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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.35 no.75 Uberlândia set./dez 2021  Epub 16-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v35n75a2021-63576 

Artigos

Pensar a técnica e a tecnologia com Álvaro Vieira Pinto: contribuições para o ensino da filosofia no ensino médio profissional1

Thinking about technique and technology with Álvaro Vieira Pinto: contributions to the teaching of philosophy in Technical High School

Penser la technique et la technologie avec Álvaro Vieira Pinto : contributions à l'enseignement de la philosophie dans l'enseignement technique secondaire

Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira* 
lattes: 7575059142081185; http://orcid.org/0000-0001-9140-2002

*Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor no Instituto Federal Minas Gerais (IFMG/Campus Betim). E-mail: lucas.pereira@ifmg.edu.br


Resumo

Este artigo apresenta uma análise do processo de fabricação dos conceitos relacionados à técnica e à tecnologia na obra “O conceito de Tecnologia” (Vol. 1) de Álvaro Vieira Pinto. Primeiramente aborda-se os conceitos de máquina e de técnica e o modo como esses conceitos se conectam com o problema do “desenvolvimento” nacional. Em seguida explora-se o problema da ideologização da noção de “era tecnológica” e a relação do conceito de tecnologia com a ideologia dominante. Por fim a partir da metodologia do ensino de filosofia por problemas, propõe caminhos possíveis para a introdução do ensino da filosofia da técnica e da filosofia da tecnologia no ensino médio profissional.

Palavras-chave: Álvaro Vieira Pinto; Filosofia da Tecnologia; Ensino Médio Profissional; Filosofia Brasileira

Abstract

This paper analyzes the conceptualization of techcnique and technology in the book “The Concept of Technology” (Vol.1) of Álvaro Vieira Pinto. The first section focus on the concepts of machine and technique and the connections with the “national developlment problem” in Vieira Pinto work. Then the text explores the ideological treatment of the concept of “Technological Era” and the relationship between technology and dominant ideology. In the end, guided by the methodology of teaching philosophy through problems, the last section proposes some paths to introduce the philosophy of technique and techonology in the practice of teaching Philosophy in the Technical High School.

Key-words: Álvaro Vieira Pinto; Philosophy of Technology; Technical High School; Brazilian Philosophy

Résumé

Cet article présente une analyse de les méthodes de fabrication de concepts liés à la technique et à la technologie dans l'ouvrage « Le concept de la Technologie » (Vol. 1) d'Álvaro Vieira Pinto. D’abord, les concepts de machine et de technique sont discutés, ainsi que la manière dont ces concepts sont liés au problème du « développement national». Ensuite, les problèmes de l'idéologisation de la notion d'« âge technologique » et de la relation du concept de technologie avec l'idéologie dominante sont explorés. Enfin, à partir de la méthodologie de l'enseignement de la philosophie par problèmes, on propose des pistes possibles pour introduire la philosophie de la technique et la philosophie de la technologie dans l'enseignement secondaire technique.

Mots-clés: Álvaro Vieira Pinto; Philosophie de la Technologie; Enseignement Secondaire Technique; Philosophie Brésilienne

Considerações iniciais

No princípio era a cultura. Em interação dialética com a natureza, a cultura, por meio da razão, vence os obstáculos da natureza, e o ser humano distingue-se dos outros seres a ponto de “produzir em conjunto com os semelhantes os bens de existência” (VIEIRA PINTO, 2005, p. 74).2 A humanização se daria, então, com o nascimento da cultura. Mas “cultura” corresponde, nesse caso, a essa capacidade de construir a própria existência a partir de uma série de elementos fundados com o desenvolvimento do sistema nervoso, como o surgimento da linguagem e o desenvolvimento da habilidade de criar ideias e de associá-las. A vitória do ser humano em relação à natureza se deu e se dá pela razão e esta, por sua vez, foi e é propiciada pela própria natureza, a partir do desenvolvimento biológico do sistema nervoso (CT, p. 162). Contudo, ao desafiar a natureza em termos biológicos, o ser humano não é capaz de vencê-la nos próprios termos da natureza, mas somente a partir das artificialidades engendradas pela razão em ação: “as ideias abstratas e a invenção imaginativa que movem a ação técni ca” (CT, p. 162). A cultura, então, é a síntese do próprio processo de desenvolvimento humano e nela encerra-se nossa capacidade de criar, a cada momento histórico, diferentes respostas (diferentes máquinas, ações, estratégias) aos impedimentos que a natureza impõe à existência humana. A análise dialética de Álvaro Vieira Pinto assume uma centralidade do ser humano, com sua razão, nas mudanças históricas diante das necessidades de substituição de uma técnica por outra de modo interminável (CT, p. 163-164).

Todo esse argumento, me parece, encontra-se na base do pensamento sobre a técnica e a tecnologia do filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto em sua obra póstuma “O conceito de Tecnologia”, finalizada na década de 1970, em sua fase madura. Partindo do problema do desenvolvimento do sistema nervoso, Álvaro Vieira Pinto constrói uma série de argumentos e definições de máquina, técnica e tecnologia, buscando sustentar a melhor e mais correta maneira de indagarmos o problema da tecnologia. Assim, o autor se posiciona contra uma série de leituras sobre a tecnologia que grassavam o mundo desde a segunda metade do século XX. Suas críticas miravam tanto a produção literária da ficção científica, quanto intelectuais de diversas áreas que estabeleciam uma relação negativa ou positiva diante da tecnologia, mas sempre partindo de pressupostos epistemológicos equivocados: o essencialismo da técnica, a autonomia das máquinas, etc. Assim, Vieira Pinto desenvolve uma sistemática apresentação dos princípios gerais e corretos para sustentar a pergunta filosófica sobre a técnica e a tecnologia, que seria, em sua visão, a leitura dialética da existência, ou seja, uma pergunta que se indague sobre os processos de construção das condições materiais de existência do ser humano por ele mesmo.

A obra é marcada por uma série de repetições do argumento central, mencionado no início deste artigo, acrescido de novos elementos, de novas críticas, ou mesmo de reformulações do próprio argumento.3 Assim, ao longo da leitura do texto, sentimos uma certa familiaridade com o desenvolvimento do raciocínio, dando a impressão de já termos lido determinado trecho antes. Norma Côrtes chama atenção para essa escolha consciente, feita por Álvaro Vieira Pinto, em CRN. Segundo a autora, essa estratégia voltava-se para o diálogo com as pessoas comuns. Falar com cautela, repetir a mesma ideia de modo diferente era um método próprio que pretendia abrir caminhos para o filosofar autônomo do próprio leitor (CÔRTES, 2003, p. 69-75).4

Neste artigo retomo os conceitos de era tecnológica, técnica e tecnologia, desenvolvidos pelo autor no seu livro “O Conceito de Tecnologia” (vol. 1). Partindo das ponderações sobre esses conceitos, apresento algumas reflexões sobre a introdução do problema da técnica e tecnologia no ensino de filosofia no Ensino Médio Profissional (EMP), considerando a metodologia do ensino por problema (GALLO, 2012).

A hipótese defendida é que a conceitualização de técnica, de tecnologia, de máquina e de ‘era tecnológica’ do filósofo brasileiro, no livro analisado, contribui para o ensino de filosofia no ensino médio. Essa contribuição se dá na medida em que nos auxilia a propor e a desenvolver, com os estudantes, reflexões críticas sobre as condições de produção de técnica e tecnologia em uma instituição de ensino voltada para esse fim, como é o caso dos Institutos Federais de Ciência, Educação e Tecnologia.

O problema da máquina e da técnica

A técnica é um conceito que mobilizou inúmeros pensadores na história da filosofia. Partindo dos clássicos, observamos o desprezo de Platão em relação à cópia da Natureza que o artista produz em suas atividades. Na Metafísica, Aristóteles, por sua vez, observa a existência de um logos na técnica. Já na modernidade, a técnica passa a assustar, a afligir o espírito de determinados autores, que fizeram leituras catastróficas em relação ao destino do ser humano face ao desenvolvimento tecnológico, como Heidegger, ou até mesmo Marcuse que, com sua teoria crítica, apontou para os perigos ideológicos da dominação do homem pela técnica (FEENBERG, 2003). Álvaro Vieira Pinto produziu uma crítica profunda em relação ao conceito de técnica, estabelecendo o que ele chamou de pergunta correta sobre a técnica. Nesta seção discuto aquilo que considero ser as bases da crítica produzida pelo filósofo em sua obra póstuma.

Em “O Conceito de Tecnologia”, Vieira Pinto sustenta sua concepção dialética da técnica a partir da definição de uma série de noções e conceitos. A concepção de máquina do autor está conectada com a própria ideia de desenvolvimento e progresso. Para o filósofo, a máquina existe para cumprir um papel social estabelecido pelo ser humano que a projetou e nunca para fazer valer um papel em si mesma5. Assim, ele concebe o desenvolvimento das máquinas como um processo natural, biológico-cultural, de desenvolvimento do próprio ser humano.

Uma das principais características oriundas do processo de “hominização” da espécie, passa pela capacidade de projetar. A ideia de projeto pressupõe o trabalho de transformação “da realidade material”, criando as bases da transformação e desenvolvimento humano, uma vez que cria “diferentes condições de vida” (CT, p.54). Além disso, esse trabalho que transforma a realidade material também estabelece “novos vínculos produtivos com as forças e substâncias da natureza” (CT, p. 55). Portanto, toda a existência humana e toda ação humana tem origem nessa capacidade de projetar (CT, p. 55).6

E mais do que isso, o autor delimita essa capacidade de projetar como uma característica eminentemente humana. O projeto é um elemento chave no processo dialético de propor uma “solução” diante da “relação” entre o ser humano e o “mundo físico e social” (CT, p. 55). O sistema nervoso atua como determinante na produção do ser humano de duas maneiras básicas: pela capacidade de produzir ideias a partir da linguagem; e pelo estabelecimento de relações entre as ideias que se tem sobre o mundo, permitindo elaborar um “projeto” para modificar a realidade física, ou seja, os corpos. Assim, a ação humana advém de uma capacidade de abstração, uma “capacidade abstrativa”, que possibilita a criação de imagens das qualidades dos “corpos e fenômenos objetivos”. Essas imagens, meros reflexos, por sua vez, quando ligadas umas às outras pela capacidade abstrativa, dão “lugar a uma terceira” imagem também abstrata, como um projeto, que precisa ser concretizado por algum esforço, uma ação no mundo (CT, p. 55). Essa capacidade de projetar, portanto, exerce função importante na consciência humana e abre terreno para a ideia de que toda ação humana possui, “necessariamente”, um caráter técnico (CT, p. 59). Logo, uma das bases das possibilidades de construção da máquina é a capacidade de projetar. A máquina é fruto do projeto humano de “fazer aquilo que a natureza faz” (CT, p. 78).

Mas engana-se quem conclui a partir dessa definição que as máquinas têm uma habilidade própria, uma vontade própria, só porque o ser humano transferiu para elas parcela do esforço que realizava antes com seus próprios músculos. Para Vieira Pinto, nenhuma máquina pensa, mesmo as que ele denomina como cibernéticas, ou as automatizadas na linguagem contemporânea. A máquina não é capaz de produzir pensamento, pois esta é uma faculdade exclusiva do ser humano.

Um relé não pensa, mas executa a função reguladora a ele delegada pelo pensamento humano. A máquina ou o aparelho onde figura essa peça simula regular-se a si mesma, quando de fato cumpre apensar a regulação antecipadamente imposta pelo construtor (CT, p. 124).

A origem da máquina está na necessidade humana. Sua razão reside sempre no ser humano e não em si mesma (CT, p. 120). A máquina “não é autora de autênticos projetos” e se ela tem essa aparência de autonomia, “este resultado decorre de ter sido projetada exatamente para isso” (CT, p. 92). Portanto, o ser humano não fabrica nenhum objeto “pensante”, “apenas aproveita a propriedade objetiva possuída pela matéria de obedecer a proporções matemáticas e regras lógicas nas interações físicas” (CT, p. 98-99). Por consequência, ao captar os princípios que organizam os elementos da natureza, a máquina coloca-os a serviço do ser humano, a partir de uma projeção anterior, ligada a alguma necessidade humana. Aliás, qualquer dispositivo que seja capaz de captar uma força natural e revertê-la a serviço da humanidade é denominado como “máquina” por Vieira Pinto (CT, p. 101), em crítica a uma noção mais limitada de máquina em Marx.

O conceito de totalidade permite observar a máquina “na verdadeira realidade de criação da cultura humana” (CT, p. 106). Pois a totalidade observa os problemas técnicos como problemas civilizacionais, unificando técnica e ciência na ordem objetiva do processo histórico-dialético. A totalidade é “feita de contrários em conflito” (CT, p. 47). Assim, o indivíduo concebe a máquina, mas a sociedade possibilita ou impossibilita que se desenvolva, se produza a partir dessa nova concepção, desde que a máquina tenha um valor para toda humanidade (CT, p. 80). A “transmissão de informações”, ou seja, a educação é o meio que possibilita o desenvolvimento constante da construção de um “projeto comum”, que também se constitui como aperfeiçoamento do conhecimento (CT, p. 80). A máquina é, portanto, uma “manifestação do processo evolutivo biológico” do ser humano (CT, p. 73), ela é parte da “história natural” do ser humano. E, por ser manifestação desse desenvolvimento, contém em si uma antinomia fundante: ela inclui em seu pleno funcionamento, a sua falibilidade, “a carência a ser cancelada na aparelhagem que sucederá a ela” (CT, p. 127).

Como vimos, a espécie humana nasce com a técnica. Esta é o modo pelo qual a natureza confere a faculdade de “agir racionalmente” ao ser humano (CT, p. 195). A técnica, portanto, condiciona as relações produtivas que sustentam a vida humana e é condicionada por esse mesmo processo produtivo (CT, p. 194). Ela define o que pode ser produzido e é definida em termos daquilo que pode ser uma nova forma de produzir. Mas não nos enganemos. Isso não significa que a técnica possui, na visão de Vieira Pinto, um caráter de “motor da história”, pois quem cria a história, quem “historiciza o tempo”, quem concebe o mundo e desenvolve um modo de agir sobre a natureza, ou seja, quem desenvolve a técnica é o ser humano (CT, p. 159). A técnica existe em função do ser humano. O domínio das técnicas é, nesse sentido, o “triunfo da razão” sobre a natureza (CT, p. 160), é o resultado das contradições entre humano e natureza, criando novos condicionamentos que deverão ser superados dialeticamente. A técnica é uma “propriedade inerente à ação humana sobre o mundo” que

exprime por essência a qualidade do homem, como o ser vivo, único em todo o processo biológico, que se apodera subjetivamente das conexões lógicas existentes entre os corpos e os fatos da realidade e as transfere, por invenção e construção, para outros corpos, as máquinas, graças aos quais vai alterar a natureza, com uma capacidade de ação imensamente superior à que caberia aos seus instrumentos inatos, os membros de que é dotado (CT, p. 136-137).

Vieira Pinto estabelece um duplo movimento cognoscitivo do ato técnico: i) a definição da qualidade do “ato” que produz pela técnica e ii) a transferência “do ato ao agente”, ou seja, àquele que “pratica atos técnicos” (CT, p. 176). Trata-se de um processo de leitura objetiva do mundo, mas também de subjetivação desse mesmo mundo. A poiesis é a faculdade prática que cria, que produz algo que não existia antes, mas é uma atividade que se dá pela relação do ser humano com o mundo (ver FEENBERG, 2003, p. 2). Pelo modo como o ser humano pensa o mundo.

Pela faculdade tecnopoiética, identificada à invenção da máquina, o homem se afirma como ser pensante, não em caráter abstrato, mas porque pensa segundo as leis da realidade e se superpõe definitivamente aos animais brutos, incapazes de tornarem sua a racionalidade a que obedecem (CT, p. 137, grifos nossos).

A pergunta correta sobre a técnica consiste, então, em buscar compreender qual “papel desempenha a técnica no processo de produção material da existência do homem por ele mesmo” (CT, p. 155). Assim, Vieira Pinto se distancia das concepções que ele classificou como “ingênuas” ou “impressionistas” que conferem à técnica uma característica negativa ou positiva.7 Vieira Pinto estabelece uma crítica bastante incisiva às perspectivas biologizantes de Oswald Spengler (CT, p. 143-149) e à metafísica de Martin Heidegger (CT, p. 150-153). Na visão do filósofo brasileiro, esses dois autores não propuseram a pergunta correta sobre a técnica ao tomarem-na como parte da alma de um povo, de uma etnia específica, como em Spengler, ou como algo que precisa ser “desvelado”, no sentido atribuído por Heidegger à “aletheia” (verdade) grega (CT, p. 155).

Para Vieira Pinto, a técnica não é um fenômeno, ou seja, não é independente do desenvolvimento do ser humano, mas é intrínseca a ele. É imanente. Ela não se distingue de um “suposto ‘númeno’ (...) pois se inclui na essência do ser que a elabora” (CT, p. 214). Pensar o surgimento da técnica é pensar o surgimento do ser humano. A técnica, desse modo, é um processo de produção deliberada, logo, consciente (CT, p. 199). Uma consciência que permite ao ser humano representar “para si a relação entre os meios materiais ou ideais de que dispõe e emprega numa operação e as finalidades que deseja satisfazer pela aplicação desses meios” (CT, p. 199-200). Em sua visão, “a historicidade da técnica confunde-se com a da própria espécie humana” (CT, p. 208). Desse modo, a técnica é uma modalidade específica da nossa capacidade de reflexão, ou seja, da capacidade humana de refletir, de usar a razão para solucionar os problemas com os quais se defronta na natureza, para “resolver as contradições com que se depara na relação com o mundo natural” (CT, p. 206).

Mas no mundo contemporâneo, existe uma interpretação que enxerga a técnica como uma “entidade abstrata”, produzindo uma hipostatização da técnica, ou seja, uma reificação da técnica (CT, p. 177). O técnico, nesse mundo contemporâneo, é a personificação daquele que carrega consigo a técnica, mas o que de fato o técnico faz é a “mediação”, via “atos adequados”, do funcionamento adequado e normal das máquinas (CT, p. 177). O técnico é um “executor de atos técnicos” (CT, p. 177). Isso se dá por uma divisão simbólica do mundo, para falar em termos bourdianos. Em “O poder simbólico”, Bourdieu apresenta sua tese das cisões, da di-visão do mundo que o capital cultural e a linguagem promovem no “espaço de relações” sociais (BOURDIEU, 2009, p. 136). Apesar da distância teórica, Vieira Pinto argumentava algo semelhante, entendendo que ocorre uma “separação entre dois tipos humanos”: aqueles que inventam métodos, instrumentos, modos de produzir e aqueles que executam as ações técnicas, os “atos adequados”, prescritos pelos primeiros (CT, p. 181). A ideia de dominação, portanto, entra em cena na análise de Vieira Pinto, concebendo a linguagem como “técnica fundamental” que prescreve e dá origem a todas as outas técnicas (CT, p. 183).

A solução proposta pelo autor para supererar essa dominação encontra-se na projeção de novos horizontes para construir uma autocentralidade na “invenção e fabricação de técnicas e máquinas” que capacite o país subdesenvolvido para “competir na linha de frente” com outras nações (CT, p. 127). As universidades federais brasileiras, reformadas na década de 1970 e ampliadas na primeira década do século XXI, e os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, criados em 2008, são dois exemplos de projetos nacionais de superação dessa condição. O “desenvolvimentismo” como projeto de transformação da realidade subdesenvolvida, estava no horizonte de Vieira Pinto e, de certo modo, também esteve no horizonte de algumas propostas governamentais ao longo do século XX8. Segundo Marcos de Freitas (1998, p. 70), Vieira Pinto entendia que “sem ideologia do desenvolvimento não há desenvolvimento nacional”. O desenvolvimento seria, assim, diretamente dependente da consciência crítica, numa relação mútua (FREITAS, 1998, p. 100). Dessa forma, a superação da condição política de dominação incluía, na visão de Vieira Pinto, uma dimensão pública do debate sobre o desenvolvimento, que deveria ser uma ocupação primordial, portanto, das universidades, escolas e institutos de pesquisa (FREITAS, 1998, p. 71).

O problema da “era tecnológica” e da tecnologia

No mundo moderno, a admiração da natureza, mencionada por Aristóteles (Metafísica, I, 2, 182b) e Platão (Teeteto, 155d), se transformou. Tornou-se uma admiração, um maravilhamento diante das obras humanas, que, por sua vez, são tomadas agora como naturais aos espíritos da modernidade (CT, p. 35). O espanto diante do mundo na contemporaneidade é, portanto, um espanto diante das coisas produzidas pelos seres humanos, uma admiração do novo. A cosmogonia, na visão do autor, se desloca da “natureza para o homem” (CT, p. 37), na defesa de que não é o “universo” que cria o mundo, mas, sim, o ser humano (CT, p. 39). Nesse processo, o espanto diante do novo converte-se em ideologia. A novidade é tornada natural e, quanto mais o ser humano multiplica a sua capacidade de produzir novas máquinas ou objetos, maior a diminuição da nossa capacidade de nos maravilharmos diante dessas mesmas obras (CT, p. 38).

A ideologização da tecnologia consiste, assim, na embriaguez da “consciência das massas, fazendo-as crer que têm a felicidade de viver nos melhores tempos jamais desfrutados pela humanidade” (CT, p. 41). Essa ideologia cria, portanto, uma série de conceitos, tidos como “ingênuos”, que são capazes de se espalhar e, uma vez difundidos, serem popularizados, como a ideia de “explosão tecnológica” (CT, p. 233).

Vieira Pinto entende que o uso desses conceitos é uma característica da consciência ingênua que é destituída de uma “sensibilidade histórica”. Focando e absolutizando o presente de modo impressionista, o analista da tecnologia ingênuo, observa com “assombro” o desenvolvimento tecnológico, assumindo que vivemos um momento “excepcional” (CT, p. 233). Para o autor, “toda época teve as técnicas que podia ter” (CT, p. 234), portanto, em todo momento o ser humano vivenciou e produziu “explosões” tecnológicas, saltos de desenvolvimento de saberes e práticas sociais. A expressão “era tecnológica” é, portanto, um “estereótipo verbal” que sustenta o maravilhamento humano “diante de suas criações” (CT, p. 235). Estamos diante do que Vieira Pinto denomina como “teologia tecnológica”, que “exige um culto e assume as características de religião messiânica” (CT, p. 291). Uma das bases de sustentação dessa “teologia” seria a concepção de história da “consciência ingênua”, ou seja, o pensamento não lógico, “não racional”, “não histórico” (CÔRTES, 2003, p. 100)

Para o filósofo o termo era tecnológica “refere-se a toda e qualquer época da história, desde que o homem se constituiu em ser capaz de elaborar projetos e de realizar os objetos ou as ações que os concretizam” (CT, p. 63). Segundo Alberto Abreu (2013, p. 16), a hipótese de Vieira Pinto consistia em entender que a “era tecnológica” se apresentava como um “elemento apologético do status quo” do pós-guerra, que conferia certa legitimação aos rumos políticos e comportamentais naquela nova ordem mundial. Todas as sociedades, de toda época, se encaixam, portanto, na noção de “era tecnológica”. Toda época é, consequentemente, extraordinária. Qualquer presente cria máquinas e tecnologias que são originais, dentro de uma historicidade de contínua superação dialética (CT, p. 47).

A percepção de Vieira Pinto sobre a originalidade de cada época é correta, mas ele chega a essa conclusão a partir de uma visão teleológica da história. Sabemos, no entanto, que em cada época existem movimentos que inventam laços e linhas de continuidades dando, ideologicamente, a impressão de que vivemos tempos de superação e evolução constante. Walter Benjamin (2019) já havia traçado uma crítica à história vista de cima, ao historicismo alemão, apontando caminhos de leituras a contrapelo da história. Aquilo que não foi e que não pôde ser é matéria filosófica fundamental para a compreensão do estado de coisas, inclusive da própria condição de dominação ideológica. O curioso é notar que Benjamin (2019. p. 19) também mobiliza o próprio materialismo histórico para superar essa ilusão da continuidade.

Por outro lado, Vieira Pinto tem uma sensibilidade muito interessante no sentido de não classificar em termos qualitativos as sociedades de acordo com suas tecnologias, pois entende que “a sociedade chamada primitiva não é aquela que não possui tecnologia” (CT, 307). Na visão do autor, a sociedade dita “atrasada” viveria “mergulhada na tecnologia a ela peculiar”, mas é exatamente esse mergulho tecnológico que impediria a ocorrência de transformações substanciais, dando a aparência de imobilidade social (CT, 307). Daí a magia do “curandeiro” ser comparada às tecnologias da medicina moderna, no sentido de cumprir sua função social na totalidade civilizacional. Superar, portanto, a ideologia da “era tecnológica” dos tempos cibernéticos é um caminho fundamental para a compreensão da tecnologia pela consciência crítica (logo, objetivo, racional, histórico).

Uma nova “consciência técnica” teria surgido com a modernidade e a explosão de novos procedimentos técnicos a partir da energia a vapor e da eletricidade. O vocábulo “tecnologia” teria se originado nesse momento de transformação e nascimento do capitalismo (CT, p. 331). Essas transformações são lidas como próprias de um novo momento da humanidade, em detrimento das civilizações do passado e, também, das civilizações ditas atrasadas. E, assim, a nova humanidade torna-se a tecno-humanidade. Em outras palavras, a ideologia da tecnologia estaria intrinsicamente conectada com o desenvolvimento histórico do próprio capitalismo industrial e, posteriormente, do capitalismo financeiro no século XX. Na visão de Vieira Pinto, a consciência é um dos primeiros terrenos da vivência social da tecnologia como uma ideologia.

Na visão de Kleba (2006, p. 77), o central na obra analisada é “a problematização” que Vieira Pinto faz do “papel da tecnologia” diante da sustentação das relações de dominação dos países desenvolvidos em relação aos subdesenvolvidos. De fato, esse tema é um dos mais relevantes, além de ser um ponto que se conecta com a obra pregressa de Vieira Pinto. Mas na minha visão, essa problematização da dominação seria uma consequência secundária do problema ontológico construído por Vieira Pinto. Ou seja, a dominação está e estará, invariavelmente, no plano da análise dialética que ele realiza, mas há uma concepção anterior que sustenta sua leitura. A pergunta sobre a tecnologia de Vieira Pinto corresponde a uma concepção sobre o ser humano e sua relação com a realidade: as leis da lógica dialética seriam a base para qualquer problematização posterior. Nesse sentido, o problema político em Vieira Pinto parte de uma concepção crítica da dialética materialista.

Para Vieira Pinto, o problema mais profundo, o problema “verdadeiro” que aflige os países subdesenvolvidos, o que hoje denomina-se como países do Sul, não reside na substituição de tecnologias, “mas em transformar as relações fundamentais da sociedade” (CT, 297). Pois são as relações sociais que sustentam a permanência de “tecnologias antiquadas”. Como disse antes, na sua visão, nenhuma tecnologia está além ou aquém do seu tempo. Isso reside no fato de Vieira Pinto não tomar a tecnologia como causa de sucesso ou fracasso civilizacional, mas como mediação das relações políticas e sociais de diferentes forças sociais (CT, 286).

Vale a pena ressaltar que Vieira Pinto, quando trata da ideologização da tecnologia, trava um diálogo, mesmo que bastante informal, com o problema ideológico do colonialismo. Essa visão de mundo “usa neste particular do ardil de revestir com as insígnias de lei da história o que não passa de simples contingências de fato” (CT, p. 268). A naturalização das diferenças tecnológicas entre países ricos (produtores) e países pobres (consumidores de tecnologia) é uma consequência desse processo de ideologização da tecnologia. O centro do poder, na visão de Vieira Pinto, cria duas falsas perspectivas: a tecnologia como algo a ser sempre “adquirido pelo país atrasado, pagando caro”, e de que “que a tecnologia é produto exclusivo da nação dominante” e só pode se originar dela (CT, p. 266).

Diante desse cenário de ideologização, o autor atribui duas tarefas fundamentais ao técnico. O técnico pensa sobre suas próprias ações, sobre aquilo que produz, sobre o sistema em geral, pois cabe “a todo homem trabalhador o direito de dizer em que consiste a técnica” (CT, p. 330). Mas Vieira Pinto convida o técnico a tomar para si a consciência crítica, como aparato metodológico a fim de pensar corretamente a tecnologia. A educação, novamente, aparece como parte fundante do processo de emancipação nacional.

A primeira tarefa do técnico seria, portanto, realizar um “exame de suas condições existenciais”, analisando rigorosamente os condicionamentos sociais de sua atividade laboral de modo lógico (CT, p. 321). Esse primeiro passo serviria para “separar” os elementos “nocivos aos interesses do povo” daqueles que visam o desenvolvimento da nação (idem).9 Já a segunda tarefa é intimamente ligada à primeira e consiste na “denúncia” pública dos projetos prejudiciais, “das pressões econômicas” e, também, “da repressão” encabeçada por “agentes da tecnologia de dominação” que ameaçam os técnicos dos países subdesenvolvidos (CT, p. 322). Essas também serão as tarefas da filosofia em um mundo subdesenvolvido:

Mostrar que a situação desfrutada atualmente pelos supostos afortunados não decorre de um decreto do destino, não se deve a nenhuma fatalidade, mas se explica por motivos históricos materiais perfeitamente conhecidos (...) Demonstrar a relatividade do conceito de dominação, a fragilidade dos numerosos ex-impérios sepultados na história, vem a se estabelecer como ponto culminante da doutrina crítica a certeza de que, em vez da fatalidade da superioridade, o que se tem verificado é precisamente o oposto, a fatalidade do declínio. (CT, p. 329).

Em contraposição à noção de que somente as nações ricas detém a capacidade, o poder, as condições de produção de tecnologia, Álvaro Vieira Pinto argumenta que a tecnologia é, de fato, “um patrimônio da humanidade” (CT, p. 267). Novamente, o conceito de totalidade é muito importante para compreensão desse problema. De fato, a concepção dialética de Vieira Pinto o conduz à compreensão da tecnologia como parte de uma função social, que serve ao coletivo como um todo. Várias são as passagens em que ele desenvolve esse argumento. Uma ideia que pode sintetizar essa perspectiva é a de que “o avião não foi” criado para que ele pudesse voar, mas para que o ser humano possa voar, ou seja, para o autor, somente “a sociedade oferece o fundamento real” do desenvolvimento tecnológico (CT, p. 80). E o acúmulo do conhecimento é parte desse processo de construção patrimonial que nos conduz ao progresso histórico.

O progresso histórico está associado ao progresso tecnológico, mas o motor da história, como vimos antes, é a própria ação humana que conduz a substituição e o aperfeiçoamento das máquinas, elevando nosso conhecimento das leis da natureza (CT, p. 113) Nas sociedades contemporâneas, a tecnologia orienta uma nova forma de “organização do poder”, fundando a tecnocracia: uma sociedade “dirigida pelos técnicos, pelos especialistas, ou seja pelos homens de ciência, conhecedores aprofundados de certo ramo do saber” (CT. p. 457). Segundo o autor, o progresso tecnológico é caracterizado nessa sociedade como a corporificação da elevação da razão humana, em uma busca incessante por novas “mediações” que facilitem as conquistas em relação ao processo de produção dos bens da existência material. A melhor forma de enxergar esse progresso é na análise da “organização do trabalho” e no planejamento que envolve a “descoberta de novos métodos que poupam esforços físicos e mentais, no menor dispêndio de material, realizando em menor tempo igual volume de produtos” (CT, p. 469).

Mas Vieira Pinto não nega exatamente a existência de uma razão técnica, mas não denomina esse processo como “racionalização técnica”, como o fez a Teoria Crítica da escola de Frankfurt, pois “a verdadeira essência dessa qualidade [a de racionalização] reside no homem, no trabalhador que a promove e executa” (CT, p. 469). Retomando o problema da ideologização, ele considera que essa noção acaba por sustentar toda a leitura “ingênua” da tecnologia. O autor conclui que

não é a técnica, a rigor, que se racionaliza, é o homem. O homem revela-se o exclusivo agente das antecipações da razão técnica. Nele desenrola-se o verdadeiro processo de desenvolvimento da racionalidade, cujo conteúdo consiste no domínio cada vez maior da realidade material, graças a formas mais perfeitas, numerosas e profundas do reflexo consciente delas no pensamento (CT, p. 470).

Assim, o filósofo sustenta que a razão é o verdadeiro fundamento social da capacidade humana de inventar e de produzir tecnologia. Em outras palavras, “o desenvolvimento da razão consiste no aperfeiçoamento da capacidade de produzir” (CT, p. 484). O pensamento, ou seja, a ideia tem um papel fundamental nesse processo de produção. A ideia também tem um caráter dialético, pois ela é “simultaneamente produzida pelo produto e produtora dele”, ou seja, “o ato criador procede da ideia” (CT. p. 484). Essa reflexão de Vieira Pinto vai ao encontro da noção de hominização discutida no início deste artigo. Ou seja, a técnica é produzida pelo ser humano ao mesmo tempo em que define as possibilidades de existência do ser humano, produzindo-o (CT. p. 494). Na visão do autor, a tecnologia, portanto, “progride sem cessar”, impulsionando o progresso contínuo da razão e esta, por sua vez, progride permitindo a emergência de novas descobertas, de novas invenções. Nesse movimento dialético a razão técnica é o reflexo da razão teórica (CT, p. 520).

Não tive a intenção de esgotar todos os meandros dos conceitos de técnica e tecnologia na obra estudada, mas apresentar diferentes argumentos produzidos pelo próprio autor ao conceituar a tecnologia, explorando algumas pistas e pontos que me pareceram ser fundamentais para o seu argumento. A meu ver, o problema ontológico da leitura dialética da realidade define os conceitos de técnica e tecnologia desenvolvidos por Vieira Pinto. Partindo das meditações realizadas nesses dois movimentos iniciais, a seguir, desenvolvo algumas reflexões sobre as possibilidades de introdução do problema da técnica e da tecnologia no ensino de filosofia no ensino médio profissional.

Problemas filosóficos da técnica e da tecnologia no ensino médio profissional

A filosofia pode ser entendida como uma atitude de espanto em relação ao que é comum, em relação àquilo que se passa no cotidiano, como nos ensinou Aristóteles, mas também pode ser compreendida como um desejo de conhecimento que nos ajuda a viver melhor, como argumenta Cupani (2003, p. 512). Ou mesmo como um modo de colocar em dúvida, em suspeição, as coisas tidas como óbvias e evidentes. Uma das obviedades generalizadas no senso comum do mundo contemporâneo reside na compreensão do nosso tempo como uma “era tecnológica”, que vê a automação tecnológica e a presença dos dispositivos inteligentes como um desenvolvimento inevitável e natural da produção humana. Esse senso comum entende que o destino da humanidade reside nesse desenvolvimento tecnológico específico. E um dos papéis da filosofia, a meu ver, é relembrar que a atividade técnico-tecnológica não é uma atividade ilhada, apartada da vida em coletividade. Para Cupani (2004, p. 513) a filosofia pode ser definida “como uma atitude consistente em pensar de maneira crítica e rigorosa para viver mais responsavelmente”.

Mas qual seria o objetivo primordial da disciplina de filosofia na educação básica? O que é preciso fazer para que este objetivo seja alcançado? Entendo que a filosofia na educação básica tem o objetivo duplo de colocar crianças e jovens em contato com o conhecimento filosófico acumulado e de qualificar a proposição de problemas - e suas possíveis resoluções -, produzindo o pensamento crítico e estimulando a criatividade. Atualmente, o problema da tecnologia e do desenvolvimento são temas fundamentais para pensar o mundo contemporâneo. Por isso, penso que retomar o problema de Vieira Pinto no ensino médio profissional é tarefa urgente da filosofia na escola.

Na visão de Ferraro, atuar em uma “sociedade da competência” significa promover o pensamento não sobre como “fazer bem as coisas”, mas sobre aquilo que podemos considerar ser “bom” de ser feito (KOHAN, 2013, p. 163). O papel da filosofia em uma sociedade que se coloca ideologicamente como técnica (VIEIRA PINTO, 2005, p. 290) é funcionar como uma espécie de “autoconsciência” dessa mesma sociedade (FEENBERG, 2003, p. 10). Para Ferraro “quem ensina deve dar o futuro interior a nossos meninos. Não devemos dar o futuro da vaga de trabalho, a promessa falsa, o futuro do que virá amanhã, mas o futuro interior, aquele construído dentro de si - o tempo interior”, o nosso papel é de estimular a “capacidade de ‘esperar’” (KOHAN, 2013, p. 167).

Orientando-me pela metodologia proposta por Gallo (2012, p. 96-98), proponho duas atividades pautadas nos seguintes caminhos: A) sensibilização; B) problematização; C) investigação e D) conceituação coletiva. Uma primeira abordagem é a introdução, na 1ª série do Ensino Médio Profissional (EMP), do problema da técnica, quando trabalha-se o conteúdo da Teoria do Conhecimento. O que se segue são sugestões pautadas em experiências de sala de aula e reflexões realizadas em um curso de formação de professores.

A) Um ponto de partida pode ser a sensibilização inicial a partir da leitura de imagens cinematográficas, como os primeiros 10 minutos do filme “2001: Uma odisseia no espaço”, de Stanley Kubrick, lançado em 1968. A cena é bastante conhecida. Nesse trecho assistimos, em termos bem genéricos, o surgimento do conhecimento na era Paleolítica. Primatas, ancestrais dos primeiros hominídeos, são apresentados em diversas situações de natureza bruta, até encontrarem um monumento (um monólito, vindo do espaço). Na cena seguinte, um dos líderes é apresentado manuseando ossos. A imagem é entrecortada com frames desse monólito vindo do espaço e, então, o primata passa a manusear um osso como uma ferramenta para abater um animal. Tem-se, enfim, o primeiro passo para a produção do conhecimento e, por conseguinte, do poder. Na cena final deste trecho, em um conflito, os primatas bípedes usam o osso como um instrumento de luta - uma arma - e dominam o território. Daí, surge a clássica imagem do osso jogado no ar e se transformando em uma nave espacial no futuro. O filme segue pautando o problema da dominação do ser humano pelo conhecimento e pela técnica.

B) Após essa sensibilização inicial, sugiro prosseguir com um diálogo sobre as impressões dos estudantes sobre o filme. Uma condução importante, por parte do docente, seria chamar a atenção para esse processo de humanização atrelado à descoberta da técnica - tal como na tese de Vieira Pinto -, mas também informar aos estudantes que o filme segue trabalhando com a ideia de que, no futuro, os seres humanos estariam dominados pelas máquinas. O professor pode estimular que os estudantes façam perguntas e, também, explorar alguns pontos para problematização: como conhecemos? Descobrimos a verdade ou interpretamos o mundo criando verdades? Quais as fontes do conhecimento (razão x impressões)? O que é técnica? Qual a relação entre técnica e humanidade? E entre máquina (instrumento) e humanidade? Afinal, qual o papel da técnica no desenvolvimento da humanidade e da nossa capacidade de conhecer?

C) Em seguida tenho como indicação a apresentação das definições de máquina, propostas por Vieira Pinto: descritiva formalista (CT, p. 116-118), Cibernética (em diálogo com a perspectiva platônica, p. 118-119), e a visão dialética materialista do próprio Vieira Pinto (CT, p. 119-120). Uma boa questão para a investigação seria indagar sobre as implicações dessas leituras para a compreensão do modo como conhecemos a natureza e do modo como esse conhecimento implica intervenção no mundo. É possível discutir, por exemplo, o papel do trabalho técnico na construção dialética da humanização e do desenvolvimento humano.

A partir dessas definições, pode ser proposta uma reflexão e a elaboração do conceito de “projetar” trabalhado por Vieira Pinto, e retomar a oposição clássica entre conhecimento empírico e racional, desde Platão, focando, no entanto, nas concepções modernas do Empirismo e do Racionalismo. A partir da definição de projetar, podemos fazer uma comparação com o conceito de “ideia complexa” de Locke (CT, p. 111) e refletir sobre o caráter imanente da técnica na perspectiva de Vieira Pinto, no que diz respeito à construção do conhecimento. Além dos trechos já mencionados, um excerto de texto filosófico sobre o assunto pode ser o seguinte, associando-o com outros textos clássicos de autores como Descartes, Hume, Bacon e Kant.

D) O resultado da conceituação não pode ser mensurado completamente, pois dependeria, nessa metodologia de ensino, da participação dos estudantes. Mas podemos apontar caminhos possíveis, como: apresentar uma visão mais ampla da origem do conhecimento, da relação entre ser humano e máquina; e do papel da técnica na construção do conhecimento; além de pensar possibilidades de diálogos com outros campos do conhecimento. No processo de conceituação, podemos incorporar as discussões de outras disciplinas técnicas ou básicas do currículo do EMP. O lugar da filosofia, nesse cenário, seria o de problematizar e contribuir para a reflexão crítica, nos termos de Vieira Pinto, sobre os fundamentos do conhecimento técnico que os estudantes aprenderão ao longo de sua jornada na instituição.

A segunda proposta consiste em introduzir os temas e problemas da Filosofia da Tecnologia (FT) na 3ª série do ensino médio profissional. Novamente, partimos da metodologia proposta por Gallo (2013): i) sensibilização, ii) problematização, iii) investigação e iv) conceituação.

i) A sensibilização inicial pressupõe solicitar que os estudantes definam “tecnologia”, criando uma nuvem de palavras no quadro branco, ou, em tempos de ensino remoto, em sites ou aplicativos criados para este fim. Essa nuvem de palavras deverá ser reservada e, em seguida, sugiro disponibilizar diferentes imagens de “eras tecnológicas” distintas, a fim de criar uma segunda sensibilização com o objetivo de criar um espaço para que os estudantes pensem sobre as características da tecnologia em momentos históricos específicos. São várias as possibilidades, mas sugiro a seguinte sequência: imagem de acampamento de Caçadores Coletores (datados do período Mesolítico)10, imagem de um Lavrador do (neolítico)11, imagem de uma locomotiva (do período da Revolução Industrial)12; imagem de um robô aspirador do século XX (do período da Cibernética/Informática)13.

Essas imagens cumprem o papel de suscitar questões, dúvidas, inquietações, sobre os desenvolvimentos tecnológicos e não de representar absolutamente os períodos analisados. Não se trata, portanto, de anacronismo, mas exatamente de uma provocação ao pensamento. Esta segunda sensibilização ainda pode ser aprofundada quando focamos, também, nas especificidades tecnológicas de cada período. O propósito da atividade é permitir que os estudantes olhem objetos e cenas triviais e cotidianas como representativas de eras tecnológicas de diferentes civilizações no espaço e no tempo. Por isso, entendo que essa atividade contribui para os estudantes entrarem no problema já proposto por Vieira Pinto: a tecnologia é, realmente, uma obra somente do nosso tempo?

ii) Após a sensibilização, pode ser apresentado aos estudantes os argumentos de filósofos diversos. Mas sugiro disponibilizar um trecho do livro CT, de Álvaro Vieira Pinto, intitulado “A técnica não é o motor da história” (p. 157). Com a leitura individual e mediada, o docente pode fazer uma rodada de reflexão a partir de uma série de perguntas. As perguntas dependerão de cada turma, mas elenco algumas questões que emergem em sala de aula, seja como iniciativa própria, seja como iniciativa dos estudantes. Perguntas como: o que pode a filosofia diante da tecnologia? Qual o papel das máquinas e da automação na nossa vida? Quais os limites do maravilhamento ingênuo diante da tecnologia? Quais os limites do espanto (horror) ingênuo diante da tecnologia? Outros exemplos podem explorar algumas perspectivas filosóficas, como: o ser humano se adequa à natureza ou adapta a natureza aos seus propósitos, como defende Ortega Y Gasset? A tecnologia nos liberta do peso da existência, como pensa Albert Borgman? A tecnologia é uma manifestação de determinadas racionalidades políticas, como defende Andrew Feenberg?14 Enfim, como se pergunta Feenberg (2003, p. 10), qual o papel da filosofia em um período que se autodenomina como a “era da tecnologia”? Traduzindo para o ambiente da escola técnica, qual o papel da tecnologia - e da educação tecnológica - em um país marcado pelo subdesenvolvimento e pela lógica de dominação colonial, como o Brasil?

iii) Na etapa da investigação, podemos dividir a turma em grupos, solicitando que produzam um mapa mental ou mesmo um quadro temático baseado no artigo de Feenberg (2003), para avaliarmos o problema da tecnologia no mundo contemporâneo. As investigações podem se dar na biblioteca, em livros didáticos e em sites especializados, buscando identificar e definir a posição de autores como: Aristóteles, Kant, Heidegger, Andrew Feenberg e o próprio Álvaro Vieira Pinto (nesse caso, é possível mobilizar vários excertos sobre as definições de técnica, máquina, tecnologia e era tecnológica descritos anteriormente). Outros autores podem surgir, como Ortega y Gasset, Borgman, Simondon, Bunge, entre outros. Tudo isso a depender do interesse, disposição e material disponível. O importante é estimular os estudantes a identificar elementos característicos dos diferentes modos de pensar a técnica e a tecnologia. Essa atividade pode durar cerca de quatro a seis encontros de 50 minutos.

iv) Após essa rodada, propõe-se um debate sobre o problema do conceito de tecnologia. A conceituação pode retomar os conceitos de Vieira Pinto e buscar uma reatualização, por exemplo, da sua noção teleológica e universal de técnica, hoje em dia bastante criticada e que encontra em filósofos como Yuk Hui, um contraponto. Hui (2020, p. 25) entende a tecnologia como pluriversal, sendo limitada e sustentada “por cosmologias particulares, que vão além da mera funcionalidade e da utilidade”. Novamente, a recriação ou reafirmação do conceito de tecnologia dependerá do modo como cada turma se apropria das propostas pedagógicas e filosóficas do professor. De todo modo, esse caminho pode ser orientado pelo objetivo de promover um “apelo à diversidade” (GALLO, 2006, p. 20), uma abertura para o plural, para as diferentes perspectivas e modos de conhecer e saber, que não podem ser medidos pela ciência e tecnologia modernas (HUI, 2020, p. 91).

Considerações finais

Essa proposta de introdução dos temas da filosofia da técnica e da filosofia da tecnologia (FT) no Ensino Médio Profissional (EMP), tendo como referência os problemas desenvolvidos por Vieira Pinto, se deu por meio do eixo metodológico problemático desenvolvido por Sílvio Gallo. No entanto, acredito que, independente da metodologia escolhida (história da filosofia, temática, problemática), a proposta de indagar aos estudantes a respeito de seus anseios, desejos e, sobretudo, de seus pensamentos é um dos caminhos mais significativos para o processo de aprendizagem ativa em filosofia, como nos ensinou Sócrates com sua maiêutica. A perspectiva de Álvaro Vieira Pinto, estudada ao longo desse artigo, nos auxilia a introduzir diversos problemas da FT no EMP, apontando para as relações de poder que envolvem as noções de “era tecnológica”. A percepção da centralidade humana no desenvolvimento tecnológico e a crítica ao tratamento ideológico que o mundo contemporâneo dá à técnica e à tecnologia contribuem para a formação integral do estudante do EMP.

Em entrevista concedida a Walter Omar Kohan, Giuseppe Ferraro argumenta que existem pelo menos dois modos de desenvolver o problema do sentido de se ensinar filosofia. Em primeiro lugar, podemos traçar argumentos e explicações que remontam ao processo de manter viva a herança do conhecimento humano, transmitida às gerações novas. Mas Ferraro atribui maior importância ao sentido de ensinar filosofia conectado com o sentido atribuído à existência, à vida. Em outras palavras, trata-se de uma reflexão que gira em torno das escolhas e dos projetos de vida. Nessa perspectiva, a filosofia teria como característica a “crítica do existente” como “crítica de uma existência que se fecha à vida, que se fecha às relações”. (KOHAN, 2013, p. 158).

A inversão feita por Sócrates na relação que ele manteve com o saber e com a ignorância é um exemplo para a relação que nós professores mantemos com os saberes filosóficos e também para a relação que desejamos estabelecer com o outro, no caso, os estudantes (GUIDO, GALLO, KOHAN, 2013, p. 107). Nosso papel, como professores, seria o de criar espaços que incentivem e facilitem a problematização da nossa relação com o saber e com a ignorância (Idem, p. 108). Segundo Silva (2010, p. 2), “a diferença - na perspectiva de Deleuze - provoca o pensamento à medida que há incompatibilidade, discordâncias das faculdades entre si”. Na perspectiva de Deleuze, portanto, a fonte primeira do pensamento reside na sensibilidade. Aquilo que “toca” o corpo do estudante e do professor lhes permite construir um posicionamento diante de um problema “dando uma abertura para se pensar o que ainda não se pensou” (SILVA, 2010, p. 2). As realidades dos estudantes e das salas de aula, em uma instituição de Ensino Médio Profissional, podem emergir, assim, como espaço laboratorial dessa pedagogia dos conceitos, como argumenta Renata Aspis (2004). A pedagogia dos conceitos “deveria analisar as condições de criação como fatores de momentos que permanecem singulares” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 21).

Vieira Pinto finaliza o primeiro volume de sua obra, “O conceito de tecnologia”, problematizando a ideia do prometeu cibernético, essa imagem de que a cibernética representa uma nova era ontológica em que a realidade se apresentaria em uma nova face: a do “reino maquinal”, habitado pelos engenhos superiores (CT, p. 530). Esse Prometeu cibernético, encabeçado pelo “robô onisciente e onipotente” teria eliminado o homem, “ao roubar-lhe o fogo e a razão” nessa famigerada “era tecnológica” (CT, p. 531). A solução dada pelo autor seria a construção de uma consciência crítica nacional, ou seja, a difusão do pensamento filosófico sobre a técnica e a tecnologia. Nesse sentido, entendo que a introdução do ensino de filosofia da técnica e da tecnologia no ensino médio profissional (e, porque não, no ensino médio geral?) é um caminho para se pensar esse mundo existente da difusão tecnológica que busca tomar conta de todos os âmbitos de nossa vida.15

Referências

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1Agradeço à Prof. Me. Isabela Alline Oliveira, pela leitura e comentário aos manuscritos desse artigo. Esse artigo é uma versão modificada do trabalho defendido no curso de Especialização em Ensino de Filosofia no Ensino Médio da UFSJ. Parte dessa pesquisa foi financiada pelo Edital 25/2021 do Programa Institucional de Fomento à Bolsas de Pesquisa do IFMG/Campus Betim, com a colaboração das bolsistas Ana Machado e Paola Fonseca, a quem agradeço.

2Para facilitar a leitura, a obra será referenciada como CT, daqui para frente.

3Nessa obra, Vieira Pinto repete o estilo de escrita da obra anterior, Consciência e Realidade Nacional (CRN), e oculta a maioria das referências e autores com os quais dialoga, seja para criticar, seja para basear sua argumentação, o que dificulta a tarefa da contextualização histórica de suas ideias (VIEIRA PINTO, 1960).

4Por outro lado, a escrita como estratégia de alcançar as pessoas comuns caía em um paradoxo observado inclusive pelos críticos de Vieira Pinto: como alcançar a consciência crítica - que Vieira Pinto compreendia como a linguagem filosófica - a partir da linguagem tida como “ingênua”, do senso comum? (CÔRTES, 2003, p. 86-87).

5Há várias passagens nesse sentido. Ver em especial: “O homem nada projeta senão para preencher uma exigência individual. Mas as relações sociais do homem dão-lhe uma essência que consiste exatamente nesse relacionamento social. Por isso, ao dizermos que o inventor concebe o projeto de um engenho, na verdade estamos nos referindo a uma situação social que engendra no espírito dos indivíduos culturalmente capacitados para tanto imaginar o projeto das mediações, dos instrumentos, de toda espécie, que atenderão ao reclamo da sociedade no momento histórico considerado. A definição dialética da máquina coloca-a, tal como outro produto humano qualquer, na perspectiva das contradições humanas que se destina a resolver” (CT, p. 120).

6Aqui, Vieira Pinto se opõe à corrente existencialista de projeto. Como o autor ocultou seus interlocutores, não é tarefa simples identificá-los. Entendo que esse assunto merece um tratamento rigoroso e cuidadoso em investigações posteriores, mas é preciso ressaltar a presença de Vieira Pinto em Sorbonne em 1949, bem como seu encontro rápido com Jean-Paul Sartre no Brasil, em 1960. Parte das respostas construídas pelo filósofo brasileiro se deram a partir do debate com a tradição francesa sobre cultura e tecnologia. Mas o autor recoloca a questão a partir do ponto de vista da realidade brasileira.

7Sobre as concepções da consciência ingênua, ver Côrtes, 2003.

8Sobre as reformas nas universidades na década de 1970, ver MOTTA (2014), sobre o caráter desenvolvimentista do governo Lula, ver COSTA (2015). O problema da reforma universitária foi desenvolvido por Vieira Pinto no livro “A questão da universidade” de 1962, em que ele discute o problema da dependência econômica e da produção científico-tecnológica brasileira. Alguns intelectuais importantes, como Darcy Ribeiro, também lidaram com esse problema. A filosofia de Vieira Pinto, nesse sentido, está conectada com uma série de problemas estruturais da formação da sociedade brasileira.

9Leitor crítico de Platão, é curioso que o “exame” apareça como primeiro recurso da formação crítica do técnico em Vieira Pinto. Segundo Otavino Paula Neto (2014, p. 24-25) o objetivo do exame socrático “não é somente encontrar uma definição adequada da virtude em questão, mas tem também a pretensão de, com o exame, produzir uma transformação para melhor das almas dos interlocutores”.

14Sobre as perspectivas desses três autores, ver, CUPANI, 2003.

15Aqui faço uma analogia à tese de Wendy Brown (2009, p. 18), para quem nos últimos 40 anos, o neoliberalismo buscou financeirizar todas as dimensões da vida humana.

Recebido: 13 de Outubro de 2021; Aceito: 15 de Março de 2022

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