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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.75 Uberlândia set./dez 2021  Epub 16-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n75a2021-63270 

Artigos

Dispositivos da Formação Teórica Queer: contribuições de Michel Foucault e Jacques Derrida

Devices of Queer Theoretical Formation: contributions from Michel Foucault and Jacques Derrida

Dispositivos de la formación teórica queer: contribuciones de Michel Foucault y Jacques Derrida

Antonio Leonardo Figueiredo Calou* 
lattes: 8982146061374788; http://orcid.org/0000-0001-6795-7200

Maria Teresa Nobre** 
lattes: 1234091318043836; http://orcid.org/0000-0002-5085-4296

*Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bolsista CAPES. E-mail: leo.calou@hotmail.com

**Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPgPsi/UFRN). Email: tlnobre@hotmail.com


Resumo

O presente artigo busca discutir as contribuições de Michel Foucault e Jacques Derrida para a formulação da teoria queer, apresentando algumas de suas propostas teóricas que passeiam e incorporam movimentos políticos e acadêmicos, bem como corpos em constante construção de si, incorporados por enunciados de gênero, suas oposições, mas também por suas Différances. Para isso, apresentamos inicialmente os itinerários históricos dos movimentos políticos queer, ou seja, uma pragmática que se dará ao longo da sua construção, base para o pensamento teórico. A seguir, apresentamos o pensamento desses autores como pressupostos para a potencialização, tanto dessa pragmática, como de dispositivos que compõem a analítica das normalizações dos gêneros e para além deles, constitutivas da Teoria Queer.

Palavras-chave: Gênero; Teoria Queer; Michel Foucault; Jacques Derrida

Abstract

This article aims to discuss the contributions of Michel Foucault and Jacques Derrida to the formulation of queer theory, presenting some of their theoretical proposals that walk and incorporate political and academic movements, as well as bodies in constant construction of themselves, incorporated by statements of gender, its oppositions, but also for its Différances. For this, we initially present the historical itineraries of queer political movements, that is, a pragmatics that will take place throughout their construction, the basis for theoretical thinking. In sequence, we present the thought of these authors as presuppositions for the potentializing of both this pragmatics and devices that make up the analysis of the normalizations of genres and beyond them, which are constitutive of the Queer Theory.

Keywords: Gender; Queer Theory; Michel Foucault; Jacques Derrida

Resumen

Este artículo busca discutir los aportes de Michel Foucault y Jacques Derrida a la formulación de la teoría queer, presentando algunas de sus propuestas teóricas que caminan e incorporan movimientos políticos y académicos, así como cuerpos en constante construcción de sí mismos, incorporados por declaraciones de género, sus oposiciones, pero también por sus Différances. Para eso, presentamos inicialmente los itinerarios históricos de los movimientos políticos queer, o sea, una pragmática que se irá dando a lo largo de su construcción, base del pensamiento teórico. La continuación, presentamos el pensamiento de estos autores como presupuestos para la potencialización tanto de esta pragmática como de los dispositivos que componen el análisis de las normalizaciones de géneros y más allá de ellos, que son constitutivos de la Teoría Queer.

Palabras clave: Género; Teoría Queer; Michel Foucault; Jacques Derrida

Notas introdutórias

Surgido em meados dos anos de 1970, nos EUA, em meio à eclosão dos novos movimentos sociais que marcavam um percurso de reivindicações políticas identitárias, o movimento queer eclode ao romper com o caráter pejorativo e subalterno a ele relegado. Torna-se um contradiscurso que ressignifica o termo queer - antes sinônimo de excêntrico e exótico -, passando pelo crivo da afirmação e procurando situar-se como estranho no meio da multidão normalizada (PRECIADO, 2011). De acordo com Guacira Lopes Louro (2016):

Queer significa colocar-se contra a normalização - venha ela de onde vier. Seu alvo mais imediato de oposição é, certamente, a heteronormatividade compulsória da sociedade; mas não escaparia de sua crítica a normalização e a estabilidade propostas pela política de identidade do movimento homossexual dominante. Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada, e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora. (LOURO, 2016, p. 39)

O histórico termo queer dos fins do século XIX, ao enquadrar a vida de homossexuais, identificava seus corpos pela marca da desigualdade fomentada pelas relações de poder a favor de uma heterossexualidade “normativa” e “natural”. Assim, a política queer se levanta a partir da segunda metade do século XX, como um movimento à parte do movimento homossexual, pois a afirmação identitária gay/lésbica estaria, a partir de suas políticas igualitárias de classe, regulamentando a heterossexualidade dominante. O queer reivindicaria, agora, o lugar dos sujeitos dissidentes que não se encontravam dentro de padrões homossexuais, enquadrados nos eixos de masculinidade e feminilidade. Dessa forma, travestis, transexuais, intersexuais, drag queens, sadomasoquistas e portadores do vírus HIV/Aids, antes excluídos ou ocupando espaços subalternos nos movimentos sociais, passam a ser representados por tal política.

Embasados pelas obras de Michel Foucault e Jacques Derrida, a política queer começa a ascender nas ações interventivas do que se poderia visualizar sobre o discurso de sexualidade e as relações de poder, descortinadas no primeiro volume da História da Sexualidade (1988) e também sobre as estratégias de desconstrução das hierarquias de poder, características de oposições binárias produtoras de identidades, contidas na obra derridiana, Gramatologia (1973) - ambas publicadas em meio à efervescência dos movimentos políticos que aconteciam entre 1960 e 1980.

O termo queer, enquanto teoria, foi enunciado pela primeira vez em 1990, pela italiana feminista Teresa de Lauretis. Entretanto, enquanto teoria, o queer somente começou a ser pensado a partir das célebres obras Problemas de Gênero (2015) de Judith Butler e A Epistemologia do Armário (2007) de Eve Sedgwick - teóricas americanas que se aproximavam das estratégias de análises foucaultianas e derridianas, problematizando a normalização presente nos discursos de gênero. Com isso, é sobre sua própria formação, que seguia a premissa desconstrutivista, que o queer reivindica uma descentralização e se põe como estratégia analítica móvel e fluida, dialogando com diversas áreas científicas, sem associar-se a nenhum de seus métodos.

Com base nessas reflexões, no primeiro momento da trajetória de produção deste artigo, recuperamos a formulação do pensamento queer através da sua constituição nos movimentos sociais e, depois, enquanto teoria. Aparecem nesse caminho de descontinuidades, os dispositivos formadores e os/as pensadores/as que embalaram a analítica da normalização, dentre esses: Michel Foucault e Jaques Derrida.

Num segundo momento, pensamos que talvez fosse audacioso propor o queer dentro de um processo epistemológico, ou melhor, dentro de uma sistematicidade teórica do conhecimento. Pois a perspectiva queer se propõe a questionar toda e qualquer sistematicidade, bem como a si própria, quando se tenta enquadrá-la numa identidade. Entretanto, tendo refletido sobre, acreditamos que, por mais que ela se proponha a uma teoria política posta sobre os questionamentos da normalização, a teoria queer pressupõe uma analítica que, em si, já a coloca dentro dos universos do conhecimento. Dessa forma, poderíamos dizer que ela pode até não se encaixar em uma teoria do conhecimento, mas é evidente que trabalha como uma teoria do conhecer para desconhecer, para desconcertar os postulados que se dão como normalidades evidentes e que inferiorizam uns e outros sob os efeitos de poder que se manifestam ao serem produzidos numa relação de oposição.

Pensamos, portanto, que a formação do seu processo, enquanto teoria, resulta do pensamento de vários autores e autoras que a vão tecendo através de percepções teóricas em que se manifestam, convergindo e divergindo umas das outras, mas que, de uma forma ou de outra, buscam refletir melhor o produto final, as normalizações, as naturalizações, as oposições binárias que se agregam condicionando e controlando a vida humana. Por isto, neste artigo, queremos pensar o queer dentro de uma teoria do conhecimento, nos permitindo falar um pouco de alguns autores que se tornaram, com suas teorias, a base do pensamento queer. Assim, destacamos as contribuições de Michel Foucault e de Jacques Derrida para a formulação de pressupostos que embasam a Teoria Queer, dividindo o texto em três momentos: o primeiro que trata ainda de pensar os itinerários históricos dos movimentos políticos queer, ou seja, de uma pragmática que dará ao longo de seus acontecimentos, bases para o pensamento teórico; e o segundo e terceiro momento que apresentam os pensamentos de Foucault e Derrida como supostos para potencialização tanto dessa pragmática, como de dispositivos para compor a analítica das normalizações.

Teoria queer em formação: percursos históricos e políticos

A primeira aparição sexualizada e pejorativa do termo queer foi em 1894, utilizado em uma carta-denúncia dirigida ao quartel general da Scotland Yard. A carta foi escrita por John Douglas, o marques de Queensbury, e no seu conteúdo continha declarações e acusações a seu opositor político em uma disputa jurídica, Oscar Wilde. Por meio dela, o escritor foi sentenciado pelo crime de incidência moral, por seus atos e incentivo às práticas homossexuais (LOURENÇO, 2017). Com isso, a etimologia da palavra queer vai se escamoteando, durante toda a passagem dos séculos XIX e XX, fazendo referência ao estranho, exótico, fora dos costumes normativos da cultura. De acordo com Lourenço (2017):

Em inglês, “queer” constela alguns significados diferentes, mais ou menos diretamente relacionados entre si. De acordo com a sua definição mais convencional, designa algo - ou alguém - excêntrico, bizarro, singular ou diferente; de natureza questionável ou suspeita; fisicamente indisposto ou mentalmente disfuncional; ou, ainda, mau, sem-valor ou falsificado. Mas a sua acepção dominante é enquanto termo pejorativo para homens percepcionados enquanto não heterossexuais e/ou efeminados (sendo que a distinção entre um e o outro grupo é pouco significativa para uma sociedade que a tal ponto conecta e confunde a expressão de gênero com a orientação sexual) e mulheres percepcionadas enquanto não heterossexuais. (LOURENÇO, 2017, p. 877-878)

Queer ganha novas conotações em meados da década de 1960, quando o termo vira alvo dos sujeitos homossexuais, que na pior das traduções para o português poderia significar “viado”, “bicha”, “baitola”, “boiola”, “sapatão”, etc. Assim, queer também passou a ser considerado como resultado dos discursos que viriam a se estabelecer desde uma história de recusa das práticas sexuais dissidentes que envolvem o termo sexo.

Até o século XVII, o termo sodomia era um termo em vigência, quase universal para o contexto ocidental, porque tinha apoio na jurisprudência religiosa do cristianismo nos países do ocidente. Referia-se ao ato pecaminoso e passível de condenação, contido na relação entre pessoas do sexo masculino. Os atos de sodomia enunciavam uma pena que se efetivava na medida em que que o direito canônico ia se instituindo e angariando, pelo seu discurso, poder de decisão sobre a vida desses sujeitos (TREVISAN, 2009). No século XIX, após o advento da homossexualidade, termos como queer (“viado” / “sapata”) apareceram para referenciar os sujeitos na condição pela qual a ciência e o discurso religioso lhes haviam designado como anormais, impuros, doentes, contaminados e que estavam em situações passíveis de abjeção.

De acordo com Michel Foucault (1988), o século XIX torna-se um marco, ápice dos discursos que promoviam a incitação perversa das práticas sexuais. É neste espaço de tempo que as ciências médicas e biológicas se apropriam de discursos já fundados e os remontam à legitimidade científica que tinha como intenção originária, dar vazão aos estudos de reprodução da vida humana. No caso da homossexualidade, que contraria essa função, foi concebida como desvio, como patologia que poderia ser manejada como vírus nos laboratórios da psiquiatria.

Neste ínterim, desde sua criação, a homossexualidade passa por idas e vindas nos estudos da medicina e da biologia, mas somente vai ter maior respaldo na psicanálise freudiana - na concepção de desejo que, por essa visão, se estabelecia inconscientemente nos sujeitos -, sendo imersa no imaginário social como desvio até, pelo menos, os meados dos anos de 1970. Apesar de tudo, a ciência do século XIX livrou os homossexuais da condenação religiosa, fazendo com que pudessem se organizar em guetos, fato que oportunizou a articulação de movimentos homossexuais em prol da reivindicação por espaço e visibilidade social.

O século XX chega marcado por revoluções que se constelam em torno das reivindicações das classes operárias e trabalhadoras, como também de movimentos sociais que se levantam com demandas específicas de suas vidas privadas (MAZZOLA, 2009; MELLO, 2008; MISKOLCI, 2013) - como seria o caso da primeira onda do feminismo e da luta pelos direitos civis, pelo menos até os anos de 1920.

Na segunda metade dos anos de 1960 e durante os anos 1970, novas demandas surgem alçadas sobre as articulações que confrontavam os movimentos sociais da época, especialmente feministas e negros, que não estavam interessados nas diligências de casos mais específicos, como seriam as identidades que se viam mais prejudicadas, como por exemplo: a mulher lésbica, a negra e a mulher trans. Os anos 1960 são marcados pelos novos movimentos sociais, compostos pelas reivindicações da população negra do subúrbio dos EUA, pela segunda onda do feminismo e pelo surgimento do movimento de libertação homossexual. Os novos movimentos sociais ganham este status por serem uma nova versão opositiva das antigas lutas que já estavam normalizadas de acordo com as demandas hegemônicas da sociedade civil burguesa, hétero e branca (HALL, 2015).

O movimento feminista vinha reivindicar à sua vanguarda o lugar das mulheres negras e lésbicas, fazendo oposição mais contundente à normalização masculina e heterossexual. Essas feministas percebiam, em suas antecessoras, uma composição não mais representativa, cuja maioria era formada por homens e mulheres feministas brancos/as, de classe média/alta e heterossexuais, ou seja, uma formação puramente hegemônica de identidades favorecidas nos seguimentos de classe (MISKOLCI, 2009, 2013). Essas mulheres entendiam que “o pessoal [as relações privadas] é político”, e que, por isso, era preciso lançar um novo olhar para as relações sociais contidas no âmbito privado das especificidades de classe que inferiam em suas vidas.

A conhecida ideia “o pessoal é político” foi implementada para mapear um sistema de dominação que operava no nível da relação mais íntima de cada homem com cada mulher. Esses relacionamentos eram considerados, sobretudo, políticos, na medida em que político é essencialmente definido como poder. (PISCITELLI, 2002, p. 5-6)

Talvez se possa afirmar que a política queer nasce nesse entremeio, sobretudo nas reinvindicações feitas pelas feministas lésbicas que reclamavam, pela via dos movimentos radicais, o fim da heterossexualidade compulsória1 corporificada nas agressões - físicas, psicológicas, morais e éticas - a elas dirigidas enquanto mulheres e lésbicas. Contudo, a política queer arregimentará mais visibilidade no enfrentamento dos discursos promovidos pelo surgimento ou descoberta do HIV/AIDS e pela sua associação à homossexualidade, que cria a chamada “epidemia gay” (PELÚCIO; MISKOLCI, 2009).

Se o século XIX marca o surgimento das patologias homossexuais, os anos 1980 vem marcar o que Pelúcio e Miskolci (2009) denominaram de repatologização da homossexualidade. Com o advento do vírus, o alastramento da doença - que era encontrada em dois homossexuais a cada cinco sujeitos infectados - foi o dado suficiente para que grupos políticos tradicionais e conservadores pudessem associá-la à homossexualidade, produzindo um enorme conjunto de discursos que permeava o imaginário social.

Nesse contexto, um verdadeiro pânico moral se abateu sobre as populações homossexuais, legitimado pelos discursos epidemiológicos, que demandavam cuidado e estado de alerta da sociedade civil e heterossexual ao risco de contaminação na proximidade com os/as homossexuais (MISKOLCI, 2007). Outras instâncias ressignificam esse discurso à luz de seus preceitos conservadores, como é o caso das instituições religiosas, que denominaram ser aquela a forma que seu Deus encontrou para limpar o mundo do pecado homossexual.

Entre os anos 1973 e 1982, se promulgava uma guerra discursiva, período também chamado de revolução sexual. O movimento de libertação homossexual, entre 1981 e a segunda metade desta década, levantava-se em defesa da demonstração de que, as estatísticas mostradas sobre o vírus, eram injustas, verificando que a doença também se apresentava em casais heterossexuais de idosos e em crianças (PELÚCIO; MISKOLCI, 2009).

Entretanto, o movimento de liberação homossexual era semelhante à vanguarda feminista da primeira onda, buscava reivindicar direitos igualitários aos sujeitos homossexuais - como o casamento e a união igualitária -, enquadrando-se nos padrões heterossexistas e normativos. Respeitavam somente os que seguiam a assimetria dos gêneros masculinos e femininos, excluindo quaisquer identidades dissidentes e não normativas do movimento que era estritamente cisgênero. O movimento era composto por gays e lésbicas que seguiam o circunspecto código instituído pela heteronormatividade, restringindo seus espaços a uma hegemonia de homens gays, masculinizados e másculos, e mulheres lésbicas, feminizadas e dóceis. Reproduziam, assim, os mesmos padrões de gênero dominantes, deslegitimando as demais identidades como as de travestis, transexuais, drag queens, intersexuais e até mesmo homossexuais infectados pelo HIV/AIDS - a quem julgavam, dentro do próprio movimento, como responsáveis pela segregação social que vivenciavam com o discurso da “peste gay”.

Por dentro dos movimentos feministas e homossexuais, articulam-se novos grupos que manifestam uma ação mais radical, reivindicando a desconstrução das representatividades e identidades homossexuais. Grupos como ACT UP e Queer Nation, são formados inicialmente com o propósito de fazer valer os direitos dos homossexuais infectados pelo HIV/AIDS, as formas de tratamento disponíveis no momento, tornando-se logo em seguida grupos de ativismo político afirmativo (MISKOLCI, 2013). Já grupos como Lesbian Avengers e Radical Fairies assumiam posturas políticas mais radicais, pois estavam interessados em

investir nas posições de sujeitos “abjetos” (esses “maus sujeitos” que são os soropositivos, as sapatas, os viados) para fazer disso um gesto de resistência ao ponto de vista “universal”, à história branca, colonial e straight do “humano”. (PRECIADO, 2011, p. 15)

Desse modo, a política queer é instituída para reivindicar a desnaturalização da heterossexualidade e a desconstrução dos gêneros binários, informando que desejos sexuais, assim como identidades de gênero, se manifestam pela ação discursiva social e que produzem com isso, corpos gendrados e normalizados de acordo com padrões passíveis de desconstrução.

Tais movimentos contavam com a participação de boa parte de intelectuais, que buscavam intervir, com base em suas percepções analíticas e políticas, nas normalizações sociais. O movimento queer e sua política de então estavam, portanto, intimamente conectados às teorias e às obras de Michel Foucault - principalmente, à História da Sexualidade I, que teve enorme repercussão na época - e também às teorias desconstrutivistas de Jacques Derrida, em especial, à obra Gramatologia (SPARGO, 2017).

Nesse contexto, a política queer se opunha em grande parte ao movimento homossexual, sobretudo no que se referia à necessidade de definir uma identidade. Ao estabelecerem novas identidades sexuais e de gênero a partir das posições e das práticas sexuais, assim como da aproximação ao gênero que não condizia com o símbolo do sexo “biológico”, desarticulavam também relações de poder. Essas, produzidas e reproduzidas pelo movimento homossexual, eram embasadas na respectiva dominação masculina e heterossexual, herdando suas normas aplicadas às vidas homossexuais, nas suas individualidades.

O movimento homossexual parecia seguir as normas instituídas pelos padrões heterossexualizadores, quando imprimiam nos coletivos a necessidade de aproximação aos padrões monogâmicos e “respeitáveis” da sociedade, assim como impetravam às identidades as condições de gênero binário, hierarquizando, dentro do próprio movimento, as categorias identitárias à disposição. Na base dessa pirâmide, estavam aqueles/aquelas travestis, transexuais, dragqueens, intersexuais, sadomasoquistas, entre outros/as que não obedeciam a quaisquer condições sociais normativas, sendo visibilizadas como vidas excêntricas e exóticas.

Até aqui, buscamos trazer perspectivas da formação de uma política queer, que é constituída da ação de militantes e intelectuais que dividiam reflexões em comum sobre as instituições macropolíticas de normalização social. Pois o queer enquanto teoria, só foi formalizado em 1991, quando Teresa de Laurentis usou pela primeira vez o termo “Queer Theory”, fazendo referência aos estudos filosóficos das linhas pós-estruturalistas francesas e dos estudos culturais norte-americanos, entre outras perspectivas no aglomerado de pensamentos que buscavam desconstruir e desnaturalizar normas sociais (MISKOLCI, 2009).

É importante frisar que os/as teóricos/as queer, não sabiam, nem se pensavam como teóricos/as queer até o momento da criação e menção do termo por Lauretis. É por essa perspectiva que a teoria queer não tem o seu lugar de criação somente no berço norte-americano. De acordo com Richard Miskolci (2013), várias são as obras e autores/as que tinham o pensamento desconstrucionista e problematizador, premissa que a teoria carregava. Além de não ser ela de essência filosófica:

A centralidade da produção acadêmica americana, ou seja, seu poder de influência mundial, gerou a versão ainda coerente - mas altamente contestável - de que a teoria queer surgiu apenas lá e teve como data de nascimento 1990, ano em que foram lançados três de seus livros mais influentes: Problemas de Gênero, de Judith Butler, One Hundred Years of Homossexuality (cem anos de homossexualidade), de David M. Halperin, e, sobretudo, o grande livro fundador da teoria queer, A Epistemologia do Armário, de Eve Kosofsky Sedgwick. (MISKOLCI, 2013, p. 31)

Assim, de acordo com Guacira Lopes Louro (2016), poderíamos dizer que a teoria queer é fruto de articulações que se manifestam em uma pragmática, envolvendo um conjunto de teorias e de práticas políticas, a partir de diferentes países e culturas. Dentre tais, é preciso ressaltar que o fundamento das teorias queer é pautado essencialmente pelas feministas que assumiram posições mais críticas sobre as questões de gênero e sexuais. Destacam-se - para além das já mencionadas por Miskolci - a italiana Teresa de Laurentis, a americana Gayle Rubin, a chicana Glória Anzaldua, o catalão Paul Beatriz Preciado, a indiana Gayatri Spivak, o argentino Néstor Perlongher e o inglês naturalizado brasileiro Peter Fry, dentre outros.

Já após sua formação, surge no Brasil uma gama de pesquisadores que se anunciam teóricos/as queer assumindo as posições políticas do que teorizam. Dentre eles e elas, destacamos o sociólogo Richard Miskolci, a antropóloga Larissa Pelúcio, a cientista social Berenice Bento, a filósofa Carla Rodrigues, a educadora Guacira Lopes Louro e o teólogo André Musskopf. A obra desses/as brasileiros/as costuma levar em consideração a constante construção crítica da teoria queer que, geralmente, está a pensar com o cânone e as obras “clássicas” já mencionadas.

Michel Foucault: as sexualidades e suas relações de poder

Para alguns e algumas teóricos/as queer seria um equívoco afirmar que Foucault teria instituído a política e o pensamento queer, ou mesmo, que o queer seja fruto maduro da árvore do pensamento foucaultiano. Como também não se pode afirmar que somente suas obras tenham produzido aquilo que chamamos de espírito queer - conteúdos questionadores, contestadores, desnaturalizadores e desconstrutivistas de padrões, normas e leis alçadas sobre as relações de poder.

Alguns desconsideram suas produções, associando-as à sua vida pessoal, enquanto muitos e muitas - sobretudo autoras feministas - embora reconheçam o valor de suas obras, reivindicam aprofundamentos maiores no pensar as condições de gênero (MCLAREN, 2016; MISKOLCI, 2017; SPARGO, 2017) e, sobretudo, o lugar das mulheres no conjunto da sua obra (FEDERICI, 2019).

Hoje, costuma-se dizer, inclusive a partir de muito/as teórico/as queer, que Foucault é, como qualquer outro autor, fruto de seu tempo e de seu meio. Da nossa parte, acreditamos que ele deixou o pé, senão o corpo todo, dentro da formulação teórica queer. Por esse motivo, partimos do pressuposto de que ele tinha, sim, interesses específicos de pesquisa, mas é evidente e constatável que suas obras renderam evidências antes impensadas. Tratando-se de compreender a sexualidade, estamos de acordo com Spargo (2017) ao afirmar que:

Ele estava mais interessado em como a “sexualidade” funciona na sociedade do que em saber o que ela é. Enquanto psicanalistas encorajavam seus pacientes a explorar os segredos sexuais que poderiam conter a chave da saúde mental e emocional, Foucault se dedicava a investigar como a psicanálise (entre muitos outros discursos) nos encoraja, ou mais aproximadamente nos incita, a produzir um saber sobre nossa sexualidade que é, ela mesma, cultural, e não natural, e que contribui para a manutenção das relações específicas de poder. (SPARGO, 2017, p. 16)

Pelo menos para a política queer, o primeiro volume de História da sexualidade parece levar o mérito maior, pois é decorrente de sua publicação, principalmente nos EUA, que os movimentos sociais tenham percebido melhor a sexualidade como um construto social, fomentado por tecnologias discursivas que ainda produziam relações de poder sobre suas bases, condicionando vidas em padrões hierárquicos. A obra caracteriza-se por um rico material histórico, cujo intuito parece ser o de compreender os discursos como formadores de sentidos para as práticas sexuais por/em alguns séculos.

Buscando compreender a sexualidade desde o vitorianismo do século XIV ao XVII, ele afirma que o discurso sobre as práticas sexuais nunca passou pelo interdito do silêncio, como enunciados indizíveis. Pelo contrário, houve historicamente um processo discursivo que pautara o controle, a vigilância e a disciplina, fomentados por métodos e criados por instituições de poder que seriam responsáveis por manter dentro de uma ordem e de uma moral, os indivíduos e seus corpos. A “hipótese repressiva” (FOUCAULT, 1988) parece desmistificar o inaudito tabu sobre o sexo - ou nas palavras de Foucault, o segredo -, mostrando que ao mesmo tempo em que se produzia o discurso de controle e vigilância sobre o sexo, este estava sendo suscitado a todo momento, sob o método da confissão.

Censura sobre sexo? Pelo contrário, constitui-se uma aparelhagem para produzir discursos sobre o sexo, cada vez mais discursos, susceptíveis de funcionar e de serem efeito de sua própria economia. Essa técnica talvez tivesse ficado ligada ao destino da espiritualidade cristã ou à economia dos prazeres individuais, se não tivesse sido apoiada e relançada por outros mecanismos. Essencialmente por um interesse público. [...]. Porém, por mecanismos de poder para cujo funcionamento o discurso sobre o sexo - por razões às quais será preciso retornar - passou a ser essencial. [...]. O essencial não são todos os escrúpulos, o “moralismo” que revelam, ou a hipocrisia que neles podemos vislumbrar, mas sim a necessidade reconhecida de que é preciso superá-los. Deve-se falar do sexo, e falar publicamente, de uma maneira que não seja ordenada em função da demarcação entre o lícito e o ilícito, mesmo se o locutor preservar para si a distinção [...]; cumpre falar do sexo como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar, mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. No século XVIII o sexo se torna questão de “polícia”. [...]. Polícia do sexo: isto é, necessidade de regular o sexo por meio de discursos úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição. (FOUCAULT, 1988, p. 29-31)

Na obra de Foucault, a confissão surge como meio através do qual as instituições de poder obtinham o controle de sua população e garantiam o seu espaço. Há que ressaltar que estamos a evidenciar aqui as instâncias que regulavam a vida ocidental entre os séculos XIV e XVII, emoldurados pela religião e pelo direito. De acordo com a obra, a confissão se solidifica como estratégia de dominação desde tempos remotos; até mesmo na própria cultura grega ela já estaria posta para aqueles rapazes que não queriam adentrar em suas maturidades. Em História da sexualidade II: o uso dos prazeres (2014), Foucault desconstrói a premissa discursiva que enfatiza ser a Grécia antiga, um lugar onde a perversão ou a pederastia seriam liberadas, e dedica um capítulo de sua obra a análises discursivas sobre os escritos filosóficos gregos e as produções cristãs sobre o sexo, a sexualidade ou as “intemperanças”, nos fazendo pensar que certa prática sobre os jovens tinha alguma limitação.

Com efeito, a prática cristã instituía-se como meio de salvação e libertação da alma dos pecados da carne. Esta, sendo oposição binária da alma, torna-se símbolo do discurso de condenação, como transgressão das regras divinas, ditadas pela narrativa bíblica. A carne, portanto, torna-se objeto de pecado sobre o qual se deve policiar, pois nela estariam contidos todos os desejos proibidos. Desse modo, a confissão se mantinha como estratégia regulatória em que o pecado era julgado, sendo difundida pelo discurso de preservação da moral cristã. Atrelada ao direito canônico, a confissão era o meio que levava os indivíduos à condenação sobre suas práticas sexuais, sendo os pederastas e sodomitas os sujeitos sentenciados.

O século XIX vem então para reescrever essa história. O sexo - que antes era “não dito, mas confessável” - passa a adquirir maiores dimensões, passando, a partir de então, a se transfigurar em objeto a ser analisado pelas ciências médicas. No entremeio dos séculos XVIII e XIX, o sexo torna-se objeto de curiosidade científica que determinaria na sua convenção todo um funcionamento da vida humana sobre os discursos modulares nos quais se pautavam como pressuposto natural, dando até mesmo às categorias de gênero esse caráter. É sobre o berço das ciências médicas que as sexualidades são instituídas, partindo do termo homossexualidade - que substitui o termo sodomia - para posteriormente criar o seu termo dual, a heterossexualidade.

Neste contexto, cabia à psiquiatria e sua função analítica buscar respostas para aquela doença que partia da mente de sujeitos degenerados sexualmente, que portavam um desvio do que se pensava como natural. O mais brando dos discursos científicos aparece através da psicanálise, que previa a homossexualidade como predisposição em todos os sujeitos, como um tipo de bissexualidade, obediente aos instintos e pulsões. Porém, a efetivação da prática era tida como um “defeito”, decorrente de uma má resolução do Complexo de Édipo, a qual impedia a identificação com o genitor do mesmo sexo e, por isso, devendo ser tratada nos moldes psicanalíticos.

Contudo, Foucault faz notar que o segredo de outrora passa a ser provocado, multiplicando-se em torno de vários discursos em diversos âmbitos da vida social. Há, então, uma “implantação perversa”, a partir da qual a sexualidade e seus efeitos degenerados eram concebidos como experimento, tais como ratos de laboratório, em meio à produção de dispositivos legitimados por poderes de caráter científico para tratá-los. O que se tem agora é um conjunto de instituições que passam a agenciar o sujeito em relação ao controle de sua doença.

Mas o essencial é a multiplicação dos discursos sobre o sexo no próprio campo do exercício do poder: incitação institucional a falar do sexo e a falar e a falar dele cada vez mais; obstinação das instâncias do poder a ouvir falar e a fazê-lo falar ele próprio sob a forma da articulação explícita e do detalhe infinitamente acumulado. (FOUCAULT, 1988, p. 24)

A confissão ganha outro sentido. Do cristianismo, ela tornar-se um método eficaz para a promoção de novos enunciados de sexualidade por intermédio de outras instituições, sobretudo científicas. Agora, o método/ação de confessar a vida privada poderia dizer as causas das perversões sexuais e por ela promover um tratamento. Dentro desse discurso, haverá a difusão de toda uma patologização da sexualidade e sua medicalização, assim como o controle por meio de um sistema político que consegue, na sexualidade, a sua economia, instituindo sobre a vida de homens e mulheres “regras e recomendações”, fazendo-os caminhar sob “a linha divisória entre o lícito e o ilícito” (FOUCAULT, 1988, p. 44).

O exame médico, a investigação psiquiátrica, o relatório pedagógico e os controles familiares podem, muito bem, ter como objetivo global e aparente dizer não a todas as sexualidades errantes ou improdutivas, mas, na realidade, funcionam como mecanismo de dupla incitação: prazer e poder. Prazer em exercer um poder que questiona, fiscaliza, espreita, espia, investiga, apalpa, revela; e, por outro lado, prazer que se abrasa por ter que escapar a esse poder, fugir-lhe, enganá-lo ou travesti-lo. Poder que se deixa invadir pelo prazer que persegue e, diante dele, poder que se afirma no prazer de mostrar-se, de escandalizar-se ou de resistir. [...] Poder-se-ia também dizer que ela [a sexualidade criada pela sociedade moderna] inventou, ou pelo menos organizou cuidadosamente e fez proliferar, grupos com elementos múltiplos e sexualidade circulante: uma distribuição de pontos de poder hierarquizados ou nivelados, uma busca de prazeres. [...]. Mas ela também é uma rede de prazeres-poderes articulados segundo múltiplos pontos e com relações transformáveis. (FOUCAULT, 1988, p. 52-53)

Toda uma “Scientia Sexualis” é promovida através de discursos, concebidos por Foucault (1988) como um conjunto de instâncias articuladas a produzir “verdades” sobre o sexo, criando, dessa forma, leis de normalização da vida. A verdade, então, estava relacionada a associações de poder em que autoridades do discurso hegemônico mantinham seu controle sobre as confissões. Elas eram produzidas e materializadas por um suposto saber/poder.

Por sua vez, o poder não era entendido por Foucault dentro de dicotomias ou contraposições dualistas como opressor/oprimido, burguês/proletário, rico/pobre etc. Nesta concepção, o poder não é um atributo difundido pelo Estado, como pressupõe a tradição marxista. Quebrando esse postulado, Foucault defende que o poder não está localizado em algo ou em alguém, não se objetifica, não se materializa. O poder circula e seria, antes de mais nada, uma força que se instaura em todas as relações. O poder é, portanto, móvel e permeia a vida de todos os sujeitos e instituições, sendo por eles produzidos e reproduzidos (FOUCAULT, 1988, 2011, 2017).

É com essa percepção que o autor irá considerar que também a sexualidade, enquanto dispositivo de poder, permeia todas as relações - sejam elas públicas ou privadas -, se manifestando nas subjetividades individuais e coletivas e fomentando, sempre, práticas de resistência.

Para ele, o poder está sempre produzindo a resistência e jamais a restringindo por completo: “Não há relações de poder sem resistências; estas são tão mais reais e eficazes quanto se formem ali mesmo onde se exercem as relações de poder”. (SPARGO, 2017, p. 20)

Dessa maneira, o próprio Foucault atenta em História da sexualidade, para o que chamou de “discurso de reação” - um tipo de efeito que se manifestaria contra enunciados primeiros. Sobre a homossexualidade, é evidente a força negativa sobre a qual as ciências médicas e seus predecessores a direcionam, renegando-lhe ao status de doença, perversão, desvio e outras patologias, de modo a haver uma identificação dos sujeitos “desviados” com aquilo que esses discursos e seus enunciados, lhes tornavam. Contudo, é na não identificação que se encontram as possibilidades de outras práticas discursivas. Pois ao não se reconhecerem naquelas produções gays, lésbicas e de outros/as, tais sujeitos desviados poderiam se voltar contra aquilo que os instrumentalizava como ilegítimos, reagindo com um contradiscurso, e valendo-se de estratégias criadas para o enfrentamento daquilo que os desqualificava.

Spargo (2017) entende que esse ideal foucaultiano chega para explicar os movimentos que levantam bandeiras afirmativas e identitárias, mas buscando contrapor e remodelar os sentidos dos discursos para uma nova luta política. O discurso de reação é uma percepção inicial e motivadora da ressignificação discursiva proposta pela teoria queer. A respeito de tal proposta, não se pode negar a influência de Foucault.

No livro Em defesa da sociedade (1999), Foucault busca explicar toda a produção analítica do poder a partir da biopolítica. Trata-se de uma premissa da ciência e de sua imersão no mundo moderno, postulada pelo caráter das ciências médicas, cuja formação se daria com um propósito regulamentador do Estado. Ou seja, a biopolítica concretiza uma confluência de práticas médicas voltadas à gestão da vida e da morte de corpos, assumindo a regulação de toda uma população.

No século XIX, com o efeito das práticas médicas, as patologias e tratamentos criados sobre a égide da biopolítica se processaram como dispositivos e estratégias do poder, as quais promoviam domínios sobre as condições do corpo. Enquanto produziam uma degenerescência - uma patologia (principalmente moral) - enquadravam, ao mesmo tempo, a condição do outro em um padrão de normalidade e regularidade. É preciso, então, gerir a patologia, tratá-la, curá-la e “recuperar” as pessoas e a população acometida, transformando-as em um tipo de padrão universal de “homem espécie”, saudável e normal.

E vocês compreendem então, nessas condições por que e como um saber técnico como a medicina, ou melhor, o conjunto constituído por medicina e higiene, vai ser no século XIX, um elemento, não o mais importante, mas aquele cuja importância será considerável dado o vínculo que estabelece entre as influências científicas sobre os processos biológicos e orgânicos (isto é, sobre a população e sobre o corpo) e, ao mesmo tempo, na medida em que a medicina vai ser uma técnica política de intervenção, com efeitos de poder próprias. A medicina é um saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a população, sobre o organismo e sobre os processos biológicos e que vai, portanto, ter efeitos disciplinares e efeitos regulamentadores. (FOUCAULT, 1999, p. 301-302)

A medicina social e o higienismo promulgam o que Foucault chama de “racismo”, o que consideramos ser uma autodefesa mal-informada pelo saber/poder médico, na qual o direito de viver está condicionado à posição nos efeitos de disciplinas e regulações dessas tecnologias de poder. Assim, exterminando o outro, a sociedade não estaria somente se livrando de uma erva daninha perigosa, mas limpando-se da possibilidade de praga.

Com efeito, o que é o racismo? É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros. [...]. Essa é a primeira função do racismo: fragmentar, fazer censura no interior desse contínuo biológico a que se dirige o biopoder. (FOUCAULT, 1999, p. 304-305)

A sexualidade seria um dispositivo biopolítico por excelência. Esse mesmo discurso traz consigo uma gama de produções e preleções que se materializam em efeitos disciplinares, como é o caso da pedagogia da sexualidade ou do controle da masturbação dos jovens no século XIX, da natalidade, da reprodução, da saúde mental e da morbidade, bem como de outras regulações, materializadas sobre as políticas sociais baseadas nos discursos da anatomia do sexo.

A homossexualidade e demais práticas sexuais não normativas ganham as condições de desvio, doença, patologia, degenerescência, as quais precisam ser tratadas, higienizadas ou expurgadas do meio social. Assim, se promulgaria o racismo nas vidas homossexuais e todo e qualquer sujeito identificado com elas, estaria estritamente condenado a ser somente um sujeito sexual, com essa única personificação. A homossexualidade, desse modo, seria tacitamente sexual, seria o desvio e a doença, não se obtendo outro papel para ela.

Portanto, não conseguimos perceber a teoria queer sem pensar os postulados foucaultianos que a embasam - como, por exemplo, a teoria da sexualidade, em que o autor afirma que sexualidade é discurso e, por isso, tem composições históricas, sociais e culturais, devendo ser lida como construção discursiva e enunciativa, jamais apenas biológica. Essa premissa, que está no cerne do pós-estruturalismo, é a base de grandes obras dos estudos queer que procuram se afastar e contestar os discursos naturalizantes e biologicistas, que se tornam normativas, criando binarismos e evidenciando desigualdades na vida social.

Jacques Derrida: as estratégias de desconstrução

Outro expoente cujo pensamento contribui para as bases de formação analítica queer é Jacques Derrida - filósofo francês, natural da Argélia, que teve Michel Foucault como professor durante sua formação. Começou a ter maior notoriedade a partir de 1966, quando foi convidado pela Johns Hopkins University para compor um debate sobre as controvérsias do pensamento estruturalista, apresentando brilhantes reflexões acerca do estruturalismo descrito nos estudos de Ferdinand de Saussure (MENESES, 2013; PETERS, 2000). A partir de então, a proposta desconstrutivista surge nas intenções produtivas do autor e toma materialidade na obra Gramatologia (1973) - um dos seus primeiros trabalhos - que tem grande influência na constituição do pensamento queer. Talvez se possa afirmar ser aquela que constitui uma reflexão analítica pioneira, que molda as subsequentes formulações de uma teoria queer.

Derrida defende que é a partir das manifestações linguísticas e das relações sociais que se criam binarismos que resultam em identidades afirmadas ou negadas, reforçando-se nos domínios do que estava, por assim dizer, “construído”. Essa sua perspectiva desconstrutivista foi um marco na formação do pós-estruturalismo (MAJOR, 2002; MENESES, 2013), sobre o qual se ancora a teoria queer.

A proposta de Derrida nasce também de uma crítica feita no âmbito da filosofia de Martin Heidegger, excepcionalmente da metafísica ou da ontologia da diferença. Derrida enfatiza que essas nunca se afastaram da vinculação que identifica pares de oposição. Afirma que os binarismos criam forças que se manifestam sobrepujando um termo por outro, inferior, criando, assim, hierarquias. Esse seria o processo em que o termo criado, em contradição ao segundo, teria efeito na realidade dos sujeitos.

Com essas reflexões, Derrida rompe com aquilo que nomeou de “logocentrismo”: um sistema articulado de produção da linguagem e da cultura ocidental, que cria pares de oposições, em que as hierarquias se organizam, constituindo sobre si forças que controlam a realidade social (MAJOR, 2002; VASCONCELOS, 2003). O logocentrismo, para Derrida, parece ser o irmão gêmeo do etnocentrismo.

É com o pressuposto da centralidade do Eu - produto desse processo de ser o contrário do que é o Outro - que o filósofo desestrutura a operação binária que se determina na oposição de dentro e de fora, problematizando o logocentrismo e os cálculos estruturalistas das construções da linguística ocidental. A argumentação do autor se monta a partir da ideia de que nenhuma oposição permanece inteiramente dentro ou fora do centro, mas são produzidas num movimento, numa interconexão da qual suas próprias identidades são causas e sobre as quais elas se deslocam em posições de dominação. Assim, Derrida afirma que as construções linguísticas são frutos da experiência e, ao mesmo tempo, criam novas realidades entre os sujeitos, no que diz respeito às formas de dominação.

A desconstrução nasce contradizendo o logocentrismo que produz a dominação, buscando inverter com isso as hierarquias produzidas.

A desconstrução visa inverter a hierarquia dos conceitos, procurando pensar o segundo termo como principal e originário. Na relação entre causa e efeito, por exemplo, este é tradicionalmente entendido como secundário e derivado daquela. Mas, em nossa experiência, primeiramente constatamos a manifestação do efeito, para então remontarmos a suas causas. Assim concebido, o efeito é que deveria ser tido como originário, pois é por causa dele que um fenômeno pode ser concebido como causa. Em outras palavras, numa perspectiva desconstrucionista, o efeito é entendido como a causa de sua própria causa. (VASCONCELOS, 2003, p. 75, grifos do autor)

Portanto, o efeito precede a causa, sendo este, a causa de sua causa. Com isso, Derrida postula que o efeito só pode ser visualizado a partir do Outro, daquele que se caracteriza como ser na sua diferença (Différance). Assim, o reconheço por aquilo que ele não é ou pela ausência que há nele, sobre a presença que há em mim. Se pensarmos assim, as oposições binárias somente se constituem por seus aspectos negativos, inferiores ou subalternos na lógica logocêntrica, no que estaria de fora. Contudo, seu aspecto positivo e superior só existe pela própria convenção do que o difere do Outro.

A perspectiva desconstrucionista derridiana volta seu olhar para a inversão das hierarquias, postulando que é necessário pensar primeiro o Outro para então chegar ao efeito que cria as construções sociais. Fazendo isso, Derrida, para além de derrubar as hierarquias, propõe pensar a partir da voz subalterna, sempre silenciada. Dessa maneira, ele é consciente de que inverter a hierarquia não quer dizer eliminá-la, pelo contrário, se estabelece outro modo de hierarquia e dominação. Para isso, Derrida estaria à espreita do que chamou de “jogo”: aquilo que não está nem dentro nem fora do centro, mas o que é anterior à sua própria criação (VASCONCELOS, 2003)

Se pudermos pensar sobre a diferença de gênero, o masculino, dado como objeto de dominação, somente existe diante da sua oposição, o feminino. Mas o que precederia a construção do feminino? Poderíamos pensar que o sexo precede o gênero e suas condições normativas. Mas o que precederia o sexo? Fazendo uma análise do dildo (vibrador ou pênis de plástico), Paul Beatriz Preciado, à luz de Derrida, afirma que para filosofia tradicional e para a psicanálise de Lacan, seria o falo. Entretanto, o falo não quer dizer pênis. Mas o que quer dizer?

O dildo não é o falo e não representa o falo porque o falo, digamos de uma vez por todas, não existe. O falo não é senão uma hipótese do pênis. Tal como mostra a atribuição de sexo no caso de bebês intersexuais, isto é, naqueles bebês cujos órgãos sexuais não podem ser identificados à primeira vista como simplesmente masculinos ou femininos [...], a chamada diferença sexual “natural” e a ordem simbólica que dela parece derivar não passam de uma questão de centímetros. (PRECIADO, 2014, p. 78)

Como se pode perceber, o jogo não se concretiza em um outro conceito ou postulado na relação opositora, ele não ocupa espaço na relação hierárquica; o jogo seria, por assim dizer, uma “incessante alternância de premissa de um termo sobre o outro, produzindo assim, uma situação de constante indecisão” (VASCONCELOS, 2003, p. 75). O jogo estaria numa constante mobilidade entre presença e ausência, dentro e fora, ao mesmo tempo, ele não os ocupa, nem se torna resultado; assim como não seria a síntese da dialética hegeliana, mas uma alternativa que possibilitasse pensar aquilo o que precede, o que o torna possível (VASCONCELOS, 2003).

O jogo seria o postulado primeiro da desconstrução que, para Derrida, não se afirma como método, muito menos como conceito. Se assim fosse, estaria em contradição, tendo em vista que o desconstrutivismo tem a pretensão de subverter esses conceitos que acabam por se tornar binários e criadores de normas. O que a desconstrução faz é buscar os limites para questioná-los e, então, trazer possibilidades de ver além deles.

Se Michel Foucault tinha um de seus membros na lógica e na formação do que se propunha na analítica queer, Jacques Derrida parece ter lançado tanto o corpo todo, como o espírito, quando concebe as premissas da estratégia da desconstrução. Ou talvez seja melhor inverter a metáfora e pensar que o corpo queer é que deu vazão à incorporação pelo espírito derridiano. Pois a maior parte das produções dos/as teóricos/teóricas queer buscam a problematização, a desconstrução, a antinormatividade como tendência para pensar cada um dos problemas sem lhes atribuir métodos ou modelos. De fato, nem a teoria queer, nem a desconstrução derridiana, pretendem se afirmar como modelos ou métodos, mas como pensamento político que traz à tona os limites das forças normalizadoras, chamando atenção para a justiça do subalterno (RODRIGUES, 2010).

A teoria queer não trairia o autor ao afirmar que a desconstrução é uma abordagem, ou melhor, uma estratégia com a qual se quer problematizar as normas heterossexualizadoras e masculinizadoras que perpassam vários âmbitos e instituições sociais por elas criadas, forjando pares de oposição hierarquizadas, tomando uma como inferior e contrastante à outra, movendo vidas em direção a situações precárias.

Derrida postula que a diferença sexual é uma questão crucial no debate sobre a ética e sobre a justiça, para além de ser, ela uma categoria que gera poder e regula a vida dos sujeitos. Carla Rodrigues (2010), filósofa feminista queer, que dedicou sua vida acadêmica tentando mostrar a necessidade da desconstrução derridiana para o feminismo, considera que, para o filósofo argelino-francês, haveria uma necessidade específica de pensar a diferença sexual, principalmente a partir das reivindicações que pautavam os movimentos feministas da segunda onda - aquela que Derrida pôde presenciar, alertando sobre o patriarcado disfarçado de igualdade e identidade.

Para Derrida, a lógica da igualdade era, ao mesmo tempo, um disfarce do sistema patriarcal de se manter no domínio das relações, considerando que o seu discurso em nada contribuiria para a emancipação feminina ou mesmo homossexual, tendo em vista que as normas estabelecidas seriam estritamente masculinas e heterossexuais. A reivindicação por igualdade seria uma demanda para manter-se na norma e ser diferente; assim, essas categorias ganhariam outro nível de subalternidade, sendo justificadas pelas suas diferenças sexuais e de gênero (RODRIGUES, 2010).

As feministas essencialistas, por mais que estivessem embasadas sobre o ponto de vista de Simone de Beauvoir, no qual viam o gênero como uma construção social discursiva, se mobilizando em ações afirmativas de suas identidades enquanto mulheres, ainda estavam essencializadas nas discursividades biologicistas que as diferenciavam, tanto que seria necessário pensar outra categoria para as mulheres transexuais. Ou seja, transexuais ainda não eram vistas como mulheres, mas mulheres trans e qualquer divergência do determinado corpo feminino não poderia ser legitimado em meio às suas lutas. As feministas essencialistas foram consideradas as feministas separatistas da segunda onda, pois criavam identidades para qualquer outro corpo diferente do já instituído pela biologia. Isso fazia com que o corpo da mulher, sem qualquer característica diferente da normativa, fosse tomado como superior, hierarquizando e separando a condição de ser mulher.

Com isso, Derrida vem, através da desconstrução do conceito de identidade, propor às mulheres feministas, assim como aos homossexuais, que repensem suas identidades sexuais e de gênero, afirmando estarem, com isso, reforçando o sistema binário que os/as excluem, assim como retroalimentando o lado oposto, que cria normas para as manifestações dessas identidades. O que Derrida então enfatiza é que a categoria mulher está rodeada de personificações patriarcais, instituídas nas formas mais sublimes de suas vidas privadas, as quais são renegadas à dominação masculina intrinsecamente atuante em seus corpos, mentes e espíritos, nas suas vidas e relações. Com isso, ele abre espaço para continuação de estudos que reivindicam a não identidade, o que seria bastante analisado por feministas como Judith Butler e Gayatri Spivak, grandes nomes formuladores do pensamento queer (RODRIGUES, 2010).

Mas Derrida nem sempre foi aceito como sujeito defensor do feminismo pelas feministas, principalmente as da segunda onda, que por muitas vezes impetraram à desconstrução da identidade a formação mais perversa do patriarcado, aquela que se mascara na forma de reivindicação anarquista. Nomes, como o de Margaret Whitford, viam que a desconstrução da identidade fragmentava os grupos de mulheres, fazendo com que se dissipassem em uma ideia não unitária de engajamento sobre o principal objetivo feminista que, em suma, resumir-se-ia à violência contra a mulher (RODRIGUES, 2010) - enfatizando que ela seria (a desconstrução) o que há de mais conservador, já que enquanto reinvindicação política, não se propunha a criar uma nova forma de fazer política, mas de desorganizar suas bases.

O que as feministas antidesconstrucionistas e antiqueer não perceberam é que a desconstrução derridiana já atentava para a pluralidade de grupos, percebendo que alguns não tinham, numa escala hierárquica, o domínio e a soberania nas instituições de certas normas. Conquanto à sua articulação política, a desconstrução não poderia renová-la, sob pena de cair numa contradição epistemológica. Enquanto a política se estabelece por normas, a desconstrução as questiona, buscando alcançar seus limites, desorganizando-as, para, no caos, encontrar possibilidades de fazer viver.

Cornell também considera que uma das importantes contribuições do pensamento da desconstrução à política e à teoria feminista está no fato de que a desconstrução considera a diferença sexual como questão “crucial” no debate sobre ética. Derrida questionou a hierarquia de gênero ao problematizar a divisão binária masculino/feminino, mostrando como essa é mais uma oposição convencional sustentada por uma hierarquia que toma o masculino como universal. [...]. Para Derrida, é precisamente a possibilidade de reinterpretação do feminino que oferece às mulheres a esperança de não serem para sempre aprisionadas em papéis de gênero que, embora muitas vezes pareçam “libertadores”, também correm o risco de funcionar, segundo Derrida, como “novas determinações topográficas”. (RODRIGUES, 2010, p. 224)

Acusado de antinormativismo e de anarquista científico pelos/as mais variados/as cientistas - feministas e não feministas -, Derrida nega o local que lhe atribuem. Em Choreografies, entrevista concedida a Cristine V. McDonald, ele justifica suas posições trazendo coerência ao feminismo defendido por Drucilla Cornell sob o ponto de vista de que a desconstrução, enquanto chamado de justiça com voz de subalterno, seria para o feminismo “uma concepção de justiça que não aprisiona as mulheres” (RODRIGUES, 2010, p. 224).

Contudo, numa opinião particular nossa, o anarquismo desconstrutivista derridiano, se é que ele existe, caracteriza modos de subversão que se somam às formas mais justas de pensar a diferença pela chave da equidade, sendo essa última, não aquilo que se calcula ou que se iguala, mas a diferença que tem demandas e precisa ser ouvida. Neste contexto, não há nada mais queer do que a anarquia derridiana.

Considerações Finais

Foucault e Derrida não fundaram a Teoria Queer, mas ambos se tornaram precursores de seus/suas teóricos/as. Ainda que sobre eles se encontrem divergências, desacordos e críticas, a grande maioria dos/as autores/as queer partem de suas leituras. Tanto um quanto outro trouxeram uma gama de contribuições analíticas sobre as quais a Teoria Queer buscou se apoiar, acerca das reflexões produzidas sobre o olhar da desnaturalização e da desconstrução, voltado às relações de poder sob as quais se pautam as sexualidades, os binarismos e as hierarquias sociais e de gênero.

A nossa proposta ao destacar a contribuição desses autores - dentre tantos e tantas que poderíamos ter escolhido - volta-se ao lugar de pioneirismo e de originalidade das suas ideias, que contribuíram de modo relevante para a produção de uma Teoria Queer, ainda em construção. E também, de modo particular, ao que suas ideias suscitaram como prática política, tanto na academia, quanto nos movimentos sociais que se reúnem empunhando a bandeira LGBTQIA+. Parece-nos que mais do que a diversidade, a multiplicidade, a pluralidade e até mesmo as divergências que se abrigam sob a chamada “sopa de letrinhas”, o que está posto como proposta e capacidade de aglutinação, organização e resistência política desse grande movimento - que agrega coletivos, grupos, comunidades, militantes, ativistas, artistas, pesquisadores/as etc. - é a capacidade de reconhecer e potencializar a Diferença. Em tempos de fascismos e genocídios como os que vivemos, a capacidade de respeito, convivência e proteção à Diferença deve ganhar força e potência, sobretudo quando concebida na perspectiva da interseccionalidade, considerando os cruzamentos entre gênero, raça e classe.

A Diferença é o grande tema de Jacques Derrida e de Michel Foucault, que transversaliza toda a obra de ambos. Para Foucault, inicialmente, o diferente é aquilo/aquele que, pelo discurso médico e jurídico, escapa à normalidade; é classificado, esquadrinhado e patologizado; é o anormal que deve ser disciplinado e controlado. Mas é também o insurgente, aquele que se desvia das normas e delas escapa, a elas reage ou resiste, porque onde há poder, há resistência (FOUCAULT, 1988). Para Derrida, a grande Diferença é dada pelo Outro; portanto, é necessária numa relação de desconstrução identitária que se interpele, questione e descontrua as normas que fundam as relações sociais, colocando em xeque as hierarquias e os binarismos, sobretudo de gênero. O resultado dessa desconstrução torna a Diferença possível na sua expressão radical, produtiva de novas relações. Numa tentativa de construção de um novo sentido para a Diferença - a qual nomeou de Différance (diferança com “a”) - Derrida (1991) nada mais fez que nos mostrar que ela não se dá por negação, não se atribui à oposição ou à distinção, mas sim por afirmação, e ao aparecer, desaparece, requerendo assim sua estranheza que não se deixa nomear, bem como queer.

Mas, afinal, a que a Diferença pode nos convocar através da ação de “diferir”?

Nas palavras de Passetti (2012):

[...] diferir não nos remete apenas ao diferente, em seus antagonismos de combate ou capturas para a convivência pacífica, mas a uma maneira de viver a diferença [...] aquele que difere busca uma relação própria com outro igual na atitude rompedora com condutas. Neste exato instante, por ouvir e partilhar, eles diferem de maiorias e minorias numéricas, afirmando o rompimento com o fixo, constante e imutável. Transbordam diante das imensidões que jamais imaginaram pisar. Expressam e consolidam uma revolta contra o estado das coisas, convenções, desejos, utopias e se lançam na experimentação inédita provocada por suas divergências e convergências, estabelecendo uma harmonia entre contrários. (PASSETTI, 2012, p. 79, grifos do autor)

A Teoria Queer é afirmadora da Diferença, de uma singularidade, diversidade, multiplicidade e pluralidade sem muros, insuportável para a normalidade, para os binarismos, para as hierarquias, afirmadas por outras teorias, práticas discursivas e corpos formatados. Pensá-la a partir do legado de grandes pensadores, como Foucault e Derrida - nossa tentativa nesse artigo - parece ser um modo de afirmar sua potência, como pensamento e prática política.

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1Este conceito é de Adrienne Rich, fundamentado no texto “Heterossexualidade compulsória e existência lésbica” (2010). Para a autora, a heterossexualidade tornou-se um atributo que perpassa todo o sistema cultural e acaba se incorporando na forma de pensar das mulheres e, como isso, de certo modo, acaba por colocar em xeque a existência das lésbicas. O termo heterossexualidade compulsória vem significar a produção violenta das normas sexuais dominantes hétero sobre toda intersubjetividade política/social/cultural, que impossibilita a existência dos dissidentes de tais normas.

Recebido: 16 de Setembro de 2021; Aceito: 19 de Janeiro de 2022

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