SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.35 número75Outrem como un desafío a la diferencia. Por una nueva ética de los afectos en el mundo contemporâneo.Pensar a técnica e a tecnologia com Álvaro Vieira Pinto: contribuições para o ensino da filosofia no ensino médio profissional índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.75 Uberlândia set./dic 2021  Epub 16-Ene-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n75a2021-62366 

Artigos

O ánthropos de Protágoras: do singular ao comum

The ánthropos of Protagoras: from singular to common

El antropos de Protágoras: del singular al común

Bianca Vilhena C. Pereira* 
lattes: 1419842652946869; http://orcid.org/0000-0003-3404-854X

*Doutora em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). E-mail: biancavilhena8@gmail.com


Resumo

Com base no Teeteto de Platão, busca-se compreender a dimensão do termo ánthropos na famosa sentença de Protágoras. Segundo a crítica platônica, Protágoras parece entender corpo e alma como diferentes tipos de percipientes: os órgãos sensoriais corporais percebem a aparência imediata de algo que provoca a sensibilidade; a alma, por sua vez, ‘percebe’ por ter julgamentos admitidos pela aprendizagem e experiência. O homem-medida protagórico, do tema da realidade sensível, conduz-nos à formulação do problema em termos de julgamento e opinião, e a medida, que inicialmente é atribuída a cada indivíduo, para além de cada ser humano, é reputada a cada cidade.

Palavras-chave: Homem-medida; Protágoras; Paideia; Democracia; Teeteto

Abstract

Based on Plato's Theaetetus, we seek to understand the dimension of the term ánthropos in the famous sentence of Protagoras. According to Platonic criticism, Protagoras seems to understand body and soul as different types of percipients: the bodily sensory organs perceive the immediate appearance of something that provokes sensitivity; the soul 'perceives' by having judgments admitted by learning and experience. The protagorical measure-man, from the theme of sensible reality, leads us to formulate the problem in terms of judgment and opinion, and the measure, which is initially attributed to each individual, in addition to each human being, is reputed to each city.

Keywords: Man-measure; Protagoras; Paideia; Democracy; Theaetetus

Resumen

Con base en el Teeteto de Platón, buscamos comprender la dimensión del término ánthropos en la famosa oración de Protágoras. Según la crítica platónica, Protágoras parece entender el cuerpo y el alma como diferentes tipos de perceptores: los órganos sensoriales corporales perciben la aparición inmediata de algo que provoca la sensibilidad; el alma, a su vez, "percibe" al admitir juicios mediante el aprendizaje y la experiencia. El hombre-medida protagórico, desde el tema de la realidad sensible, nos lleva a formular el problema en términos de juicio y opinión, y la medida, que inicialmente se atribuye a cada individuo, además de cada persona, se le atribuye a cada ciudad.

Palabras clave: Hombre medida; Protágoras; Paideia; Democracia; Teeteto

Introdução

A partir de Aristóteles, tornou-se quase um consenso que a filosofia se inicia com Tales de Mileto e sua mais famosa proposição ‘tudo é água’ (DK 11 A 13). Se aceitamos Tales como marco, podemos afirmar que a filosofia se inicia com uma expressão de identidade entre um elemento físico (no caso a água) e o todo, abrindo-se a partir daí o problema perene acerca da constituição do particular e sua relação com a totalidade. Não obstante, nota-se que Tales, além de iniciar a busca pelo princípio de tudo o que existe, dizia, ao mesmo tempo, que não é o homem (ou a sua imagem divina) o critério das coisas. “Todas as coisas são cheias de deuses” (DK 11 A 22), afirma ele em outro de seus fragmentos, mostrando uma clara mudança na concepção e lugar da presença dos deuses: a montanha divina, o Olimpo, começava a erodir e a divindade passava a fazer parte do mundo vivo da phýsis.

As explicações que emergiam fora da mitologia grega tradicional faziam o pensamento confrontar-se com a phýsis, um mundo de coisas impessoais, indiferente aos desejos ‘arbitrários’ dos deuses. A especulação dos primeiros pensadores do cosmos, os chamados physikoi, segundo afirma Jaeger (1979, p. 176), ocorria afastada, a princípio, da busca pela areté ou formação humana, e a função de guia educativo continuava a ser exercida pela poesia, a que se associavam os homens de Estado. Já havia elementos racionais infiltrados no mito, observa o autor, e, é claro, o mito e a epopeia influenciam nas concepções dos pensadores da phýsis e de seus sucessores. No entanto, se não havia em suas especulações uma vontade consciente de educar e era a teoria, e não a práxis, o que impulsionava estes pensadores, ao debruçarem-se sobre o problema da phýsis ou do cosmos com explicações que pretendiam desvencilhar-se do arbitrário dos acontecimentos para basear-se no fundamento ou natureza das coisas, algo independente do homem, assentavam um modo inteiramente novo de pensar.

Contudo, ao mesmo tempo em que se dava início à busca da natureza das coisas em algo independente do homem, isto é, ao mesmo tempo em que ocorria uma ‘desmitologização’, a dificuldade do homem não inserir a si mesmo em suas especulações em breve seria notada. Protágoras, o ilustre sofista, dirá que, acerca dos deuses, não é possível dizer nem que existem, nem que não existem, tampouco qual a sua forma1, e com esta declaração, sem dirigir propriamente uma crítica aos deuses (como muito se interpretou), suspendendo o seu juízo, indica um distanciamento dos deuses em relação aos homens. A mais famosa sentença de Protágoras, “O homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto são, das que não são, enquanto não são”, aponta em uma mesma direção, dado o afastamento dos deuses, a centralidade da posição ocupada pelo homem.

A proposição de Protágoras, que, segundo Platão no Teeteto (161c, 152a), abria a sua obra intitulada A Verdade, era bastante difundida entre os envolvidos no meio intelectual da época; e, dentre o que nos restou dos escritos da sofística, provavelmente é o fragmento mais importante e difícil de ser interpretado, gerando um legado de múltiplas controvérsias. Uma das contendas que a interpretação da sentença promove é a questão em torno do seu significado existencial ou predicativo ou, em outras palavras, o homem é a medida de como as coisas são ou a medida da própria existência das coisas? Outro alvo de discórdia é a escala do termo homem presente na proposição. Tendo sido majoritariamente interpretada como exprimindo um relativismo cético, doutrina que se destruiria a si própria reduzindo tudo ao mesmo plano, interpretações mais recentes e que restituem coerência ao pensamento do sofista afirmam a dupla extensão do termo ánthropos, a singular e a universal, passando pela coletiva. Esta consideração, contudo, é possível retirar da própria interpretação crítica que Platão nos apresenta, a qual julgo ser, a um só tempo, um obstáculo e um estímulo para a compreensão do fragmento. É, pois, bastante provável que Protágoras tenha formulado uma teoria da percepção, como Platão nos induz a crer. Todavia, como educador e teórico da democracia, a atenção do sofista certamente dirigia-se principalmente aos juízos produzidos pelos homens.2 Neste sentido, como veremos, o olhar de Protágoras concentrava-se nas concepções e juízos gerados pela linguagem e nos usos e utilidade das normas e leis comuns, nos quais a percepção, decerto, tem o seu papel. O homem-medida protagórico, do tema da realidade sensível, conduz-nos à formulação do problema em termos de julgamento e opinião, e a medida, a princípio atribuída a cada indivíduo, para além de cada ser humano, estende-se a compreender cada cidade.

Fixo e fluxo: o que a aparece aos sentidos

Quando Sócrates pergunta a Teeteto ‘o que é conhecimento?’ e o jovem matemático responde dizendo que é o mesmo que percepção, Sócrates diz que esta maneira de considerar coincide com a de Protágoras, mas que este disse a mesma coisa de uma maneira diferente, declarando: a medida de todas as coisas é o homem, das que são, enquanto são, das que não são, enquanto não são <‘πάντων χρημάτων μέτρον’ ἄνθρωπον εἶναι, ‘τῶν μὲν ὄντων ὡς ἔστι, τῶν δὲ μὴ ὄντων ὡς οὐκ ἔστιν’> 3. Sócrates afirma que o sofista quis dizer com a sentença que, a cada vez que aparecem as coisas, tais elas são para quem elas aparecem (152b). Aparecer (phainetai) e ser (einai) são identificados: tudo o que aparece necessariamente é, e se é, é necessariamente verdadeiro. Neste sentido, ao aparecer de algo foi associada à verdade de seu julgamento. Pela impossibilidade de negar a verdade da percepção de alguém, cada ser humano é a medida de sua própria percepção, sendo, portanto, toda percepção infalível e inquestionável. E Sócrates exemplifica (152a-c): “É provável que um homem sábio não fale ao acaso: sigamo-lo, então. Não acontece, por vezes, um de nós sentir um mesmo sopro de vento frio e outro não? E um sentir pouco frio e outro muito?” (152b)

O que inicialmente se discute no diálogo, como se nota, não é a questão da existência ou não do vento, mas a das qualidades do vento, cuja medida é o homem individual que percebe. Kerferd, a propósito do exemplo do vento, resume as três interpretações que em geral são oferecidas: 1) Não há um único vento, mas dois particulares ou privados, um quente para um indivíduo e um frio para outro; 2) Há um vento público que não é nem quente nem frio. O vento existe independente da percepção, mas as suas qualidades, não; e 3) O vento é ao mesmo tempo frio e quente, as duas qualidades podem coexistir no mesmo objeto físico, mas um indivíduo percebe uma qualidade, outro indivíduo, outra qualidade. As três posições possuem defensores, embora a segunda e a terceira possuam mais adeptos.

Inseridos nesta discussão, tanto Kerferd como Cornford apoiam a terceira posição, ou seja, a opinião de que a doutrina protagórica é objetivista. Cornford (1935, p.33) defende que a doutrina não é subjetivista como Platão a faz parecer, ou seja, para o sofista o frio ou o quente do vento existem fora do homem, os objetos dos sentidos existem independentemente daquele que os percebe. Segundo ele, Platão força a ambiguidade das palavras de Protágoras a dizer algo que contribua para sua própria análise dos sentidos e percepções, auxiliando-o na construção de sua própria teoria do conhecimento. O mesmo defende Kerferd (2003, 143-188), a tese é objetivista e, para o exemplo do vento, Protágoras assumiria que o vento é ambos, quente e frio, qualidades contrárias co-existem, cada indivíduo percebe uma qualidade, porém o vento é o mesmo, é e não é frio.

Guthrie (1995, p.176-177), que é defensor da segunda posição, afirma que Protágoras adotou um extremo subjetivismo com sua tese do homem-medida. Para o sofista, não haveria nenhuma realidade independente das aparências e, no exemplo do vento, o quente ou o frio não existiriam na natureza, mas apenas para quem o sente como quente ou frio. A conclusão lógica do subjetivismo de Protágoras, sustenta o autor, seria uma anarquia moral e política, mas esta foi estranhamente salva pela doutrina de que, apesar de não haver verdadeiro ou falso, há melhor ou pior. Se fazemos uma leitura apressada do que está sendo exposto por Platão, e se nos baseamos apenas nisso, de fato, concluímos que o sofista sustentava um relativismo subjetivista. Relativismo porque a relação entre o sujeito que percebe e a coisa percebida mostra-se fundamental. E o relativismo, segundo esta perspectiva, acarreta o subjetivismo, pois “as coisas são tal como aparecem para mim”. Platão apresenta uma perspectiva ampla sobre a tese do homem-medida, mas muitas vezes ao longo do texto, por ser para o sofista tudo tal como aparece para cada um, insinua um subjetivismo por parte de Protágoras e nos induz a buscar dentro da pessoa o critério pelo qual ela avalia as coisas.

Contudo, embora não me pareça que a Grécia do século V a.C. tenha concebido uma dicotomia clara entre subjetivo e objetivo (como a efetua a filosofia moderna), em vista do contexto intelectual de Protágoras, dentre as duas possibilidades, ele muito provavelmente incluir-se-ia no rol dos pensadores que assumem o objetivismo da realidade. Qualidades contrárias co-existem, cada pessoa percebe uma qualidade de acordo com sua disposição que muda, porém, o vento é apenas um e o mesmo, é e não é frio. De acordo com isto está Sexto Empírico que em seus Esboços Pirrônicos (217; 218) assegura que a sentença de Protágoras assume que a realidade das coisas está contida nos objetos. O sofista, afirma o cético, sustentava que todos os modos que são percebidos encontram-se subjacentes na matéria, um fluxo de emanações, que tem a capacidade, na medida das suas potencialidades, de ser tudo o que aparece a todos os indivíduos. Os homens, todavia, ora apreendem uns aspectos da coisa, ora apreendem outros, ou seja, em consonância com as diferentes disposições e variações individuais (idade, saúde, sono etc) diferentes aspectos da coisa aparecem para cada um (DK 80 A 14). Todas as percepções são infalíveis e verdadeiras, mas cada percepção apreende um aspecto da realidade, e ao estabelecer apenas o que aparece a cada um, afirma ele, Protágoras considera que os juízos sejam correlativos ao ponto de vista de cada indivíduo.

Se é assim e, de fato, para Protágoras, o vento é ambos, quente e frio, há uma correspondência entre a sua doutrina e a de Heráclito, para quem os contrários são inseparáveis, nada existindo sem o seu oposto. E isso também é o que Platão nos induz a considerar4:

[Protágoras afirma] que nada é um, por si e em si, e não poderias nomear algo com correção, nem indicar alguma qualidade; mas, se chamares a algo grande, também aparecerá pequeno, se chamares pesado, aparecerá também leve, e assim também todas as coisas, dado que nada é unidade, algo ou qualidade. Partindo da deslocação, do movimento e da mistura de umas com outras, todas as coisas se tornam naquelas que estávamos a dizer; não as chamando corretamente, pois nada nunca é, mas vai-se tornando sempre. E sobre isto todos os sábios, um atrás do outro, exceto Parménides, devem concordar: Protágoras, Heráclito, Empédocles e, de entre os poetas, os que estão no topo de cada uma das composições, Epicarmo, na comédia, e Homero, na tragédia, quando diz: Oceano, origem dos deuses, e a mãe Tétis, está a afirmar que todas as coisas nascem do fluxo e do movimento. Ou não parece ser isto que está a dizer? (152d-e)

Na sequência, - embora Sócrates se desculpe dizendo ser necessário outro diálogo para que ocorra uma discussão realmente profunda do eleatismo (180d) - nota-se despontar a oposição entre duas teorias rivais: uma que considera a cor como algo não localizável e dependente segundo uma relação, e a outra que considera a cor como algo permanente, localizável e alheio ao devir. Uma cor não é algo com existência própria, nem dentro nem fora dos olhos, nem em qualquer lugar determinado; o branco e o preto e as demais cores são gerados pelo encontro dos olhos com o movimento particular de ‘cada uma’, e a cor designada por nós como existente, não sendo nem o que atinge aquele que percebe, nem o que é atingido, é algo intermediário e peculiar a ‘cada indivíduo’; as coisas aparecem diferente tanto para observadores diferentes, para espécies animais diferentes, como também para o mesmo observador em momentos diferentes (153e-154a). Tal concepção permite que as percepções sejam únicas e privadas, de modo que possam aparecer de um modo a um percipiente e de outro modo a um percipiente diferente, apesar de ambos perceberem um - suposto - mesmo objeto; assim como, para um mesmo percipiente, um - suposto - mesmo objeto aparecerá de maneiras diferentes e até mesmo conflitantes, já que este, podendo ser visto de ângulos diferentes, ainda se transforma ao longo do tempo.

A consequência desta tese é que não se pode ter a noção de objetos e sujeitos permanentes, pois tanto o sujeito (o órgão do sentido) quanto o objeto (o que provoca a sensibilidade) têm o seu ser e/ou devir apenas no encontro momentâneo provocado pela inter-relação, também ela momentânea. A sensação/percepção traduz, a cada momento, um aspecto da realidade em devir para alguém que a percebe, que tem a permanência deste momento apenas, fixo apenas enquanto vigora. No encontro incessante de dois movimentos, não há nem mesmo permanência do papel de agente e paciente (156a-157a), já estando implícito o que Sócrates irá posteriormente admitir, ou seja, que as percepções tidas por uma pessoa, não se distinguem da pessoa mesma, mas fazem parte do seu ser, no momento mesmo em que percebe (160b). Fica dito, portanto, que, apesar do fluxo ininterrupto, há algo que aparece e ao menos o instante é algo fixo, ou seja, algo aparece e com algum sentido, caso contrário, o fluxo radical não afirmaria muito mais do que a equivalência entre ‘tudo está em movimento’ e ‘tudo está em repouso’, devido à falta total de referência. Nota-se neste sentido que, devido à dependência recíproca dos polos, não se pode falar em um ser unitário, um indivíduo que permaneça igual a si mesmo.

Uma das observações críticas de Sócrates, como se observa, é a respeito da linguagem, que, segundo ele, para estar em conformidade com a natureza exposta pela doutrina, deveria ser substituída. Já que nada é e tudo devém, deveríamos nos referir às coisas como vindo a ser, sendo criadas, sendo destruídas e mudando (157a-b). Importante observar que, sem refutar a proposição que atribui a Protágoras, a de que as coisas são tais como aparecem a cada um, Platão modifica-a afirmando que, de acordo com a doutrina, os objetos do mundo sensível nunca são, e que, portanto, se deve tomá-los sempre num estado de vir-a-ser. A concepção de Protágoras de que percepção é sempre percepção do que é, dá lugar à concepção segundo a qual a percepção é sempre percepção do que está em processo de devir, ou seja, em movimento. Se o que medimos ou tocamos fosse como admitimos, jamais se alteraria à aproximação ou sob a influência de outra coisa, argumenta Sócrates. (154b)

Por força da doutrina exposta, assumiu-se que quem percebe torna-se perceptor apenas ao perceber algo, assim como o que é percebido só é quando percebido por alguém, isto é, nada é ou vem a ser absolutamente ou em si mesmo, nem quem percebe, nem o objeto percebido, mas apenas relativamente. Para Protágoras, portanto, não haveria distinção entre dizer que algo é ou algo vem a ser, pois o que há de acessível é apenas este momento presente produzido pelo encontro momentâneo. E neste sentido, segundo a doutrina secreta, para Protágoras, a questão jamais seria posta nos termos da percepção correta ou falsa, pois não há nada independente para que se esteja errado em relação. Cada percepção individual, de cada pessoa em cada momento é infalível e única, e nunca pode ser corrigida mediante a comparação com outras percepções. Cada percepção é, pois, uma unidade isolada, instantânea, e entre as percepções há apenas diferença.

A partir disso, a compreensão da última e menos repetida parte da proposição de Protágoras “τῶν μὲν ὄντων ὡς ἔστι, τῶν δὲ μὴ ὄντων ὡς οὐκ ἔστιν” e a questão em torno do significado existencial ou predicativo de ‘coisas’ (χρημάτων) deve ser redimensionada. Segundo Gomperz (1881, p. 504), o homem, segundo a tese de Protágoras, é erigido à medida da existência das coisas e não de suas qualidades. Para Kerferd (2003, p. 148) e Untersteiner (2012, p.141), ao contrário, a frase refere-se aos predicados, isto é, às qualidades das coisas e não a sua existência. Schiappa (2003, p. 120), por sua vez, adverte que esta é uma falsa questão, pois a dicotomia entre o sentido existencialista e essencialista é anacrônico, já que a conceitualização de essência em contraposição à aparência surge apenas com Platão. O que chamamos de qualidade era visto pelos pré-socráticos como uma característica da coisa que não se separava da própria coisa, ou melhor dizendo, esta questão não foi problematizada por eles. Shiappa (2003, p.96) defende que Platão inova a sintaxe para poder falar de algo em si, algo uno, abstrato, que não pode ser visto e, portanto, distinto da vida concreta e da lógica mito-poética de seus antecessores, na qual os sofistas, como pré-socráticos, estão incluídos. E de fato vemos no Teeteto um Platão que desafia seus leitores a separar as coisas de suas (outras) qualidades, tal como faz em relação à cor e ao frio, distinção provavelmente nova e original. Mas, além disso, Platão também nos faz crer que Protágoras tinha uma teoria das percepções ou, no mínimo, deu-lhes algum destaque em suas formulações.

Segundo afirma Kahn, (2003, p. 302) Protágoras (na sentença sobre os deuses) foi o primeiro pensador a usar o verbo ser no sentido puramente existencial. Todavia, a partir do que Platão nos diz sobre o pensamento de Protágoras e a doutrina secreta, não havendo como delimitar as coisas em si mesmas, tudo estando sempre em relação, não haveria distinção entre a transformação das qualidades e a transformação das próprias coisas, distinção que é intentada apenas por Platão, que inclusive faz Sócrates dizer ao seu interlocutor que o termo poiotês, (182a) traduzido por qualidade, lhe soaria estranho. O mais provável é que, como um bom pensador dos usos linguísticos, Protágoras tenha contribuído para a emergência desta distinção, seguindo a corrente de seus antecessores que construíram um novo arsenal linguístico para a transição do pensamento mito-poético para um pensamento mais abstrato.5 Platão elevou as coisas, incluindo qualidades, ao estatuto de formas independentes e separadas, mas a tese do homem-medida, por sua vez, sugere que as coisas que aparecem e são experimentadas pelo homem aparecem naquele instante, não sendo possível e não havendo a necessidade em delimitar a fronteira entre as coisas e suas (outras) características que mudam. E, nesse sentido, a opção pela tradução do termo ὡς por ‘enquanto’, tal como feita pelos tradutores portugueses, parece mais sugestiva para a compreensão da sentença.

A extensão do termo ánthropos: do singular ao comum

Segundo Untersteiner (2012, p.85), não sendo a alma, para Protágoras, nada exceto percepções, e não tendo ela portanto qualquer autonomia substancial, os estados de consciência originam-se das sensações com que a alma se identifica, sem que haja por trás delas nenhum quid substancial, origem ou ponto de apoio. O relato de Sexto Empírico (217; 218) é compatível e atribui a Protágoras a opinião de que a matéria é um fluxo de emanações, onde estão contidas todas as razões dos fenômenos. O mesmo ocorre com Diógenes Laércio (IX, 8, 51), segundo o qual, para o abderita, a alma é nada além dos sentidos. Para o sofista, em outras palavras, o saber sobre as coisas é um jogo de ação e afetação sensorial entre os seres, cujo movimento está dos dois lados, no órgão sensorial e nos objetos, produção de realidades instantâneas, e jamais uma instância racional a priori.

Interessante notar que Protágoras, que mostra um enorme apreço à faculdade racional e ao discurso lógico-argumentativo, além de não definir uma fronteira entre corpo e alma, não formula uma concepção sobre a razão que a diferencie de outras faculdades. Segundo a crítica platônica, Protágoras parece entender o corpo e a alma como diferentes tipos de percipientes: os órgãos sensoriais corporais percebem a aparência imediata de algo que provoca a sensibilidade; a alma, por sua vez, ‘percebe’ por ter julgamentos admitidos pela aprendizagem e experiência. Sendo a alma considerada produtora de realidades instantâneas e não uma instância a priori, não há, portanto, distinções substanciais entre ela e o corpo. A diferenciação entre estas duas instâncias no homem o fará o filósofo, que com a máxima radicalidade (perfeita para fins didáticos), distingue sensível e inteligível, promovendo a alma a essência do homem. A distinção, portanto, entre o que aparece aos sentidos e o que aparece à mente é feita por Platão. As coisas que aparecem são da ordem do pensamento ou são da ordem do que é físico? Estão dentro ou fora de nós? Tais como as coisas me aparecem, tais elas são para mim, um fenômeno mental? Ou tais como as coisas me aparecem, tais elas são para mim, objetos externos, um fenômeno físico?

Quando nos é dito através da doutrina secreta que o branco que é percebido não está no objeto, tampouco nos olhos de quem percebe, Platão nos faz constatar a impossibilidade da relação direta com o real. Inferimos que entre o ato de perceber e o ato de reconhecer o que se percebe há uma espécie de lacuna, e ao longo do diálogo ele nos conduz a pensar que não nos relacionamos imediatamente com os objetos, pois a inteligibilidade é dependente do pensamento e o (re)conhecimento das coisas se dá por meio de uma apreensão intelectual. No Menon (80c-e), em resposta ao paradoxo do conhecimento - ‘como reconhecer quando encontrar o que se desconhece totalmente’, - Platão dirá que o conhecimento está contido na alma, sendo possível rememorar essa realidade anterior que a alma contemplou antes de se ligar ao corpo. No Crátilo (411b), em tom cômico, Platão diz que aqueles que afirmam que nada existe de estável, mas só o fluxo permanece, após tanto investigarem a natureza das coisas, acabam tomados de vertigem e, atribuindo a sua própria tontura às coisas externas, confundem um estado interno com um estado externo. No Teeteto, por sua vez, podemos perceber que a distinção entre o que é mental e o que é físico é uma questão sobre a qual Platão quer que pensemos. E é, por isso, que em alguns momentos do diálogo ele sugere que, já que nada é em si mesmo, mas apenas para quem o experimenta, quem percebe é o juiz <κριτὴς> (160c, 161d) e deve ter dentro de si o critério pelo qual avalia as coisas <ἔχει τὸ κριτήριον ἐν αὑτῷ> (178c).

Entretanto, como vimos, isto não significa que se deva atribuir à tese do homem-medida uma posição subjetivista da realidade, pois, embora preferível a alcunha de objetivista, é anacrônica a dicotomia para o pensamento de Protágoras. O fato físico do perceber indica o corpo ou a concretude corpórea, portanto individual, como dimensão do ato perceptivo, mas, por outro lado, se nada é um e em si mesmo, a fórmula indica a negação do indivíduo. Ao afirmar que cada um é a medida das coisas que são para si e das coisas que não são para si, a evidência do sofista é a impossibilidade de o homem tornar-se algo (ou experimentar a si mesmo) sem que a exterioridade (ou algum tipo de sensação ou até mesmo um sonho) se apresente. O que se nota, pois, é que, além de afirmar o movimento, a doutrina do sofista afirma a intima relação entre o homem e o mundo no qual age e percebe.6 Tanto o homem, quanto a coisa percebida fazem parte do ser - em fluxo - e, portanto, são; contudo, ao adentrarem um no campo do outro, é o homem (que depende desta relação para experimentar a si mesmo) que tem a possibilidade de avaliar esta relação. Ademais, se tudo nasce do encontro e o perceptor e o percebido, unidos, mudam continuamente, isso significa que, quando pretendemos medir a ‘coisa’, ‘alteramos’ o que ela é, assim como somos nós alterados (154b).

Para Protágoras, não se distinguem o que aparece aos sentidos e o que simplesmente aparece, já que, inescapavelmente centro de sua própria experiência, não pode haver para o homem distinção entre o que é e o que aparenta ser. A phantasia, tudo aquilo que se mostra, que aparece, que se faz visível, está em movimento, transforma-se, tendo a duração do instante em que aparece. Segundo o abderita, aquele que percebe as coisas em movimento participa também deste vir-a-ser e estando também em mudança, não pode perceber/experimentar duas vezes do mesmo modo, assim como uma próxima aparição o torna diferente e outro.7 Não há subjetivismo possível nesta fórmula, o que há, pelo contrário, é uma fusão extremada com a exterioridade ou qualquer tipo de aparecer. Sobre a doutrina secreta, Sócrates afirma que, devido à união e atrito das forças em movimento, a aparição é numericamente infinita, porém, da perspectiva humana, a aparição é sempre reduzida a um rebento gêmeo, o objeto que é percebido e a própria percepção que é gerada junto com o objeto, mas sem que haja, entre ambos, distinção (156b). É uma concepção orgiástica, fusional e fantasmagórica da percepção e de todo aparecer, e é com esta teoria que Sócrates está rivalizando, este é o impacto que Platão quer provocar em seu leitor: “E, sendo assim, dado que temos muito tempo livre (σχολὴν), vamos analisar tudo de novo, sem sermos capciosos (δυσκολαίνοντες), mas submetendo-nos, na realidade, nós próprios a um exame, para considerarmos (ἐξετάζοντες) até que ponto estão em nós estas visões (φάσματα)? (155a-b). Ou seja, não deveríamos refrear a fusão com o que não cessa de aparecer para entrarmos em contato conosco? Ou, em outras palavras, não deveríamos entrar em contato conosco para não nos fundirmos com o que não cessa de aparecer e não cessa de nos afetar?

A partir das concepções de Protágoras, tal como Platão nos incita a reconstruir, as provocações de Sócrates seriam respondidas pelo sofista do seguinte modo: o objeto não possui uma determinação própria, tampouco o critério ou a determinação está na pessoa que percebe, pois tudo é relativo e dependente do encontro, e se as coisas estão mutuamente ligadas, precisam ser medidas pelo homem, ou seja, o homem não apenas é a medida de todas as coisas (ἄνθρωπον εἶναι πάντων χρημάτων μέτρον), como tem de acertar ser, quer ele queira quer não (167d). É evidente, todavia, que se tudo o que houvesse fossem realidades instantâneas nada apareceria, pois estaríamos imersos em uma ausência de medida, de inteligibilidade e sentido. É neste ponto que entra a importância da doxa para o sofista e que o torna um sofista para a tradição e não um típico pré-socrático envolvido com as coisas do ser e da phýsis.

Para Protágoras as realidades instantâneas que aparecem ao homem vêm mediadas pela doxa, o discurso comum, ou seja, é o logos que mede e dá a medida de todo o aparecer. A phantasia possui inteligibilidade porque é algo entre a percepção (individual, irrepetível e única) e a doxa, relativa ao que é comum, o discurso partilhado pela pólis. Quando algo aparece, tal como, por exemplo, o sol surge no alvorecer do dia, aparecem ao mesmo tempo o amarelo, a luz, e o calor, e para Protágoras o sentido de tudo isso é sempre dado pelo nomos, os costumes e a linguagem comum. É por considerar desta maneira que no Protágoras (325c-d) o sofista de Abdera afirma que todos na cidade são professores de virtude, pois tão logo a criança compreende o que é dito, os adultos não poupam esforços para mostrar-lhe o que é justo e injusto, nobre e vil, sagrado e profano. A presença do ser é restringida em cada aparição que, através do uso e do costume, seleciona a perspectiva a ser ressaltada.8 Neste sentido, o homem é a medida não apenas do que lhe aparece através dos sentidos, mas também do que é justo, do que é belo e do que é bom, quer seja uma crença, quer seja uma opinião. Em outras palavras, o homem é a medida tanto de um julgamento dos sentidos, como de um julgamento do pensamento, não havendo uma distinção clara entre uma e outra instância.

Platão, em suas críticas no Teeteto, por sua vez, acusa que o protagorismo, num primeiro momento, nega um mundo comum a todos, cada homem vivendo em seu próprio mundo, um mundo privado, sendo instantâneo o próprio sujeito. “Pois eu (Protágoras) afirmo que a verdade é como eu escrevi. Pois cada um de nós é a medida do que é e do que não é, e, no entanto, cada um difere infinitamente do outro: para um é uma coisa e assim aparece, a outro é e aparece outra coisa.” (166d)

Reiteradamente citada no Teeteto, na proposição protagórica, o homem (ánthropos) é geralmente compreendido como sendo o ser humano individual. Todavia, apesar de o início do diálogo fazer parecer que a sentença se refere exclusivamente à individualidade de cada homem, Platão, exibindo a amplitude da proposição, alterna a interpretação, referindo-se ora ao homem singular e universal, ora ao homem enquanto coletividade.9 Quando a sentença se dirige ao problema do conhecimento e da percepção, Platão enfatiza a referência ao homem individual, quando o contexto é relativo a juízos éticos e estéticos (como são os costumes e as leis), a ênfase é na referência ao homem coletivo. Este, pois, é um ponto importante, a saber: a qual escala ou extensão da palavra homem Protágoras estava se referindo em sua proposição? Sexto Empírico (D.K. 80 B1) afirma que Protágoras introduz o princípio de relatividade ao afirmar que cada homem é o critério daquilo que lhe aparece. Ou seja, segundo a sua interpretação, a frase refere-se ao homem individual. Kerferd (2003, p.148) consente com esta interpretação e ao contrário afirma Gomperz (1881, p. 504), para quem o homem mencionado por Protágoras não é o indivíduo, mas a condição do homem em geral, pois declarar o indivíduo como a medida da existência das coisas significaria a negação de toda a realidade objetiva. Segundo Romeyer-Dherbey (1999, p.24) esta última é a interpretação mais comumente dada no século XIX: o homem significando a natureza humana. Segundo ele, Hegel10 foi considerado por restituir à sentença a dupla acepção da palavra homem, e ao se deparar com os dois sentidos possíveis da fórmula protagórica, objetou que à época dos sofistas o interesse do sujeito em sua particularidade não se distinguia do interesse do sujeito na sua racionalidade substancial.

Nesse sentido, interpretações mais recentes, como as de Untersteiner (2012, p.79) e de Romeyer-Dherbey (1999, p.25), afirmam a dupla extensão do termo ánthropos presente na formulação de Protágoras e defendem que a ambivalência não é uma confusão involuntária do sofista. Como observa Romeyer-Dherbey, concordando com Platão (171a) quando este denuncia a impossibilidade de o homem singular ser o critério da verdade, já que, se assim fosse, critério nenhum haveria, a passagem do homem singular ao homem universal seria, portanto, o critério da verdade, dois momentos de um processo dialético. Se, por um lado, toda phantasia se mostra em uma aparência e se expressa como doxa, estabelecendo, assim, uma verdade ao mesmo tempo instantânea e absoluta, a opinião singular pode apenas verificar-se enquanto verdade se em consonância com a opinião dos outros - ou, de preferência, com a opinião da maioria. O conceito de homem neste sentido é de escala variável, opõe-se a si próprio ou inexiste quando cada homem possui sua própria opinião e adquire unidade quando as particularidades se conciliam, (1999, p.25) ou, em outras palavras, apenas pelo discurso as particularidades podem se (re)conciliar.

Apontando para a verdade humana, uma verdade que precisa ser negociada com os outros homens, o sofista denuncia o nomos como critério de ‘verdade’ estabelecido pelo homem. Esta interpretação é fortalecida por uma passagem no Teeteto em que Sócrates afirma ser sustentado pelo sofista que a opinião comum se torna verdadeira por ocasião de uma adoção, assim permanecendo enquanto estiver em vigor (167c; 172b). Neste sentido, na concepção segundo a qual é verdadeiro o que a cada um aparece é incluída a verdade do próprio julgamento, embora seja previsível que um homem comum sustente a visão de que alguns julgamentos são falsos, sobretudo quando quem julga não possui qualificação no assunto. Em outra passagem, Sócrates, que a todo momento quer mostrar a característica de presa fácil de seu interlocutor, indica esta possível falha na doutrina do homem-medida, constatando que não julgamos sempre a opinião do outro correta. Com a máscara de eurístico, Sócrates joga com o argumento do próprio Protágoras:

Se nem ele próprio acreditava, nem a maioria, que de facto o não pensa, que o homem era a medida, será que não é necessário que esta verdade que ele escreveu o não seja para ninguém? Mas, se ele acreditava e a maioria não concorda, fica sabendo, em primeiro lugar, que, quanto maior for o número daqueles que acham não ser esta verdade, tanto mais ela o não será (170e-171a).

Segundo Romeyer-Dherbey, o pensamento de Protágoras possui uma estrutura que abrange três partes ou momentos, sendo esta estrutura essencial para compreender a doutrina do pensador, sua intenção e significado: o primeiro momento, considerado negativo, é o momento das antilogias11, e os dois momentos seguintes, considerados construtivos, são a tese do homem-medida e o discurso forte12, respectivamente (1999, p. 17). Como vimos, Protágoras, segundo a explicação de Sócrates, equiparando o que aparece (phantasia) e a opinião (doxa), anulando a oposição parmenídica entre doxa e alétheia, afirma a verdade de tudo o que aparece e, portanto, a verdade da doxa. O sofista, nesse sentido, não pode definir o que é a verdade, pelo menos não enquanto correspondência, pois ele só admite o que aparece; e para admitir a verdade (em oposição à falsidade), é preciso dois polos separados e que se correspondam, como o ser e o discurso sobre ele. Não obstante, Protágoras dirá que sobre todas as coisas há discursos duplos, que, ao invés de apresentarem entre si uma relação de hierarquia, são equivalentes.

Há dois logoi em oposição ao que um pode vir a ser dominante ou mais forte, enquanto o outro, submisso ou mais fraco. Ora, se as antilogias apresentam uma realidade instável e indecisa, é aí que o homem surge dando uma medida. No entanto, se cada indivíduo certamente é a medida de todas as coisas, esta medida é muito fraca se cada um permanecer sozinho com sua opinião. Esta é a interpretação que Romeyer-Dherbey (1999, p. 26) dá ao fragmento. Para ele, o discurso forte entra como o momento construtivo da doutrina de Protágoras.13 Se cada indivíduo é a medida de sua própria realidade, o discurso fraco, o que não comunica ou não convence, mantém cada indivíduo em sua própria particularidade e incomunicabilidade. O discurso não partilhado, afirma ele, é um discurso fraco, se chegar a ser um discurso, pois toda comunicação supõe o compartilhamento, algo de comum. A opinião pessoal verifica-se pelo seu acordo entre a opinião dos outros, se a opinião pessoal não é reforçada pela de outrem, se não convence ninguém, desaparece e não pode aspirar ao ‘verdadeiro’. O discurso forte, ao contrário, tem o poder de fazer com que as partes se conciliem, fazer com que as diversas vozes entrem em uníssono. O consenso provocado pelo discurso é, pois, o fiel da balança e, por isso, é preciso tornar mais forte o discurso mais fraco. E o fortalecimento do consenso, que se gera em incessante disputa, ocorre por meio da reflexão, tomada, aqui, não como um diálogo da alma consigo mesma, mas das ‘almas-corpos’ em constante relação umas com às outras.

Tendo em mente e seguindo as evidências da ascendência heraclítica de Protágoras, mais uma vez percebemos a grande afinidade entre os dois pensadores. Como o despertar do que dorme, a que se refere Heráclito em seus aforismos, o discurso forte instaura um mundo comum, um mundo único e igual para todos. O discurso fraco, como no universo particular do homem que dorme, mantém o indivíduo aprisionado em seu isolamento. O pensamento do sofista surge, nos termos das questões da pólis democrática, como um desdobramento do pensamento do efésio. Não obstante, a despeito das afinidades, a descontinuidade entre os pensamentos é visível, uma vez que, se, para Heráclito, a lei feita pelos homens é um reflexo da ordem do cosmos, “todas as leis humanas nutrem-se de uma só divina”14 (DK 22 B 114), para Protágoras, os homens são limitados pelas perspectivas, balizadores da verdade e valoração sobre as coisas, e por isso são falhos em refletir a natureza com perfeição, isto é, o conflito entre as diferentes vozes e perspectivas é permanente. 15 As coisas que aparecem ao homem lhe aparecem na medida de sua utilidade, logo, o abderita apenas até certo ponto é um típico pré-socrático, pois ele constata uma restrição e/ou seleção humanas. Neste ponto fica evidente a ambiguidade das suas palavras: a necessidade de dar medida é ao mesmo tempo o contato com uma nova possibilidade de desmedida. A condição do homem de restrição acerca da presença das coisas e de ser em relação a sua própria experiência limitante significa uma abertura para as possibilidades de perspectivas, um novo risco e uma nova possibilidade de hybris.

Notamos, por fim, a distinção entre a paideia poética e a paideia sofística. Em um momento transicional de uma cultura predominantemente oral para a escrita, e também entre o mythos e o logos, a linguagem servia às necessidades da memória e a tradição era preservada através do ritmo e propagada através da repetição e da memorização (SCHIAPPA, 2003, p. 26). Na paideia poética, a memória é um processo de inspiração divina, há uma deusa que é a agente e o indivíduo que é de algum modo ‘passivo’ e dependente, apesar de aparecer como um privilegiado, um iniciado, um escolhido. Até o século VI a.C., afirma Cornford (1952, p. 103), não havia a dúvida quanto à apreensão mental de verdades. Ninguém contestava nem contradizia a verdade dos poetas que, quando inspirados pelas musas, eram capazes de proferir a Alétheia. O processo de lembrar, o ato poético, a memória, é uma espécie de revelação purificadora que se dá de um outro para com o eu, isto é, o poeta lembra-se graças à inspiração divina. A palavra mágico-religiosa, observa Detienne (1988, p. 36), escapa à temporalidade formando um todo com as forças que estão para além das forças humanas e o falar mito-poético, ao transcender o tempo, transcendia também os homens, jamais sendo uma manifestação de um pensamento individual.

A paideia sofística, por outro lado, interpreta a memória não como algo sagrado, purificador ou iniciático, mas como algo funcional e possível de ser adquirido por qualquer cidadão, ocorrendo graças ao esforço pessoal, exercícios e técnicas mnemônicas. Platão no Crátilo (414c), em suas inumeráveis e aparentes brincadeiras etimológicas, ilustra esta transformação fazendo a palavra techne (arte ou técnica) derivar de echonoe (possessão do espírito). A palavra com seu grande poder de encantamento e fascinação e que, anteriormente, encontrava-se no domínio dos poetas inspirados pelo divino, mostra-se passível de uma técnica16, e quem diz não é um outro no lugar do cidadão, mas ele mesmo, revelando-se ativo e potencialmente capaz de modificar a práxis ético-política. Enquanto o discurso poético revelava a realidade já existente, o discurso neste momento aparece como capaz de produzir uma realidade ou determinar a perspectiva sob a qual as coisas devem ser reveladas. O contexto histórico vivido por Protágoras revela a capacidade produtiva do pensamento e descobre a realidade não como um fenômeno exterior, autônomo, impositivo de um estado de coisas ao qual o homem deve submeter-se, mas como algo que até certo ponto é produzido pelo falar do homem. Percebia-se que ao falar, o homem determina modos de ver, cria sentidos, e criando sentidos cria realidades. O sábio, portanto, é aquele que ressalta a perspectiva melhor a ser revelada, produzindo deste modo um discurso forte.17 Um enorme perigo, todavia, reside aí, perigo em relação ao qual Platão se mostra vigilante: o homem, com as possibilidades inesgotáveis da fala, pode acreditar-se instaurador do real. Apesar de não ser isso o que apregoa Protágoras, a sentença que diz que o homem é a medida de todas as coisas pode de fato ser assim interpretada, pois há este risco. Contudo, o que a proposição, em toda a sua magnitude declara, é que justamente por isso temos a necessidade da medida.

Das diferentes concepções de alma à importância da pólis, tendo percorrido até aqui, há algo que, por fim, podemos asseverar: a doutrina do homem-medida nada tem a ver com uma anarquia epistemológica segundo a qual todas as percepções e juízos se equivalem. A democracia, por ser uma aposta na realização das opiniões, toma as opiniões dos indivíduos separadamente, ficando evidente a importância da fala para se obter voz nas decisões da pólis. Se, por um lado, como afirma Sócrates em defesa de Protágoras (166a-168d), para o sofista o sábio é aquele que sabe a diferença entre percepções melhores e piores, e é capaz de alterar o aspecto das coisas, fazendo ser e aparecer bom para esta ou aquela pessoa o que era ou lhe aparecia mau; por outro, o homem-medida, ou seja, cada um de nós, não perde sua potência diante do melhor, pois ninguém pode levar quem tem uma opinião falsa a ter uma opinião verdadeira, uma vez que “não é possível ter opinião sobre o que não é, nem ser afetado por outra coisa que não aquela que o afeta, que será sempre verdade” (167b). O educador, assim como o médico, compara ele, deve fazer uma mudança de um estado pior para outro melhor e, enquanto o médico faz a alteração com remédios, o sofista a faz com discursos. Tanto o doente quanto aquele que possui más opiniões/percepções têm opiniões verdadeiras, que, no entanto, não são úteis nem vantajosas. Há, do mesmo modo, governos mais sábios que outros, e o mais sábio é o que, por meio do discurso, convence os cidadãos a adotar as disposições mais úteis à comunidade. O objetivo do sofista com seu ensino, pois, é ser útil à cidade, é colocar a cidade de acordo consigo mesma e, neste sentido, a finalidade é a prevalência da opinião da cidade sobre a do cidadão. É uma aposta na negociação e no predomínio do interesse comum, embora haja pouca ou nenhuma garantia de que não acabe prevalecendo a opinião pior, ou até mesmo aquela que levará a cidade à ruína.

Para finalizar, considero que, segundo insinua o drama platônico, a tese do homem como medida tem um caráter oracular, conseguindo reunir-se ao mesmo tempo como misterioso aforismo, ao estilo de Heráclito, e como predição ou vaticínio de um futuro inescapável. A discussão travada entre o filósofo (Sócrates) e os dois matemáticos (Teeteto e Teodoro) ocorre em 399 a.C., ano do julgamento e da morte de Sócrates. Ao fim do debate, após descartadas as três definições de conhecimento, ilustrando tragicomicamente o tom oracular da sentença do homem como medida, Sócrates afirma que precisa dirigir-se ao pórtico do rei para responder a acusação formal que Meleto fez contra ele (310d). A medida do homem, através da cidade, determinou que Sócrates era culpado, e interrompendo o fluxo de sua vida, condenou-o à morte. A esta altura, Protágoras, censurado sob acusações muito similares às que mataram Sócrates, porém, não pela democracia, mas pela oligarquia, já era morto - morreu, segundo testemunhos, em um naufrágio em fuga do julgamento dos Quatrocentos. Nota-se, pois, que o diálogo, embora dirigido pela questão do conhecimento, possui um forte viés político-pedagógico, o que se pode afirmar de toda a obra platônica.

Referências

CASSIN, Barbara. Ensaios sofísticos. Trad. A. L. Oliveira; L. C. Leão. São Paulo, Siciliano, 1990. [ Links ]

CORNFORD, F. M. Plato’s Theory of Knowledge. Londres, The Open University, 1935. [ Links ]

DETIENNE, Marcel. Mestres da verdade na Grécia arcaica. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988. [ Links ]

DIÓGENES LAÉRTIOS. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. M. G. Kury. Brasília, EdUnb, 1988. [ Links ]

GOMPERZ, Theodor. Pensadores griegos. Asuncion, Guarania, 1881. [ Links ]

GUTHRIE, W. K. C. Os sofistas. São Paulo: Paulus, 1995. [ Links ]

JAEGER, Werner. Paideia. São Paulo: Martins Fontes, 1979. [ Links ]

KAHN, H. Charles. A arte e o pensamento de Heráclito. São Paulo: Paulus, 2009. [ Links ]

KERFERD, G. B. O movimento sofista. São Paulo, Loyola, 2003. [ Links ]

PLATÃO. Teeteto. Tradução de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Lisboa, Calouste Gulbekian, 2010. [ Links ]

PLATÃO. Diálogos. Teeteto, Crátilo. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém, EdUFPA, 2001. [ Links ]

PLATÃO. Mênon. Tradução de Maura Iglésias. Rio de Janeiro: Puc-Rio, Loyola, 2001. [ Links ]

PLATÃO. Protágoras. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém, EdUFPA, 2002. [ Links ]

ROMEYER-DHERBEY, Gilbert. Os sofistas. Lisboa, Edições 70, 1999. [ Links ]

SCHIAPPA, Edward. Protagoras and Logos: A Study in Greek Philosophy and Rhetoric. Columbia, University of South Carolina Press, 2003. [ Links ]

SOFISTAS. Testemunhos e fragmentos. Tradução: Ana A. A. de Sousa e Maria J. V. Pinto. Lisboa, Casa da Moeda, 2005. [ Links ]

UNTERSTEINER, M. A obra dos sofistas: uma interpretação filosófica. São Paulo, Editora Paulus, 2012. [ Links ]

1"περὶ μὲν θεῶν οὐκ ἔχω εἰδέναι οὔθ᾽ ὡς εἰσίν, οὔθ᾽ ὡς οὐκ εἰσίν: πολλὰ γὰρ τὰ κωλύοντα εἰδέναι, ἥ τ᾽ ἀδηλότης καὶ βραχὺς ὢν ὁ βίος τοῦ ἀνθρώπου." (DK 80 B 4). Não posso saber se os deuses existem ou se não existem ou que forma podem ter; muitos são os obstáculos deste saber: a obscuridade e a brevidade da vida humana”. (Tradução de Ana Alexandre Alves Sousa e Maria José Vaz Pinto).

2Em diálogo com os grandes pensadores de seu tempo e participando ativamente dos assuntos das cidades por onde passava como professor itinerante, o pensamento de Protágoras sofreu grande influência da diversidade cultural e intelectual grega. Além disso, atuou como legislador e fez parte do círculo de Péricles, no auge da democracia ateniense. Quanto à índole democrática da teoria de Protágoras, tentaremos explicitá-la ao longo deste artigo.

3 Todas as traduções do Teeteto são de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri.

4Em Metafisica (Gama) Aristóteles, refutando aqueles que consideram, com Protágoras, todos os fenômenos verdadeiros, também associa Protágoras a Heráclito (1009a). E ao estabelecer o princípio de não-contradição, embora mencione apenas o efésio, é visível que se refere também ao abderita (1005b).

5 Como se sabe, o termo sophistés era usado como sinônimo de sophós, sábio, e referia-se a qualquer um que possuísse uma sabedoria e/ou habilidade particular, o que incluía especialistas em alguma techné, poetas, adivinhos, bem como aqueles que hoje conhecemos por filósofos. Os primeiros sofistas, tal como ficaram conhecido para nós e que circulavam pela Grécia do século V a.C., sustentaram concepções políticas e doutrinas teóricas muito diversas entre si. Se é possível sustentar haver entre eles algo em comum é o fato de a maioria destes pensadores ter se concentrado na produção e análise de discursos. Sobre Protágoras, as fontes afirmam que tinha interesse especial pela gramática, apresentando, inclusive, correções linguísticas, além de distinguir o gênero das palavras, em masculino, feminino e neutro, e ser o primeiro a distinguir os tempos dos verbos. Kerferd (2003, 119, 120), a esse respeito afirma que “Protágoras não estava meramente tentando analisar e descrever o uso corrente do grego; seu objetivo era corrigir esse uso e, para isso, ele estava pronto a recomendar medidas drásticas”. Para Guthrie (2007, p.205), por sua vez, o objetivo dessa preocupação com a gramática “[...] não era de fato científico, distinguir e codificar o uso existente, mas prático, reformar a linguagem e aumentar sua eficácia por correspondência mais estreita com a realidade”.

6Protágoras, além de educador, era legislador, logo, quando afirma o homem como medida, decerto que se refere à contingencialidade das ações e das instituições humanas e à necessidade que estas têm de se adaptarem às mutações dos contextos político-sociais aos quais o homem se vincula.

7 Deve se observar que, por intermédio de Sócrates, Protágoras argumenta ainda que a própria recordação é vivenciada no presente e que a experiência anteriormente vivenciada não é a mesma experimentada pela lembrança (166b).

8A escolha de Protágoras pelo vocábulochrémata (que significa as coisas de que nos servimos ou as coisas que são úteis) para designar as coisas cuja medida é o homem, ao invés de prágmata, nos parece, nesse sentido, elucidativa. Como observa Cassin (1990, p. 67), as coisas cuja medida é o homem são as que lhe aparecem, o ser ao invés do não-ser, o algo ao invés do nada. Entretanto, o termo utilizado pelo sofista para designar coisas não foi prágmata, o estado de coisas ou as coisas como resultado de uma ação, mas chrémata, as coisas em relação ao homem. O homem, a cada vez, é a medida das coisas, afirmaria Protágoras, na medida em que as coisas que o homem tem em torno de si no uso e no costume aparecem a ele justamente por serem úteis ao uso e ao costume. Só lhe aparecem as coisas que lhe são úteis (ou têm um sentido), as que não são, não lhe aparecem. Segundo Cassin, “o turbilhão pré-socrático da alétheia como não-ocultação, recebe uma primeira restrição da presença” (1990, p. 63).

9É sobretudo no discurso que Sócrates faz em defesa de Protágoras que se evidencia o alcance coletivo da proposição, como, por exemplo, na afirmação de que o que a cada cidade aparece como justo e belo assim o é enquanto ela o determinar (167c); e na de que todas as coisas estão em movimento e o que aparece a cada um assim o é, tanto a cada indivíduo, como a cada Estado (168b). A centralidade do vínculo coletivo entre os seres humanos na doutrina de Protágoras também pode ser observada no mito, relatado no Protágoras, sobre o surgimento dos seres e humanos e das cidades narrado pelo sofista no diálogo homônimo, no qual afirma a importância do pudor (aidos) e da justiça (dike) para a sobrevivência dos homens (320d-322d).

10Hegel é considerado marco pioneiro de uma nova maneira de encarar o estatuto dos textos dos sofistas.

11Há uma obra encontrada entre os manuscritos de Sexto Empírico (KERFERD, 2012, p.94), que ficou conhecida como Discursos Duplos (Δισσοὶ λόγοι) e que foi associada aos sofistas em geral, mais de uma fonte, porém, afirma que foi Protágoras o primeiro a falar de antilogias, techne argumentativa que visa colocar lado a lado argumentos opostos sobre os temas em discussão. Cf. SOUSA & PINTO, 2005, p.73.

12Este fragmento aparece na Retórica de Aristóteles. Com desaprovação, afirmando ser isso de nenhum valor, a não ser na retórica e na erística, segundo o estagirita, Protágoras “criou o argumento mais forte e o argumento mais fraco e ensinou os seus discípulos a censurar e elogiar a mesma pessoa”. (1408a23)

13Embora as antilogias, tal como lemos em As Nuvens (111-114) de Aristófanes, que aproveita a polêmica e identifica o argumento fraco ao injusto e o forte ao justo, já produzia alvoroço à época, foi principalmente a passagem de Aristóteles que serviu como base para relacionar, não apenas Protágoras, mas toda a sofística exclusivamente à habilidade retórica, oradores hábeis que com suas capacidades e ensinamentos estimulavam os mal-intencionados a vencer a disputa. O fragmento entrou para a história como a essência da sofística cujos ensinamentos falsificavam e faziam o pior argumento parecer melhor ou davam à causa mais fraca a aparência de mais forte. Tanto as mais recentes interpretações do pensamento de Platão, restituindo-lhe o caráter dialógico propriamente dito, quanto a virada linguística da filosofia, da qual podemos considerar Nietzsche o precursor, vem contribuindo para a recolocação e valorização destes pensadores marginalizados pela história da filosofia. O fato de os sofistas não serem ‘filósofos’ aos olhos de Platão e de Aristóteles, como se sabe, produziu efeitos negativos na prática doxográfica subsequente e o menosprezo em que eram tidos no plano teorético tornou-se um desincentivo para o registro e a repetição de suas doutrinas.

14Tradução de Charles Kahn.

15O logos não é mais algo que deve ser ouvido e compreendido, como em Heráclito, nem a expressão do sentido absoluto do ser, como em Parmênides, tornando-se, com a perspectiva introduzida pelo sofista, construção humana. O discurso, para Protágoras, pertence, pois, ao âmbito da ação e não é sua função primeva transmitir conhecimento objetivo, embora ele seja capaz, através dos usos comuns e das utilidades das technai, atestar objetividades da realidade.

16Platão no Protágoras (338e-348a) mostra que a poesia, embora fosse considerada centro da educação, passava a receber análises e críticas. Neste diálogo, como mais um indicativo desta transição dos métodos pedagógicos, o sofista declara que, para um homem, a parte mais importante da educação é ser perito na poesia, capacitar-se a compreender o discurso poético, explicá-lo quando questionado a respeito e saber quando um poema foi corretamente composto. Mais adiante, depois de narrar um mito, apresenta dele uma análise com justificativas e argumentos (320d-328d), ocorrendo o mesmo com a sua famosa sentença sobre os deuses, na qual, após afirmar a impossibilidade de saber se existem ou não existem e qual o seu aspecto, justifica a sua declaração argumentando que o assunto é obscuro e a vida humana, curta.

17É sábio e educador quem tem a capacidade de afetar o outro, de transformar o outro. Trata-se, neste caso, de quem intervém e afeta e não propriamente do teórico que, como sugere a palavra, contempla. O processo educativo, por sua vez, leva em conta cada um dos educandos que, possuindo sensações e opiniões, quer perniciosas e nocivas (que devem ser transformadas), quer úteis e benéficas (que devem ser promovidas e desenvolvidas) são sempre verdadeiras.

Recebido: 15 de Julho de 2021; Aceito: 15 de Março de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons