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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.75 Uberlândia set./dez 2021  Epub 16-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n75a2021-62999 

Artigos

As possibilidades do cinema no ensino das humanidades

The possibilities of cinema in humanities teaching

Las posibilidades del cine en la enseñanza de las humanidades

*Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor Adjunto da Universidade Federal do ABC (UFABC). E-mail: la.salvia@ufabc.edu.br


Resumo

Tradicionalmente usado como ilustração e sensibilização de conteúdos curriculares, propomos neste artigo um outro modo de usar cinema como recurso didático no ensino de humanidades. Em um primeiro momento, fazemos uma crítica acerca das práticas mais usuais, levantando o problema se com elas o cinema de fato pensa. Em um segundo momento, a partir da concepção proposta por Gilles Deleuze, propomos encarar o cinema como instaurador de processos mentais através de suas técnicas de enquadramento, decupagem e montagem. Confrontamos a proposta de Deleuze com a de Julio Cabrera, para analisar criticamente a relação do pensamento com o cinema. Discutimos teoricamente esta distinção e também apresentamos práticas didáticas possíveis relacionadas a ambos os procedimentos. O artigo procura refletir tanto sobre as teorias quanto as práticas possíveis, tendo em vista a relação pensamento e cinema.

Palavras-chave: Ensino; Filosofia do Cinema; Humanidades; Cinema

Abstract

Traditionally used as an illustration and sensitization of curriculum content, we propose in this article another way of using cinema as a didactic resource in humanities education. At first, we criticize the most common practices, raising the issue of whether cinema really thinks with them. In a second moment, based on the conception proposed by Gilles Deleuze, we propose to face cinema as the instigator of mental processes through its framing, decoupage and editing techniques. We compare Deleuze's proposal with Julio Cabrera's to critically analyze the relationship between thought and cinema. We theoretically discuss this distinction and also present possible didactic practices related to both procedures. The article seeks to reflect on both theories and possible practices in the relationship between thought and cinema.

Key-words: Teaching; Film Philosophy; Humanities; Cinema

Resumen

Tradicionalmente utilizado como ilustración y conciencia de los contenidos curriculares, proponemos en este artículo otra forma de utilizar el cine como recurso didáctico en la educación en humanidades. En un primer momento, criticamos las prácticas más habituales, planteando la cuestión de si el cine realmente piensa en ellas. En un segundo momento, partiendo de la concepción propuesta por Gilles Deleuze, nos proponemos afrontar el cine como impulsor de los procesos mentales a través de sus técnicas de encuadre, decoupage y edición. Comparamos la propuesta de Deleuze con la de Julio Cabrera para analizar críticamente la relación entre pensamiento y cine. Teóricamente discutimos esta distinción y también presentamos posibles prácticas didácticas relacionadas con ambos procedimientos. El artículo busca reflexionar tanto sobre teorías como posibles prácticas ante la relación entre pensamiento y cine.

Palabras clave: Docencia; Filosofía del Cine; Humanidades; Cine

Introdução

Filme clichê é aquele que repete uma fórmula consagrada pela audiência. Se determinado tipo de trama, ou perfil de personagem, ou modo de contar a história atrai grandes audiências, ele tende a se repetir. O tema que nos faz pensar aqui também é clichê, porque já foi dito e visto várias vezes. Não faltam artigos, dissertações, teses sobre o uso do cinema no ensino das humanidades, ou em cada uma das disciplinas que compõem a área - sociologia, geografia, história e filosofia.

Porém, pareceu-me que ainda havia uma questão a ser colocada e que podia nos fazer pensar um pouco mais. Afinal, quando é que o cinema faz pensar? Os grandes clichês da área para responder a essa questão são dois: ou os filmes fazem pensar quando ilustram conteúdos ou sensibilizam para conteúdos. Duas referências, para a ilustração e sensibilização, são Napolitano (2003) e Morán (1995) e, no caso específico do ensino da filosofia, há a proposta de Gallo (2006), na qual a sensibilização é uma das partes, a etapa inicial, do seu método de ensino de filosofia.

Opera-se com o cinema para ilustrar quando se reforça o sentido de um conteúdo curricular através de um filme. Como afirma Morán (1995, p. 30), “O vídeo muitas vezes ajuda a mostrar o que se fala em aula”. Um exemplo seria passar o filme Troia1, para ilustrar um conteúdo de antiguidade grega, ou Era o hotel Cambridge2, para ilustrar a questão dos refugiados e das ocupações urbanas em nossas cidades. O que se faz nessa prática é colocar as imagens para reforçar o conteúdo, o sentido, que está no livro didático, no tema, ou no conteúdo curricular apresentado pelo professor. O filme é um segundo suporte de explicação que coincide com o primeiro. O filme, portanto, tem o mesmo sentido e conteúdo do objeto de aprendizagem e os suportes de expressão se reforçam.

A sensibilização é ligeiramente diferente, mas não menos instrumental. A diferença é a pretensão que a sensibilização tem de despertar o interesse dos discentes ao tema e não necessariamente coincidir o sentido. Novamente Morán (1995, p. 30) afirmando que a sensibilização serve “para introduzir um novo assunto, para despertar a curiosidade, a motivação para novos temas. Isso facilitará o desejo de pesquisa nos alunos para aprofundar o assunto do vídeo e da matéria”. Aqui, por exemplo, podemos exibir o filme Show de Truman3 e depois seguir o plano de ensino e trabalhar com o diálogo platônico da alegoria da caverna. A intenção da sensibilização não é duplicar suportes apenas, mas mostrar que, além de uma apreensão teórica, há uma forma mais sensível e artística de tratar de terminado tema e que esse filme possui outros sentidos e modos de vê-lo que não estão apenas relacionados ao conteúdo escolhido. No exemplo, poderia ser a distinção entre o real e o aparente e nosso nível de consciência da interação entre essas duas esferas do conhecimento humano. Porém, no caso platônico, se trata da sensibilidade e da abstração e, no caso do filme, dos poderes de manipulação das mídias. Os sentidos resvalam, porém, vão para caminhos outros que podem, ou não, serem explorados pelo professor como subtemas.

Em ambos os casos, o cinema é um instrumento didático. Está a serviço do conteúdo curricular. E muitas das produções teóricas que existem a disposição dos professores vão no sentido de contribuir para a construção de práticas a partir desses dois paradigmas. Nossa preocupação aqui é dizer que, nesses casos, o cinema não está sendo usado para nos fazer pensar. Ao contrário, talvez ele esteja pensando em nosso lugar.

“As imagens moventes substituem meus próprios pensamentos”

Essa preocupação também não é nova. Já foi evocada pelo filósofo Gilles Deleuze, em um conjunto de aulas no ano letivo de 1984-1985, na Universidade de Vincennes, que tinha como título “Cinema/Pensamento”4. A evocação faz referência a Georges Duhamel (1948) que, em sua obra Scenes de la vie future, afirma

Ainda sinto todas as partes do meu corpo, mas estou começando a não sentir minha alma muito bem. Assim como no dentista. O lugar da minha alma se torna duro, estrangeiro, dolorosamente estrangeiro. Eles vão arrancar isso de mim, minha alma, como um dente ... Eu não posso mais pensar o que eu quero. As imagens moventes substituem meus próprios pensamentos.5 (DUHAMEL, 1948, p. 43)

Toda a obra de Duhamel é um relato do estilo de vida americano e foi publicada, originalmente, em 1930. Nesse capítulo, “Interlúdio cinematográfico ou entretenimento do cidadão livre”, trata da ida a um cinema, desde as características do prédio, sobre a música e o filme, bem como o impacto do filme nas pessoas. O que interessa a Deleuze na frase é a relação do cinema com o pensamento, no caso, o que significa dizer que o filme pensa no lugar do espectador? A resposta são as imagens moventes.

O termo “imagem movente” se refere não só aos movimentos que ocorrem nas imagens, mas também a montagem. É esta que impõe seu funcionamento ao pensamento. A montagem é o encadeamento dos planos através dos cortes e que formam um todo do filme que passa, que vai passando conforme o filme avança. Deleuze dirá, a partir disso, que a montagem faz o automovimento das imagens, a montagem faz a imagem mover a si mesma, automaticamente. O automovimento é feito das relações entre as “partes” que a montagem vai tecendo, bem como do “todo” do filme, que é o resultado das relações dessas partes todas e que só temos no final. O “todo” não é a mera soma das “partes”, mas algo outro, é o próprio sentido do filme. Afirma Deleuze (2011, p. 192) que “a imagem cinematográfica deve ter um efeito de choque sobre o pensamento e forçar o pensamento a pensar tanto em si mesmo quanto no todo”.

Deleuze chega a comparar este automovimento aos monólogos interiores e correntes de pensamento, que todos nós desenvolvemos, e propõe que este automatismo da imagem material desperta um automatismo espiritual, que é o que se passa com o nosso pensamento.

Então, além do que é exibido na tela e que está em movimento, o cinema aposta, também, em um automatismo espiritual - ordem formal que os pensamentos se deduzem uns dos outros. O fato de uma sequência de imagens fazer nosso pensamento se deduzir um após o outro faz das imagens uma matéria noética, faz da montagem do cinema a expressão do próprio pensamento. Por isso, Deleuze inverte a fala de Duhamel e propõe que o cinema nos força a pensar. Com ele, somos obrigados a dizer que “não podemos não pensar”, está ali, na tela, evidente, essa cena, depois essa, dá nesse sentido - é um processo mental em imagens.

O que nos parece mal colocado na questão se o cinema faz pensar é que, na maioria dos casos em que se propõe a usar o cinema na aula de humanidades, ele é suporte para a discussão. Ou seja, algo que é mostrado na tela suscita temas que são prolongados pelos docentes. Seja para ilustrar um tema, como quando se usa Troia para ilustrar a Grécia Antiga em um conteúdo de história, ou A onda6 e Arquitetura da destruição7 para ilustrar um conteúdo de fascismo/nazismo e totalitarismo. Seja para mostrar que um filme pode recolocar um problema já proposto por filósofo, como quando dizemos que Show de Truman reapresenta o problema da divisão de mundos de Platão. Em todos esses casos, o conteúdo exibido é relacionado a temas e problemas das humanidades e são costurados pelos docentes em sala de aula.

O que quero propor aqui é que eles não abordam o cinema como o próprio pensamento e que a montagem do filme, portanto, sua forma não é tematizada. Ao não tematizarmos a forma, não estamos tematizando a dimensão de que o cinema nos faz pensar e, na maioria das vezes, ele pensa no nosso lugar.

Automovimento da imagem

Gilles Deleuze escreveu dois livros sobre o cinema, o primeiro, chamado Imagem-movimento e, o segundo, Imagem-tempo. Sua abordagem é bastante peculiar, pois aborda o cinema a partir da teoria do conhecimento de Henri Bergson para tratar de como nossa inteligência se relaciona com a percepção das coisas, do movimento, do tempo e também da memória. Apesar de partir de Bergson, Deleuze junta uma leitura da teoria dos signos, de Charles Sanders Pierce, para tratar de como a montagem é construída através de signos prolongado pelas imagens, criando um elo entre elas. Para apresentar essa teoria, ele faz comentários a mais de 700 filmes e 150 cineastas, o que parece muito, mas é preciso frisar que Deleuze foi um cinéfilo a vida toda e só escreveu os livros no final da vida.

Usando as ideias de Bergson, Deleuze vai nos dizer que o cinema opera um automovimento das imagens porque a montagem usa princípios retirados do próprio funcionamento da percepção e do reconhecimento natural humanos.

Diz Bergson (1999) que nós percebemos as imagens ao nosso redor, sendo que nós mesmos somos uma imagem entre tantas:

Eis-me na presença de imagens, imagens percebidas quando abro meus sentidos [...] Meu corpo é, portanto, no conjunto material, uma imagem atual como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento, com a única diferença, talvez, de que meu corpo parece escolher, em certa medida, a maneira de devolver o que recebe. (BERGSON, 1999, p. 11)

e

Minha percepção, em estado puro e isolado de minha memória, não vai de meu corpo aos outros corpos: ela está no conjunto dos corpos em primeiro lugar, depois aos poucos se limita, e adota meu corpo como centro. E é levada a isso justamente pela experiência da dupla faculdade que esse corpo possui de efetuar ações, e experimentar afecções, em uma palavra, pela experiência da capacidade sensório-motora de uma certa imagem privilegiada entre as demais. De um lado, com efeito, essa imagem ocupa sempre o centro de representação, de maneira que as outras imagens se dispõem em torno dela na própria ordem em que poderiam sofrer sua ação; de outro lado, percebo o interior dessa imagem, o íntimo, através de sensações que chamamos afetivas, em vez de conhecer apenas, como nas outras imagens, sua película superficial. Há portanto, no conjunto das imagens, uma imagem favorecida, percebida em sua profundidade e não apenas em sua superfície, sede de afecção ao mesmo tempo que fonte de ação, é essa imagem particular que adoto por centro de meu universo e por base física de minha personalidade. (BERGSON, 1999, p. 63)

O que a montagem faz é tomar como modelo o processo descrito por Begson, a saber, toma a consciência do espectador como o centro que percebe as imagens e as coloca, em sequência, em um automovimento sensório motor, na qual as imagens mostram sensações, visões e ações, colocadas em relação, formando um todo coeso. Desse modo, o diretor guia nossa atenção através da montagem.

Uma descrição próxima desse processo, mas feita por outras vias, foi proposta por Hugo Munstembeg (1863-1916). Psicólogo, professor de Harvard, publicou a obra Photoplay: a psycological study, em 1916. Ao analisar as características do cinema ele afirma que ele controla nossa atenção através da montagem, pois diferente de um palco de teatro, no qual qualquer espectador da plateia pode escolher onde colocar o foco de sua atenção, no cinema é a mesma cena projetada para todos que clama pela atenção do público. Ao falar que, por exemplo, a técnica do close-up destaca um detalhe privilegiado pela mente, afirma que:

Começa aqui a arte do cinema. A mão nervosa que agarra febrilmente a arma mortífera pode súbita e momentaneamente crescer e ocupar toda a tela, quanto tudo o mais literalmente some na escuridão. O ato de atenção que se dá dentro da mente remodelou o próprio ambiente. O detalhe em destaque torna-se de repente o conteúdo único da encenação; tudo o que a mente quer ignorar foi subitamente subtraído a vista e desapareceu. As circunstancias externas se curvaram as exigências da consciência. Os produtores de cinema chamam a isso de close-up. O close-up transpôs para o mundo da percepção o ato mental de atenção e com isso deu a arte um meio infinitamente mais poderosos do que qualquer palco dramático. (XAVIER, 1983, p. 34)

O processo de montagem que faz um enquadramento, no qual vemos várias pessoas em um tumulto da rua e passa para outro na qual vemos uma mão segurando uma arma é um ato mental da atenção transposto para a tela, construído com câmeras e montagem. Por isso que o cinema faz um automovimento da imagem e pensa no nosso lugar, pois guia os nossos pensamentos, guia a nossa atenção através de imagens tomadas como processos mentais.

Deleuze (2011) vai nos propor uma leitura do cinema dizendo que o cinema opera um movimento que vai das imagens ao pensamento, a saber, dos enquadramentos como células múltiplas e divisíveis ao todo do filme, o todo que só pode ser pensado, que cria um choque que nos força a pensar, por isso propõe que “a montagem é no pensamento o próprio processo intelectual” (DELEUZE, 2011, p. 191).

O que quero defender com essas citações de Deleuze, Bergson e Munstenberg é que para eles a montagem cinematográfica é ela mesma um processo de pensamento, ela encadeia imagens e constrói uma sequência que prende nossa atenção, direciona-a para o que é do desejo do autor e, ao fazer isso, constrói uma linha de raciocínio, uma estrutura de pensamento. Por isso, para Deleuze, a noção de autoria em cinema é importante. Pois cada grande autor é um inventor de um estilo único de encadear argumentos e estruturar pensamentos.

Deleuze (1985) vai dizer que a noção de estilo é fundamental para abordar os diretores

Este tipo de análise é desejável para todo autor, é o programa de pesquisa necessário para toda a análise de autor, o que se poderia chamar de “estilística”; o movimento que se instaura entre as partes de um conjunto num quadro, ou de um conjunto a outro num reenquadramento; o movimento que exprime um todo num filme ou numa obra; a correspondência entre os dois, a maneira segundo a qual eles se respondem mutuamente, passam de um ao outro. Pois trata-se do mesmo movimento, ora compondo ora decompondo, são os dois aspectos do mesmo movimento. E esse movimento é o plano, o intermediário concreto entre um todo que apresenta mudanças e um conjunto que tem partes, e que não para de converter um no outro segundo suas duas faces. (DELEUZE, 1985, p. 34)

Podemos notar, na citação, os três aspectos funcionais da montagem, observados acima na composição do conceito de estilo. Há diferentes “estilos” de montar, ou seja, há diversas formas de enquadrar, criar movimentos entre os planos e conceber o todo do filme. Por isso, Deleuze (1985, p. 32) ressalta que “podemos considerar certos grandes movimentos como a assinatura própria de um autor”, ou seja, as singulares formas de criar imagens e relacioná-las. A estilística seria o modo de analisar as montagens como processos mentais dos cineastas e é isso que ele promove ao longo de toda a obra. E esta análise se dá em três vertentes: o primeiro, “o movimento que se instaura em um quadro” (DELEUZE, 1985, p. 34), seria a análise dos signos em um enquadramento; o segundo, “o movimento que se exprime um todo num filme” (DELEUZE, 1985, p. 34), seria a análise da concepção da obra inteira, no sentido de dizer qual o sentido do filme tomado como um todo; por fim, “a correspondência entre os dois” (DELEUZE, 1985, p. 34) seriam as análises que traçam a relação entre o andamento dos quadros e a construção do todo.

Um dado importante a destacar aqui é que os grandes cineastas são inventores de estilos e, a partir deles, há inúmeros repetidores, ou fabricantes de clichês, que de acordo com Deleuze (2011, p. 198), matam o cinema de uma morte quantitativa pois “podemos, é claro, dizer que o cinema se afogou na nulidade de suas produções. O que se tornam o suspense de Hitchcock, o choque de Eisenstein, o sublime de Gance quando são retomados por autores medíocres?”.

Outro dado que passa a ser importante para Deleuze é uma mudança de estilo de se fazer cinema, principalmente após a segunda guerra mundial, com o neorrealismo italiano, nouvelle vague francesa, cinema novo brasileiro, entre outros. Mas não apenas por isso, pois via traços de uma nova concepção de cinema em autores como Alfred Hitchcock e Orson Welles. Por isso, propõe a diferenciação de um cinema da imagem-movimento e um cinema da imagem-tempo. No primeiro, as regras da montagem estariam presas ao esquema sensório-motor, isso significa que os movimentos estariam delimitados pelo que pode ser percebido, sentido e reagido em uma linearidade e temporalidade racionais, na qual o espectador não perde nada e não se confunde. No cinema da imagem-tempo, a montagem opera com outras regras, principalmente porque rompe com os limites do sensório-motor e propõe cortes irracionais com relações de tempo não-cronológicas, na qual o espectador precisa ter tempo para pensar sobre o que está vendo e sobre porque esta imagem agora junto com aquela outra. Resumidamente, um filme de Jean Luc Godard, ou Glauber Rocha, possui concepções de montagem diferentes de um filme de Steven Spilberg.

Com essa proposta de análise, estamos longe de uma relação de que o filósofo assiste a um filme e levanta questões filosóficas a partir dele, e perto de uma proposta que nos pede que analisemos a própria construção cinematográfica como uma estrutura de pensamento enquanto tal. Aqui talvez uma das práticas pedagógicas inspiradas nessa concepção do cinema mais interessantes para se fazer em sala é o exercício de storyboard. Solicitar que os alunos criem um storyboard de um filme, seja uma inventado por eles, seja para extrair cenas de filmes que gostem. É uma prática que ajuda a desmontar o filme e, portanto, a entender o que o diretor quis dizer com a montagem que propôs. O storyboard é usado na produção dos filmes para a decupagem das cenas, que é a passagem do roteiro para o rascunho da cena propriamente dita e serve para guiar a montagem, bem como a fotografia. Sendo assim, ao fazer a prática do storyboard com os alunos, estaríamos desenvolvendo duas habilidades: compreender o sentido da montagem do filme e criar os enquadramentos e movimentos de câmera de uma cena.

Conceito-imagem e Logopatia

As noções apresentadas nesse intertítulo são de Julio Cabrera, que as propõe na obra O cinema pensa, a história da filosofia através dos filmes (2005) e as retoma na obra De Hitchcock a Greenaway pela história da filosofia: novas reflexões sobre cinema e filosofia (2007), obra esta que assimila uma certa crítica lançada ao primeiro texto e que, portanto, nos servirá melhor para a presente análise.

Cabrera se vale de uma premissa para iniciar suas observações: haveria,, na filosofia, uma distinção entre o intelectual e o sensível e que o lógico-racional inclusive apresentaria uma valorização maior que o conhecimento sensível. Cabrera (2007) se preocupa em valorizar a sensibilidade, no sentido de que para ele existem conceitos-imagem. Definindo conceito como um “captador-descritor-organizador” (CABRERA, 2007, p. 10) e imagem “como algo que possui uma presencialidade, sua ‘tremendidade’” (CABRERA, 2007, p. 16), sua possibilidade de estremecer de uma maneira cognitiva. Cabrera, então, diz que o conceito-imagem é aquele que constrói um certo tipo de conceito compreensivo do mundo através de imagens sensíveis. E que esse conceito-imagem é usado por certos filósofos como forma de expressão, exatamente aqueles que não acreditavam que o sensível era menor que o conhecimento lógico-racional. Os exemplos dados são Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, Hegel e Freud.

Nas suas propostas, Cabrera também aponta que a filosofia usa meios para se expressar. E que o meio mais usual são as proposições escritas. E que a imagem, poderia também ser um meio de expressão de questões filosóficas. De certo modo, é como se dissesse que há filósofos que escrevem livros para nos propor conceitos e estes conceitos também podem ser apresentados através das imagens. Não é, portanto, dizer que um cineasta ilustra uma tese filosófica, mas que ele a coloca por outro meio, vejamos o exemplo:

Lembremos o famoso filme de Jacques Tati, Meu tio (Mon oncle, França, 1958). Se fôssemos ver este filme filosoficamen te, perguntaria quais são os objetos que ele apresenta, e quais as predicações que são feitas acerca deles. Ou, para dizê-lo de uma outra forma: quais são os conceitos que desenvolve imageticamente. Creio que Meu tio apresenta uma tese sobre o “bom viver”, de como viver a vida com sabedoria. Assim, o filme apresenta uma tese ética, no sentido de uma ética das virtudes, ou de como ser uma boa pessoa, não no sentido de uma ética de obrigações e de normas (ou de como ser uma pessoa obediente, ou, no máximo, um bom cidadão). (CABRERA, 2007, p. 22)

Na visão de Cabrera, poderíamos ler Ética a Nicomaco, de Aristóteles, e estudar lógico-racionalmente a ética das virtudes. Ou assistir esse filme de Jacques Tati, que também estaríamos diante dessa questão, mas utilizaríamos conceitos-imagens para levantar as questões. Desse modo, há uma diferenciação de meios de expressão. No ponto de vista defendido por este artigo, o exercício conceitual de Cabrera não afasta a ideia de que, no fundo, quando se vai associar filosofia e cinema, o que se faz é usar o filme de Tati para ilustrar temas filosóficos e isso é operacionalizado pelo próprio Cabrera, quando fala que essa diferença entre texto lógico-racional e filme é de meio e não de conteúdo, quando afirma que “os cineastas não são professores, mas filósofos. Portanto, eles se dão o direito de abordar as mesmas questões abordadas pelos filósofos escritos, o que não os habilita a com petir com eles no terreno acadêmico”. (CABRERA, 2007, p. 38).

Então, o sentido do filme e das ideias de certo filósofo sãos os mesmos, o que muda são os meios de expressão. Nesse sentido e como consequência, quando pensamos para a prática pedagógica em sala de aula, Cabrera justifica tanto a ilustração quanto a sensibilização, apresentadas acima.

Agora, se formos assistir esse mesmo filme em uma perspectiva outra, a primeira apresentada aqui, veremos que a montagem do filme faz oscilar o Tio que mora em uma casa no centro da cidade, dividida com outras pessoas, com as velocidades e dinamismos da rua, enquanto a família da irmã mora em um bairro suburbano com todas as modernidades eletrônicas da classe média, que vão desde a garagem ao fogão elétrico. O ambiente séptico e milimetricamente dividido da classe média que se preocupa com o conforto dos objetos hightech é contraposto a livre organização da rua, dinâmica e espontânea. A montagem oscila entre esses dois cenários e o garoto é conduzido pelo tio, que extrai humor de ambos os ambientes. Tati era uma espécie de crítico da pós-modernidade e um nostálgico da espontaneidade e diversão. Aliás, o cômico em Tati é exatamente o quanto ele faz desmoronar o ambiente medido e eletrônico e o quanto o som das coisas ganha uma dimensão de ser um signo que vale por si só, uma imagem sonora pura, dirá Deleuze (2005). Como quando Tati, diante de um fogão elétrico, aperta vários botões que emitem ruídos e acaba por não conseguir usá-lo e cozinhar o ovo.

Desse modo, teríamos uma outra leitura do filme, mais conectada com os seus movimentos internos, preocupada com o que o cineasta propõe com sua montagem, atento ao sentido que Tati quis dar ao filme. Cabrera parece fazer outro movimento, parece se preocupar com as questões filosóficas que ele enxerga no filme e que o próprio filme não estava levantando, esse argumento é exposto pelo próprio quando afirma que

Por outro lado, eu nunca atribuo concepções filosóficas conscientes aos cineastas: isso levaria a falsidades factuais. Eu analiso filmes do ponto de vista filosófico; por conseguinte, o filósofo sou eu, não os diretores ou atores analisados, deixando de lado algumas frases irônicas ou literárias (como “a professora Emma Thompson” ou “o filósofo David Cronenberg”). (CABRERA, 2007, p. 37)

Essa citação é chave para nosso argumento, pois o que o próprio Cabrera aponta fazer é que ele vê problemas filosóficos nos filmes e não que ele os analisou em seus movimentos internos. O que Cabrera parece não entender é que Deleuze diz que alguns cineastas colocaram questões filosóficas que surgem por que fazem cinema, são questões que nascem do pensamento e do cinema, juntos, pois a montagem cinematográfica é processo intelectual. Para Cabrera, um cineasta ilustra teses filosóficas com imagens afetivas e não com conceitos abstratos escritos, portanto, a filosofia pensa a partir do que vê no cinema. Deleuze diz que grandes cineastas inventam suas ideias e não ilustram as ideias alheias, ou abordam questões abordadas por filósofos, como quer Cabrera.

Cabrera, na obra O cinema pensa, chega a apontar para particularidade técnicas do cinema que ajudam na eficácia do conceito-imagem, entre eles a montagem, a pluriperspectiva e a manipulação do espaço e tempo. E quando fala em “eficácia”, menciona a capacidade de fazer pensar, mas essas questões aparecem em posição menos valorizada do que a alusão a grandes temas filosóficos oriundos dos conteúdos dos filmes. Porém, para nossa discussão, aqui esses pontos são essenciais quando se trata de pensar o cinema, afinal, são por essas técnicas que ele se consolida como arte, entendendo que estes movimentos de câmera e estrutura de montagem, assim como análise de enquadramentos, cenários e personagens são essenciais para a pedagogia da imagem.

Em termos de práticas pedagógicas, a perspectiva de Cabrera nos parece ser a mais frequente em salas de aula, através das práticas já mencionadas: a sensibilização e a ilustração.

A sensibilização se baseia em uma linha pedagógica que entende que devemos aproximar dos referenciais dos alunos as habilidades que pretendemos desenvolver. Assim, antes de iniciar uma discussão ou leitura de texto sobre um tema, podemos passar um filme que dispare questões nos alunos e alunas e entre essas questões estaria aquela que é o tema da aula, que liga o filme a um conteúdo. Desse modo, a sensibilização é um momento inicial que dispara afetos que, depois, são relacionados com as competências e conteúdos almejados. A ilustração é ainda mais presente que é a capacidade de usar a imagem como repetidora do que é ofertado em termos de fala e de texto por parte do docente.

Em ambos os casos, podemos dizer que as imagens estão despotencializadas, no sentido de que estão a serviço de outra coisa. Como afirma Fernando Cruz (2015, p. 105), “as imagens possuem leituras direcionadas univocamente e seguem protocolos de como devem ser apreciadas. Elas são diminuídas em seu potencial de singularização de si e de quem as aprecia”.

Potencializar essas imagens seria tratar delas mesmas, de seu processo criativo e de suas potencialidades, colocá-las no centro da aula e pensar com elas. Na mesma linha de criticar o processo de sensibilização, temos, na obra Arte e ensino de filosofia no pibid-ufabc, de Marinê de Souza Pereira, a colocação de dois problemas para a sensibilização, um primeiro estaria relacionado com a própria didática do ensino, no caso de filosofia, ao se perguntar se fomentar uma experiência sensível é mesmo necessária, referindo-se a proposta de Gallo (2006). E o outro problema, de cunho epistemológico, parece ressoar na questão de Cabrera ao se perguntar se, ao colocar a sensibilidade antes, não se estaria colocando-a como inferior ao conhecimento lógico-racional, uma vez que ela é um ponto de partida. Então ela dispara, via sensibilização, mas depois é complementada pelo discurso lógico-racional. Era exatamente essa distinção que Cabrera queria evitar e nos parece que ele acaba a reforçando.

O interessante até aqui é que este método, apesar de alvo de nossas críticas, é o mais utilizado no ensino de humanidades. E o é, pois, se trata de um método didático que apresenta filmes e os conecta com conteúdos curriculares, valorizando-os. Ele possui, inclusive, desdobramentos didáticos possíveis, como estimular a curadoria de filmes como atividade por parte dos discentes. Com a curadoria, sugerimos ainda a prática cineclubista como uma possível atividade tanto curricular como extracurricular, que pode ser protagonizada pelos estudantes.

Vale aqui lembrar que os cineclubes possuem como características principais dois aspectos: buscar e assistir filmes que não estão no circuito comercial das grandes indústrias cinematográficas e a prática da conversa ou debate após a exibição dos filmes. Desse modo, se formos pensar em termos didáticos, as habilidades aqui envolvidas giram em torno de conhecer e ampliar o repertorio de filmes, diretores, escolas cinematográficas fugindo um pouco daquilo que é da indústria cultural. E também a capacidade de debater e trocar impressões diferentes acerca dos filmes vistos.

Sendo assim, em termos de ensino de humanidades, cabe ao professor não apenas repertoriar-se na história do cinema e na sua variedade estética para propor aos alunos filmes que são diferentes daquilo que estão acostumados a ver, que geralmente se limita às grandes produções que possuem imensos aparatos de publicidade e fazem seus filmes chegaram a todos. Como ele também pode criar atividades nas quais essa capacidade de repertoriar-se seja desenvolvida. E em ambos esses casos, práticas, como as desenvolvidas por Cabrera, são muito úteis, pois são caminhos para criar associação entre filmes e teorias filosóficas, estabelecendo critérios entre temas e problemas filosóficos e temas e problemas explorados pelos filmes, exemplificando o que pode ser uma curadoria de cineclube.

Reprodutibilidade técnica

Ao falarmos de indústria cultural, alguns talvez associem a obra de Walter Benjamin, A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica (1979). Essa obra já se tornou um clássico da relação entre as humanidades e o cinema. Nela, o autor afirma que no século XX, com a industrialização da obra de arte e a consequente reprodução técnica de objetos artísticos, o público perdeu o contato genuíno e autêntico com a obra de arte praticada ao vivo. Desse modo, um disco, um filme, uma reprodução de um quadro, reproduzidos milhares de vezes, perdem a aura da contemplação ao vivo da obra de arte. O que temos aqui é uma outra linha de pensamento para apresentar a relação entre o ensino de humanidades e o cinema, no caso, o que se analisa é o impacto social, político e econômico da introdução do cinema em nossas vidas.

Nesse caso, temos uma habilidade específica8 destacada na BNCC sobre o tema da indústria cultural, porém apesar de citá-la, a associa à cultura de massa, ao consumismo e à degradação ambiental. Por esse motivo, não apenas Benjamin, mas outros teóricos, como Theodor Adorno e Max Horkeimer, ou ainda Jean Baudrillard e Guy Debord poderiam ser fonte de práticas didáticas. No entanto, se focarmos na questão da arte e do cinema, Benjamin é geralmente trabalhado como análise crítica e sociológica da indústria cultural, do seu reflexo na organização da sociedade e da política, porque analisa como o público do cinema passa a ser pensado como massa homogênea que vai atrás de entretenimento e não de arte, e passa a distinguir entre “a pintura convida a contemplação; em sua presença, as pessoas se entregam a associação de ideias. Nada disso ocorre no cinema; mal o olho capta uma imagem, esta já cede lugar a outra e o olho jamais consegue se fixar”. (BENJAMIN, 1979, p. 31)

Além da reprodução mecânica de objetos artísticos das artes já existentes, o cinema seria a arte industrial por excelência. Logo após a passagem acima, Benjamin (1979) faz referência à obra de Duhamel, já citada anteriormente, como também inspirando Deleuze. Temos, neste texto, uma leitura sociológica do cinema como arte da distração e da homogeneização das massas, temas que muitas vezes aparecem nas ciências humanas. Benjamin ainda crítica o papel das grandes atrizes e atores, lançados como estrelas e que representam na indústria cultural o culto a personalidades. E nesse sentido, uma outra obra desenvolve essa crítica, trata-se da obra As estrelas, de Edgard Morin.

Morin (1989) afirma que o cinema nasceu para reproduzir a realidade, mas logo depois percebeu que seria mais interessante fabricar sonhos através principalmente das estrelas, entendidas por ele como semidivindades e como um fenômeno estético-mágico-religioso. E passa a analisar, antropologicamente, a estrela-deusa e sociologicamente a estrela-mercadoria e, ao analisar a sua ascensão, propõe que

A estrela do cinema é deusa. O público a torna assim, mas quem a prepara, apronta, modela propõe e fabrica é o star system. A estrela responde a uma necessidade afetiva, ou mítica que não é criada pelo star system; no entanto, sem ele, essa necessidade não encontraria as suas formas, seus suportes e seus afrodisíacos. O star system é uma instituição própria ao grande capitalismo. (MORIN, 1989, p. 74)

As estrelas são fabricadas como os produtos da indústria. São fabricadas para a identificação e culto da massa de espectadores. Portanto, a identificação, suas vontades e cultos são moldados pela própria indústria.

Esse tema é geralmente abordado nas aulas de sociologia e filosofia. Muitas vezes se fala das estrelas e da indústria cultural, mesmo sem exibir filmes que podem, de algum modo, ilustrar essas teorias. Citaria aqui pelo menos dois: Eles Vivem (1988), de John Carpenter, e A rosa púrpura do Cairo (1985), de Woody Allen. No primeiro, a publicidade e os meios de comunicação são usados para nos manipular e não percebemos que fomos invadidos por estranhos seres que se parecem com caveiras. Já a obra de Allen se passa na época da Grande Depressão norte-americana dos anos 1930 e trata das ilusões de uma garçonete com o ator de um filme que sai da tela e o papel da indústria em proteger o seu negócio.

Com o documentário Dilema nas Redes (2020), de Jeff Orlowski, lançado pela plataforma on demand Netflix, talvez estejamos adentrando a indústria cultural 2.0, quando o alvo da crítica da modelização do imaginário do público sai do cinema, como afirmavam Benjamin (1979) e Morin (1989), e passa a ser das redes sociais. Em todas essas referências, temos um modo de abordar o cinema nas aulas de humanidades, mas aqui ele é visto como expressão de uma indústria cultural e não necessariamente lido em seu conteúdo e forma.

Fazer filmes na escola

Podemos associar a ideia da técnica apontada por Benjamin (1979) com a perspectiva de pensar o cinema para tratar de outra modalidade de uso do cinema no ensino de humanidades e refletir sobre como ele pode nos ajudar a pensar. Quando propomos aos nossos estudantes para que façam uma produção audiovisual, também discutimos com eles como fazê-las? Ou, por exemplo, partimos do pressuposto que são nativos digitais e que já assistiram muitos filmes e, por conseguinte, vão dominar os recursos técnicos de fazer, editar e exibir imagens?

Nascer na contemporaneidade dominada pelos gadgtes smart não os fará cineastas, pois lhes faltam repertório. Eles são hábeis reprodutores de clichês, mas, ainda assim, existem técnicas básicas que podem ser aprendidas para fazer uma foto, um curta ou um documentário para a escola.

A disponibilidade de equipamentos e softwares para captar e tratar imagens, bem como os sites que permitem o compartilhamento e exibição de produtos audiovisuais, populariza e torna acessível a possibilidade de fazer filme e, portanto, de usá-los como práticas de sala de aula. Porém, acredito que o conhecimento técnico de determinadas características do que se chama de linguagem cinematográfica, como enquadramento, fotografia e montagem, por exemplo, precisam ser tematizadas. Pois, se não as forem, os estudantes vão reproduzir os modelos que assistem de modo intuitivo, sem uma reflexão crítica e provavelmente sem criação.

O que proponho aqui é a volta ao ponto do cinema que pensa para Deleuze e a primeira atividade proposta, aquela do storyboard. Ao estudar a estrutura do filme, posição de câmera, localização da luz, montagem do filme, estamos estudando a linguagem para poder produzir filmes. E, a partir delas, seria possível solicitar aos estudantes que também criem seus filmes.

O cineasta Eduardo Coutinho era prodigioso ao comentar sobre suas realizações e a forma como entendia a arte de documentar e o quanto a técnica escolhida interfere no resultado que se apresenta. Diz o cineasta que

Você quando tem uma câmera, pode deformar essa pessoa do ponto de vista da lente usada, mostrar uma verruga, mostrar um defeito físico ou coisa que o valha; você tem um ângulo da câmera que pode ser para baixo ou para cima e que também pode derrubar essa pessoa, isto é, conotá-la pejorativamente. E mais ainda, você tem a possibilidade de dispor da entrevista dessa pessoa e eventualmente manipulá-la. Você pergunta algo a uma pessoa, ela diz “não”, mas através da montagem, você pode manipular o depoimento e transformar uma afirmação no seu contrário. Com isso quero dizer que, mesmo que você filmasse seus pares sociais, teria um poder dado pela câmera. Portanto, esse diálogo é sempre assimétrico; isso só pode ser compensado na minha opinião, de uma forma correta, incluindo essa assimetria relativa no produto que você faz. Por isso falo que esse microfone pertence aos dois lados, o diálogo é entre os dois lados, deve aparecer, inclusive, em seus momentos críticos. (COUTINHO, 2015, p. 22)

Na longa citação que apresentamos, o que queremos frisar é o quanto a posição da câmera, o modo de montar e o modo de filmar transforma o produto, no caso de Coutinho, o documentário. Quem assiste seus filmes reconhece que neles tanto a equipe, quanto os equipamentos e o próprio Coutinho aparecem nas cenas. Isso porque ele queria trazer a própria assimetria da entrevista, mostrando a técnica necessária para a filmagem, para evidenciar uma verdade que é a distância entre o poder de manipulação do documentarista e o depoimento. Diferente do documentário americano clássico, no qual só vemos o depoimento da pessoa, onde não há pergunta e não há os equipamentos, tudo se passando como natural e verdadeiro, mas, na realidade, há um cenário e tudo milimetricamente criado para parecer que o entrevistado está falando com você, o espectador. Ou seja, Eduardo Coutinho nos ajuda a pensar o cinema e as técnicas envolvidas para ele ser encarado como um processo mental.

Sendo assim, entendemos que para se criar filmes na escola, seria interessante estudá-los: exibir filmes marcantes para criar repertório e fazer uma decupagem em um storyboard para estudar ângulos e posições de câmeras, bem como o ritmo da montagem. Também podemos assistir documentários ao estilo de Eduardo Coutinho, no qual vemos sua equipe trabalhando. E aí sim propor atividades nas quais os estudantes criam imagens, filmes e documentários para os temas que desejamos avaliar.

Considerações finais

A proposta desse artigo era explorar a potencialidades do uso do cinema no ensino de humanidades, trazendo alguns aportes teóricos, associados a exemplos práticos de atividades didáticas. De certa maneira, o texto poderia ser considerado uma revisão de literatura sobre o tema ou mesmo relato de uma prática, visto que nasceu de uma disciplina de formação de professores que ministro. Porém, não trouxemos aqui uma lista de artigos e teses revisados e catalogadas sobre o tema, nem fizemos o detalhamento da disciplina que ministramos. O que se propõe, portanto, é uma posição teórica que pensa o cinema e não apenas o utiliza como instrumento para abordar temas de humanidades.

Há muito mérito e adequação curricular na instrumentalização do cinema no ensino de humanidades. Tanto na ilustração e sensibilização de conteúdos, quanto no estudo da indústria cultural. Entretanto, nosso objetivo era continuar a se perguntar se, assim, o cinema estaria de fato pensando?

E nos pareceu que há outra possibilidade. Aquela que encara o cinema como realizador de processos mentais próprios aos estilos dos cineastas, no qual é preciso adentar a técnica de produção de imagens, a fotografia, o enquadramento, a decupagem e a montagem do filme para encará-lo como um pensamento, como proposto por Deleuze.

Em nossa proposta, enxergamos o cinema como aquele que monta imagens que produzem pensamentos e são esses pensamentos que precisam ser estudados em uma civilização das imagens, que Deleuze chamava de civilização dos clichês, pois são eles que mais circulam e não a diversidade audiovisual. Sendo assim, práticas didáticas de leitura de filmes com storyboards, organização de cineclubes com curadoria temática de mostras e apresentação e estímulo à criação de imagens como atividades avaliativas seriam modos de tematizar a própria produção audiovisual e não apenas utilizá-lo como suporte e instrumento didático para desenvolver outros temas. No caso, o que propomos é pensar o cinema como um tema das humanidades enquanto uma forma de expressar processos mentais. Um tema multifacetado em que ele pode não apenas subsidiar a apresentação dos mais diversos conteúdos curriculares, mas que ele próprio pode ser encarado como um conteúdo que nos ajuda a ler nossa contemporaneidade.

Referências

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1Filme britânico de 2004, dirigido por Wolfgang Petersen.

2Filme brasileiro de 2016, dirigido por Eliane Caffé.

3Filme norte americano de 1998, dirigido por Peter Weir.

4Essas aulas podem ser acessadas no site disponível em: http://www2.univ-paris8.fr/deleuze/. Acesso em: 20 maio 2020.

5Original: “Je sens encore toutes les parties de mon corps, mais je commence a ne plus tres bien sentir mon ame. tout a fait comme chez le dentiste. la place de mon ame devient dure, etrangere, douloureusement etrangere. est-ce qu'on va me l'arracher, mon ame, comme chez le dente… Je ne peux deja plus penser ce que je veux. Les images mouvants se substituent a mês propes pensees.”

6Filme alemão de 2008, dirigido por Dennis Gansel.

7Filme documentário sueco de 1989, dirigido por Peter Cohen.

8Habilidade em questão é a (EM13CHS303) Debater e avaliar o papel da indústria cultural e das culturas de massa no estímulo ao consumismo, seus impactos econômicos e socioambientais, com vistas à percepção critica das necessidades criadas pelo consumo e à adoção de hábitos sustentáveis.

Recebido: 30 de Agosto de 2021; Aceito: 16 de Fevereiro de 2022

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