e a honra consiste em um testemunho exterior, o qual se profere em ordem ao conhecimento da excelência da pessoa, a quem se tributa a honra2.

A detração ou murmuração, que é oposta à boa fama, com a qual se ofende, define-se desta sorte: aliena famae occulta, et injusta denigratio (reputação oculta do outro, e injusta difamação). Difere a dretração da contumélia, porque esta é afronta em presença, em aquela em ausência, assim como o furto difere da rapina, porque aquele se faz em ausência do senhor, e sem ele o saber, e esta se faz sabendo-o, e resistindo o senhor ofendido. Ultimamente a detração ofende a fama, e a contumélia a honra: e assim como a rapina é pecado mais grave que o furto, assim também a contumélia é mais grave3 culpa que a detração; porque é mais invito o pejo pelo desprezo, e desacato que lhe fazem nas suas barbas, do que daquele que lhe fazem nas suas costas.

De oito modos se pode dar detração, ou há oito castas de murmuração: 1) impondo crime falso ao próximo; 2) acrescentando alguma causa a mais ao crime que é verdadeiro; 3) descobrindo o crime oculto, ainda que seja verdadeiro; 4) interpretando, ou movendo como dizem, e lançando o mal a obra, e fato que o outro fez; 5) negado a excelência, e louvor do outro, ou negando as boas obras que ele fez; 6) diminuindo essa excelência, ou obra boa por onde lhe merecia louvor; 7) calando-a no lugar, e tempo, com que o silêncio ceda em vitupério do sujeito; 8) louvar ao nosso irmão são dissimulada e friamente, [167v] que isso ceda em vitupério do laudando, quando o simulado, e dissimulado nenhuma causa diga digna de louvor. Por esses últimos quatro modo se ofende a fama indireta, e pelos quatro primeiros, direta. Compreendem-se todos nestes dois versos - imponens, augens, manifestans, in mala verbens, qui negat aut minuit, reticet, laudat que remisse (atribui, aumenta, manifesta em más palavras, aquele que nega ou diminui, silencia, ou omite o que deveria louvar). No sétimo modo de murmuração por taciturnidade só se pode dar pecado contra a justiça quando pelas circunstâncias pareça aprovação e confirmação da detração; porém não sendo assim será pecado somente contra a caridade quando sem grave incômodo se poderá evitar o dano do próximo. A detração ex genere suo (por si mesma ou por seu gênero) é pecado mortal, porque gravemente ofende ao próximo. Digo ex genere suo, porque algumas vezes pode ser venial por falta de suficiente advertência ou pela leviandade damna (culpa leviana), verbi gratia (por exemplo), se só um manifestasse os defeitos veniais do próximo, porque com isto não se diminue notavelmente, nem se ofende a fama alheia, porque de veniais [pecados leves] ninguém se livra. Poderá, porém ser pecado mortal se a pessoa infamada notavelmente caia do seu estado, como no caso em que um dissesse de algum homem grave (sério) ou religioso que era um mentiroso, isto é, que mentia muitas vezes, o que não se entende se dissesse que mentia uma ou duas vezes. Suposto isto vamos provando as conclusões:

Primeira conclusão: graviter peccat, qui manifestat grave delictum personae jam defunctae, etiam si nulla infamia in vivos redundet; non ita voco peccat, quando obstat definitum esse damnatum (peca gravemente aquele que manifesta um delito grave de um morto, ainda que a infâmia não atinja a nenhum vivo; não se diz pecado, quando definiu-se tal como condenado). Prova-se porque o tal defunto tinha jus (direito de) para conservar a boa opinião que dele existia para com os homens; e provo isto: porque por morte não perdeu o jus à sua fama, mas só a perdeu para os bens exteriores da fortuna, que o jus a estes só lhe foi concedido em vida, e o jus à fama ainda post cineres podest (após os lucros da poeira, pós-morte): logo o tal infamador peca contra a justiça com obrigação de ressarcir o dano, diz a conclusão: etiam omni nulla infamia in vivos redundet (nenhuma infâmia deve assolar aos vivos); porque a fortiori será mortal, se a infâmia que se seguir da manifestação do delito de pessoa defunta redundar a outros; se essa infâmia redundar aos vivos, a estes se há de restituir, se ao defunto se lhe há de satisfazer com missas, ou outros sufrágios; porque é provável, como julga o P. Molina, Bonac et Rebel., que esta compensação é mais aceita ao defunto. Resta provar a última parte da conclusão, que diz não é pecado mortal infamar ao defunto, quando consta, que ele está condenado, e que nesse caso não há obrigação alguma de compensar a infâmia. Provo com facilidade, porque o condenado ao inferno já não é nosso próximo, mas inimigo de Deus e de todos nós. Mais: a fama já não aproveita de coisa alguma ao defunto condenado: logo se a infâmia nem aos consaguíneos redundar, [168r] cessa a obrigação de restituir4.

Segundo ponto: peccat mortaler, qui sine justa causa grave delictum proximi manifestat uni, qui servaturus est servum (peca mortalmente aquele que, sem justa causa grave, manifesta algum delito do próximo, que o manterá escravo). Provo: porque dá-se injúria grave, logo dá-se pecado grave; provo o antecedente: não se diminui a gravidade da injúria por se manifestar o crime oculto do próximo, assim como não se diminui a contumélia, ou injúria da honra posto que se ofenda verbi gratia (por exemplo) com uma bofetada diante de um só que há de guardar segredo: logo dá-se injúria e pecado graves, por consequência. Mais: aquele cujo delito grave se manifestasse a um homem grave que guardaria segredo, talvez quereria antes que dez, ou mais soubessem o seu crime, do que aquele homem grave, a quem desejaria contentar, e mais estima a sua boa fama para com aquele só, do que para com outros de inferior condição: logo a tal manifestação per se loquendo (por assim dizer) será pecado grave. Confirma-se primeiro, porque o juízo [de] temeridade de coisa grave é mortal, e ofende a fama do próximo apud solum judicantem (tão-só com o julgamento): logo também da mesma sorte, o segredo manifestado a um só ofende a fama do próximo. Segundo, porque o que ouve ao que conta o pecado oculto do próximo, peca mortalmente se o não repreender, e refrear podendo, ainda que haja de guardar segredo: logo também pecará o que manifesta a um só o delito grave do próximo. Não se entende isto no caso em que se desse justa causa para se manifestar o crime a um, verbi gratia (por exemplo) ao Pai, ou ao Superior para a vossa emenda. Também não se a entende que [como] tal quando aquele único a quem se reservasse o segredo fosse de tal condição que o próximo estimasse em pouco, e não fosse caso da sua estimação para com ele; porque nesse caso não sofre invito o manifestasse-lhe o seu crime, não se daria pecado na tal manifestação5.

Terceiro ponto: illud, quid est publicum in uno loco prime notoreitate juris, simpliciter, prime notoreitate facti excusat a peccato grave de mortis, si manifesti nescientibus in eodem loco, sive crimen veram sit juste, vel injuste publicatum (isto, pelo que há em primeiro lugar uma pública notoriedade, simplesmente, a pública notoriedade dos fatos exclui o pecado grave mortal, se manifesto inconscientemente em mesmo lugar, se o crime é real, ou injustamente noticiado). Pars plena intelligentia (Alguma inteligência completa) deste ponto se há de advertir, que o delito de duas sortes pode ser notório, e público, ou notoreitate juris (notoriedade do direito), ou notoreitate facti (notoriedade dos fatos). Aquilo é notório notoreitate facti (notoriedade dos fatos), que extra judicium (fora do direito) consta não evidentemente que nenhuma tergiversação se pode encobrir por ser feito diante de muitos, e em lugar público; donde não basta para se dizer notório notoreitate facti (notoriedade dos fatos) que quatro, ou cinco pessoas afirmem que viram ou que aliunde (uma fonte) sabem certamente o delito: item (também) não basta a fama, ou opinião constante de muitos; porque ainda o delinquente possa [168v] encobrir com alguma tergiversação o tal delito, verbi gratia (por exemplo) dizendo que são seus inimigos, ou que foram induzidos, e corrompidos por outros [--6]. Item não basta para o delito se dizer público notoreitate facti (notoriedade dos fatos) notícia apud (citadas por) poucos, ainda que esta baste para prova legal do delito, porque ainda se não possa haver público; e a razão terminante é, porque de tal sorte se deve saber a causa que nullo (de nenhum) modo se possa encobrir. Também se der o delito notório notoreitate facti (notoriedade dos fatos), quando se dá tal presunção de direito que basta para se presumir o delito, e a tal presunção é evidentemente pública.

Quanto haja de ser o número daquelas, para que de sua nota se haja de julgar o crime por público notoreitate facti (notoriedade dos fatos) são tantos os pareceres que não é fácil assinar-se; todos os Doutores recorrem para o juízo dos prudentes: e vem a concluir que na casa, ou colégio que consta de sete ou oito pessoas basta saber-se o crime por quatro, se constar de vinte, por sete ou oito; se de cem, por quinze: se for verbi gratia (por exemplo) um monte que conste de quatro, ou cinco casas, que constem todos de quarenta pessoas, basta que se saiba por oito, ou vinte pessoas de tal vila: se aliunde (a fonte) constar de cinco mil cidadãos basta saber-se por trinta divisim (separadamente) da mesma cidade e Vossa Senhoria um ser infamado notoreitate facit (notoriedade dos fatos) em todo o Reino basta que o crime seja público na Corte, ou em outra parte celebre onde se costumem espalhar facilmente novas. Também se chama público ipso facto (pelo próprio fato) aquilo que é famoso, isto é, espalhado por fama, ainda que se divulgasse como bom pecado por ser feito diante dez, de dois, ou três.

Chama-se público e notório notoreitate iuris (notoriedade do direito), o que por respeito do ofício, e sentença do juiz com nenhuma tergiversação se pode encobrir: e este ou é notorio iure sinister (notório direito esquerdo) porque já consta por sentença do juiz, ou é notorio iure secundum quid (notório direito segundo o qual), porque ainda não está dada a sentença, mas o crime já está provado, ou por confissão do réu, ou por legítimas testemunhas. Assim explicado o notorio notoreitate iuris, et facti (notória notoriedade do direito e dos fatos) o P. Molina. Tom. 5 tract. 4 d. 32 Lug d. 14 nº 69 e outros. Isto suposto.

Prova-se que o que é público em um lugar ou notoreitate iuris simpliciter, ou facti (notoriedade do direito simplesmente, ou dos fatos) livra do pecado grave de detração, se se manifestar aos que não o sabem no mesmo lugar, e isto se entende ou seja o crime verdadeiro publicado justa, ou iniquamente. Porque o infamado vel facto, vel iure (ou de fato, ou de direito) perdeu a sua fama, nem pode com alguma tergiversação encobrir a sua infâmia: logo não lhe faço injúria alguma, se manifestar o seu crime aos que não o sabem: e isto se entende ainda quanto o tal delito fosse publicado injustamente, e haverão [169r] desta última parte se. Porque todo o direito que tem o próximo para não ser infamado, ou se funda em que seja inocente, ou em que o delito seja oculto: logo se já está público perde o tal direito; e ainda que primo fosse injustamente infamado por outros, por terem publicado um defeito oculto iniquamente, contudo eu publicando-o mais por diante já não coopero com a injusta detração, suposta a tal publicidade. Aqui se há de advertir que se o Prelado Local, ou de algum Conselho condenar algum seu súdito de algum delito por sentença pública, não se pode publicar o tal delito aos seculares, posto que se possa manifestar os religiosos da mesma casa, que não o sabem. Assim item (também) o P. Molin. Lug. [Pe. Molina Lugrubensis] e Rebel. o delito que um Provincial por sentença castigar se pode manifestar, ou escrever às mesmas casas da Província sujeitas ao tal Provincial, não se assim for castigado o súdito por Superior Local, o que a fortiori se deve entender sendo o crime do religioso somente notorio notorietate facti (notória notoriedade do fatos), porque então ainda conserva nos mais conventos e celas a sua fama; nem a alguém se dá tal poder de infamar o tal religioso em outras casas da mesma Província disporem o P. Rebell que em uns, e outros casos é melhor calar7.

Segunda conclusão. Primeiro ponto: qui delictum in famali per sententiam publicam in uno loco, manifestat in alio distanti, ubi nescit, non peccat contra iustitiam, nec etiam contra charitatem (o delito de infamar alguém senteciado publicamente, manifesto no lugar ou em outra parte qualquer, onde se saiba, não peca contra justiça, nem mesmo contra a caridade). Este ponto tem duas partes: prova-se a primeira que não peca contra a justiça aquele que manifesta o delito público por sentença em um lugar, em outro distante, onde ainda se não sabe. Porque o tal infamado justamente fica privado da sua fama pela sentença do Juiz, o que se mostra ex eo (por isto) que o Juiz sempre publica a sentença em grande concurso de gente, porque intenta privar da fama ao réu em pena do seu delito, para terror de outros, e assim para maior publicação poderia estampar a sentença; de onde se colhe (segue) que parece coisa repugnante querer a Justiça condenar ao réu em santa publicidade e querer simul (igualmente) refrear as línguas de todos para que não falem do tal crime sem pecado de injustiça. Prova-se a segunda parte, que não seja nem ainda pecado contra a caridade a manifestação do tal crime nos termos da conclusão com o P. Lugo nº 77 e 68. Se não é pecado mortal contra a justiça não é também contra a caridade. Provo isso: ou pela sentença do Juiz, se deu poder a todos para infamarem o tal condenado, ou não; se se não deu o que infama peccatam (o pecado) também contra a justiça como quer que injustamente prive ao condenado da sua fama sem autoridade para isso; se se deu pela tal sentença poder para infamar ao réu, como quer que o infamante cesse do direito que lhe for dado pela República (Repub.) em pena do delinquente, o executar o tal jus (direito) não será contra a caridade ad plurimum (para muitos) será praeter charitatem (além da caridade). Deinde (então), o detrimento que nesse caso recebesse o próximo [169v] compensasse com a utilidade pública, a qual resulta de que cada um se conheça como que é publicamente, para que não sejamos enganados per privatam ignorantiam (pela ignorância privada, pessoal) nas causas que os outros comumente sabem. E assim como a utilidade pública nesse caso escusa de pecado contra a justiça prepondera ao jus (direito) que o próximo tem à sua fama, assim escusa de pecado grave contra a caridade8.

Segundo ponto: Quando infamia est late9notoria ipso facto, et non ex sententia, peccat sine peccato gravi publicari aliis in locis, ubi necessiter, etiam quando inter ipsa loca non datur facile commercium, et infamia delicti ab uno ad alium locum non esset facile per ventura (quando a infâmia é fato amplamente notório, ainda que não por sentença, peca sem pecado grave ao publicá-la em outros lugares, onde se necessita, ainda mais quando não há interação fácil entre os lugares, e o delito de infâmia não seria facilmente transmissível de uma pessoa a outra). Provo este ponto: conforme o sentir de quase todos os Doutores, o delito, que simpliciter (simplesmente) é público em um lugar pode licitamente referir-se a outros do mesmo lugar, que não o sabiam, ainda quando por alguma outra via não pode-se chegar a sua notícia como verbi gratia (por exemplo) no caso em que algum de tal sorte estivesse em custódia que ninguém, exceto Pedro, pudesse falar com ele, porque, nesse caso, poderia licitamente Pedro manifestar-lhe o delito, que na cidade em público ipso facto (pelo facto): logo também lhe será lícito escrever o mesmo delito ao amigo que estiver em lugar remoto, onde só por carta o pode saber; porque se a clausura não é impedimento para fazer ilicitamente a manifestação, também não o será a distância do lugar; como quer em um, e outro caso se ofenda a fama para com os quais se conservava ilesa: de onde se segue que não basta para fazer ilícita a tal manifestação precisamente o não haver com facilidade de chegar a notícia daqueles, a quem de novo se refere. Deinde: Per accidens (Então, acidentalmente) é que Paris verbi gratia (por exemplo) alcance de mim a tal notícia por palavra, ou por escrito, como que em um, e outro caso se dê a mesma revelação, que se daria se a tivesse na sua pátria; sed licet (apesar), que se Paris viesse a essa cidade desse lugar remoto de onde assistia, poderia eu licitamente manifestar-lhe a tal infâmia, assim como a posso descobrir a outros que habitam nesta cidade, ainda que Paris voltando para a sua pátria houvesse de contar lá tudo quanto eu aqui lhe manifestasse: logo também lhe posso oferecer o mesmo existindo, ou assistindo-lhe na sua pátria. E a razão concludente disto é [o que] diz o P. Lug., porque por isso eu posso licitamente contar o que é público nessa cidade a outros que habitam lá fora dela, porque posso ter comércio com cada um deles; atque (pelo) que eu também posso ter comércio com os que habitam lugares remotos, saltem mediate (pelo menos indiretamente) em que tenho comunicação por carta com o mesmo o qual pode ter a mesma com outros. Logo, tenho suficiente comércio, no qual se funde a potência de comunicar o que aqui [170r] aqui é público, assim como tenho quando refiro o delito ao amigo que vem a esta cidade donde eu assisto, e onde é público o tal delito, ainda que ele volte para a sua pátria, e lá manifeste esse delito10.

Terceiro ponto: quod est publicum notorietate facti in uno tempore non potest manifestari in alio, quando memoria delicti jam pro jus est abolita (o que é de notoriedade pública dos fatos em um tempo não se pode manifestar em outro, quando a memória do delito já está, por direito, abolida). Provo pelo esquecimento a tal causa se reduziu ao estado que tinha antes de ser publicada: logo assim como quando ainda não era pública, se não podia manifestar, assim nem depois que não há memória dela, como quer que já então se chame oculta, e se não há dela actu (razão) para a publicidade a alguém, e assim se haja pro nunc (pro agora), como se não fora. E se eu posso manifestar o que é público em um lugar e em outro é porque essa causa é absolutamente pública, e no presente não está apagada, ou acabada a sua memória; porque aquilo que existe em alguma parte, verdadeiramente existe, e o que é em alguma parte público, verdadeiramente é público11.

Casus extra materiam (Caso extra matéria). Qui praescreverem12recitavit hodie officium crastinum, debet cras iterum recitare crastinum, et non potest recitare cras de facto hodierno (que prescreva recitar hoje o ofício de amanhã, debet amanhã recitar novamente o de amanhã, e não pode recitar amanhã, de fato, o de hoje).

Provo, se por erro jejuaste ontem imaginando que era a vigília de S. Pedro, a qual re vera (na realidade) é hoje, nem por isso ficas livre do jejum de hoje: item (também) se ontem ouviste missa, ou guardaste dia santo sendo sábado, imaginando ser domingo, sempre no tal domingo és obrigado a ouvir missa, e guardar a festa, e deves imputar à tua ignorância o jejuares duas vezes: e a razão é porque esses preceitos não obrigam indeterminadamente pro simil in anno (como se fosse por um ano), mas obrigam determinadamente pro tali die solum (apenas por um dia): logo o mesmo se há de dizer do rezar do ofício divino no qual militar a mesma razão. Deinde (então) confirma-se: ou a obrigação de rezar o tal ofício divino13 está ligada a tal dia, e então passado o tal dia cessa a obrigação nem depois se deve repôr o tal ofício, ou aquela obrigação era de tal sorte ligada àquele dia, que também obrigue por todo o ano, ainda que se lhe não satisfizesse naquele dia, assim como se diz da comunhão da Páscoa Santa: logo se a obrigação de rezar o tal ofício naquele dia obriga da mesma sorte que o preceito da comunhão, segue-se que deixado de rezar ofício por enfermidade ou por outro qualquer impedimento seja obrigado assim como no preceito da comunhão a rezar dele nos outros dias; sed hoc est maximum absurdum, et inauditum: quo… (mas este é o maior absurdo, e inaudito: que…) Finalmente não causa o contrário deste caso das rubricas, e breviários, que não mandam nem dizem se possa transferir a festa de algum santo senão concorrendo com os Domingos do Advento e Septuagesima alie Dominica in Albis (durante a Quaresma ou outro domingo da Páscoa), e o unos certos dias referidos a si na rubrica 1014.

III

[149r] Colendissime Protectioni Excellentissimi Ecclesiae Principiis ac Illustrissimi Domini D. Fr. Bartholomaei do Pilar, Magni Para Sedis, Proto-Episcopi Meritissimi, Regiae Majestatis a Conciliis Dignissimi Sancti Officii Tribunalis Integerrimi Reverenter, et Obsequiose D. et C.15

À rememorável excelente proteção dos Príncipes da Igreja e ilustre senhor Dom Frei Bartolomeu do Pilar, da grande Sé do Pará, meritíssimo proto-epíscopo, majestade real do Conselho do Tribunal do Santo Ofício, íntegro, respeitável e afetuoso [dirigente e conselheiro].

[150r] Conclusiones Theologicas de Ineffabili Incarnatione Mysterio. Praeside Ignatio a Conceptione, Sacrae Theologiae Lectore. Sustentaturus Fr. Antonius de Araujo. In Carmeli Paraensi Conuentu Die 26 hujus Vespere.

Conclusões teológicas sobre o inefável Mistério da Encarnação. Presidida por Inácio da Conceição, professor de Sagrada Teologia. Defendida por Frei Antônio de Araújo. No Convento Carmelita do Pará, à tarde do dia 26.

Quaestio Principalis XI. Conuenienti tempore facta fuit Incarnatio?

11ª questão principal: Houve um tempo adequado para que se realizasse a encarnação?

[150v] Conclusio Prima. Pro possibilitate existentia, et conuentia Incarnationis. Incarnationis Mysterium esse possibile negare poterit solus, qui incarnationem de facto esse, et existere non concesserit; nam qui hujus existentiae lucem habet illam possibilitatem affirmare tenetur. Haec tamen possibilitas non est naturaliter demonstrabilis, nec post habitam hujus Mysterii Reuelationem potest creatura aliqua solo lumine naturali judicium positiue probabile de illius possibilitate formare. Laboriosa hic jam ad est difficultas, scilicet: An ex possibilitate Incarnationis sequatur aliqua mutabilitas in Deo? Dicimus quod non; immo cum communi asserimus, Incarnationem fuisse conuenientem Deo. Dubitari potest: 1º. Utrum conuenientius fuit quod est tribus Divinis Personis, Filius incarnaretur? 2º. An etiam fuit conuenientius, quod Verbum Divinum naturam humanam potius quam angelicam sibi assumere? Utrumque asserimus.

Primeira conclusão. Sobre a possibilidade da existência e conveniência da Encarnação. É possível não só negar o Mistério da Encarnação, quanto a própria encarnação, e conceber que tal não existe; tal como não se afirma a existência da luz para quem não é [filho da] luz. Como não há possibilidade de demonstração natural de sua possibilidade, tampouco apenas pela luz natural da razão pode-se formar ideia positiva do Mistério da Encarnação. Esta não é uma simples dificuldade, a saber: com a possível Encarnação houve alguma mudança em Deus? Respondemos negativamente, pois é comumente aceito que a Encarnação era conveniente a Deus. Ainda assim, pergunta-se: primeiro, era conveniente encarnar qual das três Pessoas Divinas, o Filho? Se era apropriado que o Verbo Divino assumisse antes a natureza humana que a angélica? Afirmamos ambas.

Conclusio secunda. Pro motivo seu causa finalis Incarnationis. Inacessibiles Diuinae Sapientiae latebras frustra investigare conaretur qui Divino dissimilitus16auxilio resolueret quodnam exer alterius Decreti esset Incarnationis motivum [151r] circa ergo praesens Decretum tota inter Theologos vertitur controversia. Sunt qui Deum ob tanti Mysterii excellentiam est caelo congredientim terras adueniesse subtiliter asseuerent. Hic tamen solam humani generis reparationem Divinae Misericordia viscera commovisse autumant. Horum sententiam libenter ampletimur, sed cum tanta peccatorum multitudo mundum repleuerit, quaeres, quaenam fuerit felix illa culpa, quae tnatum meruit habere Redemptorem? Ex vi praesentis Decreti, Christus felicissimuo suo adventu Mundum Consecraturus non esset. Quid si solum originale nullum vero mortiferam existeret actuale? Ad huc Incarnatio praesenti vigente Decreto praestaret. Existente tamen peccato actuali cum originali principalius conveniet ad tollendum originale.

Segunda conclusão. Sobre o movimento, ou a causa final da Encarnação. A inacessível Sabedoria Divina oculta à vã investigação, que busca de diferentes formas entender os desígnios ocultos que motivam a Encarnação divina, permanece controversa entre os teólogos pelas razões do referido desígnio. Há quem queira conhecer exatamente a excelência desse grande Mistério celeste como a terra que está porvir. Eis tão-só a carne humana reiteradamente restaurada pela Misericórdia Divina. Comparando as muito boas opiniões sobre essas coisasccom a grande multidão de pecados que há no mundo, pergunta-se, qual foi a feliz culpa que mereceu tão grande Redentor? Por tão grande desígnio, pela marca do pecado original na natureza humana, consumou o felicíssimo advento de Cristo ao Mundo. Se não houvesse o pecado original, haveria verdadeira e real morte? A força do desígnio divino prevalece na presente Encarnação. Embora também liberte tanto do pecado real quanto do pecado original.

Conclusio tertia. Pro termino assumente, et assumpto tam de facto, quam de possibili. Terminus assumens in hoc ineffabili composito Christi Domini, est Verbum Diuinum; cum autem in verba sit ratio personalitatis sibi propriae, et ratio communis naturae tribus personis, difficultas est: An Verbum Divinum terminauerit unionem hypostaticam ratione praedicati absoluti, an solum secundum relativum? Hoc secundum pro indubitato tenemus cum communi Theologorum placito. Natura enim Diuina nec per se ipsam, nec per suam existentiam, nec per subsistentiam absolutam potest veniri humanitati. Quaeres hic, An plures personae Diuinae possint assumere eandem naturam? Non negamus; neque etiam quod una persona Diuina [151v] possit plures naturas assumere. Circa naturam assumptam, quae est humanitas, dicendum venit Verbum Diuinum veram carnem ejusdem rationis cum nostra assumpsisse. Et quod etiam humanam animam intellectu praeditam assumpsisset, contracrium firmiter deffendimus. Deinde est non assumptam fuisse humanitatem cum propria subsistentia. Dubium hic exoritur, num sicut humana natura, ita angelica potuisset tantae unionis beneficio exornari? Nullam implicantiam in corpore sentimus. Subinquires, An irrationalis aliquae ita crueli17, posset natura, ut Diuini Verbi terminaretur subsistentia? Affirmantibus adhaeremus.

Terceira conclusão. O termo assumindo, e assumpto, tanto de fato, quanto como possibilidade. O termo assume nesse inefável composto Cristo Senhor, é o Verbo Divino; enquanto a palavra é a própria natureza da personalidade, e a lógica comum da natureza das três pessoas; cuja dificuldade é: se no Verbo Divino a lógica da união hipostática constitui uma predicação absoluta ou apenas uma predicação relativa? Esta é uma questão que necessita de uma resposta indubitável de acordo com o deleite comum dos teólogos. A Natureza Divina nem por si mesma, nem por sua existência, nem por subsistência absoluta pode ser humanizada. Por isso, pergunta-se: se muitas Pessoas Divinas podem assumir a mesma natureza? Não negamos; também não negamos que uma Pessoa Divina possa assumir mais de uma natureza. Acerca da natureza assumida (assumptam), que é a humana, afirma-se a vinda do Verbo Divino em carne verdadeira na mesma lógica que assumimos a nossa [carnalidade]. E quanto à alma intelectiva humana em relação ao predito assumir (assumpsisset), afirmamos radicalmente o contrário. Com isso, não se está assumindo nossa própria humanidade em sua subsistência. E, com isso, surge um problema, não seria apenas pela natureza humana, mas pela natureza angélica que se pode alcançar um benefício tão elevado na união [hipostática]? Não há nenhum impedimento corporal. Por isso, recolocamos a questão: se há uma irracionalidade tão radical na natureza que possa excluir a subsistência do Verbo Divino? Respondemos afirmativamente.

Conclusio quarta. Pro unione hypostatica. Unio Hypostatica, quae talis dicitur ex eo quod sit unio naturae ad suppositum, non est productiva humanitatis, ut volunt Aliqui; est tamen intrisenca tam humanitati, quam Verbo Diuino. Proculdubio est, Unionem Hypostatica non esse adaequate distinctam ab extremis. Quaeres, An sit omnium maxima? Respondemus tam in ratione unionis, quam in ratione doni ita esse. Quaeres iterum, utrum ad hanc unionem praecesserit aliqua dispositio? Non praecessisse est nostrum assertum.

Quarta conclusão. Sobre a união hipostática. A União Hipostática, que se diz ser a que une a natureza ao substrato, não é resultado espontâneo da natureza humana, senão assim aconteceria com outros [indivíduos]; uma vez que, é a [união] intrínseca entre a [natureza] humana e o Verbo Divino. Por isso, não há dúvida de que a União Hipostática não se efetiva adequadamente em [seres] extremamente distintos. O que seria, então, esses extremos? Respondemos tanto em relação à racionalidade da união, quanto à racionalidade do dom de ser. E, quanto à possibilidade dessa união preceder qualquer outra disposição, não o assentimos imediatamente.

Referências:

MARGUTTI, P. História da filosofia do Brasil (1500-hoje): 2ª parte: A ruptura iluminista (1808-1843). São Paulo: Loyola, 2020. [ Links ]

MARQUES, L.A. A lógica da necessidade: o ensino de Rodrigo Homem no Colégio do Maranhão (1720-1725). Porto Alegre: Fi, 2018. [ Links ]

MARQUES, L.A. e Pereira, J.P.R. Escritos sobre escravidão. Porto Alegre: Fi, 2020. [ Links ]

MARQUES, L.A. Em busca de uma filosofia colonial brasileira. Veritas (Porto Alegre), 66(1), (2021) e39730. https://doi.org/10.15448/1984-6746.2021.1.39730 Acesso em 15.6.2021. [ Links ]

MARQUES, L.A. Philosophia brasiliensis: história, conhecimento e metafísica no período colonial. Porto Alegre: Fi, 2015. [ Links ]

SLOTERDIJK, P. Crítica da Razão Cínica. Trad. M. A. Casanova. São Paulo: Estação Liberdade, 2012. [ Links ]

1Biblioteca Pública de Évora, Fundo dos Reservados, Códice CXVIII/1-1.47, fólios 167r-170r.

2Na nota à margem direita consta: Advertência boa. Possumus in casibus. Bulae Casae Reservatis absolvere in partibus infidelibus remotissimis ex quibus non datur recursus. Roman concipi P. Lacroix Lib. 6. Par. 2 nº 1480.

3NE: No texto consta mais enorme e adaptamos por questão de estilo e ajuste ortográfico. E, onde consta é mais vil o pejo também adaptamos, pois o texto grafa: he mais invilo o pejo.

4Nota à margem direita: Tem este ponto comumente quoad prima pars todos os Doutores (abreviado como DD.) e secundam item P. Molina, tr. 4 d. 28 contra Rebell. Dicastilli et aliis contra Card. de Lug. d. 14. nº 46 et Bonac. d. 2 q. 4 p. 2 nº 5.

5Nota à margem direita: Tem este ponto o Card. de Lug. citado nº 51 com Molina. Less. e outros contra Caiet. Reginald. e Navarr. e outros.

6NE: Termo abreviado ilegível.

7Nota à margem direita: Tem este ponto Lug. citado desde o nº 59, Luis Molina., e outros comumente.

8Nota à margem esquerda: Tem este ponto o P. Molina. tr. 4 d. 33 nº 4; Lug. nº 72. Rebell. e outros contra dicat. Lib. 2, tr. 2, d. 12, nº 314 e outros.

9A grafia deste termo consta como lat e o lemos como late por questão de sentido.

10Nota à margem direita: Tem este ponto o Cardinal Lug. nº 80. Azor, e outros contra o P. Molin. d. 33, nº 5, Navarro. Lc desm. e outros.

11Nota à margem direita: Tem este ponto o Cardinal Lug. nº 85. Com Molin. citado, e outros.

12No original consta per crivrem que lemos como praescreverem.

13O original trás uma abreviatura como 1 do que transcrevemos conjecturamente por ofício divino.

14Nota à margem direita: Tem este ponto Lug. L. 5. Respons Moral dabit 8º a nº 1 contra o Pe. Antonio de Quintana dueñas tr. 8, de Recitatione horarum no seu tomum singularium.

15Biblioteca Pública de Évora, Fundo dos Reservados, Códice CXVIII/1-1.43, fólios 149r-151v.

16A grafia tem dificil compreensão, por isso o que lemos dissitutus transcremos dissimilitus.

17No manuscrito só é possível ler bem c..e..i, por isso o termo é mera conjectura.

Recebido: 16 de Setembro de 2021; Aceito: 01 de Dezembro de 2021

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