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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.75 Uberlândia set./dez 2021  Epub 16-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n75a2021-59480 

Artigos

Vir a ser cidadão: Educação, Política e Psicologia do Desenvolvimento

Becoming a citizen: Education, Politics and Developmental Psychology

Devenir citoyen: Éducation, Politique et Psychologie du développement

Diandra Dal Sent Machado* 
lattes: 0105021249830498; http://orcid.org/0000-0003-0421-5124

*Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: diandra_mac@hotmail.com


Resumo

Considerando a tese honnethiana de que, hodiernamente, há um desenlace entre Educação e Política, e afirmando um forte nexo entre essas áreas no pensamento de Jean-Jacques Rousseau, neste trabalho, apresentamos alguns aspectos de como, para este, é possível que o ser humano, como membro da espécie, venha a ser cidadão. Em seguida, contando com a crítica de Nussbaum sobre como muitas propostas educacionais não explicitam uma psicologia do desenvolvimento, aventamos uma vinculação entre Educação, Política e ideias psicológicas em Rousseau. Adiante, trazemos elementos da pesquisa psicogenética de Jean Piaget, propondo que esse tipo de pesquisa permite um fortalecimento do nexo entre as áreas da Educação, Política e, agora, Psicologia do Desenvolvimento, contribuindo para a discussão ainda atual acerca do vir a ser cidadão.

Palavras-chave: Cidadão; Desenvolvimento; Formação; Rousseau; Piaget

Abstract

Considering the Honnethian thesis that there is today a disconnexion between Education and Politics, and asserting a strong link between these fields in the thought of Jean-Jacques Rousseau, in this work we present some aspects of how, for him, it is possible for a human, as a member of the species, to become a citizen. Then, relying on Nussbaum's critique of the fact that many educational proposals do not make developmental psychology explicit, we suggest a link between Education, Politics and psychological ideas in Rousseau. Ahead, we bring elements of Jean Piaget's psychogenetic research, proposing that this type of research allows a strengthening of the nexus between the fields of Education, Politics and, now, Developmental Psychology, contributing to the still current discussion about becoming a citizen.

Keywords: Citizen; Development; Formation; Rousseau; Piaget

Résumé

Considérant la thèse honnéthienne selon laquelle, aujourd'hui, il y a une déconnexion entre éducation et politique, et affirmant un lien fort entre ces domaines dans la pensée de Jean-Jacques Rousseau, nous présentons dans cette étude certains aspects de la façon dont, pour lui, il est possible pour l’être humain, en tant que membre de l'espèce, devenir citoyen. Puis, en nous appuyant sur la critique de Nussbaum sur le nombre de propositions éducatives qui ne rendrent pas explicite une psychologie du développement, nous avons suggéré un lien entre l'éducation, la politique et les idées psychologiques chez Rousseau. En avant, nous apportons des éléments de la recherche psychogénétique de Jean Piaget, en proposant que ce type de recherche permette un renforcement du lien entre les domaines de l'éducation, de la politique et, maintenant, de la psychologie du développement, contribuant à la discussion encore actuelle sur le devenir citoyen.

Mots-clés: Citoyen; Développement; Formation; Rousseau; Piaget

Introdução

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) é um clássico da Filosofia Política e da Educação. Ao compreendermos o clássico como atual, embora não recente (CALVINO, 1993), com Cassirer (1999, p. 39) entendemos que “[a]s questões levantadas por Rousseau em seu século não são, ainda hoje, de modo algum obsoletas; também para nós elas não estão simplesmente ‘resolvidas’.”. Há questões que não se encerram com o passar do tempo e com o acúmulo de discussões que lhes acompanham. São questões que precisam ser tomadas em mãos por cada nova geração. Entre as tantas questões que poderiam compor uma lista do tipo, e dentro das elaborações realizadas por Rousseau no que diz respeito à vinculação entre Política e Educação, destacamos: Como cada ser humano, como membro da espécie e vivendo em sociedade, pode vir a ser cidadão?

Se essa questão não se esgota nas discussões já empreendidas e se faz importante que cada geração a tome em mãos, ao mesmo tempo e como auxílio para esse movimento de tomar em mãos, cabe olhar para ela contando também com o acúmulo de discussões que a acompanha. Entendendo que as elaborações de Rousseau acerca do tema podem auxiliar no movimento de tomar em mãos a ser realizado pelas gerações hodiernas, neste artigo, apresentamos aspectos de sua contribuição sobre a questão da constituição do ser humano como cidadão. A partir de Honneth (2014), buscamos chamar a atenção para o enlace entre Política e Educação existente em Rousseau. Ao fazermos isso, e com algum cuidado quanto ao uso do termo, mobilizamos certa dimensão psicológica do pensamento de Rousseau. Considerando essa dimensão psicológica de seu pensamento, e com o intuito de fortalecer o enlace sublinhado por Honneth entre Política e Educação, incluímos nessa discussão a participação do campo da Psicologia do Desenvolvimento, contando com elementos da proposta de Jean Piaget (1896-1980). Nosso objetivo geral é o de olhar para a questão da constituição do ser humano como cidadão a partir de algumas imbricações entre Educação, Política e Psicologia do Desenvolvimento, utilizando um arranjo teórico que mobiliza aspectos dos pensamentos de Rousseau e de Piaget.

Educação e Política

Em Educação e esfera pública democrática: um capítulo negligenciado da filosofia política (2014), Honneth discute a relação entre Educação e organização democrática em um governo republicano, ou ainda, a relação entre formação e democracia. Para fazer essa discussão, o autor remonta a alguns representantes da tradição filosófica ocidental e recupera parte de seus pensamentos.

É essa vinculação extremamente estreita e interna que fez com que, no discurso político-filosófico da era moderna, quase todos os teóricos da democracia famosos tenham produzido uma contribuição sistemática para a teoria da educação; iniciando por Rousseau e Kant, passando por Schleiermacher (2000) e chegando até Emile Durkheim (1973) e John Dewey (1993), sempre houve grandes e importantes pensadores para os quais era natural dedicar uma monografia própria ao tema da educação pública. A pedagogia, entendida como a teoria dos critérios e métodos de uma instrução adequada das gerações futuras, era compreendida como irmã gêmea da teoria da democracia, porque sem orientações equilibradas sobre como se devem despertar na criança, ao mesmo tempo, a capacidade para a cooperação e a iniciativa moral própria, não parecia possível se explicar o que significaria falar da cooperação conjunta na autodeterminação democrática. A ideia do “bom cidadão” não era uma fórmula vazia ou peça decorativa de discursos políticos festivos, e sim um desafio prático, e era preciso se mostrar à altura dele através do esboço teórico e até do teste experimental de formas escolares e métodos de ensino apropriados. (HONNETH, 2014, p. 546)

Recorrendo aos modos como essa parcela da tradição lidou com o tema das relações entre Educação e Política, Honneth (2014) apresenta ambas como espécie de faces de um mesmo fenômeno, como instâncias interdependentes que permitem uma constituição e manutenção da outra. De acordo com autor Honneth (2014), para Kant,

[...] uma boa educação e uma ordem estatal republicana dependem completamente uma da outra, porque a boa educação produz concretamente, por meio de uma instrução geral e pública, as capacitações culturais e morais com cuja ajuda a ordem estatal republicana pode existir e prosperar [...] (HONNETH, 2014, p. 546).

Ao falar dessa interdependência entre “a arte do governo” e “a arte da educação” em Kant, Honneth (2014, p. 545) destaca que, para aquele, isso “[...] resultava da consideração de que ambas são instituições criadas pela sociedade que têm de cumprir a mesma tarefa em diferentes âmbitos da história da espécie e do indivíduo, na filogênese e na ontogênese.”. Desse modo, podemos entender que essa tarefa não se esgota enquanto seguirem nascendo seres humanos. Entretanto, Honneth (2014, p. 547) identifica que, sobretudo a partir do século XX, “[...] a vinculação de democracia e concepção educacional, de filosofia política e pedagogia está rompida.”.1 O autor ainda pondera que “[...] há repetidamente iniciativas de refletir sobre a necessidade de uma educação democrática, mas elas geralmente vêm de uma ciência educacional que foi deixada sozinha, e não mais no centro da própria filosofia política.” (HONNETH, 2014, p. 547). Mais que isso, para Honneth (2014, p. 547), “[q]ualquer noção de que uma democracia vital precisa primeiro gerar, através de processos de formação geral, os pressupostos de sua própria subsistência cultural e moral foi entrementes perdida pela filosofia política.”. Ainda chamando atenção para o enlace existente entre as teorias políticas e educacionais em momentos anteriores da História da Filosofia, Honneth (2014) observa que,

[...] como já no Emílio de Rousseau, na Pedagogia de Kant a ideia do “bom cidadão” (ibid., p. 760) constitui o elo [...] entre a teoria da educação e a do governo, entre concepção de formação e filosofia política: sem uma, a outra não seria possível, porque ambas explicam pressupostos de uma coletividade democrática que não poderiam existir independentemente um do outro. (HONNETH, 2014, p. 546)

Emílio ou Da Educação foi publicado em 1762, mesmo ano de publicação de Do Contrato Social ou Princípios do direito político. Dizer que o Contrato trata de Política e que o Emílio trata de Educação não é de todo equivocado. Entretanto, essa leitura impõe certas limitações interpretativas. De outra parte, essas obras têm sua interpretação ampliada quando se considera a vinculação fundamental entre Política e Educação presente no pensamento de Rousseau, e que pode ser encontrada em ambas as obras, ainda que com acentos distintos em cada uma delas. Conforme Assmann (1998, p. 33), “[...] não há uma primazia de Émile sobre o Contrato Social, nem vice-versa. Separar as duas análises equivaleria a perder o chão sobre o qual foram produzidas.”; chão em que os projetos político e educacional estão intimamente enraizados e se alimentam conjuntamente.

O século XVIII, de acordo com Boto (2017, p. 178), é marcado pelo que se pode chamar de “[...] uma concepção otimista de mundo [...]”. A autora também afirma que nesse período há uma intensificação de um pensamento pedagógico e de uma preocupação com o que seria uma atitude educativa, e que, sobretudo entre os filósofos e pensadores franceses, isso está ligado ao entendimento de que o processo educativo promove a constituição do ser humano como tal, ganhando força a ideia de que o ser humano pode ser “pedagogicamente reformado” (BOTO, 1996, 21). Considerando essa espécie de espírito do tempo, Boto (2017) sublinha certa distinção do pensamento de Rousseau em relação ao pensamento de outros iluministas, particularmente, no que diz respeito ao tema dos progressos da razão e da civilização. Sobre os rumos da civilização e sua solução para o que identificou como danoso nesses rumos, Boto (2017) ainda observa que, para Rousseau,

[...] a civilização, tal como ela caminhara, não aprimorou, mas corrompeu os costumes. Isso porque - dirá Rousseau - o estado civil que retirou o homem do mundo da natureza pautara-se exclusivamente na defesa do direito irrestrito de propriedade. Cumpria, portanto, estabelecer um novo contrato social, que viesse a refundar a vida civil. O novo pacto asseguraria direitos e seria ancorado na ideia de virtude. Os escritos pedagógicos de Rousseau são fundamentais para entendermos o que o autor compreende por natureza humana. A construção do Emílio toma por hipótese a convicção de que a infância recupera características que teriam sido aquelas do homem no estado natural. O desenvolvimento do menino Emílio tomará como critério a formação ética de um sujeito capaz de se tornar o cidadão da sociedade do novo contrato. Em toda a obra rousseauniana, política e pedagogia caminham juntas. (BOTO, 2017, p. 185)

Considerando os pontos apresentados no trecho supracitado, Boto (2017) salienta que Rousseau tanto apresenta uma forte crítica ao processo civilizador moderno, quanto nutre uma esperança na regeneração da vida em sociedade. Em Rousseau, há uma espécie de conciliação entre crítica ao processo civilizador moderno e possibilidade de regeneração da vida social. De acordo com Machado (2020),

[s]obretudo no Segundo Discurso, Rousseau apresenta uma posição em que acentua o caráter degradante da passagem da vida no estado de natureza para a vida no estado civil. Podemos dizer que há ali uma espécie de diagnóstico dos modos de vida da sociedade em que vivia. Esse diagnóstico se faz presente sobretudo no Segundo Discurso, mas também em algumas passagens do Contrato e do Emílio. Todavia, no Contrato e no Emílio, esse diagnóstico é acompanhado por uma espécie de prognóstico amarrado à via educativa [...]. (MACHADO, 2020, p. 140)

Vislumbrando a possibilidade de regeneração da vida social por meio da Educação, no Emílio, Rousseau se dedica ao tema da formação do ser humano. Rousseau aposta na regeneração da vida social por meio da atividade educativa do ser humano como indivíduo e como cidadão. Em linhas gerais, no Emílio, Rousseau apresenta sua concepção acerca do que é e do que pode vir a ser o ser humano. Considerando o ser humano como é e como pode vir a ser, sua proposta educacional é apresentada como uma proposta de formação humana que pode ser lida como uma proposta de formação total. Acerca disso, destacamos a defesa de Francisco (2010) de que não há em Rousseau uma sobreposição da educação doméstica à educação pública, isto é, não há uma sobreposição da educação do indivíduo à educação do cidadão. A proposta rousseauniana é a de que Emílio - seu sujeito ideal e aluno modelo; categoria operatória (BOTO, 2017) - aprenda um ofício, mas que sua formação não se restrinja a isso. Saber um ofício é componente importante dessa formação, mas não é toda a formação. É preciso que Emílio tanto aprenda um ofício quanto aprenda a ser cidadão. Educar para a cidadania é uma das grandes preocupações de Rousseau, sem abrir mão, para isso, de educar o indivíduo, e de educá-lo também para o exercício de algum ofício.

Conforme menciona Contardo Calligaris, em seu texto de 08 de julho de 2020 na Folha de São Paulo, “[...] desde a Revolução Francesa, ‘cidadão’ é a mais nobre maneira de os membros de uma comunidade se chamarem uns aos outros.”. Mesmo antes da nomeada revolução, a partir de 1750, Rousseau passou a assinar seus textos como “J.-J. Rousseau, Cidadão de Genebra”, em uma espécie de defesa da cidadania como um valor pelo qual vale a pena investir esforços individuais e coletivos. A ideia de cidadania foi eleita como referência pela modernidade (BOTO, 1996). Conforme o Dicionário eletrônicoHouaiss da língua portuguesa (2009), cidadão é todo “[...] indivíduo que, como membro de um Estado, usufrui de direitos civis e políticos por este garantidos e desempenha os deveres que, nesta condição, lhe são atribuídos”. Pode-se dizer ainda que o cidadão moderno é agente social e político que tem sua ação reconhecida como realizadora de dimensões da vida comum, e ao qual se atribui responsabilidades, dispondo também de liberdades. Rousseau,

[c]omo um autor do século XVIII, Rousseau tem diante de si a tarefa de pensar o homem como um ser livre para conduzir sua ação, tomar suas decisões e ser responsabilizado por elas. Do ponto de vista filosófico, isso significa poder justificar a tese de que a vontade humana é capaz de se determinar racional e livremente, independente de forças externas e estranhas a ela. (DALBOSCO, 2007, p. 138)

É no Emílio que Rousseau apresenta a narrativa do que podemos chamar de um vir a ser do cidadão dentro de sua proposta formativa. O vir a ser do cidadão se dá pela formação do ser humano como cidadão. Considerando a passagem da vida no estado de natureza para a vida no estado civil, há uma transformação do ser humano, passando a ter uma existência parcial, isto é, uma existência como parte de um todo, que é o todo social (ROUSSEAU, [1762]1973). É lidando com esse ponto que Barros (s.d.) diz:

Não é possível, ensina Rousseau, conservar em sociedade a mesma condição do estado natural. A desnaturação gesta um novo homem, que passa aviver comos outros e, nessa nova condição, sofrerá mudanças, virtualmente possíveis em seu estado natural. Serão benéficas se favorecerem a conservação da integridade de sua natureza. Na base dessas mudanças está a necessidade primária de criação de um artifício, o espírito social, assentado sobre uma condição existencial básica. Que condição é essa? Que idéia a traduz? É a condição de homem ao mesmo tempo “integrado” (súdito) e “integrante” (cidadão). A idéia que a traduz? A deser parte. (BARROS, s.d., s.p.)

O que significa ser parte? O exame dessa idéia implica, logicamente, a análise do processo em que se dá a socialização, nesta incluídas a fundação da sociedade política e a convivência dos seres humanos que a integram. (BARROS, s.d., s.p.)

Complementando o que se apresenta no trecho supracitado, e reforçando o papel da formação no processo que possibilita que o ser humano venha a ser cidadão, Barros (s.d.) ainda afirma:

Mas Rousseau julga que, para o êxito desse procedimento é preciso algo mais do que leis escritas; é preciso gestar no indivíduo o espírito social e, com ele, um sentimento único: o de ser parte. Ser social, então, vai ser mais do que fazer parte ou tomar parte: será não algo passageiro, mas um estado de alma permanente, pelo qual o cidadão mostra não apenas conhecer o que é o bem, mas também amá-lo. (BARROS, s.d., s.p.)

Ser capaz de fazer algo considerando o dever não se dá simplesmente para o ser humano. É preciso, para tanto, um processo formativo capaz de engendrar essa transformação do “[...] ter de em querer e em dever.” (CASSIRER, 1999, p. 64). O processo formativo é necessário para sustentar esse tipo de fazer, uma vez que, “[a] lei per se, sem os sentimentos apropriados para sustentá-la, nada pode fazer.” (DENT, 1996, p. 81). Cabe considerar que agir autonomamente não é agir de acordo com a liberdade natural, mas com a liberdade convencional, liberdade que é específica ao estado civil e à vida compartilhada com outros cidadãos que também existem como parte (ROUSSEAU, [1762]1973). De acordo com Dalbosco (2007), a liberdade convencional está ligada à ideia

[...] de liberdade “bem regrada” (la liberté bien réglée) que é ponto de partida da indispensável consciência que cada cidadão deve ter de seus limites, isto é, da consciência sobre até onde vão seus direitos e onde estão seus deveres, consciência essa que é indispensável para viabilizar uma boa sociabilidade. (DALBOSCO, 2007, p. 140)

Esse modo de agir encontra sua orientação na consciência da vontade geral. Formar um cidadão capaz de agir orientado pela consciência da vontade geral, ou ainda, pela “consciência da liberdade” (CASSIRER, 1999, p. 103) não é algo que se dê sem que existam esforços empreendidos nessa direção, tampouco é algo que se dê abruptamente ou de que se tenha qualquer garantia de efetividade. Em linhas gerais, para o ser humano, o vir a ser cidadão depende da “[...] subordinação do interesse particular ao interesse público, alcançada em primeiro lugar por meio da formação de costumes sadios.” (BARROS, s.d., s.p.). É da formação de costumes sadios que depende a regeneração da vida social; uma regeneração que depende da constituição do indivíduo como um “eu” que, vivendo em sociedade, não tem como existir de modo separado de um “nós”.

A partir daqui desvela-se com força total o compromisso da teoria formativa de Rousseau com a sua teoria política e a natureza desse compromisso. Porquanto, [...] para constituir e manter esse liame Rousseau reclama, na sociedade legítima, algo mais do que a mera adesão às leis. Rousseau reclama uma autêntica conversão interior, que qualifica aquele sentimento deser parte. À verdadeira ordem social corresponde a ordem no interior do homem. A melhor adesão à disciplina da lei comum é espontânea. Mas para chegar a essa espontaneidade é precisoformar no homem o cidadão,[...] E essa ênfase na adesão espontânea à lei pelo controle da vontade, constituída em sua substância pela educação, indica a matriz ética da política de Rousseau.

Ordem política, ordem social, ordem moral. Tudo sustentado, na sociedade legítima, pela harmônica coordenação entre o “eu” e o “nós” [...]. (BARROS, s.d., s.p.).

Educação e Psicologia do Desenvolvimento

É “[...] quase um consenso entre os historiadores da psicologia o estabelecimento do século XIX como marco institucional do surgimento dessa disciplina.” (FERREIRA apud JACÓ-VILELA; FERREIRA; PORTUGAL, 2007, p. 13). Mas uma área não surge ex abrupto, de modo que, antes disso, há o que se convencionou denominar como uma história das ideias psicológicas (PENNA, 1991). Conforme Penna (1991), Rousseau é um dos autores que compõem essa história das ideias psicológicas. Nas palavras de Gusdorf (1973, p. 205, tradução nossa)2, “[h]á no Emílio uma psicogênese das qualidades sensíveis; Rousseau mostra como elas oferecem, cada uma por sua parte, uma perspectiva de desenvolvimento para uma inteligência procedendo da sensibilidade ao julgamento.”.

Circunscrevendo essa psicogênese, Rousseau ([1762]2004, p. 89) afirma que, entre todas as faculdades do ser humano, “[...] a razão [...] é a que se desenvolve com mais dificuldade e mais tardiamente [...]”. Contando com uma razão plenamente desenvolvida, como razão intelectual (ROUSSEAU, [1762]2004), o autor ainda apresenta um movimento de elaboração do sujeito como ser de moralidade, como alguém capaz de se orientar pela consciência da vontade geral. O desenvolvimento da razão e da moralidade no sujeito sustentam o vir a ser cidadão, e consiste em uma elaboração por parte do sujeito ao se relacionar com o entorno, incluído nesse entorno a figura do preceptor de Emílio. De tal forma,

[...] para Rousseau, ser cidadão não é algo dado como pronto, mas um modo do ser humano viver em sociedade que precisa ser desenvolvido [...]. O ser humano se torna cidadão. Melhor dizendo: ele pode vir a se tornar cidadão. Existir como cidadão demanda certas capacidades por parte de cada ser humano. Em Rousseau, pensar o vir a ser do cidadão moderno é também pensar o vir a ser do sujeito como ser racional e moral [...]. (MACHADO, 2020, p. 51)

O desenvolvimento do sujeito como ser racional e moral é a própria formação do sujeito como ser racional e moral. Em Rousseau, desenvolvimento e formação estão integrados. A formação inicia com o nascimento de Emílio, sob esta orientação geral: “Uma criança suportará mudanças que um homem não suportaria; as fibras da primeira, moles e flexíveis, tomam facilmente a forma que lhes damos; as do homem, mais duras, só com violência mudam a forma que receberam.” (ROUSSEAU, [1762]2004, p. 24). O autor destaca o caráter maleável da constituição da criança, o qual reafirma e demarca extensão quando diz:

Nascemos capazes de aprender, mas sem nada saber e nada conhecendo. Acorrentada a órgãos imperfeitos e semiformados, a alma não tem nem mesmo o sentimento de sua própria existência. Os movimentos, os gritos da criança que acaba de nascer são efeitos puramente mecânicos, carentes de conhecimento e de vontade. (ROUSSEAU, [1762]2004, p. 46)

A capacidade para aprender é posta por Rousseau como característica fundamental de cada ser humano como membro da espécie, sendo-lhe próprio nascer sem nada conhecer e sem vontade, ou seja, sem estar dado de modo pronto, como ser racional e moral. Recorrendo a essa capacidade do ser humano para aprender, o autor garante espaço para a atividade educativa no desenvolvimento da razão e da moralidade. Pela via da reflexão filosófica e compondo parte do que se convencionou, mais tarde, denominar como uma história das ideias psicológicas, ao narrar o desenvolvimento de seu pupilo desde o nascimento até a vida adulta, Rousseau apresenta o que pode ser compreendido em termos de uma psicogênese intimamente atrelada à atividade educativa.

Aproximadamente dois séculos e meio depois de Rousseau, Nussbaum (2015, p. 30) chama a atenção para o ponto de que, “[...] como muitas propostas educacionais não explicitam uma psicologia do desenvolvimento humano, não fica claro quais problemas precisam ser solucionados ou de que recursos dispomos para solucioná-los.”.3 Rousseau não integra o grupo a que Nussbaum direciona sua crítica, na medida em que, embora não haja em sua obra uma Psicologia do Desenvolvimento propriamente dita, firmada no terreno da Psicologia como disciplina científica, ele apresenta um significativo investimento na discussão, colocando-a junto da problemática acerca de como o ser humano pode vir a ser cidadão.

No domínio da Psicologia, há diversas propostas para como ocorre o desenvolvimento do ser humano. A proposta de Jean Piaget é uma delas, conferindo-lhe um lugar como clássico da área, em especial, da Psicologia do Desenvolvimento, que, em linhas gerais, “[...] se caracteriza pelo interesse em mudanças de comportamento que ocorrem durante um longo período, enquanto outras áreas da Psicologia focalizam mudanças de comportamento geralmente a curto prazo.” (BIAGGIO, 2015, p. 21). Ao olhar para essas mudanças em longos períodos, a Psicologia do Desenvolvimento atenta para estágios e sequências do desenvolvimento (BIAGGIO, 2015). Em consonância com essa caracterização e enfoque, de acordo com La Taille (2009),

fala-se em desenvolvimento cada vez que se observa que determinada dimensão psíquica evolui, passando por etapas identificáveis. Tome o exemplo da inteligência: ela está presente desde os primeiros dias de vida, mas, longe de estar pronta e acabada no recém-nascido, ela paulatinamente evolui, atingindo novos patamares de organização que podem ser descritos com a ajuda da Lógica (as estruturas cognitivas). Ora, a mesma coisa ocorre com o juízo moral. (LA TAILLE, 2009, p. 227)

Piaget empreendeu investigações específicas acerca do desenvolvimento da razão e da moralidade no sujeito, ou ainda, do desenvolvimento das estruturas cognitivas e do juízo moral.4 Para isso, fez uso do método clínico, com o qual buscou superar limitações do método dos testes e do método da observação pura (PIAGET, [1926]2005), e “[...] alcançar as principais vantagens da experimentação.” (PIAGET, [1926]2005, p. 14). Figueiredo e Santi (2018) contam um pouco sobre esse modo de fazer pesquisa em Psicologia ao dizerem que Piaget

[...] observa o comportamento de crianças e pede a elas que descrevam o que estão fazendo; pede, também, que justifiquem o que e como estão fazendo, propõe a elas algumas tarefas para [realizarem], sempre as observando e conversando com elas. (FIGUEIREDO; SANTI, 2018, p. 82)

Aplicando o método clínico, Piaget obteve dados que auxiliaram na elaboração de uma explicação para como, do ponto de vista do desenvolvimento individual (PIAGET; INHELDER [1966] 2021), mesmo o conhecimento mais abstrato está ligado às ações mais elementares do ser humano e, em última instância, à organização biológica (PIAGET, [1970]1978).5 Dito de outro modo, a pesquisa psicogenética permitiu investigar o processo de desenvolvimento no âmbito do indivíduo e subsidiou a criação de um construto explicativo para o desenvolvimento, mais especificamente, as teorias da equilibração e da abstração reflexionante, que constituem parte importante da Epistemologia Genética elaborada por Piaget, como uma proposta construtivista em Epistemologia. Ao definir o que é uma proposta construtivista em Epistemologia, Delval (1998, p. 18) pontua que “[u]ma posição construtivista pode se basear em uma teoria psicológica, que explique como se constrói o conhecimento no sujeito individual.”. Esse é o caso de Piaget.

No que diz respeito ao desenvolvimento individual, “[a] Psicogênese [...] torna-se um instrumento poderoso na pesquisa do conhecimento-processo [...]” (DONGO MONTOYA, 2004, p. 159). Foi buscando acompanhar o conhecimento em seu processo de elaboração que Piaget observou bebês, bem como observou e entrevistou crianças e adolescentes utilizando seu método clínico. Contando com um número suficiente (para os critérios do método clínico) de observações e entrevistas clínicas, identificou e descreveu alguns estágios do desenvolvimento, a saber: sensório-motor, pré-operatório, operatório-concreto e operatório-formal. Os estágios têm algumas características, em que destacamos: eles se dão sequencialmente e que cada estágio prepara o estágio subsequente. É nesse sentido que Piaget ([1967]1973) nos diz:

Não é possível chegar nas operações “concretas” sem passar por uma preparação sensório-motora [...] e não é possível alcançar as operações proposicionais sem apoio nas operações concretas prévias, etc. Encontramo-nos pois em presença de um sistema epigenético, cujas etapas podem ser caracterizadas por estruturas suficientemente precisas [...]. (PIAGET, [1967]1973, p. 28)

Os estágios do desenvolvimento existem como possibilidade para os membros da espécie humana, e possibilidade não é o mesmo que garantia. Piaget investiga o conhecimento como processo, seu desenvolvimento. O desenvolvimento, que não se dá compulsoriamente para qualquer que seja o indivíduo, é compreendido como “[...] uma equilibração progressiva, uma passagem contínua de um estado de menor equilíbrio para um estado de equilíbrio superior.” (PIAGET, [1964]1978, p. 11). Nesse sentido, cada estágio “[...] constitui então, pelas estruturas que o definem, uma forma particular de equilíbrio, efetuando-se uma evolução mental no sentido de uma equilibração sempre mais completa.” (PIAGET, [1964]1978, p. 14). A elaboração de um novo estágio de desenvolvimento é a conquista de um estado de equilíbrio superior ao estado anterior, e é superior pois mais adaptado (PIAGET, [1964]1978). Estar mais adaptado significa ter melhores condições estruturais de se relacionar consigo e com o mundo. Em Piaget, há uma gênese que permite essa constituição de estados mais adaptados para o sujeito. “[A] gênese é certa forma de transformações partindo de um estado A e alcançando um estado B, sendo este mais estável que o primeiro.” (PIAGET, [1964]1978, p. 134). No curso do desenvolvimento mental, a razão plenamente desenvolvida, como estrutura operatório-formal, é a conquista do estado mais equilibrado para o sujeito, como equilíbrio relativo, “equilíbrio móvel” (PIAGET, [1964]1978, p. 12). Desde as etapas mais elementares do desenvolvimento, um novo estado de equilíbrio não surge abruptamente, e sim como resultado de processos de equilibração, de adaptação - “[...a] adaptação é uma equilibração [...]” (PIAGET, [1967]1973, p. 235). Como estrutura operatório formal, isto é, como a característica estrutural que define o estágio operatório-formal, a razão não é um ponto de partida para o sujeito (PIAGET, 1950), ela é ponto de chegada de uma série de equilibrações que elaboram novos estados mais equilibrados, mais adaptados. Há um longo processo de desenvolvimento que permite a passagem do estado em que o ser humano, como membro da espécie, existe como “[...] lactente [que] tudo relaciona a seu corpo, como se ele fosse o centro do mundo, mas um centro que a si mesmo ignora” (PIAGET, [1970]1978, p. 7), ao estado em que é capaz de lidar com o mundo e consigo mesmo mobilizando suas estruturas operatório-formais, contando, por exemplo, com a reversibilidade que pode ser empreendida totalmente em pensamento, como marca importante da estrutura operatório-formal. Essa passagem se dá por construção ativa do sujeito em relação com o mundo do objeto.

Apoiando-se mais uma vez em pesquisas psicogenéticas, Piaget ([1932]1994, p. 103) afirma que, assim como há uma gênese da razão, há uma “[...] evolução moral da criança [...]”, que vai se realizando mediante o surgimento de “novas formas de sentimentos” (PIAGET, [1932]1994, p. 95). No âmbito moral, entretanto, não é o caso de existir estágios de heteronomia e de autonomia, “[...] mas apenas [...] fases de heteronomia e de autonomia, definindo um processo que se repete a propósito de cada novo conjunto de regras ou de cada novo plano de consciência ou de reflexão.” (PIAGET, [1932]1994, p. 75). Como ponto de chegada de um igualmente longo e em nada garantido processo de desenvolvimento, cabe destacar o surgimento da vontade como uma regulação mais equilibrada para o sujeito no âmbito de suas relações propriamente morais (PIAGET, [1964]1978). No campo da moralidade, a vontade equivale às operações formais no âmbito cognitivo. É por meio dela que o sujeito, em situação de conflito entre tendências, é capaz de fazer uma escolha contando com sua escala de valores - que também não é algo que se dê de modo pronto para os indivíduos. Esse rumo do desenvolvimento depende, entre outros, da superação do egocentrismo, entendido como “[...] uma conduta intermediária entre as condutas socializadas e as puramente individuais.” (PIAGET, [1932]1994, p. 40), e da constituição da personalidade, entendendo-a como a construção do “[...] eu que se situa e se submete, para se fazer respeitar, às normas da reciprocidade e da discussão objetiva.” (PIAGET, [1932]1994, p. 82). O desenvolvimento moral, assim como o cognitivo, não se realiza como “[...] apanágio do indivíduo isolado e [presume], necessariamente, a colaboração e o intercâmbio entre os indivíduos.” (PIAGET, [1948]2011, p. 89). Novas formas de sentimentos se dão na dependência das relações com o entorno, particularmente, das relações interindividuais. Consciência intelectual e consciência moral: para o indivíduo,

[...] nem uma nem outra lhe são conferidas já prontas, no ponto de partida da evolução mental, e tanto uma quanto a outra se elaboram em estreita conexão com o meio social: as relações da criança com os indivíduos dos quais depende serão [...] formadoras [...]. (PIAGET, [1948]2011, p. 104)

Indicado esse horizonte possível do desenvolvimento individual, observe-se que a realização do desenvolvimento não pode ser explicada por um único fator, mas por distintos fatores combinados, a saber: maturação, experiência física e lógico-matemática, transmissão social e equilibração (PIAGET, [1972]1978). Iremos nos deter sobre os fatores transmissão social e equilibração. Vimos que, para Piaget, o desenvolvimento se dá como equilibração progressiva. O processo de equilibração se desenrola por meio de dois tipos de ação disparadas pelo sujeito em relação com o objeto: como assimilação, ao integrar às suas estruturas algumas das qualidades do objeto, e como acomodação, ao se reorganizar como modo de responder às solicitações do objeto para as quais ainda não dispunha de estruturas adequadas. O fator equilibração, com as ações de assimilação e de acomodação, isto é, como interação, salienta a fundamental atividade do sujeito em seu processo de desenvolvimento. É justamente a ação acomodadora, como ação do sujeito sobre si mesmo, sobre sua organização estrutural que, ao se reorganizar, constrói novos patamares de equilíbrio. O fator equilibração, sobretudo ao se considerar o papel crucial da acomodação, realiza o desenvolvimento pela construção de novos patamares de equilíbrio para o sujeito.

A equilibração é fator crucial ao desenvolvimento, e ponto alto, podemos dizer, do construto explicativo piagetiano. Junto da equilibração, vimos que Piaget inclui o fator da transmissão social, em que está contemplada a atividade educativa. Se esse fator, sozinho, não explica todo o desenvolvimento, este tampouco pode ser explicado sem ele. Na realização ativa do desenvolvimento por cada membro da espécie, a transmissão social tem seu papel, e ele não é de modo algum pequeno. É como “[...] um psicólogo levado por suas pesquisas ao estudo dos problemas da formação do homem.” (PIAGET, [1948]2011, p. 44) que ele frisa o específico papel da educação no desenvolvimento quando pontua:

A educação, é, por conseguinte, não apenas uma formação, mas uma condição formadora necessária ao próprio desenvolvimento natural. Proclamar que toda pessoa tem o direito à educação não é pois unicamente sugerir tal como o supõe a psicologia individualista tributária do senso comum, que todo indivíduo, garantido por sua natureza psicobiológica ao atingir um nível de desenvolvimento já elevado, possui além disso o direito de receber da sociedade a iniciação às tradições culturais e morais; é, pelo contrário e muito mais aprofundadamente, afirmar que o indivíduo não poderia adquirir suas estruturas mentais mais essenciais sem uma contribuição exterior, exigindo um certo meio social de formação, e que em todos os níveis (desde os mais elementares até os mais altos) o fator social ou educativo constitui uma condição do desenvolvimento. (PIAGET, [1948]2011, p. 52)

O desenvolvimento acontece também pela fundamental contribuição da Educação, sobretudo contando com o arranjo entre os diferentes fatores do desenvolvimento, e aqui indicamos, de modo especial, aquele que se dá entre os fatores da equilibração e da transmissão social. Piaget distingue aprendizagem e desenvolvimento, sendo este um processo mais amplo e aquela caracterizando-se por situações provocadas, contando com o que é ofertado, por exemplo, pela transmissão social. Todavia, mobilizando conjuntamente o fator equilibração, a assimilação nem sempre dá conta de integrar na organização estrutural do sujeito aquilo que é transmitido - quando a assimilação é suficiente, fala-se em aprendizagem stricto sensu -, de modo que se abre o caminho para uma acomodação que, por sua vez, ao ser efetuada pelo sujeito, produz seu próprio desenvolvimento - caracterizando uma aprendizagem lato sensu. Conforme Becker (2011, p. 226), “[a]prendizagem não é apenas assimilação [...]; é acomodação dos esquemas de assimilação. Ela prolonga, portanto, o processo de desenvolvimento [...]”. Parrat-Dayan (2007, p. 17), apoiando-se nos trabalhos de Piaget, e séculos depois de Rousseau ter se dedicado ao tema de como o ser humano pode vir a ser cidadão, retoma a questão dizendo: “O indivíduo não nasce cidadão, torna-se cidadão pela aprendizagem. A cidadania é o produto da educação.”. Insistindo nessa ideia, e contando com um aporte piagetiano e com outras pesquisas mais recentes da área da Psicologia, Dani e Freitas (2017) salientam certa condição humana e a importância da atividade educativa para o desenvolvimento considerando-se essa condição:

Nós, seres humanos, nascemos inacabados, e por esta razão temos uma infância longa. Dependemos de outros não apenas para sobreviver, mas também para nosso pleno desenvolvimento como pessoas. A Natureza nos equipou com uma possibilidade de sermos empáticos (De Waal 2010) e até mesmo com um senso rudimentar de justiça (Bloom 2013). Todavia, estas habilidades estão longe de serem suficientes para convivermos de forma livre, harmônica e democrática uns com os outros. Do ponto de vista moral/ético, também nascemos inacabados e, portanto, não é possível uma pessoa tornar-se moral/ética sem uma educação em valores. (DANI; FREITAS, 2017, p. 7)

Piaget não postulou dependência da Pedagogia em relação à Psicologia, mas compreendeu que a Pedagogia pode se apoiar em conhecimentos produzidos pela pesquisa psicológica, na medida em que esta permite, por exemplo, investigar processos e mecanismos envolvidos nas aprendizagens (DONGO-MONTOYA, 2004), e, podemos acrescentar, processos e mecanismos envolvidos no desenvolvimento. Em suma, a pesquisa psicogenética empreendida por Piaget, ao permitir conhecer o indivíduo, seus modos de funcionamento e como se estrutura ao longo do desenvolvimento, auxilia a conhecer aquele que está posto como educando. Desse modo, a ação educativa poderá ser mais bem direcionada ao considerar não apenas seus objetivos - em que aqui destacamos, entre tantos: formar o cidadão - mas também como organizar mais adequadamente os caminhos para alcançá-los. De acordo com Mota (2005, p. 107), “[a]través da identificação dos fatores que afetam o desenvolvimento humano podemos pensar sobre trabalhos de intervenção mais eficazes, que levem a um desenvolvimento harmônico do indivíduo.”. É nesse sentido que Piaget ([1932]1994, p. 22) assevera: “Portando, nada é mais útil para formar os homens do que ensinar a conhecer as leis dessa formação.”. Relembrando Nussbaum (2015), podemos dizer que isso permite que se identifique melhor os problemas que precisam ser solucionados e os recursos de que dispomos para solucioná-los ao pensarmos a Educação, e a Educação em sua vinculação com a Política.

Considerações finais

O vir a ser cidadão, dentro da proposta rousseauniana, revela um profundo enlace entre Educação e Política, que pode ser acompanhado pela narrativa do desenvolvimento-formação de Emílio como sujeito racional e moral. Para além do nexo fundamental entre Educação e Política, em Rousseau há uma vinculação entre Educação, Política e o que indicamos, apoiando-nos em Penna (1991), como ideias psicológicas, na medida em que, a partir da Filosofia, aborda a formação do cidadão atrelada ao desenvolvimento do sujeito em seus âmbitos racional e moral. Aventando esse nexo já em Rousseau, compreendemos que as contribuições elaboradas no solo próprio da Psicologia do Desenvolvimento, aqui representada por aspectos do trabalho de Piaget, auxiliam a lidar com o que Nussbaum (2015), ao pensar a Educação, pontua como problemas dessa área e recursos para solucioná-los. Esse auxílio se dá na medida em que direciona o olhar aos mecanismos e processos envolvidos no desenvolvimento individual. Ademais, propomos que, ao salientar a atividade educativa como um dos fatores do desenvolvimento, atentando, sobretudo, para a sua imbricação com o fator equilibração, a contribuição da pesquisa psicogenética estabelece um fortalecimento desse nexo, agora, entre Educação, Política e Psicologia do Desenvolvimento, colaborando para a discussão acerca da questão do vir a ser cidadão, como uma questão que ainda não está resolvida para nós, relembrando a ponderação de Cassirer (1999), e que mantém sua atualidade e necessidade de ser tomada em mãos. Percorrido esse caminho, e entendendo com Honneth (2014) que hodiernamente há um desenlace entre Política e Educação, compreendemos que, especialmente no que diz respeito à discussão acerca de como o ser humano, como membro da espécie e vivendo em sociedade, pode vir a ser cidadão, faz-se urgente tanto uma retomada do enlace entre as áreas da Política e da Educação, quanto uma vinculação entre essas áreas e a Psicologia do Desenvolvimento. Compreendemos que a vinculação entre essas três áreas pode contribuir para a criação de propostas educacionais que, ao levar em conta pesquisas psicogenéticas e explicações para o desenvolvimento do indivíduo ancoradas nessas pesquisas, delineiem-se mais assertivamente quanto ao intuito de formar pessoas capazes de viver em sociedades democráticas, como pessoas que se entendam e se sintam como parte, nos termos de Rousseau, ou ainda, como personalidades, nos termos de Piaget.

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1 Honneth (2014) recorre a alguns argumentos para explicar a desvinculação entre política e educação, entendendo que tal desvinculação não pode ser explicada tão somente pela crescente especialização das áreas. Para o autor, essa desvinculação pode ser explicada muito mais por algumas outras ideias que ocupam a esfera pública atual como, por exemplo, a concepção de que “[...] todos os esforços estatais de organização de uma educação democrática são em vão porque não podem gerar as virtudes morais que são vitalmente necessárias para a subsistência de democracias.” (HONNETH, 2014, p. 550). Todavia, ele salienta que a presença desse tipo de concepção não é o único motivo dessa desvinculação. Há que se considerar também “[...] a propensão a interpretar o imperativo da neutralidade do estado de modo tão restritivo que até mesmo os princípios da formação da vontade democrática não podem mais se expressar de modo algum no ambiente escolar.” (HONNETH, 2014, p. 551).

2“Il y a dans l'Emile une psychogenèse des qualités sensibles; Rousseau montre comment elles offrent, chacune pour sa part, une perspective de développement pour une intelligence procédant de la sensibilité au jugement.” (GUSDORF, 1973, p. 205).

3Ao fazer a defesa de certo tipo de educação, Nussbaum (2015) mobiliza alguns aspectos da compreensão de Donald Winnicott (1896-1971), pediatra e psicanalista britânico, acerca do desenvolvimento do ser humano.

4Piaget estudou Biologia e, contando com esses estudos, “[...] começou seus trabalhos de psicologia experimental no laboratório de Binet e continuou-os no instituto de Claparède.” (BATTRO, 1976, p. 13) e, adiante, em seu Centro de epistemologia Genética. O instituto mencionado por Battro é o Instituto Jean-Jacques Rousseau, criado em Genebra, no ano de 1912, por Pierre Bovet (1878-1944), Adolphe Ferrière (1879-1961) e Édouard Claparède (1873-1940).

5A pesquisa psicogenética e a pesquisa histórica do desenvolvimento do conhecimento, tanto científico quanto pré-científico, sustentaram a elaboração da proposta de Piaget em Epistemologia, a saber, sua Epistemologia Genética (DONGO MONTOYA, 2004).

Recebido: 25 de Fevereiro de 2021; Aceito: 19 de Janeiro de 2022

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