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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.75 Uberlândia set./dic 2021  Epub 16-Ene-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n75a2021-62463 

Artigos

A stultitia na contemporaneidade e a importância da leitura e da escrita em escolas e universidades

Stultitia in contemporaneity and the importance of reading and writing in schools and universities

La stultitia à l´époque contemporaine et l´importance de la lecture et de l´écriture dans les écoles et les universités

*Doutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos de São Leopoldo/RS. Professor no Programa de Pós-Graduação em Avaliação de Tecnologias para o Sistema Único de Saúde (SUS) e da Residência Multiprofissional em Saúde da Escola GHC, Porto Alegre. E-mail: elisandromosaico@gmail.com

**Doutor em Educação pela Universidade de Passo Fundo. Professor de Filosofia no Colégio Notre Dame em Passo Fundo. E-mail: mlmarangon@yahoo.com.br

***Doutora em Educação pela Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo. E-mail: beschuler@unisinos.br


Resumo

Este artigo é um ensaio teórico que parte de investigações da antiguidade greco-romana por Foucault, principalmente de seus estudos sobre Sêneca, para recuperar o conceito de stultitia e com ele pensarmos o nosso tempo. A partir do diagnóstico de um presente da superaceleração e do superdesempenho, em que se compete consigo mesmo e a atenção está dispersa, a passividade está em justamente não conseguirmos parar para olhar para nós mesmos e para os demais. Para essa agitação contemporânea, afirmamos a importância de escolas e universidades, bem como da figura do mestre, que, por meio da leitura e da escrita, poderá convidar o outro a cuidar de si mesmo e dos demais.

Palavras-chave: Stultitia; Educação; Cuidado de Si; Leitura; Escrita

Abstract

This paper is a theoretical essay grounded on Foucault’s investigations of Greek-Roman Antiquity, particularly his studies on Seneca, in order to recover the concept of stultitia and use it to think about our times. From the diagnosis of a present of super-acceleration and super-performance, in which one competes with oneself and attention is dispersed, passivity is precisely in not being possible to stop and look at the others and ourselves. For this contemporary unrest, we point out the importance of schools and universities, as well as the figure of the master, who, by means of reading and writing, may invite the other to look after the others and oneself.

Key-words: Stultitia; Education; Care of the Self; Reading; Writing

Résumé

Cet article est un essai théorique qui part des investigations de l'antiquité gréco-romaine de Foucault, principalement de ses études sur Sêneca, pour récupérer le concept de stultitia pour penser à notre époque. Du diagnostic d'un présent de super accélération, de super performance, dans lequel on est en compétition avec soi-même, dans lequel l'attention est dispersée, la passivité est simplement de ne pas pouvoir s'arrêter pour se regarder et se regarder les autres. Pour cette agitation contemporaine, nous affirmons l'importance des écoles et des universités et la figure du maître qui, par la lecture et l'écriture, peut inviter l'autre à souci de lui-même et des autres.

Mots-clés: Stultitia; Éducation; Souci de Soi; Lecture; L'écriture

Um início de conversa

A complexidade é um elemento da resposta e da maneira de se responder ao mundo mas, quando penso naquele filósofo que não quer que a gente reduza "un phénomène historique terrible et ambigu" - para ele, o colonialismo - a simplesmente "un crime contre l'humanité" enquanto que, quando o assunto é educação, ele prefere simplificar e dizer "esses arruaceiros não pedem, e sim queimam escolas" e, quanto ao desemprego, "a pessoa não vai para a sala de aula para ser empregada mas para ser ensinada" [...] isso - discursos desse tipo - dá vontade também de se fazer de simplista ao extremo e responder: imbecil. (KAPLAN, 2018, p.14).

Um olhar sobre a sociedade atual é capaz de apontar que, pouco a pouco, um movimento de supressão da preocupação diante da violência de gênero, etnia ou classe social se expande pelo mundo. É possível afirmar que tal movimento avança como uma “onda”, atingindo vários países de maneira intensa e (re)acendendo a preocupação com temas que se imaginava terem sido suprimidos (ou erradicados) desde a II Guerra Mundial, atualizando um discurso superficial e sem comprometimento, conivente com uma produção e um rastro histórico de violência e desumanização.

Faz-se difícil descrever a velocidade com que essa onda ganha força em tempos em que a informação está disponível para um grande percentual da população mundial (percentual este, diga-se de passagem, bem superior ao que tinha acesso à informação na II Guerra Mundial) e atinge não somente classes desfavorecidas (como podemos ver no poema de Leslie Kaplan, acima transcrito), como também “intelectuais” que influenciam nas decisões políticas e econômicas dos países. Por isso, sem pensar em respostas fáceis para perguntas difíceis, optamos por problematizar o nosso contemporâneo superacelerado, em que competimos com nós mesmos e em que a passividade está justamente em não conseguir parar (HAN, 2015).

A partir dos estudos de Foucault sobre a ética, podemos retomar a problemática da stultitia, mas agora uma stultitia espetacularizada1. Nas escolas e nas universidades, podemos perceber uma dispersão hiperconectada que não permite que nada dure o suficiente para que se viva uma experiência. Para Foucault (2010, p. 119), "o stultus é alguém que de nada se lembra, que deixa a vida correr, que não tenta reconduzi-la a uma unidade pela (re)memorização do que merece ser memorizado”. É o sujeito que deixa sua existência passar, sem fazer marca, sem fazer memória e sem ter vontade; ele “não [dirige] sua atenção, seu querer, em direção a uma meta precisa e bem determinada” (Ibidem, p. 19).

Seria possível pensar que, no presente, o acesso à internet, a princípio, poderia democratizar o acesso à informação de forma nunca antes vivida na história da humanidade. Todavia, o que podemos descrever é um tipo de lidação que pouco passa pelo estudo, pela leitura e pela escrita, que pouco passa pelo olhar para o outro, mas que se dispersa na espetacularização das redes sociais, afirmando estereótipos, preconceitos e violências de toda ordem, sem questionamentos.

Nesse contexto, o stultus contemporâneo caracterizar-se-ia como uma esponja, que absorve tudo que vem de fora, mas, da mesma forma, rejeita tudo. É alguém que, justamente por não conseguir parar, porque está competindo consigo mesmo, pouco consegue questionar o que se passa e o que se passa no pensamento com tamanho bombardeio de informações e das novas técnicas de marketing digital2.

Diante de tais constatações, seguindo o "aconselhamento" de Sêneca (1884) para pensarmos em nossos modos de escravidão, seja aos outros ou a nós mesmos, este artigo objetiva esboçar historicamente o conceito de stultitia, apresentando como o mesmo pode ser pensado hodiernamente e como ele é potencializado, como conceito e como problema, frente as nuances da contemporaneidade. Assim, trazemos como questionamento central: de que modos podemos nos equipar para enfrentar essa stultitia com características de superdesempenho no presente? Para tanto, trazemos a elaboração ativa do passado mediante a escrita da memória como uma possibilidade para tomar as práticas pedagógicas-formativas.

Assim, este artigo está dividido em três partes. Na primeira parte, o conceito de stultus é apresentado, buscando-se recuperar, historicamente, seu sentido. Na segunda parte, este conceito é abordado em suas características na contemporaneidade. Na terceira, são apresentadas possibilidades para pensarmos de outros modos essa questão.

Como bibliografia básica, são utilizados autores como Foucault, tendo-se como fundamento suas concepções sobre o stultus, bem como sobre a elaboração da memória e do contemporâneo em Hannah Arendt, Giorgio Agamben, Zygmunt Bauman, Paula Sibilia, Byun-Chul Han e Georges Didi-Huberman.

O conceito de stultus e sua concepção histórica

O Stultus está aberto ao mundo exterior na medida em que deixa essas representações de certo modo misturarem-se no interior do seu próprio espírito - com suas paixões, seus desejos, sua ambição, seus hábitos de pensamento, suas ilusões, etc. - de maneira que o stultus é aquele que está assim à mercê de todos os ventos das representações exteriores e que, depois que elas entraram em seu espírito, não é capaz de fazer a separação, a discriminatio entre o conteúdo dessas representações e os elementos que chamaríamos, por assim dizer, subjetivos, que acabam por misturar-se com ele. Esse é o primeiro caráter do stultus. (FOUCAULT, 2010, p. 118).

É assim que Foucault descreve a noção que traz do conceito de stultus, noção esta que ele mesmo aponta construir a partir do que Sêneca expressa em suas cartas e tratados. Entretanto, a noção de stultus pode ser compreendida ainda além do que se vê em Sêneca e na análise de Foucault.

Em sua obra Hitler e os alemães, por exemplo, Voegelin (2008) aponta que o conceito de stultus implica a noção de “idiota”, de “tolo”, e recupera a emergência desse conceito de modo resumido, mas que pode dar um norte para a percepção de como ajuda a compreender a situação existencial da contemporaneidade, que colabora para a derrocada da democracia e para a crise social. Diz ele:

Esse fenômeno sempre foi reconhecido nas civilizações antigas. O tolo, o nabal, em hebraico, que por causa de sua tolice, nebala, cria desordem na sociedade, é o homem que não é um crente, nos termos israelitas da revelação. O amathes, o homem irracionalmente ignorante, é para Platão o homem que simplesmente não tem a autoridade da razão ou que não pode curvar-se a ela. O stultus, para Tomás, é o tolo, no mesmo sentido da amathia de Platão e do nebala dos profetas israelitas. Este stultus agora sofreu uma perda de realidade e age com base numa imagem deficiente da realidade e, assim, cria desordem. (VOEGELIN, 2008, p. 121).

Tal recuperação permite um aprofundamento direcionado para a compreensão desse conceito. Em sua obra A República, por exemplo, Platão analisa a reflexão socrática a respeito da distinção entre bem e mal, usando o termo amathes para expor aqueles que não possuem sabedoria para compreender o mundo em que vivem e, por isso, não sabem se conduzir. Sua amathía (ignorância) relaciona-se com a falta de cultura ou com a incapacidade de captá-la e compreendê-la, impedindo a verdadeira liberdade, visto que, em Sócrates - e também em Platão -, a verdadeira liberdade está vinculada à ideia de agir bem, de agir justamente.

Neste caso, o amathes, ao não conseguir distinguir o justo do injusto, o bem do mal, não consegue desenvolver-se plenamente. Também não é plenamente livre, tornando-se, em certa medida, um problema para a sociedade, onde, para Platão, todos os cidadãos3 precisam desenvolver-se em plenitude para que ela possa evoluir individualmente e, dialeticamente, também coletivamente. Por sua incapacidade de compreender o mundo assertivamente, o amathes não consegue a concretização subjetiva da dialética de maneira plena, não constituindo a “autoridade da razão” e, dessa forma, não podendo participar da política (polis) - assim quebrando ou impossibilitando o ciclo dialético evolutivo da sociedade.

Se, em Platão, o problema da stultitia ganha notória preocupação, também na Idade Média esse tema adquire importância com Tomás de Aquino. Este prefere utilizar a palavra stultus para designar o problema da falta de esclarecimento dos indivíduos e preocupa-se em buscar sua gênese, apresentando dois modos: “De um modo, por indisposição natural, como se dá com os loucos. E tal estultícia não é pecado. De outro, por mergulhar o homem os sentidos nas coisas terrenas, o que o torna de senso incapaz de perceber as coisas divinas, conforme aquilo do Apóstolo” (AQUINO, s/d, p.2036).

Deste segundo modo (o mais preocupante para Aquino), podem ocorrer diversos “tipos” de stultitia. Mesmo assim, é possível identificá-los por duas gêneses específicas: a primeira é a paralisia, que leva ao estupor, processo que, diferentemente da admiração, impede uma atitude positiva de interpretação das situações: “o fátuo carece do senso judicativo; o estulto tem esse senso, mas embotado” (AQUINO, s/d, p. 2035)]; a segunda é a falta de sensibilidade.

Para Aquino, o stultus é, então, alguém que, acima de tudo, não tem (ou perdeu) a sensibilidade e por isso difere do sábio. O sábio, assim como a faculdade do “gosto” - que sabe discernir o sabor das coisas -, sabe discernir as coisas e as causas: “diz Isidoro no mesmo lugar, a denominação de sapiente é derivada de sabor; porque assim como o gosto tem por função discernir o sabor dos alimentos, assim o sapiente, a de discriminar as coisas e as causas” (AQUINO, s/d, p.2036). Por essa capacidade desenvolvida, o sábio teria a possibilidade de perceber-se e de perceber, da mesma forma, para diferenciar e discernir o que é bom do que não é bom. Sem tal capacidade, o stultus perde a capacidade do juízo (de julgar o que é certo e errado) e acaba opondo-se “aos preceitos que regulam a contemplação da verdade” (AQUINO, s/d, p.2036). Isso significa que, como em Platão, suas ações causarão problemas à comunidade.

Tomás de Aquino, inclusive, utiliza uma passagem do Menon de Platão para reforçar outro problema do stultus: por não poder (ou não querer) ir além daquilo que percebe, toma por falso aquilo que não pode compreender, impedindo a ampliação dos saberes, e assim se torna má exemplo para a sociedade. Para Tomás de Aquino, o indivíduo pode nascer com esta condição ou adquiri-la.

Desse modo, podemos perceber que o conceito de stultitia, em Platão, está vinculado à lógica da verdade original e, em Tomas de Aquino, ao pecado. Em uma perspectiva em que o fim último seria a vida e que se desloca da perspectiva do conhecimento de si para o cuidado de si, podemos citar o conceito de stultitia em Sêneca, ainda no primeiro século de nossa era. Em suas Cartas a Lucílio, o pensador afirma com veemência que “o sábio não carece de nada, porém, necessita muitas coisas: ao contrário, o tolo não necessita nada, por que nada sabe usar, mas carece de tudo” (SÉNECA, 1884, p.22 - Tradução nossa).

Evidencia-se, dessa maneira, que o que diferencia o sábio (sapiens) do stultus é o modo como o mundo que o circunda é lido. O sábio, ao conseguir fazer a leitura correta de seu recorte espaço-temporal, sabe usufruir apenas do que é necessário. Porém, o stultus, por não conseguir fazer tal leitura, acaba usufruindo desmedidamente daquilo que o cerca, tornando-se um peso para a sociedade.

E é por este mesmo caminho de Sêneca que o problema da stultitia é retomado na contemporaneidade por Foucault. Para este autor, a stultitia também é um estado patológico dos indivíduos, caracterizado pela incapacidade de “dar a si mesmo um ponto fixo na posse de uma verdade adquirida” (FOUCAULT, 2014, p. 147), sendo o polo contrário do cuidado de si “um horror à vida”, como diria Sêneca.

Neste caso, o stultus, para Foucault (2010), é aquele que não tem cuidado consigo mesmo e está aberto ao mundo de tal forma que deixa as representações4 “misturarem-se no interior do próprio espírito” (FOUCAULT, 2010, p.118). Desse modo, o espírito do stultus está, para Foucault, à mercê de “todos os ventos”, disperso no tempo, sendo incapaz de fazer uma leitura adequada do mundo à sua volta e constituindo uma condição existencial “sem memória e sem vontade”, ou de vontade “limitada, relativa, fragmentária e cambiante” (Ibidem, p. 118). Por isso, o indivíduo nesta condição não é capaz de querer como convém. Esta falta de “querer”, ou este “querer sem determinação”, tem duas perigosas consequências: primeiro, que o stultus é determinado pelo que vem do exterior; e, segundo, que ele passa a querer “várias coisas ao mesmo tempo, coisas divergentes sem serem contraditórias” (FOUCAULT, 2010, p.119).

Diante de tais afirmações de Foucault - e fazendo uma breve retrospectiva do que se apresentou até aqui -, ao analisar-se separadamente o conceito de stultus, é possível perceber que: em Platão, o conceito está ligado à incapacidade de captar e compreender a cultura, impedindo a verdadeira liberdade; em Tomás de Aquino, está ligado ao estupor, do qual decorre a falta de sensibilidade e a consequente perda da capacidade do juízo; e, em Sêneca e Foucault, o stultus é também aquele incapaz de fazer uma leitura adequada do mundo. Dessa maneira, a partir de ambos os autores, podemos pensar que a incapacidade de leitura adequada do mundo que caracteriza a stultitia aponta para um estado disfuncional que, se não impossibilita, dificulta muito o desenvolvimento de um estado democrático.

Não se trata neste artigo, portanto, de mostrar a origem que leva um indivíduo a perder-se na stultitia, mas sim de descrever as condições de possibilidade e a emergência desse funcionamento no presente. Para tanto, é preciso retornar à Grécia Antiga e relembrar a diferença entre homens e deuses segundo as lendas gregas.

Para este povo, duas características marcavam a superioridade dos deuses: a eternidade (capacidade de viver todas as experiências) e a onipresença (do alto do Olimpo, podiam ver todas as coisas acontecendo em seu contexto). Aos meros mortais caberia, então, em sua perfectibilidade, suprir estas duas potencialidades: precisaria o indivíduo perceber que, diferentemente dos deuses, sua compreensão e ação sobre as coisas eram limitadas em um recorte espaço temporal, por isso, precisaria desenvolver sua capacidade de raciocínio, fosse pela subjetivação em concentração, fosse pela relação com o outro - principalmente por meio da interferência de um mestre, que contribuiria para o indivíduo encontrar-se e assim almejar uma vida reta e uma ação verdadeira.

Pois bem, diante dessa racionalidade, é possível apontar que a stultitia, por ser a incapacidade de leitura adequada do espaço e do tempo, carece justamente de um olhar criterioso, de ferramentas a serem constituídas para que possa ver de modo mais lúcido o mundo e a relação consigo mesmo, neste “situar-se no mundo em que vive”. Isso significa, em outras palavras, que falta ao stultus o reconhecimento da necessária condução, lhe falta abertura, lhe falta o reconhecimento de sua incompletude. Assim, podemos pensar a stultitia como uma razão vulgar. E, como comenta Souza sobre a razão vulgar (218, p. 44),

é a expressão medíocre de um viver por inércia, um semiviver kafkiano, o pretenso ‘habitar’ um mundo sem realmente percebê-lo. Pela razão vulgar, transforma-se insignificâncias em relevância, e se retira da relevância o seu significado, sua singularidade, inofensibilizando-a. Suporta-se o insuportável.

Padece, assim, perante a ignorância de sua própria ignorância, perante o descaso de si para consigo e perante o não acompanhamento de sua situação pela sociedade. Necessita de uma intervenção que lhe permita parar, analisar e constituir um olhar mais criterioso sobre a relação espaço-temporal em que está inserido e as importantes consequências e responsabilização de seus atos e omissões além do que pode vislumbrar. É alguém que, de algum modo, sofreu por uma formação inferior, que não assume a condução da própria vida como um objetivo principal da sua existência: “[...] o stultus quer algo e ao mesmo tempo o lastima. É assim que ele quer a glória e, ao mesmo tempo, lastima por não levar uma vida tranquila”. (FOUCAULT, 2010, p. 119).

A partir disso, a figura do mestre assume grande importância na formação do outro - para arrancar-lhe da stultitia, para colocá-lo frente a frente consigo mesmo, justamente para arrancar-se de si. Daí se tratar de um mestre não que suprirá uma ignorância ou transmitirá um saber útil, mas de um mestre que convida o outro a cuidar de si mesmo, que o puxa para fora. Então que, “entre o indivíduo stultus e o indivíduo sapiens, é necessário o outro”. (FOUCAULT, 2010, p. 120).

Atravessamentos na contemporaneidade: a agitação da atenção

Se o stultus traz, dentre suas características, a impossibilidade de compreender, sentir ou ler a realidade de maneira adequada, é de se compreender que, na atualidade, esta impossibilidade tende a ser potencializada. Foucault (2010) fala da má qualidade moral e intelectual de quem se agita o tempo todo, incapaz de ter uma atenção concentrada em algo. Se pensarmos nessa espetacularização de nós mesmos que vivemos no presente (SIBILIA, 2016), em que escolas e universidades disputam a atenção dos alunos em tempos em que eles pedem a mesma velocidade da internet e do marketing às clássicas práticas de leitura e escrita, poderemos conseguir levantar sintomas importantes do nosso presente. Uma existência distraída de si e dos modos de conduzir a si mesmo.

Para pensarmos o nosso presente, recuperamos também os escritos de Bauman (2001), que caracteriza a sociedade contemporânea como líquida, pois, assim como os líquidos, ela é incapaz de manter uma forma definida. Isso porque está embasada na velocidade, e não na duração, e até os “quadros de referência” mudam antes mesmo de serem solidificados; com isso, “são reduzidos à mera sequência de experiências instantâneas que não deixam traço, ou então cujo traço é odiado como irracional, supérfluo ou ‘suplantado’ no sentido literal do termo”. (BAUMAN, 2009, p.174).

Disso tudo, nos apontamentos de Bauman, é possível perceber que se desencadeiam vários outros problemas. Tudo aquilo que regulamenta e institui algo estático ou regulador torna-se “ameaçador” e “descartável”, devendo ser excluído ou minimizado ao máximo: tanto os projetos de longo prazo quanto as relações se tornam líquidas5, a exemplo das relações afetivas descartáveis, das relações de trabalho uberificadas e das metas de curto prazo que a educação busca alcançar como sendo sua finalidade última (metas pragmáticas e instrumentais facilmente aplicáveis).

Escolas e universidades passam por “reformas”, que na verdade são “liquidações” (LAVAL, 2019), a partir de todo um léxico empresarial que leva a educação escolarizada a atender imediatamente aos interesses individuais dos alunos, enfraquecendo-se as instituições como espaços do coletivo e do bem comum. Como comenta Bauman (2011, p. 171):

a presente versão liquefeita, fluida, dispersa, espalhada e desregulada da modernidade pode não implicar o divórcio e ruptura final da comunicação, mas anuncia o advento do capitalismo leve e flutuante, marcado pelo desengajamento e enfraquecimento dos laços.

Daí a importância de problematizarmos quando escolas e universidades se organizam a partir de um currículo montado ao gosto do cliente, entupido de informações rápidas, a partir de estratégias prazerosas para não entediar os alunos, cuja atenção migra a cada segundo. Essa perspectiva individualizante em que se compete consigo mesmo enfraquece os laços sociais e as instituições de ensino como espaços possíveis do coletivo e do bem comum.

Han (2015, p.16) alerta que cada época possui suas enfermidades quando trata da nossa sociedade do esgotamento por excesso, quando trata dessa “[...] violência da positividade que resulta da superprodução, do superdesempenho ou supercomunicação [...]”. Desse modo, se faz coincidir liberdade e autocoerção, quando se busca sempre bater as próprias metas nessa educação contemporânea das habilidades e das competências. Esse mundo multitasking muda profundamente a economia da atenção, fragmentando-a, dispersando-a em uma hiperconectividade. Assim, vivemos a partir de laços cada vez mais precários, em uma falta de narratividade nunca antes vivida, neste excesso e entupimento de informações, nesta tagarelice contemporânea em que todos têm opinião sobre tudo, nesta necessidade de entretenimento a todo momento. Sibilia (2016, p. 86) contribui dizendo que “[...] a opinião substituiu o pensamento, e a informação ocupa o lugar do saber e do conhecimento”.

Isso significa que, na contemporaneidade, o stultus (além de sua incapacidade de leitura de mundo e espaço) sofre também pela onda de “desengajamento” social, pelo abandono da preocupação com sua situação, o que lhe permite a falsa impressão de que, frente ao montante de informações disponíveis, não necessita do “outro”. Imagina-se em plena e constante “interpretação” assertiva, indiferente ao que possa ser dito ao contrário. Atinge, neste caminho, como menciona Foucault (2010), a ignorância da ignorância, a incapacidade de perceber-se em situação de equívoco, a exemplo do que vivemos com o absurdo do negacionismo da pandemia do novo coronavírus que assola nosso país, provocando mais de 600.000 mortes.

Seguindo as análises de Voegelin (2008), é possível dizer que o stultus, na contemporaneidade, acaba constituindo uma “segunda realidade” (conceito desenvolvido inicialmente por Musil). Para Voegelin (2008), a segunda realidade é uma pseudorrealidade, criada como alternativa pelo espírito doente (stultus). É uma realidade em que tal espírito tentará viver e expressar-se, independentemente dos desejos dos seus semelhantes, alheio aos problemas e às suas próprias necessidades (autonegação). É, em outras palavras, uma negação de tudo, inclusive de si mesmo. Uma negação da vida que pode nos levar a uma perspectiva de desumanização.

Como exemplo desse funcionamento de existência, Voegelin (2008) aponta Hitler, o qual, ao conduzir os alemães para uma segunda realidade (impossível em condições normais), constituiu todos os artifícios e potencialidades para desenvolver o genocídio. Para o autor, Hitler nunca fora um grande líder, mas sim, um estúpido criminoso, o exato oposto do spoudaios (homem maduro) de Aristóteles.

O que isso nos faz pensar sobre o presente em nosso país? Souza (2018, p. 37) diz que “[...] a realidade não é, essencialmente, uma questão cognitiva. Ela é como um novo bebê abandonado a cada momento à porta de nosso agir, ou instante que se sucede apesar do (instante) anterior”.

Em tempos em que a técnica substituiu a moral, como aponta Souza (2018), e em que líderes se orgulham de não ter argumento nenhum, expandem-se covardias, ressentimentos e preconceitos de todo tipo em proporção geométrica no culto ao barato. Nesse anestesiamento da relação consigo e com os demais, ignoram-se as violências de gênero, étnicas, de classe social. Anestesiamento que não mais se comove com a dor do outro, mesmo que sejam mais de 600.000 mortos, apenas no Brasil, com a pandemia do novo coronavírus. Nosso presidente responde: “e daí”6?

Desse modo, o sujeito do desempenho, esgotado de si mesmo, incapaz de confiar no outro e no mundo, “[...] desgasta-se correndo numa roda de hamster que gira cada vez mais rápida ao redor de si mesma. Também os novos meios de comunicação e as técnicas de comunicação estão destruindo cada vez mais a relação com o outro” (HAN, 2015, p. 91). Assim, podemos dizer que a linguagem da produção, do desempenho, do consumo e da concorrência adentra as instituições de ensino e passa a guiá-las linguisticamente como nunca antes havia acontecido (LAZZARATO, 2014; HAN, 2015, SIBILIA, 2016).

Pode-se pensar que o capitalismo contemporâneo vai operar com um “mercado da vida”, com “feiras de vidas” (LAZZARATO, 2014). Cada indivíduo consome a existência que puder comprar, e as empresas, a mídia, a indústria cultural, funcionarão como condutores das condutas.

Veja-se que, como mencionado aqui, o stultus é como uma esponja que absorve tudo que vem de fora, mas que não tem nenhuma consistência, estando sempre pronto para esvaziar-se, sem guardar nada, sem deixar marcas. É possível compreender que a história e seus ensinamentos não parecem ser atrativos para o espírito do stultus - até porque, como se viu, ele participa do processo de desengajamento -, e ele pode estar constituindo uma segunda realidade, onde o que importa é somente sua própria “felicidade” e sua própria constituição7.

É possível, ainda, que as características da contemporaneidade estejam constituindo um exército de stultus, questão essa que precisa ser enfrentada com urgência na constituição da formação humana, em todos os países. Isso, a partir das constatações e preocupações trazidas até aqui, impele a uma nova questão que se coloca frente ao tema da stultitia: como podemos enfrentá-la? Como? Como deve ser enfrentado esse “não cuidado” consigo mesmo, essa paralisia do pensamento?

A construção da memória: a potência da leitura e da escrita em escolas e universidades

Após analisar e conceituar a stultitia, cabe aqui, antes de adentrarmos na sequência do texto, trazer algumas colocações que podem contribuir para dar dignidade à pergunta deixada ao final da segunda seção.

Em primeiro lugar, uma colocação de Arendt (2008)8 sobre a existência atual de "tempos sombrios"9. Para Arendt (2008, p. 8), contudo, os tempos sombrios não são novos, "como não constituem uma raridade na história", mas "mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação".

Em um segundo momento, por sua vez, Agamben (2009, p. 64) diz que se vive na contemporaneidade e no escuro de nosso tempo: "contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo". Entretanto, assim como Arendt, Agamben (2009, p.65) não pensa somente nos tempos sombrios em si, mas também nas possibilidades de sair das situações que ofuscam nosso pensamento. Neste caminho, acredita ser necessário "manter fixo o olhar no escuro de nossa época" para perceber os pontos de iluminação.

Esses pontos luminosos são identificados ainda por outro autor: Georges Didi-Huberman. São as colocações dele que trazem alguns pequenos pontos de luz - ao falar da sobrevivência dos vaga-lumes -, lembrando que é na noite mais profunda que somos capazes de "captar o mínimo clarão… ainda que tênue" (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 30). Segundo Didi-Huberman, as palavras e as imagens podem tornar-se lampejos - palavras-lampejo, imagens-lampejo - e estes lampejos podem iluminar e apontar caminhos a percorrer. Ora, se Didi-Huberman estiver correto, frente a essa problematização, neste momento, parece bem possível perguntar: poderiam a leitura e a escrita nas escolas e universidades tornar-se um lampejo (escrita-lampejo) e contribuir para os indivíduos saírem da stultitia contemporânea? Seria a palavra um possível enfrentamento?

Inicialmente, é importante recordar que, se é da carta 52 de Sêneca que Foucault retira seu apontamento inicial para indicar a necessidade da superação da stultitia, logo adiante, na carta 84 (Do ler e escrever) de Sêneca, é possível perceber que este autor aponta uma saída para superar, continuamente, a condição de stultus: ela se dá pela leitura e escrita. Para Sêneca, leitura e escrita são fatores indispensáveis, visto que permitem evitar o contentamento consigo mesmo e perceber, a partir do que é deixado pelos outros, como é possível e necessário conduzir-se. Nesta carta, a escrita e a leitura aparecem como um recolher e um recolher-se, a partir dos quais vamos dispondo os recolhidos para transformá-los em força, em certa equipagem de si, para que passemos a ser outros.

Da mesma maneira, para Foucault (2010), a escrita parece ser uma possibilidade para escaparmos do estado de stultitia, mesmo que em brechas. Ora, diz ele: se "a stultitia é alguma coisa que a nada se fixa e que em nada se apraz" (Ibidem, p. 118), que não consegue manter certa memória, certa lembrança de processos históricos, é necessário sair dela por meio dos exercícios de si. Nesse sentido, Foucault buscará a noção do cuidado de si nos textos gregos e romanos na antiguidade, apontando como as práticas de si, por meio da escrita, referem-se a formas e modos de atividades dos sujeitos sobre si mesmos, como um movimento que rompe com um não pensar, sendo um exercício, uma experiência de si, uma constituição de determinados modos de vida.

Para Foucault, escrever está associado ao "exercício de pensamento" (FOUCAULT, 2014, p. 143), ou seja, "escribir también era importante en la cultura del cuidado de sí. Una de las características más importantes de este cuidado implicaba tomar notas sobre sí mismo". (FOUCAULT, 1990, p. 62).

Para aprofundar ainda mais essa questão, é mister recordar que, no texto “L’écriture de soi10, Foucault trabalha com dois exercícios de escrita: os cadernos de anotações - os hypomnêmata - e as correspondências. A escrita hypomnêmata11 constituía um arquivo de memória; nele eram registrados anotações, citações, fragmentos de obras, "exemplos e acções de que se tinha sido testemunha ou cujo relato se tinha lido, reflexões ou debates que se tinha ouvido ou que tivessem vindo à memória". (FOUCAULT, 2014, p. 148). Escrever, em tal prática, era um exercício de pensamento e constituía "uma memória de material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas; ofereciam-nas assim, qual tesouro acumulado, à releitura e à meditação ulterior". (FOUCAULT, 2014, p. 149). Em uma entrevista realizada em 1968, Foucault comenta sobre a escrita:

No fundo, não escrevo porque tenho alguma coisa na cabeça, não escrevo para demonstrar aquilo que já, em meu foro interior e para mim mesmo, demonstrei e analisei [...] Quando começo a escrever um estudo, um livro, qualquer coisa, não sei realmente aonde isso vai, nem em que vai dar, nem o que demonstrei. Só descubro o que tenho para demonstrar no próprio movimento da escrita, como se escrever fosse precisamente diagnosticar aquilo que eu queria dizer no exato momento em que comecei a escrever [...] esse diagnóstico quero fazê-lo a partir da escrita. (FOUCAULT, 2016, p. 49).

A escrita pode ser, então, para Foucault, uma ferramenta, uma armadura, uma equipagem de si, uma prática possível de subjetivação. E, retornando a Didi-Huberman, uma ferramenta que possibilita fixar alguns pontos luminosos no escuro de nosso tempo.

Foucault (2014, p. 146-147), ao falar sobre a escrita e a leitura, diz que “a escrita, como maneira de recolher a leitura feita e de se recolher nela, é um exercício racional que se opõe ao grande defeito da stultitia, possivelmente favorecida pela leitura interminável”. Partindo de sua própria experiência, demonstra que a escrita (enquanto memória) se torna uma forma de presentificação. Uma forma de escapar a um aprisionamento do movimento da vida em “minúsculos arrepios”, que possibilitam certo viver, certo fortalecimento de si, indo de encontro ao estado do stultus, que “é aquele que não quer, não quer a si mesmo, não quer o eu”. (FOUCAULT, 2010, p. 120).

Por isso, para o autor, a saída da stultitia, da dispersão e da não reflexividade sobre si não é uma situação que pode ser resolvida sozinha, mas que necessita da figura do outro, do mestre. É preciso, menciona o autor (recuperando Sêneca), que alguém estenda a mão ao stultus e o puxe para fora deste estado em que se encontra. Ou seja, o stultus, por si só, tem muita dificuldade em encontrar o caminho de uma relação consigo com o menor nível de escravidão. Mas como é possível que alguém consiga chegar até o stultus e lhe estender a mão? “Há que constituir-se como sujeito e é nisso que o outro deve intervir” (FOUCAULT, 2010, p. 117). A leitura e a escrita, nesse sentido, também se tornam importantíssimas. É pela escrita, ao expor o pensamento e a memória no texto, que o indivíduo poderá expor a si mesmo e aos demais e problematizar os valores valorados, permitindo que a figura do outro entre em conversação.

Então, se o stultus é alguém incapaz de fazer uma leitura adequada do mundo - analisando e agindo a partir de um pequeno fragmento do tempo e do espaço e formando (em muitos casos) uma segunda realidade -, a escrita apresenta-se como técnica de si capaz de proporcionar a exposição e a consequente problematização de sua leitura de mundo. Ao analisarem-se outras escritas, podem-se observar outras leituras de mundo, compará-las e situá-las em seu tempo e espaço; a escrita coloca-se como uma “pedra de toque”, onde a stultitia encontra uma confrontação. Assim, os marcos espaço-temporais podem ser analisados e projetados, o que nos permite pensar na potência da leitura e da escrita na formação dos indivíduos em escolas e universidades.

Quando tomamos a leitura e a escrita como possibilidade de parada para olhar para si e para os demais, entendemos que “[...] palavras podem se transformar em abismo” (SOUSA, 2018, p. 56), auxiliando-nos a manter a perplexidade com o mundo e comovendo-nos com a dor do outro. Por isso que a perspectiva de Sêneca do recolhimento por meio da leitura e da escrita pode ser entendida como formação, pois estaria atravessada na produção de nossos modos de existência. Assim, a leitura e a escrita na escola e na universidade não seriam mercadorias a serem consumidas, para as quais temos que ter sempre uma opinião pronta para emitir e postar em redes sociais, mas possibilidades de abertura para si e para o outro - muito mais uma escuta atenta a si e aos demais, e não uma tagarelice estéril desconectada da vida.

Por isso, é necessário que sejam uma leitura e uma escrita que ataquem nosso conformismo, para que não nos contentemos com nós mesmos; que nos interroguem sobre nossos modos de vida; que façam com que nos arrisquemos em uma ruminação mais lenta, multiplicando as perspectivas para aprendermos a viver e a morrer. Ou seja, trata-se de concentrarmos o pensamento na própria ação, na constituição de um corpo.

Considerações Finais

Neste artigo, recuperamos a figura do stultus e seu perigo na contemporaneidade, quando a atenção se encontra fragmentada e dispersa, justamente pelo volume e pelo excesso de informações. A passividade, então, está em não conseguir parar para olhar de forma mais atenta e problematizadora para si, para os demais, para o mundo.

Podemos pensar esse sintoma mundial de adesão massiva a elementos de extrema direita que grande parte das nações vem presenciando na atualidade. Necessitamos pensar o quanto o outro, nessa perspectiva, é narrado como a fonte de todo mal e todo tipo de preconceito, discriminação e covardia na aniquilação do outro ganha força. A partir disso, podemos pensar, ainda, na potência formativa de instituições como escolas e universidades para termos outra lidação com toda essa velocidade e volume de informações, para que as questões técnicas não substituam o lugar importante das questões morais e para que o excesso de opinião e espetacularização ainda deixe algum espaço para o exercício do pensamento e do bem comum.

E, como uma micropossibilidade desse exercício para sermos arrancados da stultitia, há a figura do mestre, que nos arranca de nós mesmos e nos dá tempo para ler e escrever, nos dá tempo para escutar e narrar a vida, nos dá tempo. Porém, esse não é um exercício no sentido de tornarmo-nos um objeto para o discurso verdadeiro, mas de transformarmos essa verdade em um ethos.

Vale recordar, neste movimento final - para compreender por que se indica a leitura e a escrita como ferramentas -, a relação que Pasolini faz entre os vaga-lumes e as palavras, ao escrever uma carta em 1941. Nessa carta, Pasolini diz ver pequenos pontos a dançar no escuro: são palavras “de um jovem em plena treva, buscando seu caminho através da selva obscura e dos lampejos moventes do desejo” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 18). Alguns anos depois, Pasolini menciona o aparecimento desses pequenos lampejos e volta a falar dos vaga-lumes, mas agora com seu desaparecimento: “os vaga-lumes desapareceram, esses sinais humanos da inocência aniquilados pela noite - ou pela luz feroz dos projetores - do fascismo triunfante” (Ibidem, p. 26).

Na primeira observação, Pasolini expõe a grandiosidade do uso das palavras como potencializadoras dos desejos; já na última, Pasolini referia-se ao avanço da onda de fascismo que assolava a Itália e que, aos poucos, silenciava os jovens. Em sua esperança, Pasolini acreditava que, após vencer o fascismo de Mussolini nos anos 1930 e 1940, se viveria em outros tempos. No entanto, como nos lembra Didi-Huberman (2011, p. 26), “sobre as ruínas desse fascismo” estava atrelado o próprio fascismo, um novo terror ainda mais profundo e devastador que se apresentava aos olhos de Pasolini: o domínio e a manipulação, o uso de potentes projetores de luz que impossibilita ver os vagalumes, ou seja, que impossibilita o pensamento, paralisa o pensar:

Não foi na noite que os vaga-lumes desapareceram, com efeito. Quando a noite é mais profunda, somos capazes de captar o mínimo clarão, e é a própria expiração da luz que nos é ainda mais visível em seu rastro, ainda que tênue. Não, os vaga-lumes desapareceram na ofuscante claridade dos “ferozes” projetores: projetores dos mirantes, dos shows políticos, dos estádios de futebol, dos palcos de televisão. (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 31).

Tal problematização leva-nos a compreender que o processo de negação de si, a negação do cuidado de si pela condição de stultitia, continua operando no presente, agora com outras características, e produzindo outras violências. Ao mesmo tempo, como aponta Pasolini (citado por Didi-Huberman), é mister compreender que o verdadeiro fascismo “é aquele que tem por alvo os valores, as almas, as linguagens, os gestos, os corpos do povo” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 29) . Ou seja, é preciso tomar cuidado para que a própria escrita não seja dominada pelo fascismo. É preciso trabalhá-la, cultivá-la, utilizá-la como uma ferramenta de si, uma técnica de si capaz de transformar-se em múltiplos vagalumes, luzes, por assim dizer, que se tornem referências para o escape da stultitia, esta, tão disseminada e potencializada pelos efeitos das transformações da contemporaneidade.

Referências

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1Conceito criado pelo Grupo de Pesquisa “Carcarás: Grupo de Estudo e Pesquisa entre Educação Filosófica, Escrita e Leitura” (PPGEDU/UNISINOS).

2Bons exemplos práticos são as “ondas” de fake news produzidas diariamente e os ataques sofridos por pessoas públicas pelos haters no ambiente virtual.

3Lembrando que, na sociedade ateniense da época, apenas uma pequena porcentagem de indivíduos era considerada “cidadã”.

4Aqui seria interessante remeter a Deleuze (1988, p. 54), quando fala sobre a possibilidade do aprender como fuga de uma imagem dogmática do pensamento, como uma imagem da representação, “a aprendizagem não se faz na relação da representação com a ação (como reprodução do mesmo), mas na relação do signo com a resposta (como encontro com o Outro). […] Eis por que é tão difícil dizer como alguém aprende: há uma familiaridade prática, inata ou adquirida, com os signos, que faz de toda a educação alguma coisa amorosa, mas também mortal. […] Aprender é constituir este espaço do encontro com os signos, espaço em que os pontos relevantes se retomam uns nos outros e em que a repetição se forma ao mesmo tempo em que se disfarça".

5Mutáveis e maleáveis, por exemplo, as relações convivem com a desconfiança da ameaça do movimento individual em contraposição à concorrência por espaço e trabalho (BAUMAN, 2007).

6Em entrevista na porta do Palácio da Alvorada, no dia 28 de abril de 2020, o presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, comenta “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”. Neste dia o Brasil registrava um recorde no número de mortes diárias, com 474 óbitos, ultrapassando a China no número total de óbitos pelo coronavírus (CHAIB; CARVALHO, 2020).

7Um exemplo de que esse movimento toma formas concretas é o que acontece nas redes virtuais, onde é possível viver sem preocupação, onde se ataca, se desestabiliza e se aniquila o outro.

8Deixada na apresentação de seus ensaios sobre Os homens em tempos sombrios.

9Pegando emprestada a expressão de Brecht.

10Texto publicado em fevereiro de 1983 na Revue Corps Écrit, intitulado “L´écriture de soi” (A escrita de si). Nesse texto, a stultitia é definida como uma agitação da mente, uma instabilidade da atenção, referindo-se ao que Sêneca diz (carta 02 a Lucilius) “se o escrever muito esgota (Sêneca pensa aqui no trabalho do estilo), o excesso de leitura dispersa”.

11"Os hypomnemata não deveriam ser encarados como um simples auxiliar de memória, que poderiam consultar-se de vez em quando, se a ocasião se oferecesse. Não são destinados a substituir-se à recordação porventura desvanecida. Antes constituem um material e um enquadramento para exercícios a efectuar frequentemente: ler, reler, meditar, entreter-se a sós ou com outros, etc.". (FOUCAULT, 2014. p. 148).

Recebido: 21 de Julho de 2021; Aceito: 20 de Outubro de 2021

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