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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.75 Uberlândia set./dez 2021  Epub 16-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n75a2021-59384 

Artigos

Apontamentos retóricos sobre o conceito de oração em Teresa d'Ávila: rumo a uma pedagogia mística

Rhetorical notes on the concept of prayer in Teresa of Ávila: towards a mystical pedagogy

Note retoriche sul concetto preghiera in pensiero teresiano: verso uma pedagogia mistica

*Doutor em Educação para a Ciência e a Matemática pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professor na Universidade Federal de Rondônia (UNIR). E-mail: gpiovezan@unir.br


Resumo

Neste texto apresento algumas reflexões que se constituíram por meio de leituras do pensamento filosófico e religioso de Teresa D’Ávila. Meus objetivos concentram-se em identificar elementos teóricos vinculados à educação do pensamento renascentista-moderno na Espanha. Dentre os conceitos investigados, ressalto a relação entre ensino, oração e praxis no discurso cristão, inferindo, neste contexto, sobre a possibilidade de uma pedagogia teresiana. O foco de minha análise repousa na obra Castelo interior, a qual, do ponto de vista retórico, configura-se como um relato da experiência vivida pela autora. Tal fato leva-me a refletir os escritos da monja carmelita como um certo tipo de ensino, fundado na experiência mística. Assim, a estrutura do conceito de oração em Teresa desvela-se em uma prática de meditação que gera e impulsiona o conhecimento de si e para o outro. A oração, então, pode ser apreendida tal como qualquer outro tipo de instrução (técnica), por meio de etapas (método), e apresentando um resultado: a união entre a alma e Deus. Dessa união resulta um tipo subjetivo de conhecimento, a saber: o conhecimento místico.

Palavras chaves: Oração; Técnica; Ensino; Retórica; Conhecimento

Abstract

In this paper, I present some reflections resulting from readings on Teresa of Ávila philosophical and religious thought. My objectives are focused on identifying theoretical elements that are linked to education in the Renaissance Modern thought in Spain. Among the concepts investigated, I highlight the relationship between teaching, prayer and praxis in Christian discourse, inferring, in this context, the existence of a Teresian pedagogy. The focus of my analysis is on Interior castle, which, from a rhetorical point of view, is configured as an account of the experience lived by the author. This fact leads me to reflect on the writings of the Carmelite nun as a certain type of teaching, based on mystical experience. Thus, the structure of the concept of prayer in Teresa is revealed in a meditation practice that generates and impels knowledge of oneself and for the other. Prayer, then, can be apprehended just like any other kind of instruction (technique), through stages (method), and presenting a result: the union between the soul and God (mystical knowledge). From this union results a subjective type of knowledge, namely: mystical knowledge.

Key-words: Prayer; Technique; Teaching, Rhetoric; Knowledge

Astratto

In questo testo presentiamo alcune riflessioni che sono state costituite attraverso letture del pensiero filosofico e religioso di Teresa de Ávila. Nostri obiettivi sono focalizzati sull'individuazione di elementi teorici legati all'educazione del pensiero medievale. Tra i concetti indagati, si evidenzia il rapporto tra insegnamento, preghiera e prassi nel discorso cristiano, inferendo, in questo contesto, la possibilità di una pedagogia teresiana. Il fulcro della nostra analisi poggia sull'opera Castelo interior, che, da un punto di vista retorico, si configura come racconto dell'esperienza vissuta dall'autore. Questo fatto ci porta a riflettere gli scritti della monaca carmelitana come un certo tipo di insegnamento, basato sull'esperienza mistica. Così, la struttura del concetto di preghiera in Teresa si rivela in una pratica meditativa che genera e spinge alla conoscenza di sé e per l'altro. La preghiera, quindi, può essere appresa proprio come qualsiasi altro tipo di istruzione (tecnica), attraverso passaggi (metodo), e presentando un risultato finale: l'unione tra l'anima e Dio (conoscenza mistica).

Parola chiave: Preghiera; Técnica; Insgnamento; Retorica; Conoscenza

I

Na discussão filosófica em teoria do conhecimento, boa parte da produção realizada desde os gregos, na antiguidade filosófica, repousa em um debate que se dá acerca da universalidade do conceito na explicação do real. Entretanto, aqui neste texto, gostaria de evocar um tipo específico de conhecimento que se situa fora do campo da universalidade, constituindo-se à medida que o sujeito se dedica a um determinado objeto de reflexão: o Todo, o Absoluto, ou Deus. Esse processo de reflexão, denominado pela tradição mística de oração/meditação, proporciona um fenômeno que se classifica, na literatura acadêmica, como Estado Místico de Consciência (EMC).

O conhecimento místico, fruto do EMC, impõe-se como uma verdade àquele ou àquela que o experiencia. Exploro esta noção de verdade subjetiva dentro do discurso teresiano com a finalidade de indicar esse tipo de conhecimento e seu ensino no âmbito da técnica. Para tanto, realizei uma análise argumentativa da mística relacional da pensadora católica presente em sua obra Castelo interior. Como método de análise, fiz uso da tradição retórica para interpretar o discurso, os argumentos e as ideias teresianas. Pautado na obra de Perelman e Tyteca, Tratado da Argumentação: a nova retórica, exploro elementos que nos indicam um ensino (técnica) para uma pedagogia mística (aprendizado da oração).

A Retórica, considerada como um saber estruturado, é uma das mais antigas teorias da humanidade. Suas primeiras formulações no ocidente apresentam-na em um caráter de técnica, como a arte do bem falar, desde a Grécia antiga (BRETON, 2003; PERELMAN & TYTECA, 1996). De lá para cá, a teoria passou por diversos desenvolvimentos e revisões até culminar nos estudos datados de meados do século XX, momento em que houve significativas contribuições para o campo da argumentação e, consequentemente, em efeitos de análise e compreensão dos diferentes tipos de discurso que encontramos em nossas sociedades.

Evocamos, aqui, as ideias desenvolvidas pela corrente latina em argumentação a partir dos trabalhos de Chaim Perelman e Lucy Obretch-Tyteca (1996). No âmbito das teorias retóricas, os autores apresentam uma discussão tipológica em contextos discursivos. Este pressuposto impulsiona uma análise de discurso que considera elementos sociais e pessoais, advindos do contexto histórico do logos-objeto. Assim, em consonância com o tempo histórico, interpretamos a obra de Teresa d’Ávila na tentativa de extrair elementos que se relacionam ao ensino da prática de meditação.

Antes de adentrar no tema, vale chamar atenção para um ponto importante e que se constitui em um axioma em nossa análise: o discurso pedagógico. Em linhas gerais, Perelman e Tyteca (1996) afirmam que o discurso pedagógico se torna matéria de análise ao elaborar arranjos estéticos que visam o discurso didático (e, consequentemente, o ensino). Um sujeito, portanto, no ato da fala, traz consigo ilustrações, ênfases, exageros, analogias, metáforas, metonímias, argumentos de sofrimento e outros tantos elementos do bem dizer que auxiliam na explicação de uma determinada opinião.

No caso do ensino, por exemplo, o emissor promove um discurso que visa facilitar o aprendizado de determinado conhecimento; o receptor da mensagem, quando em uma comunhão de espíritos, apropria-se desse discurso com maior facilidade. Aqui, a comunhão de espíritos pode ser concebida como uma manifestação favorável que se estabelece em um momento argumentativo, sobretudo quando aquela ou aquele que fala ocupa a posição de mestre - de professora ou professor -, teoricamente considera-se que a pessoa falante saiba se comunicar com o público ao qual lança sua mensagem de ensino, preparando suas ideias previamente. Teresa, no Castelo interior, ocupou a posição docente.

Devemos considerar Teresa uma mulher questionadora - ainda mais quando levamos em conta o fato de ter vivido em um período no qual as mulheres (e, em menor grau, os homens) não podiam interrogar. Seus questionamentos e conduta, fundamentados em uma noção cristã de vida interior, levaram-na a vivenciar experiências de cunho místico. Do ponto de vista epistemológico, tais experiências situam-se em um campo da discussão filosófica denominada mística relacional. Na obra teresiana, a via argumentativa impulsiona um debate pouco explorado pela tradição filosófica até então, delineando um tipo de saber não universal, com características subjetivas: o conhecimento de um saber indizível, mas sobre o qual se deve falar para que todos possam dele desfrutar.

Em linhas gerais, desde Platão e Aristóteles, a filosofia, ao ocupar-se do real e da problemática do conhecimento, fazia-o com relação aos universais1. Dito em outras palavras, a filosofia visava uma explicação geral sobre um determinado fenômeno, de modo que, em qualquer espaço e tempo, tal explicação pretendesse uma validade lógica, firmando-se, deste modo, como um tipo de conhecimento categorial, objetivo e universal - e, desta forma, qualificando-se em verdade.

Os escritos teresianos, contudo, resgatam um debate que se iniciou com leituras e interpretações das obras platônicas pelos primeiros teóricos cristãos da antiguidade. Processo esse que resultou em uma nova abordagem do conceito de verdade. A aletheia grega já não se encontrava mais exterior a nós tal como no mundo das ideias platônicas e, tampouco, na correspondência com a realidade, como apregoava o pensamento aristotélico. A verdade, agora, jazia em uma busca interior, dentro de nosso ser. Nas Confissões (2008, p. 32-33), Agostinho indicou o caminho de interiorização e do recolhimento meditativo a partir do qual se investiga a verdade interior:

E, admoestado a voltar daí para mim mesmo, entrei no mais íntimo de mim, guiado por ti, e consegui, porque te fizeste meu auxílio. Entrei e vi com o olhar da minha alma, seja ele qual for, acima do mesmo olhar da minha alma, acima da minha mente, uma luz imutável, não esta vulgar e visível a toda a carne, nem era uma maior como que do mesmo género, como se ela brilhasse muito e muito mais claramente e ocupasse tudo com a sua grandeza. Ela não era isto, mas outra coisa, outra coisa muito diferente de todas essas, nem tampouco estava acima da minha mente como o azeite sobre a água, nem como o céu sobre a terra, mas era superior a mim, porque ela própria me fez, e eu inferior, porque feito por ela. Quem conhece a verdade, conhece-a, e quem a conhece, conhece a eternidade. O amor conhece-a. Oh, eterna verdade e verdadeiro amor e amorosa eternidade! Tu és o meu Deus, por ti suspiro dia e noite.

O caminho apontado por Agostinho mais de um milênio antes do período histórico no qual Teresa se encontrava, foi por ela esmiuçado no início da modernidade, marcando, assim, seu lugar na filosofia, sendo considerada um expoente do humanismo e da mística espanhóis. Hoje, início da terceira década do século XXI, sabemos que os estudos comparados em espiritualidade mostram a experiência mística em diversas tradições cristãs e não cristãs, tais como no judaísmo, com a cabala, e no islamismo, com os sufis (MERTON, 1972).

A ciência contemporânea também se ocupou com este tipo de experiência subjetiva. Na medicina, por exemplo, as investigações sobre os Estados Místicos de Consciência (EMC) visam compreender esse fenômeno a partir da biologia humana; de modo semelhante, os estudos sobre o gozo levados a cabo pela psicanálise lacaniana tentam perceber que tipo de manifestação é essa que atravessa o sujeito de um modo que lhe causa em uma reviravolta psíquica, modificando a sua vida, por assim dizer. Na educação, o estudo das técnicas meditativas e suas implicações no processo de aquisição conceitual durante o aprendizado auxiliam na reflexão sobre metodologias práticas e cognição (VASCOUTO; SBISSA e TAKASE, 2013). Neste sentido, nosso objetivo é traçar paralelos entre a discussão filosófica educacional e o discurso teresiano, determinando, assim, um tipo de práxis educativa no âmbito da mística.

II

Nascida no dia 28 de março de 1515, em Ávila, na Espanha, Teresa de Cepeda y Ahumada viveu sua infância em um período histórico repleto de novos acontecimentos. A descoberta das Américas, as guerras territoriais vividas pela Espanha e outros países europeus e a reconquista da Península Ibérica pelos reis católicos Fernando e Isabel foram alguns desses novos acontecimentos. Quanto à sua formação, Teresa foi criada em uma família católica tradicional e de economia estável. Fato esse que lhe proporcionou uma educação destoante da maioria das pessoas daquele período (D’ÁVILA, 1995).

Vale lembrar que era raro encontrar pessoas com o conhecimento necessário da língua para a decodificação das palavras e a realização da leitura. Esse não era o caso de Teresa, que nutria grande apreço pelos romances de cavalaria (D’ÁVILA, 1995). Suas leituras, inclusive, possibilitaram-na constituir-se como uma mulher considerada audaciosa para seu tempo e, ainda assim, fiel à doutrina cristã, afirmou Guerson (2013).

Assim, quando pensamos este contexto, considerando os estudos de Aníbal Ponce (1989) em Educação e luta de classes, começamos a perceber Teresa como uma mulher diversa do que comumente se via na sociedade moderna que germinava na Espanha daquele período. Em geral, as mulheres não tinham estudo, salvo raros casos. Estudar era algo garantido e dirigido quase que exclusivamente aos homens, que posteriormente exerceriam os ofícios da cidadania. Às mulheres, quase sempre, a ignorância.

A mãe de Teresa veio a falecer, acarretando-lhe grande tristeza e sofrimento. Por outro lado, com a morte da mãe, intensificaram-se suas práticas meditativas. Nelas, escreve o estudioso da pensadora cristã, habitavam o alívio para as dores de sua alma, a oração era o seu consolo. Por volta dos dezenove anos, decidiu-se ingressar na vida religiosa, consagrando-se ao celibato e à vida reclusa quando ingressou no Mosteiro das Irmãs Carmelitas Mitigadas da Encarnação (D’ÁVILA, 1995).

Logo após sua entrada, Teresa teve sua saúde acometida por uma enfermidade que lhe causava fraqueza física, febres intermitentes, convulsão, entre outros sintomas. O tratamento durou três anos consecutivos que a distanciaram da vida em clausura. Após melhorar, retornou ao Mosteiro da Encarnação e continuou com sua devoção religiosa.

Cerca de vinte anos depois, isto é, aos trinta e nove anos de idade, a santa católica começou a questionar as práticas vividas durante a organização da vida diária do mosteiro. Havia pouco sacrifício e, além disso, as regalias eram demasiadas para aquelas mulheres que, voluntariamente, teriam escolhido um modo ascético de vida. Ao observar esses aspectos da vida religiosa que lhe desagradavam, a pensadora cristã iniciou o processo de mudança comportamental mais rigoroso, o qual acabou por se estender às suas irmãs e, posteriormente, ficou conhecido como a reforma do Carmelo (SÉSE, 2008).

Aqui vale uma nota biográfica importante. Sése (2008) afirmou que Teresa experimentou, por um período de mais ou menos de dez anos, um profundo vazio denominado pela autora de secura e aridez espirituais. Além de vivenciar constantes oscilações de humor, medos, temores, impaciência, enfim, momentos que a afastavam da prática meditativa ou mesmo da oração reflexiva.

Nesse cenário encontramos um marco que podemos determinar como sua segunda mudança comportamental: certa vez, ao entrar no oratório, Teresa deparou-se com uma imagem do Cristo em sofrimento e aquela imagem causou-lhe grande impacto. A elaboração de uma concepção interior das dores sofridas por Jesus permitiu uma identificação com o outro. Seu desejo, agora, era enxugar o suor do seu Senhor e aliviar-lhe as dores (D’ÁVILA, 1995; SÉSE, 2008). Essa experiência causou-lhe um incômodo de tal modo que já não era mais possível permanecer da mesma maneira, inerte. Começou, então, o processo de construção de sua obra.

Com o passar do tempo, Teresa dedicava-se mais à oração e à prática do amor. À medida que a sua vontade era deixada de lado para dar lugar à vontade de seu Amado, o Cristo, a monja carmelita vivia experiências de arroubos, êxtases e outros fenômenos derivados da oração. Os estados que resultaram a partir de sua prática meditativa logo vieram ao conhecimento dos homens da inquisição, os quais não tardaram em investigar o que lhe sucedia. Teresa, ainda assim, continuou realizando orações e, ao mesmo tempo, preparava-se para dar início ao seu ensino.

Poucos meses depois, trabalhava com as monjas carmelitas instruindo em temas como o amor, a oração e o conhecimento de si na vida prática de uma comunidade. Aqui cabe-nos uma nota retórica: o impacto de seu discurso pedagógico no público-alvo (as monjas com as quais vivia) teve um efeito de verossimilhança e, como consequência, grande adesão aos seus ensinamentos emitidos (doxa). Isso fez que com seu ensino se estendesse também aos monges - uma mulher que formava homens!

Sua experiência, então conhecida por homens da Igreja, teve uma reação direta que a levou enfrentar acusações no Tribunal do Santo Ofício na qualidade de herege, tal como afirma Menezes (2017, p. 10):

Teresa era acusada por ter lido e mantido livros proibidos em seu poder; por ter atrevido a alfabetizar as madres que lhe acompanhavam em clausura; por ter ousado, como mulher querer reformar uma ordem de frades. Caluniaram-na, alegando ter ela cometido crime de heresia; se comportando com depravação; mantido relações carnais; dado à luz uma criança e ter adotado “práticas iluministas”, ou seja, de haver-se tornado membro praticante de um movimento religioso espanhol do século XVI, uma espécie de seita mística, perseguida e considerada herética e relacionada ao protestantismo, que se originou em pequenas cidades da região central de Castela em torno de 1511.

Refutou todas as acusações que lhe foram imputadas. Não havendo provas para a sua condenação, continuou seu trabalho com a fundação do mosteiro de São José (SÉSE, 2008).

No ano de 1563 o mosteiro foi inaugurado, recebendo os chamados à vida consagrada na espiritualidade carmelita. Aos poucos, e cada vez mais, novos mosteiros foram por ela fundados. Até que, em 1582, novamente encontrou-se acamada com vômitos, hemorragias, acessos de paralisia e um esgotamento intenso que durou pouco mais de três dias. No segundo dia, compreendendo que a morte se aproximava, solicitou a confissão com frei Antônio, antigo companheiro da reforma do Carmelo. No dia 3 de outubro recebeu a extrema-unção. Faleceu no dia 4 de outubro de 1582.

III

Na história do pensamento ocidental, sobretudo para o cristianismo de tradição romana, os escritos de Teresa se tornaram referência no que tange à espiritualidade, à compreensão do amor de Deus, do amor ao outro e, principalmente, no que se refere à prática da oração. Guerson (2013), ao mencionar aspectos sociais daquele momento histórico, afirmou que, diferente do que o mundo experimentou durante o século XVI, com a descoberta do novo mundo e do maior período de expansão vivido pela humanidade até então, o convite feito pela monja carmelita é o de viajar para dentro de si, para o mundo interior onde habita a alma humana. Essa viagem tem um único objetivo: encontrar o maior bem de todos - Deus.

É uma viagem em direção ao Amado, uma experiência com o Absoluto. A grande descoberta, contudo, não se trata de ganhos materiais ou de terras não exploradas, mas de ganhos metafísicos no plano do autoconhecimento. Neste sentido, as metáforas e analogias presentes em o Castelo interior caminham e ganham importância para a compreensão de seu significado teológico (místico e dogmático) e filosófico (especulativo e técnico). Do ponto de vista retórico, o discurso empreendido na obra é concebido por meio de construções argumentativas incrementadas com descrições, imagens, transposições de sentidos e comparações.

Para analisar o discurso de Teresa, apresentamos três noções em retórica: função, argumento e figura. No que diz respeito à função, Olivier Reboul (2004) mencionou quatro tipos de funções em um discurso (logos): (i) a persuasão, (ii) a hermenêutica, (iii) a heurística e (iv) a pedagógica. Em linhas gerais, a primeira função visa o convencimento de um auditório (pathos) a partir de um caráter (ethos) que emana da fala (logos) do orador. A segunda função apresenta-se como uma arte de interpretar textos (logos). Na terceira função, a heurística, o uso da teoria tem um caráter de técnica da descoberta do que aparenta ser verdade. A quarta função, por fim, é tradicionalmente pedagógica, uma vez que ela permite o bem falar ao nos ensinar a elaboração de argumentos durante o processo de convencimento - na Idade Média, a retórica foi parte essencial do currículo escolar, preparando os homens para o exercício da cidadania ou para sacerdócio (REBOUL, 2004; PONCE, 1989).

Chamamos atenção para a primeira e a quarta funções, pois o discurso de Teresa tem um caráter persuasivo e, ao mesmo tempo, pedagógico. Ele visa, por meio do ensino da oração, o convencimento para que todos aqueles que leiam os argumentos autorais possam perceber o caráter verossímil que ali se encontra e adotar a opinião que se manifesta (doxa). Esses são os principais artifícios utilizados por Teresa no Castelo interior. A obra tem um aspecto de manual didático para aqueles que desejam ser iniciados nas artes da reflexão meditativa e da vida interior.

Os argumentos construídos no texto seguem, em sua maioria, dois tipos: exemplos e ilustrações. Neste contexto, Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) contribuem para a percepção de como tais argumentos se constituem. Em linhas gerais, o exemplo é um tipo de formação discursiva, por meio do qual o orador apresenta dados de sua própria vida e/ou experiência. O orador trará ao auditório um determinado evento como forma de explorar sua tese abstrata e indicar, no real, a relação dele com a teoria. O exemplo vivido mostra, de certo modo, a eficácia daquilo que foi proposto.

Em termos retóricos, isso contribui para gerar uma comunhão dos espíritos, pois o orador torna-se próximo do auditório, oferecendo elementos de sua vida pessoal e, consequentemente, isso proporcionará um terreno mais fértil para a adesão a uma nova doxa. Ao ler o Castelo interior, verificamos na narrativa teresiana dados autobiográficos, indicados nas dificuldades e alegrias que a alma vive quando decidida e dedicada a aprimorar sua vida interior e buscar seu Amado. Em notas, a depender da tradução, observa-se que os fenômenos descritos foram vividos pela própria autora.

Antes de falar das ilustrações, faz-se necessário dizer uma breve nota sobre as figuras. Na tradição retórica, conseguimos detectar dois tipos de investigações: uma corrente que se debruça sobre a categorização dos argumentos e outra que se dedica ao estudo das figuras. Tanto uma quanto outra contribuem para o desenvolvimento da teoria. Neste sentido, resgatamos novamente as ideias do filósofo Olivier Reboul (2004), sobretudo por explorar o uso da figura no raciocínio e suas relações com os argumentos.

A figura como um tipo de raciocínio que se realiza no âmbito da linguagem é amplamente utilizada pela arte e a poesia, sobretudo porque tais áreas do fazer humanos não são limitados como em outros tipos de discursos (o da ciência, por exemplo). Dentro desse caminho, afirmamos que uma figura de analogia pode auxiliar na confecção de um argumento de ilustração. Assim, ao comparar a alma com o castelo, Teresa faz uso de uma metáfora e constrói um argumento de comparação: da mesma forma que o castelo, a alma também tem diversos aposentos.

Neste sentido é que as ilustrações levadas a cabo em Castelo interior serão diversas em sua estrutura, ainda mais quando em oposição à estrutura dos exemplos. Ao desenhar a sua fala, os argumentos ilustrativos são apresentados com figuras de analogia ou metáforas. Fornecem sentido, proporcionando imagens que auxiliam no processo de compreensão do fenômeno da oração, conferindo, assim, significado à realidade vivida (REBOUL, 2004).

Dito de outro modo: existem analogias e metáforas que contribuem para a relação entre ethos e pathos no momento de uma situação discursiva; ao estruturar figuras de sentido, cujo conteúdo continha elementos do imaginário de sua época (o castelo), Teresa estabeleceu uma comunhão dos espíritos com seus leitores, causando impacto no que diz respeito à adesão ao seu discurso (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 1996).

O texto do Castelo interior foi um pedido feito pelo Frei Gerónimo Gracián, seu confessor e amigo. Gracián solicitou para Teresa que escrevesse um pouco sobre suas experiências, acreditando que elas ajudariam outras pessoas nos caminhos da vida interior (SÉSE, 2008). Teresa prontamente respondeu, escrevendo uma das principais obras sobre vida interior da história do ocidente.

A analogia ao castelo, com a qual o leitor se depara antes de abrir o livro, já no título da obra, tem um fundamento estético: de um lado, é uma referência à literatura que permeou a infância e a adolescência da autora, com os romances de cavalaria. De outro lado, uma referência da arquitetura de um período que se encontrava em declínio, as grandes construções casteleiras. Esse princípio estético fez parte do cenário vivido pela pensadora na cidade de Toledo - lá se encontrava o palco onde estavam os cavalos, as trovas e os castelos que lhes serviram de inspiração (SÉSE, 2008). O adjunto adnominal interior que sucede o termo castelo complementa a construção analógica e concomitantemente metaforiza a alma humana. O castelo interior não trata de um romance de cavalaria, efêmero, mas de uma história de amor e eterna, entre a alma e Deus.

A apresentação da obra possui um tom autoral, às vezes cômico, mas, sobretudo, pedagógico. Seu estilo tece palavras em uma rede complexa, detalhando e ensinando às suas irmãs de clausura como percorrer um caminho de autoconhecimento e disciplina. Essa busca depende da decisão e da força de vontade de unir-se com o eterno, na persona do Cristo. O método, na metáfora do caminho, traduz-se como prática na técnica da meditação, a começar pelo recolhimento interior e a oração reflexiva (SÉSE, 2008).

À medida que progredimos nos estágios da oração, avançamos, também, nas moradas do castelo. O castelo é o próprio corpo e nele a alma encontrará a si mesma. Antes de desposar o Amado, a alma necessariamente realizará uma investigação sobe si, buscando autoconhecimento e reconhecendo suas verdades íntimas, até mesmo porque não se conhecer é também não conhecer a Deus. Escreve Pádua (2006, p. 9):

Há algo de tremendamente trágico no desconhecimento da vocação humana: “Que lástima é não saber quem somos”. Por falta de autoconhecimento - que não é apenas teórico, mas especialmente existencial - não nos realizamos como pessoas, permanecendo do lado de fora de nós mesmos! Em consequência, negamos aos outros, à comunidade e à sociedade, o melhor que somos e podemos dar.

Segundo D’Ávila (2008), nas primeiras e segundas moradas as pessoas ainda estão ligadas ao exterior, não enxergam a luz e nem a si. A meditação é o único procedimento que permitirá reconhecer-se interiormente como ser e ser-de-Deus e, da mesma forma, modificar o comportamento a partir de uma autopercepção moral. A interiorização não deve ser confundida com um fechar-se em si, ou ainda, negar o mundo corpóreo, ou tampouco o real. Ao contrário, ela é o encontro com o novo ser que surge em contraste com a luz de Deus irradiada em seu interior, refletindo para o serviço concreto. Esse serviço concreto é o amor traduzido em obras de caridade direcionadas ao outro (ser-para-outro).

Conforme a alma permanece insistente na prática da oração, avança e começa a ouvir Deus em seu interior. Esse momento é caracterizado por aquilo que mencionamos como secura e aridez, cansando e, muitas vezes, privando a alma de qualquer sensação. Teresa aponta para o conceito de angústia quando associa aflições e memórias do mundo exterior que nos afastam do ser-de-Deus. Seus conselhos seguem objetivos: não desistam, perseverem no caminho mesmo que seja difícil andar pela estrada.

Após a caminhada levar às terceiras moradas, a alma sente-se um pouco mais segura de si, pois superou algumas dificuldades iniciais e mudanças comportamentais foram operadas em seu ser. A prática da caridade tornou-se parte da sua vida, ela evita o pecado e procede de forma correta. Conhecendo-se, avança com humildade, adentrando no interior do castelo. Ainda existem momentos de angústia, mas a monja reitera seu conselho a todos: permaneçam firmes e obedientes a si e a Deus. Dentro das três primeiras moradas Teresa deixa claro que o maior esforço empreendido é o da alma, que luta com todas suas forças para prosseguir fiel aos propósitos da criação. Em termos filosóficos, esse seria o momento de aprendizado e efetivação da técnica. Às pessoas que desejam se firmar no caminho da meditação, o conselho de Teresa poderia ser traduzido da seguinte forma: não é fácil a prática do recolhimento e da reflexão, esse é um processo que exige dedicação e se faz necessário a todos que nele se aplicam.

Nas quartas moradas a alma está mais próxima dos aposentos do Rei. A busca pelo Amado se dará interiormente, na meditação, e exteriormente, nas obras de caridade e no exercício do amor ao próximo. Praticar o amor e contentar a Deus em tudo é o que devemos fazer. Aqui há um mecanismo psicológico de sublimação do desejo individual, o para-si modifica-se em um para-o-outro. As sementes plantadas na alma durante o percurso das primeiras moradas começam a crescer e se transformam continuamente em uma árvore de autoconhecimento, proporcionando uma reorganização das prioridades no nível do desejo.

De acordo com Pádua (2003), na obra teresiana, uma das mensagens centrais existentes é o imperativo do amor e a união com Deus. A experiência mística está endereçada para esse fim, para o amor que se traduz em obras, um amor servil. Nesse momento ocorre aquilo que a pensadora espanhola denomina alinhamento de vontades, a partir do qual o sujeito deseja viver a vontade do divino. Em um dos versos de seu poema Glosa, Teresa fala que seu coração foi trocado pelo coração do Amado, esse foi o momento da entrega total, quando a alma endereçada a viver de amor permite-se desfrutar dos prazeres divinos:

Entreguei-me toda e assim

Os corações se hão trocados

Meu Amado é para mim

E eu sou para o meu Amado

Ao passar pelas quatro primeiras moradas, a alma segue em um movimento constante de recolhimento interior (D’ÁVILA, 2008). Nela há paz, quietude, segurança e um coração dilatado. Ao falar sobre a oração de recolhimento e a interioridade, Guerson (2003) mencionou que Teresa compreendeu o corpo como o lugar de encontro com Deus. É no corpo que a vontade de Deus se realiza em nós e por meio de nós. A oração é interior e se constrói em uma relação de intimidade dos sujeitos que nela estão envolvidos, mas o amor e a caridade são exteriores, direcionados para Deus e para o outro.

Em consonância com Guerson (2003), acreditamos no corpo como ponto de encontro entre Deus e a alma. Teresa, inclusive, oferece-nos indícios desse lugar em seu poema Buscando a Deus:

Sim, porque és meu aposento,

És minha casa e morada;

E assim chamo, no momento

Em que de teu pensamento

Encontro a porta cerrada.

Busca-me em ti, não por fora

Para me achares ali

Chama-me que, a qualquer hora

A ti virei sem demora

E a Mim, buscar-me-ás em ti

Novamente verificamos uma metáfora e uma analogia. Essas figuras retóricas fazem referência aos antigo e novo testamentos. Na referência do antigo testamento, temos os Cânticos dos cânticos (BÍBLIA, 2002), em particular, o Cântico 5, em que lemos:

Eu dormia, mas meu coração velava e ouvi o meu amado que batia: "Abre, minha irmã, minha amada, pomba minha sem defeito! […] Ponho-me de pé para abrir ao meu amado […]. Abro ao meu amado, mas o meu amado se foi... Procuro-o e não o encontro. Chamo-o e não me responde... […]. Encontraram-me os guardas que rondavam a cidade. Bateram-me, feriram-me, tomaram-me o manto as sentinelas das muralhas! (BÍBLIA, 2002, p. 505)

João da Cruz, em Noite escura da alma (2002) viu nessa passagem bíblica uma cena de enamoramento entre os dois jovens e transpôs tal cena em analogia ao que ocorre entre Deus e a alma. A interpretação do pensador espanhol visa a união mística, tal como a obra de Teresa. No cenário do Cântico, vemos elementos de um percurso voluntário da alma para Deus, no qual também verificamos a presença da angústia - o Amado que chama a Amada, entretanto, desaparece. Em João da Cruz, essa angústia será estilizada discursivamente no conceito de noite escura, a noite em que a alma necessariamente passará no caminhar para Deus. Nesse momento, a ausência da divindade parece tão certa que a alma se aflige e acredita estar longe do divino (CRUZ, 2002).

Em Teresa também verificamos esse movimento de silenciamento e angústia. Com base em suas teorizações místicas, tal Cântico afirmaria que o Amado, no interior de sua casa (ou morada), chama por sua amada <…abre, minha irmã, minha amada, pomba minha sem defeito>. A alma, com o auxílio da meditação e da oração reflexiva, movimenta-se em sua direção. Nesse percurso, enfrenta angústias, securas e aridez espiritual - o silêncio de Deus - <…ponho-me de pé, para abrir ao meu amado... procuro-o e não o encontro >. (D’ÁVILA, 2008)

Ao avançar por entre as moradas interiores, as investidas do mundo externo emergem na tentativa de nos afastar do matrimônio espiritual <…encontravam-me os guardas que rondavam a cidade. Bateram-me e feriram-me, tomaram-me o manto as sentinelas da cidade>. Na passagem bíblica, o Cântico segue com uma descrição das qualidades que os enamorados trazem consigo, um exalta a qualidade do outro. Tal descrição qualitativa também é verificada em Teresa, quando aborda as transformações comportamentais pelas quais a alma passará antes de a união espiritual se efetivar. Assim, após os afagos e dizeres de amor, ao final do Cântico, a Amada reitera, assim como Teresa, em seu poema Glosa, <eu sou do meu amado e o meu amado é meu>.

A segunda referência ocorre com o evangelho de João (BÍBLIA, 2002, p. 813), que no capítulo quatorze diz “na casa de meu Pai há muitas moradas”. A casa é o corpo, o local da alma e da morada de Deus no ser humano. A segunda referência, por sua vez, estabelece-se em uma comparação com o dito de Mateus (BIBLIA, 2002, p. 734), no versículo seis, que diz “Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechando a tua porta, ora ao teu Pai que está lá, no segredo”. Ao contrário do que poderia parecer, ir ao encontro de Deus não significa sair de si e, tampouco, abandonar a própria humanidade, mas, ao contrário, ir para o encontro de Deus é penetrar a nossa humanidade até as suas últimas consequências em termos de ser, somente assim chegar-se-á ao centro do Castelo.

A oração de união caracteriza a quinta morada. Essa oração traz consigo uma mudança profunda no sujeito que a experimenta. Deus toma o ser do sujeito que ali se encontra e exige tudo para Si. A memória e o intelecto não interferem mais nesse processo e elas conseguem separar o divino e metafísico do não divino e material. Além disso, o alinhamento das vontades acontece com maior intensidade. Nessa morada, o que Teresa diz ser uma verdadeira morte para o mundo, torna-se o nascer para Cristo (D’ÁVILA, 2008).

A sexta morada caracteriza-se na noção de noivado. Teresa afirma que a alma foi ferida pelo amor e anseia viver o estado de união. Tudo depende do Amado, sua vontade e desejo estão centradas n’Ele. A alma, contudo, sofre muito nessas moradas, pois inda se encontra em secura espiritual. A analogia ao noivado presente remete-nos à preparação cerimonial do matrimônio e, ao mesmo tempo, anuncia a mais importante alegria que o percurso da prática meditativa pode acarretar à existência humana: a união mística consumar-se-á (D’ÁVILA, 2008)

Por fim, o momento da total união com o Absoluto, na última morada. O casamento se consuma e uma das principais características da alma que se encontra em tal estado é a oração de quietude. A alma agora tem apenas a percepção de Deus, já não sofre pelas securas e inquietações, deleita-se em seu amor. Ao finalizar as últimas moradas, D'Ávila (2008) orienta para a importância da reflexão na oração e da meditação para alcançar a plenitude da espiritualidade, saindo do estado de oração vocal, internalizando a meditação e transformando a reflexão em ação.

Da primeira à última morada, o leitor atento percebe um ensino gradual de um percurso técnico: a meditação reflexiva ou a prática da oração orientada pela imaginação. Como ressalta Pádua (2003, p. 178), “a linguagem, entremeada por orações, ensina, orando a oração. Com seus símbolos, figuras de linguagem e poesias fazem o leitor participar de alguma maneira de sua experiência”. Deste modo, acreditamos que a oração se constitui como um elemento pedagógico na busca do conhecimento de si, permitindo-nos conhecer a Deus e se desdobrar em amor ao próximo, sobretudo porque, em Teresa, amor é o principal resultado da união entre a Alma e o Absoluto, entre o Perfeito e o Imperfeito.

IV

É perceptível que os escritos de Teresa expressam as necessidades de seus espaço e tempo: a elaboração de instrumentos e técnicas pedagógicas para a formação humana e espiritual de suas irmãs monjas. Sua intenção em ensinar e educar é inegável. Tal afirmação se fundamenta na história do pensamento espanhol, além disso, as memórias teresianas deixam-nos evidente a característica pedagógica de seus escritos. A retórica, por sua vez, contribui para reiterar tal ideia, a obra o Castelo interior promove um ensino prático, voltado para si e para o outro, isto é, um ensino fundamentado em uma noção germinal de eu existencial.

Durante o século XVI, o ensino das pessoas que se consagravam à vida religiosa era marcado pela leitura e transmissão oral como instrumentos didáticos, sobretudo nos mosteiros, os lugares onde o conhecimento foi produzido durante séculos (PONCE, 1989). Nesses instrumentos, o ensino de Teresa se fez vivo tanto com a escrita, quanto com a transmissão oral. Deste modo, pautada em um ensino que não fosse distante ou que facilitasse a compreensão de suas irmãs, Teresa aproximava o itinerário da busca de si ao encontro da alma com Deus.

De acordo com Barboza (2010), parte dessa perspectiva pedagógica era devida à influência da corrente filosófica humanista. A filosofia humanista acreditava que Deus só podia ser encontrado nas profundezas da alma; já não bastava procurá-lo na natureza, nos exercícios corporais, em palavras ou leituras. Tornavam-se necessários, agora, exames de consciência, já que a vida espiritual é a vida interior. O caminho até Deus resulta de uma interiorização progressiva.

Historicamente, o recolhimento interior como base para a meditação remonta à emersão do movimento mendicante no cristianismo. Por volta do século XIII, tal como indica Oliveira (2007), as ordens mendicantes sugiram como resposta à crise vivida pelo cristianismo. No âmbito social, tais ordens estavam vinculadas às ações pastorais e criticavam a riqueza, observando um modo de vida pautado na simplicidade e na pobreza. No âmbito espiritual, por sua vez, os mendicantes trouxeram à tona uma prática que ficava restrita aos muros do claustro: a meditação reflexiva. Segundo Barboza (2010), a oração por meio da meditação era encontrada apenas nas casas franciscanas, expandindo-se para as demais ordens religiosas. Buscavam, diretamente, a união ou a transformação da alma em Deus e, indiretamente, a reforma das ordens religiosas e da Igreja.

Na obra Castelo Interior identificamos um dinamismo espiritual pelo qual a alma humana incorre quando dedicada à oração reflexiva. Nesse processo, o meditar tem um desenvolvimento progressivo e, a cada passo, ou a cada morada, seus conteúdos psicológicos são revisitados e seu comportamento aprimora-se em função do divino. O conhecimento adquirido ao longo do percurso traz consigo um valor pedagógico fundamental à medida que representa o conhecimento de si. Trata-se, então, de um tipo de aprendizagem que se dá pela experiência e se concretiza interiormente, contribuindo para a subjetivação do ser que a vive.

Referências

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1Esta afirmação não faz referência à querela dos universais, estruturada por Porfírio, na Isagoge. Antes disso, ao falar sobre os universais enquanto um problema filosófico, fazemo-lo em referência à construção do universal como um meio que possibilita a elaboração do conhecimento objetivo, por meio da criação da ideia ou do conceito.

Recebido: 19 de Fevereiro de 2021; Aceito: 20 de Outubro de 2021

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