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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.36 no.76 Uberlândia jan./abr 2022  Epub 29-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v36n76a2022-65118 

Artigos

Da necessária adesão crítico-perspectivista de Nietzsche às ciências

On Nietzsche's necessary critical-perspectivist adherence to the sciences

Sobre la necesaria adhesión crítico-perspectivista de Nietzsche a las ciencias

*Doutor em Educação (História e Política) pela Universidade Federal de Santa Catarina (Bolsa Capes). Professor titular da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). E-mail: robbsonn@uol.com.br; robson.loureiro@ufes.br

**Professor de Filosofia do Instituto Federal do Espírito Santo Campus Vitória (Ifes). Doutorando em Educação no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: adolfomoleare@gmail.com


Resumo

Era Nietzsche um inimigo da ciência? A pergunta-problema deste artigo é justamente o título de uma conferência proferida pelo Dr. Helmut Heit (Kolleg Friedrich Nietzsche - Klassik Stiftung Weimar) no Seminário de Filosofia da Ciência do Instituto Federal do Espírito Santo, campus Linhares, em 9 de dezembro de 2014. Uma famosa versão do senso comum acadêmico apresenta Nietzsche como inimigo mortal das ciências. Sabe-se, contudo, que o filósofo manteve uma relação intensa, duradoura e necessária com o campo científico. A partir de fontes primárias e de posicionamentos adotados por pesquisadores especializados, no presente estudo conclui-se que Nietzsche foi concomitantemente um entusiasta do método científico - em função da possibilidade de naturalização e de historicização da produção de conhecimento - e um crítico da fundamentação dogmática das ciências de seu tempo. A caracterização de Nietzsche como pensador crítico-perspectivista (não relativista) está desenvolvida em um artigo inédito de nossa autoria.

Palavras-chave: Nietzsche; Ciência; Nietzsche e as Ciências

Abstract

Was Nietzsche an enemy of science? The problem question of this article is precisely the title of a lecture given by Dr. Helmut Heit (Kolleg Friedrich Nietzsche - Klassik Stiftung Weimar), presented at the Philosophy of Science Seminar of the Federal Institute of Espírito Santo, Linhares campus, on December 9, 2014. A famous version of academic common sense presents Nietzsche as the mortal enemy of science. It is known, however, that the philosopher maintained an intense, lasting and necessary relationship with the scientific field. From the use of primary sources and the positions adopted by specialized researchers, in the present study, it is concluded that Nietzsche was concomitantly an enthusiast of the scientific method - due to the possibility of naturalization and historicization of the production of knowledge - and a critic of the scientific method. dogmatic foundation of the sciences of his time. The characterization of Nietzsche as a critical-perspectivist (non-relativist) thinker is developed in an unpublished article of our authorship.

Key-words: Nietzsche; Science; Nietzsche and the Sciences

Resumen

¿Nietzsche era enemigo de la ciencia? La pregunta problema de este artículo es precisamente el título de una conferencia del Prof. Dr. Helmut Heit (Universidad de Berlín), presentado en el Seminario de Filosofía de la Ciencia del Instituto Federal de Espírito Santo, campus Linhares, el 9 de diciembre de 2014. Si bien Nietzsche llegó a ser catalogado como positivista (MIGNONI, 2017), una famosa versión académica lo presenta como el enemigo mortal de las ciencias. Se sabe, sin embargo, que el filósofo mantuvo una relación intensa, duradera y necesaria con el campo científico. A partir del uso de fuentes primarias y de las posiciones adoptadas por investigadores especializados, en el presente estudio se concluye que Nietzsche fue concomitantemente un entusiasta del método científico - por la posibilidad de naturalización e historización de la producción del conocimiento - y un crítico del fundamento dogmatico de las ciencias de su tiempo. La caracterización de Nietzsche como pensador crítico-perspectivista (no relativista) se desarrolla en un artículo inédito de nuestra autoria.

Palabras clave: Nietzsche; Ciencia; Nietzsche y las Ciencias; Nietzsche en la Investigación en Educación

A presença da ciência no século XIX

O período histórico no qual Nietzsche se formou e atuou intelectualmente foi marcado pelo movimento de reestruturação epistemológica e de reposicionamento público da filosofia, então constrangida pelo “[...] avanço das ciências naturais e históricas, determinado em boa parte pelo processo de industrialização relativamente tardio na Alemanha dos anos 40” (LOPES, 2011a, p. 314).

O surgimento da física teórica, mais propriamente da termodinâmica e dos estudos sobre propagação do calor por radiação, marca um ponto de virada no que se refere à hegemonia do parâmetro científico implícito na física de Newton, fundado na formulação matemática de leis naturais que regem o mundo físico sensorialmente perceptível. Estes novos campos de investigação indicavam uma forte tendência, de cunho formalista, prioritariamente matemático, das ciências naturais. Simultaneamente, no âmbito das ciências biológicas, ocorria também um redimensionamento da influência do modelo mecanicista no que concerne a questões biológicas, assim como uma forte tendência evolucionista das pesquisas, que não deixaram de causar significativo impacto no meio filosófico, decisivamente no que se refere à fisiologia e à psicologia (BARROS, 2018, p. 55).

Após a morte do filósofo Friedrich Hegel, em 1831, entraram em declínio os sistemas filosóficos do idealismo, fato que lançou os filósofos acadêmicos ao trabalho de determinação de identidade, objeto próprio de reflexão e base de sustentação teórica para a filosofia1. Como resposta à crise, estabeleceram-se o cientificismo materialista e o neokantismo, este último adotado não só por filósofos, mas também por renomados cientistas naturais, à época contrariados pela visão de mundo materialista e pelas interpretações dogmáticas dirigidas a seus próprios trabalhos (LOPES, 2011a).

Duas vias alternativas começaram a se impor a partir da década de 50, ou seja, após um primeiro esgotamento das disputas no interior do hegelianismo: 1) a via de conversão da ciência em visão de mundo e de absolutização do discurso científico, que desencadeou a polêmica em torno do materialismo; 2) o lento caminho de retorno a Kant como o filósofo capaz ao mesmo tempo de apaziguar o conflito entre filosofia e ciência e de neutralizar as disputas entre visões de mundo concorrentes (LOPES, 2011a, p. 315).

A posição de Nietzsche é distinta destas duas e caracteriza-se pelo estabelecimento do debate com as ciências sem adesão ao materialismo vulgar, a exemplo de filósofos como Friedrich Albert Lange, Eduard von Hartmann, Eugen Dühring, envolvidos com estudos científicos; e de cientistas integrados aos debates filosóficos, como Helmholtz e Ernst Mach (ITAPARICA, 2018)2.

Nietzsche não apenas estava atento às contribuições que as ciências poderiam fornecer à filosofia como também considerava imprescindível a elaboração de uma filosofia cientificamente informada. Na nota final da primeira dissertação de Genealogia da Moral, Nietzsche define claramente o método genealógico como um programa de pesquisa indisciplinar, no qual se congregam diversas ciências (da natureza e do espírito) que poderiam contribuir com o propósito de investigar as origens naturais da moral. Assim, podemos identificar em sua genealogia elementos da história, da etimologia, da psicologia, da medicina, da fisiologia, da etnologia e da antropologia do direito (ITAPARICA, 2018, p. 26, grifo do autor).

Na década de 1860, Nietzsche estava comprometido com certas premissas céticas, informadas pelas ciências empíricas e tomadas de Friedrich Albert Lange na obra História do materialismo e crítica do seu significado para o presente (1866), segundo as quais a especulação filosófica deve ser instruída criticamente e não pode ser compreendida epistemicamente como discurso acerca do conhecimento da realidade ou da verdade objetiva do real, mas tem validade como fabulação conceitual edificante para a autossuperação dos indivíduos, na cultura, em atenção aos impulsos extracognitivos (LOPES, 2011b). Lange interpreta a ação especulativa como “[...] produto dos impulsos estético, arquitetônico, sintético e ideal da humanidade” (LANGE apud LOPES, 2011b, p. 22). Nesse sentido, o alvo da filosofia crítica seria direcionar a satisfação de tais impulsos à dimensão “[...] da ficção conceitual com fins edificantes” (LOPES, 2011b, p. 22).

A decisiva influência de Friedrich Albert Lange

Ao acompanhar Friedrich Albert Lange, Nietzsche teria garantido a justificativa para sua adesão à metafísica da vontade de Arthur Schopenhauer, sem se comprometer com suas fragilidades epistêmicas. Rogério Lopes (2011b) salienta que o programa de Lange se destinava a uma equalização das divergências entre idealismo e materialismo, num movimento de naturalização do transcendental:

A reconciliação formal das perspectivas idealista e materialista no âmbito teórico reivindica para si a herança kantiana, corrigida pelos resultados recentes da pesquisa empírica no campo da fisiologia dos órgãos sensoriais (LOPES, 2011b, p. 21).

Fonte privilegiada do debate científico na época da juventude de Nietzsche, a obra filosófica de Lange teria aberto para ele um horizonte teórico fundamental. Influência comparada à obra O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer, foi ela que o despertou para estudos de medicina, física e biologia (MIGNONI, 2017) e lhe permitiu chegar a Gustav Theodor Fechner e a Roger Boscovitch, este último exaltado pelo filósofo como o teórico responsável por uma virada epistemológica comparável àquela empreendida por Copérnico. Em Além do bem e do mal, obra de sua fase madura, Nietzsche (1992a) refere-se a Boscovich e conclama, a partir dele, a eliminação da metafísica no terreno da ciência, que, àquela altura, em 1886, apesar da valorização da constatação empírica, ainda estaria vinculada a axiomas morais conservadores3:

Quanto ao atomismo materialista, está entre as coisas mais bem refutadas que existem; e talvez não haja atualmente, entre os doutores da Europa, nenhum tão indouto a ponto de lhe conceder a importância fora do uso diário e doméstico (como uma abreviação dos meios de expressão). Graças, antes de tudo, ao polonês Boscovich, que foi até agora, juntamente com o polonês Copérnico, o maior e mais vitorioso adversário da evidência. Pois enquanto Copérnico nos persuadiu a crer, contrariamente a todos os sentidos, que a terra não está parada, Boscovich nos ensinou a abjurar a crença na última parte da terra que permanecia firme, a crença na “substância”, na “matéria”, nesse resíduo e partícula da terra, o átomo: o maior triunfo sobre os sentidos que até então se obteve na terra (NIETZSCHE, 1992a, p. 19, grifo do autor).

Nietzsche aponta para um problema de fundo ao enfatizar a crítica à natureza metafísica da crença atomista que permaneceria sustentada pela ciência da segunda metade do século XIX, a crença na alma, difundida por meio da perspectiva religiosa da tradição cristã. Aí estaria um impedimento radical à naturalização do pensamento.

- Mas é preciso ir ainda mais longe e declarar guerra, uma implacável guerra de baionetas, também à “necessidade atomista”, que, assim como a mais decantada “necessidade metafísica”, continua vivendo uma perigosa sobrevida em regiões onde ninguém suspeita: é preciso inicialmente liquidar aquele outro e mais funesto atomismo, que o cristianismo ensinou melhor e por mais longo tempo, o atomismo da alma. Permita-se designar com esse termo a crença que vê a alma como algo indestrutível, eterno, indivisível, como uma mônada, um atomon: essa crença deve ser eliminada da ciência! (NIETZSCHE, 1992a, p. 19, grifos do autor).

Lopes (2011a) indica que a opção pelo devir absoluto requer de Nietzsche a recusa pela pergunta sobre a validade objetiva do conceito de incondicionado. À ontologia substancialista, Nietzsche contrapõe, numa operação empírico-genealógica, o questionamento acerca da função vital da crença na validade objetiva de substâncias como o átomo e a alma.

Este programa alternativo contesta as duas vertentes da metafísica: a crítica ou pós-kantiana, que tem como ambição definir a priori as condições de possibilidade do conhecimento do mundo empírico (pela substituição da desacreditada ontologia por uma doutrina das categorias); e a dogmática, que pretende nos fornecer um conhecimento do conteúdo do incondicionado (LOPES, 2011a, p. 328).

A crítica à noção de alma

A intervenção teórico-conceitual na questão da alma, compreendida tanto como núcleo da psicologia racional - ramo tradicional da metafísica -, quanto como núcleo da psicologia tradicional, é crucial para o desenvolvimento daquilo que o pensamento nietzschiano inscreverá como diferencial na história da filosofia. A racionalidade, pensada metafisicamente a partir de uma suposta unidade substancial, a qual encontraria seu ancoramento na alma, é ampliada pela concepção nietzschiana de grande razão, baseada, por sua vez, no paradigma do corpo e dos impulsos (GIACOIA JUNIOR, 2001).

A noção de impulso, por ser a efetivação de uma tendência a crescimento de potência, supera a dualidade corpo/alma; ele não é nem res extensa nem res cogitans. A abordagem nietzschiana revela que a fisiologia e a psicologia de sua época também são tributárias das dualidades metafísicas. Em consequência, Nietzsche pode mais propriamente falar de uma fisiopsicologia, não enquanto um reducionismo do psicológico ao fisiológico, mas como um novo pensamento que prescinde das dualidades metafísicas, que entendo o mundo como um processo contínuo de autossuperação e que não separa radicalmente o homem do mundo (MARTON, 2016, p. 237, grifos do autor).

Portanto, à fixidez substancialista da concepção metafísica de alma é contraposta uma ideia de corpo como fluxo dinâmico de embate e negociação do campo pulsional, marcado por uma pluralidade intransparente de forças e vetores em constante relação de disputa por domínio e comando.

A base dessa operação filosófica de ampliação do conceito de racionalidade - o que se distingue nitidamente de sua negação - é a destruição da psicologia racional enquanto doutrina teórica da alma, da subjetividade ou da psique. O substancial é descartado e substituído pelo relacional. Conforme a tradição metafísica, a psicologia era concebida como parte da filosofia responsável pelo estudo do espírito humano e de suas faculdades, em posição contrária ao assunto da fisiologia, disciplina responsável pelo estudo do corpo humano e de suas funções (JANET apudGIACOIA JUNIOR, 2001). Esta concepção tradicional de psicologia identificava a subjetividade à consciência, equiparando o psíquico ao consciente, o que significa entender o sujeito - ou o eu - como estrutura racional dotada da faculdade de conhecer transparentemente todos os fatos de sua própria vida interior.

Não é ornamental ou retórico o fato de Sigmund Freud ter afirmado que Nietzsche teria sido um dos primeiros psicanalistas da história4. Estudioso de trabalhos produzidos nos campos da psicologia clínica e experimental francesa e alemã, da psiquiatria, da anatomia cerebral e da fisiologia cerebral, além da criminologia e da medicina legal, Nietzsche fez valerem os resultados empíricos dessas ciências no seu trabalho filosófico de autossuperação da metafísica, cujo principal elemento é a noção de inconsciente como região fundamental do psíquico (GIACOIA JUNIOR, 2001). Por esta razão, conforme avaliação de Giacoia Junior (2001), Nietzsche teria considerado a si mesmo como o primeiro psicólogo da Europa, a partir de motivos que coincidem com aqueles apresentados por Freud em sua caracterização do filósofo, na qual Nietzsche teria prenunciado as descobertas teóricas da psicanálise ao identificar os motivos duais do comportamento humano, o que se relaciona à proposição antimetafísica, genealógica, cientificamente instruída, de um desenho no qual a dimensão psíquica comporta o consciente e o inconsciente (ROSSI, 1998).5

Nietzsche foi um dos primeiros psicanalistas. É surpreendente ver até que ponto sua intuição prenuncia as novidades descobertas. Ninguém além dele identificou mais profundamente os motivos duais do comportamento humano e da insistência do princípio de prazer6 em predominar indefinidamente (ROSSI, 1998, s.p.).

Uma vez que contrariavam o lugar comum do pensamento hegemônico em sua época, Freud e Nietzsche estavam cientes do quanto soavam indigestas e repulsivas para cientistas e filósofos conservadores as elaborações teóricas propostas em seus trabalhos, as quais consideravam o eu como mera ilusão metafísica e preconceito gramatical, dando destaque à “[...] economia dinâmica das pulsões” (GIACOIA JUNIOR, 2001, p. 102) na conformação da subjetividade. Ambos documentaram textualmente a própria noção acerca das proporções do impacto epistemológico da virada que propunham em relação ao conceito de eu/sujeito (GIACOIA JUNIOR, 2001). Desse modo,

[...] tanto Freud quanto Nietzsche podem ser considerados como pensadores que implodem a noção substancial de subjetividade, identificada com a unidade da consciência: esta, elemento nuclear da metafísica da subjetividade, aparece então como uma ilusão superficial do sistema psíquico, inteiramente impregnada de historicidade, atravessada e comandada pela economia e dinâmica inconsciente das pulsões. Seja como unidade simples da consciência, como res cogitans ou como Vontade, o eu perde seu caráter de dado natural e de unidade autárquica da razão ou volição, não mais podendo ser considerado senhor em sua própria casa (GIACOIA JUNIOR, 2001, p. 102, grifo do autor).

No que respeita à pesquisa acerca da consciência, Nietzsche lançará mão de trabalhos científicos de fisiologia e zoologia (NIETZSCHE, 2001a) para desenvolver sua proposta teórica. O filósofo considerará que estas áreas das ciências naturais acabaram por confirmar, dois séculos depois, o que Leibniz havia proposto com a ideia de mônada, a qual já comportava percepção (perceptio) e impulso (apetitus), de modo que incluía o inconsciente no âmbito vital, “[...] mesmo nas formações mais embotadas do mundo orgânico” (GIACOIA JUNIOR, 2001, p. 32). A partir da contribuição das ciências, Nietzsche rejeita a consideração tradicional da consciência como estrutura nuclear da subjetividade, de modo a dissolver a unidade substancial daquilo que a metafísica concebia como alma (GIACOIA JUNIOR, 2001).

A fisiologia e a zoologia dariam ao pesquisador a possibilidade de investigar a questão da consciência a partir de sua suspensão na experiência humana, ou seja, a partir da consideração de circunstâncias nas quais a vida humana pode passar sem ela, pode prescindir dela. Ao mesmo tempo em que descarta a suposição de que a consciência pudesse ser inata, a operação genealógica7 de Nietzsche apresenta uma pré-história hipotética para a consciência, de modo a vinculá-la à necessidade defensiva de comunicação, condição imposta pelas ameaças externas, pela indigência, pela carência, pela insegurança. Nietzsche condiciona o desenvolvimento histórico da consciência ao desenvolvimento da linguagem e da sociabilidade (GIACOIA JUNIOR, 2001).

De acordo com a hipotética reconstituição da gênese da consciência, empreendida por Nietzsche, esta não somente não pode mais reivindicar para si o estatuto privilegiado de uma faculdade essencial, fazendo parte da própria natureza do ser humano, no sentido em que fora entendida pela filosofia tradicional. Também a consciência pode ter sua proveniência vinculada a um vir-a-ser, a um processo de constituição, a uma espécie de pré-história. Sendo assim, ela não pode mais ser simplesmente identificada com a essência ou com o núcleo perene da subjetividade (GIACOIA JUNIOR, 2001, p. 37).

O deslocamento teórico em torno da concepção de subjetividade levou Nietzsche a postular a psicologia como a “[...] rainha das ciências” (NIETZSCHE, 1992a, p. 29), o que representava a tentativa de golpear o que havia de influência da teologia entre pensadores e cientistas do século XIX.

A psicologia não metafísica será, dito mais uma vez, a ciência para cujo serviço e preparação existem todas as outras, porque ela vai permitir que todo um universo de conhecimentos mais profundos venha a preencher, no horizonte da cultura, o vazio de sentido provocado pela “morte de Deus”. Destituir a teologia de seus privilégios ancestrais significa dinamitar os bastiões, as cidadelas melhor defendidas da cultura ocidental. Entre elas, principalmente, a crença na “alma”, isto é, no núcleo substancial do “eu”, na medida em que tal crença está na raiz daquele célebre “fundamento inconcusso” da filosofia moderna, lançado por Descartes como ponto de apoio arquimediano sobre o qual se assenta o edifício do saber moderno (GIACOIA JUNIOR, 2001, p. 30).

Entre outras relações constitutivas, a psicologia não metafísica estabelece associação direta com o procedimento genealógico concebido por Nietzsche. Nesse sentido, o filósofo caracteriza as dissertações de Genealogia da moral, respectivamente, como “[...] psicologia do cristianismo”, “[...] psicologia da consciência” e “[...] psicologia do sacerdote” (NIETZSCHE, 1995, p. 97-98). Psicologia equivale aí ao trabalho cientificamente respaldado de identificação dos elementos basilares da formação de crenças, valores, conceitos, comportamentos, estados de espírito, modos de ser (pensar, agir, julgar). A recusa de um em si da realidade não significa a equiparação das interpretações, dos discursos acerca dos fenômenos abordados e não elimina a possibilidade da criação de desenhos antimetafísicos sobre as motivações terrenas, corpóreas e históricas das produções culturais da humanidade, com grau de lucidez elevado e alheio a elementos transcendentais ilusionistas. A impossibilidade de se alcançar o incontestável, a última palavra em termos do conhecimento do que quer que possa ser objeto de investigação, não impede que se produzam concepções superiores, mais elevadas em grau de inteligibilidade, brotadas, como propõe Nietzsche, “[...] de algo que comanda na profundeza, uma vontade fundamental de conhecimento que fala com determinação sempre maior, exigindo sempre maior precisão” (NIETZSCHE, 1998, p. 8).

A transvaloração da ideia de objetividade

Nietzsche não renuncia à ideia de objetividade. Ao grafá-la entre aspas, ele a transvalora, livra-a da suposta neutralidade com a qual a tradição metafísica a caracterizou e a associa à dimensão afetiva (corpórea) como núcleo da interpretação. Na posição de homem de conhecimento, caracteriza a metafísica como olho cego que vagueia no vazio, no deserto da ausência de sentido. Nietzsche propõe que a objetividade futura é uma faculdade que reconhece na variegada paleta dos afetos a verdadeira fonte da verdade:

Devemos afinal, como homens de conhecimento, ser gratos a tais resolutas inversões das perspectivas e valorações costumeiras, como que o espírito, de modo aparentemente sacrílego e inútil, enfureceu-se consigo mesmo por tanto tempo: ver assim diferente, querer ver assim diferente, é uma grande disciplina e preparação do intelecto para a sua futura “objetividade” - a qual não é entendida como “observação desinteressada” (um absurdo sem sentido), mas como a faculdade de ter seu pró e seu contra sob controle e deles poder dispor: de modo a saber utilizar em prol do conhecimento a diversidade de perspectivas e interpretações afetivas (NIETZSCHE, 1998, p. 108-109, grifos do autor).

Nietzsche considera que conceitos como em si, absoluto e razão pura, capitais na estruturação teórica da tradição metafísica, ameaçam a produção de conhecimento ao invés de fundamentá-la. A metafísica se quer fundamento, mas, a-histórica por princípio, funda-se em terreno de areia movediça. Decorrem daí a desorientação do pensamento, sua imobilização pelo amparo devoto no incondicionado e seu desvio da possibilidade de reconhecer que são os afetos que falam, interpretam, raciocinam, argumentam. Controlar os próprios prós e contras, o que produz e o que subtrai potência, é trabalhar para se manter em equilíbrio psíquico, em uma disposição afetiva favorável à escuta das pulsões inconscientes que conformam o conhecimento ao se imporem no corpo.

De agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra a antiga, perigosa fábula conceitual que estabelece um “puro sujeito do conhecimento, isento de vontade, alheio à dor e ao tempo”, guardemo-nos dos tentáculos de conceitos contraditórios como “razão pura”, “espiritualidade absoluta”, “conhecimento em si”; - tudo isso pede que se imagine um olho que não pode absolutamente ser imaginado, um olho voltado para nenhuma direção, no qual as forças ativas e interpretativas, as que fazem com que ver seja ver-algo, devem estar imobilizadas, ausentes; exige-se do olho, portanto, algo absurdo e sem sentido. Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um “conhecer” perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso “conceito” dela, nossa “objetividade” (NIETZSCHE, 1998, p. 108-109, grifos do autor).

O procedimento genealógico

A genealogia de Nietzsche, desenvolvida “[...] desde as ciências mais influentes de sua época, nomeadamente, a Psicologia empírica francesa, a Fisiologia e a História” (ARALDI, 2015, p. 21), realiza-se enquanto procedimento destinado à pesquisa e à elaboração teórica não metafísica da proveniência dos modos consagrados historicamente de abordar e significar a presença humana no mundo.

“Genealogia”, no sentido literal, consiste na reconstituição da linhagem de um indivíduo ou família, por meio da construção de uma árvore de antepassados cujas raízes devem ser as mais longínquas possíveis de alcançar. Em seu sentido figurado, é a busca pela origem de uma concepção ou um evento histórico. Mas foi Nietzsche quem lhe atribuiu um sentido filosófico e estritamente técnico, como uma investigação naturalista das origens da moralidade, em continuidade de métodos e resultados com a melhor ciência de sua época (ITAPARICA, 2018, p. 26).

Trata-se de uma estratégia de investigação das condições estabelecidas pelas relações de poder que se mostraram capazes de configurar socialmente os contornos conceituais que concorreram para o estabelecimento dos valores norteadores das experiências humanas ao longo dos tempos - empresa que demandou também a delimitação abstrata dos critérios simbólicos para a determinação do bem e do mal, do verdadeiro e do falso. Modo de pensar que antagoniza com as abstrações do dogmatismo metafísico, a genealogia se efetiva de modo relacional8, no confronto com as posições que objetiva suplantar, a partir da demonstração da superioridade teórica, ética, estética e judicativa de sua interpretação antimetafísica, antimoralista e cientificamente informada do fenômeno visado - perspectiva que envolve as “[...] mais finas e honestas, e também mais maliciosas consciências [...]” (NIETZSCHE, 1992a, p. 29).

“Genealogia” tornou-se atualmente um vocábulo comum no vasto e variado território daqueles que defendem um projeto de pesquisa de naturalização da moral e de elaboração de uma ética naturalista na filosofia contemporânea e nas ciências naturais, batizado com os mais diversos nomes: sociobiologia, psicologia evolucionista ou ética evolucionista (ITAPARICA, 2018, p. 26).

Nietzsche avalia a postura hegemônica no campo da ciência como desprovida de coragem moral para a assunção do caráter histórico. Para o filósofo, a maior parte da pesquisa de seu tempo permanecia marcada pelo dogmatismo cultivado na comunidade científica, o que a mantinha alheia à sofisticação, à agudeza, à fineza, à sagacidade, à criticidade e à independência interpretativas. Diante deste quadro, em referência à predominância da teoria do conhecimento de caráter a-histórico no campo filosófico, Nietzsche opera um movimento filosófico radical de desqualificação e superação, o que se efetiva com o perspectivismo, procedimento investigativo que necessariamente reconhece, dialoga e manipula contribuições de diversos campos de produção alheios à filosofia, valorizando os impactos de suas elaborações sobre a disciplina acadêmica que a tradição isolou e destinou à revelação das possibilidades e dos limites do conhecimento (imaculado) de um suposto objeto por um suposto sujeito, apartados entre si (MARTON, 1990): “Não temos o direito de atuar isoladamente em nada: não podemos errar isolados, nem isolados encontrar a verdade” (NIETZSCHE, 1998, p. 8, grifo do autor).

As condições naturais e históricas como princípio

Em consonância com esta postura filosófica, um dos elementos fundamentais da pesquisa genealógica de Nietzsche é a consideração dos mecanismos naturais e históricos que tornaram a ciência factível e justificável, além das condições fisiológicas, psicológicas e históricas do surgimento das ciências. Ao contrário de tributar a condição de possibilidade da ciência ao princípio de identidade, à certeza da existência de casos idênticos na natureza, fundada na lei lógica do sujeito transcendental, Nietzsche aposta em uma explicação psicológica, segundo a qual a adesão ilusória à existência desses casos é suficiente para a possibilitação da ciência, a partir da crença na validade objetiva de ficções conceituais universalizantes (LOPES, 2011a). Tal crença no incondicionado, na coisa em si como razão suficiente do mundo fenomênico, teria sido desenvolvida nos seres orgânicos, desde a sua mais primária constituição, um erro frente ao devir, frente à historicidade, necessário à conservação da vida humana: “[...] a crença em substâncias incondicionadas e coisas semelhantes é também um erro original e igualmente antigo de tudo que é orgânico” (NIETZSCHE, 2001b, p. 29). Os muitos erros e fantasias do passado são a herança deixada ao presente, para que a cultivemos, ainda que à base da gargalhada de tipo homérico. A ciência tornou-se capaz de naturalizar a produção de conhecimento, mas incapaz de desintegrar o mundo da representação, alimentado pela ordem do sentir.

Todas essas concepções serão decisivamente afastadas pelo constante e laborioso processo da ciência, que enfim celebrará seu maior triunfo numa história da gênese do pensamento, que poderia talvez resultar na seguinte afirmação: o que agora chamamos de mundo é o resultado de muitos erros e fantasias que surgiram gradualmente na evolução total dos seres orgânicos e cresceram entremeados, e que agora herdamos o tesouro acumulado do passado - como tesouro: pois o valor de nossa humanidade nele reside. Desse mundo da representação, somente em pequena medida a ciência rigorosa poderia nos libertar - algo que também não seria desejável -, desde que é incapaz de romper de modo essencial o domínio de hábitos ancestrais de sentimento; mas pode, de maneira bastante lenta e gradual, iluminar a história da gênese desse mundo como representação - e, ao menos por instantes, nos elevar acima de todo o evento. Talvez reconheçamos então que a coisa em si é digna de uma gargalhada homérica: que ela parecia ser tanto, até mesmo tudo, e na realidade está vazia, vazia de significado (NIETZSCHE, 2001b, p. 26-27, grifos do autor).

Surgidos no longo percurso evolutivo dos seres orgânicos, a mentira, o erro, a ilusão, a fantasia - e não a verdade - geraram o mundo da representação. Nele se encontra o valor de nossa humanidade. Nossa compreensão do que é o mundo deriva da falsidade, ainda que em nome da veracidade absoluta. A genealogia é tomada por Nietzsche como estratégia alternativa à impossibilidade da ciência do século XIX romper com determinadas fontes habituais de afetação. Nietzsche aposta na genealogia como procedimento da filosofia do futuro, modo investigativo a ser paulatinamente desenvolvido. Como história da gestação do mundo da representação, a genealogia desmascara a coisa em si em sua suposta incondicionalidade (NIETZSCHE, 2001b).

Ciência, arte, filosofia, centauros

Comprometido com a compreensão das fontes de danificação da cultura de seu tempo, Nietzsche constrói seu pensamento a partir do diálogo entre ciência, arte e filosofia. Não pareceria exequível uma crítica consistente da cultura sem que se levasse a sério a produção discursiva acerca da natureza e da sociedade, do mundo e da humanidade, advinda desses três campos fundamentais de interpretação dos processos históricos e naturais que configuram o real. “Ciência, Arte, Filosofia crescem tão juntas em mim, que um dia gerarei centauros” (NIETZSCHE, 1969, p. 63), escreveu Nietzsche a Erwin Rodhe, em 1870. Aos 25 anos de idade, filólogo de formação, Nietzsche estava mergulhado no debate intelectual europeu e pautava suas pesquisas no estudo de áreas de conhecimento diversas.

Com essa sentença categórica, ele informava ao amigo sobre o atributo fundamental de seu pensamento naquele momento: uma mistura inextricável entre tendências diferentes e, às vezes, antagônicas. A Origem da Tragédia, o primeiro livro escrito por Nietzsche, publicado em 1872, é o produto dessa tensão (SILK, M. S.; STERN, J. P, 1981, p. 188). Seu autor, enquanto o concebia, estava na fronteira entre a filologia, a música e a filosofia. Entre os anos de 1864 e 1869, Nietzsche estudou filologia clássica sob orientação de Friedrich Wilhelm Ritschl em Leipzig. A sua escolha pela carreira filológica, a qual começou a ganhar contornos nítidos já em 1863, mas que se consolidou apenas em 1865, foi motivada pela vontade de subordinar-se à disciplina oferecida pelo aparato científico da filologia clássica, de restringir os seus multifacetados interesses e, sem dúvida, pelo amor dedicado aos gregos (SAFRANSKI apudRAMOS, 2013, p. 229, grifo do autor).

Em Ecce homo, ao tratar de Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres, de 1878, Nietzsche indica o período no qual foi concebida a obra como um marco decisivo em sua produção, um momento de reaproximação de si mesmo, uma retomada dos rumos de seu pensamento, a superação do wagnerianismo e um mergulho duradouro nas investigações científicas.

O que em mim então se decidiu não era uma ruptura com Wagner - eu percebi um total desvio de meu instinto, do qual um desacerto particular, fosse ele Wagner ou a cátedra da Basiléia, era apenas um sinal. Uma impaciência comigo mesmo me tomou; vi que era hora de refletir, retornar a mim. De súbito ficou para mim terrivelmente claro quanto tempo já fora desperdiçado [...] Dez anos atrás de mim, durante os quais a alimentação de meu espírito havia literalmente cessado, em que eu nada de útil havia mais aprendido, em que havia esquecido absurdamente tanto, debruçado sobre uma tralha de erudição empoeirada. [...] Tive pena ao me ver tão magro, tão esquálido: as realidades faltavam inteiramente em meu saber, e as “idealidades”, para que diabo serviam! - Uma sede abrasadora me tomou: a partir de então ocupei-me apenas de fisiologia, medicina e ciências da natureza - mesmo a autênticos estudos históricos retornei somente quando a tarefa a isso me obrigou imperiosamente (NIETZSCHE, 1995, p. 74).

De modo genérico, Nietzsche é tomado como crítico mordaz da ciência, contudo, é preciso delimitar os contornos de suas posições, para que não se banalize o seu pensamento. Suas críticas tiveram como alvo específico os elementos dogmáticos embutidos em valores fundamentais cultivados pela ciência. Assim, se pode ser considerado um inimigo do dogmatismo, o mesmo não vale em relação às ciências naturais e históricas, nas quais buscou elementos para desmontar pressupostos metafísicos arraigados na cultura com status de necessidade e universalidade, elementos esses que sempre impediram a produção de conhecimento concreto acerca da realidade. Em Genealogia da moral, as ciências específicas são claramente tomadas como instrumentos da filosofia para o desenvolvimento do trabalho de historicização e naturalização da gênese dos preconceitos morais determinantes da cultura moderna.

Apenas a filosofia pergunta sistematicamente pelo fim e se coloca como a única disciplina capaz de lidar com o desafio de conceber uma hierarquia dos fins do agir, inclusive do agir investigador. Esta tarefa superior garante a ela uma posição privilegiada na hierarquia das ciências. [...] Enquanto estudos sobre a história da moral, aos quais Nietzsche integra também a etimologia e a linguística, a medicina e a fisiologia, elas fornecem os conhecimentos necessários a uma “crítica dos valores morais” (GM, Prólogo 6). Elas dão desse modo uma contribuição decisiva para levar a sério os problemas da moral e conceber a sua crítica, bem como a sua transvaloração (HEIT, 2017, p. 375, grifo do autor).

O tema da ciência é tratado em inúmeras passagens da obra nietzschiana, a partir de abordagens muito diversas, nas quais se podem encontrar os enfoques cultural e epistemológico de sua crítica. Em O andarilho e sua sombra (2008), Nietzsche adverte aqueles que querem estar leves, nas alturas, acerca do perigo apresentado pela ciência, uma vez que ela engendra um peso no real:

Aviso aos entusiastas - Quem gosta de ser arrebatado e deseja ser facilmente levado às alturas, deve atentar para que não venha a pesar demais, que, por exemplo, não aprenda bastante e se deixe preencher pela ciência. Pois ela torna pesado! - cuidado, entusiastas! (NIETZSCHE, 2008, p. 301).

O que na ciência impediria a elevação do espírito e justificaria a advertência nietzschiana? O que poderia desabonar, no entendimento de Nietzsche, o conhecimento rigoroso produzido pela ciência sobre a natureza e a sociedade? O que na ciência faz pesar demais a existência? Certamente o que está em jogo é o peso da substância. A ideia de não se deixar preencher pela ciência parece indicar que a outras áreas de compreensão do real - a outras perspectivas - deve também ser reservado espaço, o que faz reverberar a crítica ao acolhimento da metafísica pela ciência moderna. Ao mesmo tempo, o aforismo permite outra leitura, segundo a qual a ciência seria um antídoto contra deslumbramentos interpretativos ingênuos baseados em inferências precipitadas. Miremos primeiro nesta segunda possibilidade, com destaque para o modo como Nietzsche enfatiza a importância do rigor dos métodos científicos na formação do espírito investigativo que atuará na construção do conhecimento respaldado, sólido, crítico e capaz de produzir potência para a vida humana. Os dois aforismos a seguir (256 e 635), da obra Humano, demasiado humano, tratam do tema e deixam clara a distinção nietzschiana entre a ingenuidade, a afobação, a imaturidade e a precipitação, tanto da superstição metafísica quanto do senso comum, e a seriedade de um espírito científico bem desenvolvido, devidamente aguçado para suspeitar sistematicamente dos esquemas explicativos disponíveis e alheio à demanda psicológica de consolação pessoal. Enquanto a ousadia do espírito científico - “[...] modesto e cauteloso [...]” (NIETZSCHE, 2000, p. 304) - busca na pesquisa o florescimento da humanidade, a mesquinhez do supersticioso, busca na convicção acrítica nada além de um conforto para si mesmo.

A ciência exercita a capacidade, não o saber. - O valor de praticar com rigor, por algum tempo, uma ciência rigorosa não está propriamente em seus resultados: pois eles sempre serão uma gota ínfima, ante o mar das coisas dignas de saber. Mas isso produz um aumento de energia, de capacidade dedutiva, de tenacidade; aprende-se a alcançar um fim de modo pertinente. Neste sentido é valioso, em vista de tudo o que se fará depois, ter sido homem de ciência (NIETZSCHE, 2000, p. 175, grifos do autor).

[...]

No conjunto, os métodos científicos são um produto da pesquisa ao menos tão importante quanto qualquer outro resultado: pois o espírito científico repousa na compreensão do método, e os resultados todos da ciência não poderiam impedir um novo triunfo da superstição e do contrassenso, caso esses métodos se perdessem (NIETZSCHE, 2000, p. 304).

Nietzsche toma o modo científico de produção de conhecimento como uma ponte para a elaboração da postura crítica e, em consequência, para a superação da mistificação metafísica. Portanto, em favor da verdade, é preciso que sejam cultivados na história os métodos naturalistas das ciências. É comum que os resultados das pesquisas científicas se tornem conteúdos informativos, passíveis de reprodução ingenuamente mecânica por pessoas sem formação e alheias ao meio. Contudo, o desenvolvimento do espírito-instinto científico requer esforços próprios e torna malicioso aquele que os suporta: desconfiado, prudente e sofisticado quanto à aferição do vigor das elaborações teórico-conceituais.

Pessoas de espírito podem aprender o quanto quiserem sobre os resultados da ciência: em suas conversas, particularmente nas hipóteses que nelas surgem, nota-se que lhes falta o espírito científico: elas não possuem a instintiva desconfiança em relação aos descaminhos do pensar, que após prolongado exercício deitou raízes na alma de todo homem científico. Basta-lhes encontrar uma hipótese qualquer acerca de algo, e então se tornam fogo e flama no que diz respeito a ela, achando que com isso tudo está resolvido. Para essas pessoas, ter uma opinião significa ser fanático por ela e abrigá-la no peito como convicção. Diante de algo inexplicado, exaltam-se com a primeira ideia de sua mente que pareça uma explicação: do que sempre resultam as piores consequências, sobretudo no âmbito da política (NIETZSCHE, 2000, p. 304, grifo do autor).

Na medida em que pode purificar o pensamento da superstição e da precipitação, o método científico ensina sobre a questão dos critérios diretores do devido processo de investigação sistemática dos fenômenos naturais e sociais. A simplicidade da posição do homem não-científico decorre de sua indisposição para o trabalho de pesquisa e o endereça à veneração daquele tipo de pensador que se mostra do alto para o baixo e destila ares de superioridade. Estes, imediatamente, passam a ser idolatrados e seguidos como se fossem super-heróis.

- Por isso cada um, atualmente, deveria chegar a conhecer no mínimo uma ciência a fundo: então saberia o que é método e como é necessária uma extrema circunspecção [...]. De fato, uma observação mais precisa revela que a grande maioria das pessoas educadas ainda pede ao pensador convicções e nada além disso, e que somente uma pequena minoria quer certeza. As primeiras querem ser fortemente arrebatadas, para desse modo alcançarem maior força elas mesmas; as outras, poucas, têm o interesse objetivo que não considera as vantagens pessoais, nem mesmo a referida maior força. Em toda parte onde o pensador se comporta e se designa como gênio, isto é, quando olha os demais como um ser superior ao qual compete a autoridade, ele conta com aquela classe de pessoas, de longe a predominante. Na medida em que o gênio dessa espécie mantém o fervor das convicções e provoca desconfiança frente ao espírito modesto e cauteloso da ciência, ele é um inimigo da verdade, por mais que acredite ser seu enamorado pretendente (NIETZSCHE, 2000, p. 304, grifos do autor).

Por outro lado, em Assim falou Zaratustra, no canto Do imaculado conhecimento, Nietzsche (2003) retoma a imagem do peso e apresenta sua crítica ao ideal ascético como princípio da ciência, impulso metafísico que considera niilista, contrário ao instinto criador do artista, nocivo ao conhecimento concreto (perspectivista) da realidade e, portanto, contrário à vida, promotor da vontade de nada, da despotenciação do espírito, da degeneração dos valores fundamentais da existência9. A esterilidade da metafísica a torna infrutífera quanto à geração de um tipo superior de humanidade - afirmativo diante da finitude e da provisoriedade, alegre quanto à infinitude de possibilidades de construção da verdade.

Mas deverá ser esta a vossa maldição, ó imaculados buscadores do puro conhecimento: que nunca dareis à luz coisa alguma, ainda que estejais grandes e pejados no horizonte!

Em verdade, encheis a boca de nobres nomes; e nós deveríamos acreditar que é o vosso coração que transborda, ó mentirosos? Mas minhas palavras são palavras fúteis, desprezadas, tortas: gosto de recolher o que cai debaixo da mesa durante os vossos banquetes.

Mesmo assim, posso, com elas - dizer a verdade aos hipócritas! Sim, as minhas espinhas, conchas e sarças deverão - comichar o nariz dos hipócritas!

Há sempre um ar viciado em torno de vós e de vossas refeições: porque os vossos pensamentos lascivos, as vossas mentiras e segredos estão nesse ar!

Ousai, primeiro, acreditar em vós mesmos - e nas vossas vísceras! Quem não acredita em si mesmo mente sempre.

Pusestes diante de vós a máscara de um deus, vós, os ‘puros’: na máscara de um deus escondeu-se o vosso verme mais abominável (NIETZSCHE, 2003, p. 154-155).

Um traço essencial do pensamento nietzschiano é a disposição para levar às últimas consequências o questionamento do valor dos valores (genealogia) produzidos pela metafísica. Sua filosofia, herdeira da tradição filosófica, impõe-se como marco reorientador do pensamento ocidental, na medida em que, pela primeira vez na história, promove o abandono da busca pela verdade em favor da busca pela verdade da busca pela verdade, movimento que termina por identificar uma paixão específica, o medo, como impulso diretor da ascese em torno da verdade. Assumida como finalidade absoluta da existência humana, a busca da verdade - na acepção de determinação de essências imutáveis (coisa em si) e sua adequação a conceitos, pela via judicativa e proposicional - foi movida, ao longo da tradição, por disputas homéricas em torno de qual poderia ser o método realmente adequado à sua apreensão. Tornada assim tão tácita, dirá Nietzsche, a busca da verdade metafísica deixou de ser pensada e questionada. Foi assumida pelos mais diferentes filósofos como tendência natural do homem, sem que isso os levasse à compreensão de que suas crenças tinham o poder performativo de engendrar/inventar (mentir) uma determinada concepção de humanidade, e não a única humanidade possível (OLEARE, 2011).

Em Natureza e ciência, aforismo no qual Nietzsche faz um balanço entre as áreas mais fecundas e as mais infecundas da ciência, ele considera haver prevalência dessas últimas, na medida em que, para serem trabalhadas, requerem apenas os recursos da ciência incipiente. As áreas fecundas seriam sempre cultivadas tardiamente, uma vez que pressupõem “[...] uma força enorme e cuidadosamente desenvolvida nos métodos, a obtenção de resultados específicos e uma organizada coorte de trabalhadores bem treinados [...]” (NIETZSCHE, 2008, p. 253). A infecundidade e a incipiência que aí se sobressaem inevitavelmente entram na conta dos impedimentos espirituais (intelectuais, éticos, estéticos) causados pelo peso excessivo da ciência que se quer segura - supostamente capaz de blindar-se quanto aos riscos impostos pelo ceticismo e pela provisoriedade -, o que faz com que seja requerida cautela na dosagem de sua influência. A decepção dos eruditos com o universo da ciência é tratada por Nietzsche como resultante da extrema especialização da prática científica. A ousadia, a esperança e a percepção sobre a própria posição, experimentadas em início de carreira, gradualmente são substituídas pelo distanciamento de novos horizontes possíveis, o que se vê pontualmente representado na adoção de projetos cirurgicamente limitados, dos quais estejam excluídos quaisquer sinais de irresolução e inacabamento. Assaltado pela dúvida quanto à direção dada à realização da própria existência, percebe-se hábil, mas pequeno. Então, chega o momento no qual o erudito quer saber “[...] se o magistral domínio na pequena escala não seria uma comodidade, uma escapatória ante a exortação à grandeza no viver e no configurar. Mas já não pode passar para o outro lado - o tempo acabou” (NIETZSCHE, 2008, p. 243, grifo do autor).

Esse seria o destino dos mais capazes e escrupulosos eruditos, aqueles que Nietzsche compara a empregados de outras áreas instrumentalizadas do mercado de trabalho (NIETZSCHE, 2008). Trata-se de técnicos alocados sob demanda administrativa em determinados setores da produção. Perfil oposto, mais raro, seria aquele inadaptado aos ditames do organograma gerencial, caráter no qual nada é meramente protocolar, nada se dá de forma impessoal. Seu envolvimento com a ciência é orgânico, vital, visceral. Esse tipo de homem, diz Nietzsche, costuma ser chamado de filósofo (NIETZSCHE, 2008).

A ciência em O nascimento da tragédia

De caráter cultural, as críticas de Nietzsche indicam também a sua insatisfação com a condição instrumental da ciência de sua época, período de expansão do capitalismo pela via da industrialização. Contudo, o interesse intelectual de Nietzsche estava voltado para a ciência teórica e, além de criticá-la epistemologicamente, ele soube se apropriar dela para elaborar noções fundamentais de sua filosofia, estabelecendo uma relação potente, favorável à geração de seu pensamento e livre de qualquer valoração dogmática. Sua proximidade se deu em relação a cientistas que desenvolveram ideias de superação dos modelos metafísicos de explicação da natureza, nomes como Roger Joseph Boscovich e Wilhelm Roux, além de muitos outros. A dedicação integral ao estudo da física chegou a ser cogitada por Nietzsche quando buscava a fundamentação científica para sua noção de eterno retorno (BARRENECHEA, 2011).

Em um artigo intitulado Nietzsche cientista?, Miguel Angel de Barrenechea mapeia a posição nietzschiana sobre a ciência nas três fases atribuídas à obra do filósofo. Entre 1860 e 1877, a filosofia nietzschiana estabelece uma metafísica de artista. Influenciado por Richard Wagner e Arthur Schopenhauer, Nietzsche valorizou a arte e questionou a ciência e o racionalismo socrático. Entre 1878 e 1882 ocorreu a produção da fase intermediária, marcada pela investigação da perspectiva científica em detrimento da arte, da metafísica, da religião e da moral. Por fim, calcada na absorção de conceitos científicos, a elaboração das noções fundamentais de seu pensamento aconteceu entre 1883 e 1888 (BARRENECHEA, 2011). O autor evidencia que Nietzsche é um crítico da hipertrofia moderna - iluminista - da racionalidade, mas não um irracionalista. Criticar não significa negar, mas delimitar.

Sob a influência de Wagner e Schopenhauer e confiante na potência criadora do saber trágico10, no período compreendido entre o final dos anos de 1860 e o início dos anos de 1870, Nietzsche dedicava-se a fazer um resgate da arte enquanto dimensão cultural dotada de status cognoscitivo, ao mesmo tempo em que questionava a valorização moderna das ciências, considerada por ele extravagante, totalitária e reducionista, na medida em que se impunha na cultura de forma dogmática, alheia ao cultivo da dúvida acerca dos “limites da natureza lógica” (NIETZSCHE, 1992b, p. 91). Sua crítica dirigia-se ao que intitulava metafísica racional, produto do discurso filosófico herdeiro do socratismo, segundo o qual a racionalidade, por meio da produção de conhecimento conceitual, silogístico, seria a via exclusiva de acesso à realidade. De acordo com Barrenechea (2011), o que está em jogo é a contraposição entre metafísica de artista e metafísica racional, isto é, a disputa pelo acesso legítimo ao âmago do real:

Se a tragédia antiga foi obrigada a sair do trilho pelo impulso dialético para o saber e o otimismo da ciência, é mister deduzir desse fato uma luta eterna entre a consideração teórica e a consideração trágica do mundo [...]. Nessa confrontação, entendo por espírito da ciência aquela crença surgida à luz pela primeira vez na pessoa de Sócrates, na sondabilidade da natureza e na força terápica universal do saber (NIETZSCHE, 1992b, p. 104, grifo do autor).

“Será que a arte não é até um correlativo necessário e um complemento da ciência?” (NIETZSCHE, 1992b, p. 91). Nietzsche sugere que tal pergunta poderia ser feita a si mesmo por Sócrates, a partir do sonho recorrente que lhe tomava de assalto, incitando-o a fazer música (NIETZSCHE, 1992b). Com isso, indica que a luz do saber teórico precisa estar em relação com o abismo do saber trágico. Precisa estar em uma luta eterna. Por mostrarem-se sempre limitadas e insuficientes em seu propósito, as pretensões totalizantes da ciência - não a ciência em si, os métodos ou os resultados da investigação científica, mas a ciência como veículo cultural da metafísica racional, do demasiado otimismo teórico - quanto à produção de justificativas finais para a vida humana se frustam e, inevitavelmente, acabam por afirmar a necessidade da arte, da dimensão estética enquanto âmbito metafísico de produção de sentido existencial. O mito, então, é designado por Nietzsche como “[...] a consequência necessária e, mais ainda, o propósito da ciência” (NIETZSCHE, 1992b, p. 94). Tanto na cultura trágica quanto na cultura teórica, a fixação do homem à existência se dá por meio de ilusões, sejam elas plásticas, sonoras ou teóricas. A cultura trágica, no entanto, não recusa a finitude (MARTON, 2016).

Em O nascimento da tragédia, Nietzsche já postula aquilo que consagrará em A gaia ciência, isto é, uma ciência acolhedora da arte, aberta à artisticidade do devir e às múltiplas perspectivas de relação com a busca das verdades entranhadas no acontecimento do real, a exemplo do que vê expressar-se no pensamento dos filósofos pré-socráticos, os quais “[...] integraram razão e impulso, ciência e arte, vida e conhecimento [...]”, exprimindo uma “[...] visão integral da existência humana, sem separar o saber da arte, a filosofia da ciência” (BARRENECHEA, 2011, p. 33).

No ambiente agonístico, ora científico ora artístico da filosofia pré-socrática, nenhuma das forças tende a se tornar excessiva e, por conseguinte, tirânica, fato que interdita o dogmatismo rigoroso e seus efeitos bárbaros sobre a cultura (GONÇALVES, 2019, p. 127).

Também está exposta nesta obra de 1872 uma compreensão que volta em Além do bem e do mal, acerca do caráter mitológico da concepção metafísica de causalidade. A tese da impossibilidade de se pensar o nexo causal conceitualmente, a priori, como evento incondicionado, rendeu um raro elogio de Nietzsche a David Hume11, filósofo empirista escocês considerado em um fragmento póstumo de 1885 [FP 11, 34 (70)] como “[...] ‘uma das cabeças mais sutis’” de seu século (NIETZSCHE apudARALDI, 2015, p. 20). Para Nietzsche, a eleição da incondicionalidade se dá efetivamente em função da potência da linguagem para a expressão de abstrações e não, como se propaga, a partir de supostas constatações ontológicas inultrapassáveis, apodíticas, envoltas pelo manto da verdade, da certeza, da evidência e da clareza cognitiva.

No “em si” não existem “laços causais”, “necessidade”, “não-liberdade psicológica”, ali não segue “o efeito à causa”, não rege nenhuma “lei”. Somos nós apenas que criamos as causas, a sucessão, a reciprocidade, a relatividade, a coação, o número, a lei, a liberdade, o motivo, a finalidade; e ao introduzir e entremesclar nas coisas esse mundo de signos, como algo “em si”, agimos como sempre fizemos, ou seja, mitologicamente (NIETZSCHE, 1992a, p. 27, grifo do autor).

Sob influência de Schopenhauer, a metafísica de artista elaborada em O nascimento da tragédia concebe a associação entre Apolo e Dionísio como relação entre representação (princípio de individuação) e uno-primordial (princípio de desindividuação). Já nesse momento, o mundo é tomado por Nietzsche como puro devir, vir-a-ser contínuo, “[...] eterno destruir e construir universal, uma contradição insuperável, [...] fenômeno da mudança e contradição do uno-primordial [...]” (ITAPARICA, 2019, p. 65).

Por uma questão programática, portanto, é a arte trágica helênica e não o conhecimento racional, “[...] a via privilegiada de acesso à essência do mundo”, pois é a tragédia que manifesta “[...] a harmonia conflitante dos impulsos apolíneos e dionisíacos” e exprime, assim, “[...] a própria textura contraditória do mundo” (BARRENECHEA, 2011, p. 33). Por meio do coro, a tragédia instaura um êxtase dionisíaco que funde espectador e herói, de modo que promove uma experimentação do uno-primordial, o qual, enquanto coisa em si, não pode ser conhecido racionalmente (ITAPARICA, 2019). É este o cerne da metafísica estética ou metafísica de artista elaborada por Nietzsche em O nascimento da tragédia: o dionisíaco como acesso à verdade primordial, isto é, à dor e à contradição do uno-primordial, por meio da música. A tragédia proporciona a experimentação do “estado de ânimo musical” (NIETZSCHE, 1992b, p. 44), que amalgama música e verdade, numa operação de ultrapassamento absoluto da esfera representacional do conceito e da lógica. “O músico dionisíaco, inteiramente isento de toda imagem, é ele próprio dor primordial e eco primordial desta (NIETZSCHE, 1992b, p. 45)”.12

É possível pensar que a posição da primeira fase da filosofia nietzschiana não se compromete com uma recusa geral da ciência, mas com uma indicação de seus limites culturais (cultura trágica versus cultura socrática) e dos limites de sua valoração moderna, tributária do movimento de “hipervalorização do conhecimento racional” (BARRENECHEA, 2011, p. 33) iniciado por Sócrates. Trata-se de “[...] resgatar a relevância cognoscitiva das artes” (BARRENECHEA, 2011, p. 33), afirmando sua importância para uma compreensão integral da existência e do mundo.

A tragédia, com sua interação especial entre música e drama ou discurso, entre o impulso dionisíaco e o impulso apolíneo, nos coloca diante da eterna dor primordial, único fundamento do mundo, e do mundo aparente da beleza, e produz algo que é raro na cultura humana: a unidade do homem com a natureza. Permanecemos na existência por meio da ilusão de sermos um com o infinito. A existência e o mundo são justificados apenas como fenômeno estético. (cf. NT [O nascimento da tragédia] 24) (FREZZATTI JUNIOR, 2017, p. 104).

Dialética socrática e estética trágica

De acordo com o socratismo teórico, a inteligibilidade é o pré-requisito para a participação de entes e fenômenos no belo e na moralidade. Apenas o que se oferece ao conhecimento racional pode contribuir com a edificação da humanidade: “[...] o irracional, o inconsciente e o instintivo são rejeitados como empecilhos para o desenvolvimento humano” (MARTON, 2016, p. 142). A crítica ao predomínio da dialética socrática sobre a estética trágica dá contorno à concepção nietzschiana acerca das relações ideais entre arte, ciência e filosofia como manifestações do pensar a serviço do florescimento da vida e da cultura. O primado da racionalidade como via exclusiva de acesso ao âmago do ser é entendido por Nietzsche como decadência cultural, uma vez que se baseia na hipertrofia do instinto de conhecimento e, consequentemente, na repressão do instinto artístico, o que não ocorria na cultura pré-socrática, elaborada a partir da integração entre todas as formas de acesso ao real. “Não se trata de aniquilar a ciência, mas de dominá-la.”13 (NIETZSCHE apudBARRENECHEA, 2011, p. 34). A cosmologia pré-socrática, alheia à dicotomização metafísica do real, estaria motivada pela ideia de “[...] um mundo único que se deixa sondar pelo homem [...]” (MATTOS, 2007, p. 68), o que indica a conciliação, na cultura, dos seus produtos elevados: arte, ciência, filosofia, religião.

Esses primeiros helenos não negam ou rejeitam de forma categórica o instinto de conhecimento, o impulso para a ciência, mas sustentam que deve ser limitado, restringido pelos impulsos artísticos [...]. Contudo, isso não significa que a ciência não ocupe um lugar junto às outras atividades da civilização helênica. Esse impulso ao conhecimento, porém, é controlado e dominado pelas tendências artísticas (NIETZSCHE apudBARRENECHEA, 2011, p. 34).

Na medida em que inaugura uma “[...] forma de existência antes dele inaudita, o tipo do homem teórico [...]” (NIETZSCHE, 1992b, p. 92, grifo do autor), Sócrates significa, no pensamento de Nietzsche, um horizonte cultural, um modo de justificar a existência e a ela dar sentido, exclusivamente por meio da fé na possibilidade de onisciência, fé esta derivada do todo-poderoso âmbito da racionalidade, da causalidade, da cientificidade, da crença em uma “[...] correção do mundo pelo saber [...]” (NIETZSCHE, 1992b, p. 108).

Nietzsche avalia que este tipo de ilusão promovida pela cultura socrática para vincular o existente à existência mascara a finitude humana e aponta para a eternidade, ao prometer conhecimento absoluto de todas as coisas. O que se põe em jogo na civilização é uma promessa de reconciliação entre homem e natureza, a partir da atividade racional. Enquanto no contexto das celebrações dionisíacas a reconciliação se dá por meio “[...] do auto-esquecimento da embriaguez” (WIENAND, 2012, p. 110), o otimismo socrático nutre a crença na justificação da existência por meio da compreensibilidade.

O recurso às ciências naturais deu a Nietzsche a possibilidade de elaboração da noção de fisiopsicologia, a partir da qual o filósofo avalia a potência e a saúde da produção simbólica da humanidade em suas diversas modalidades, tanto no que diz respeito à arte como no que se refere aos campos científico, filosófico, político, religioso, além de outros âmbitos da cultura. Entre diversos autores, Nietzsche teria lido fisiologistas como Jean Martin Charcot, Gustav Theodor Fechner, Hermann von Helmholtz e Wilhelm Wundt.

A fisiopsicologia nietzschiana é a base da avaliação das produções humanas, isto é, dos sintomas das configurações fisiológicas. E Para além de Bem e Mal, Nietzsche define a fisiopsicologia como morfologia e doutrina do desenvolvimento (Entwicklungslehe) da vontade de potência. Se o conjunto de impulsos for bem hierarquizado ou potente, ele é saudável; se for desorganizado ou anárquico e despotencializado, ele é mórbido. Dessa forma, Nietzsche pode avaliar, por exemplo, Richard Wagner e Sócrates como doentes e decadentes por meio de sua arte e sua filosofia respectivamente (MARTON, 2016, p. 236, grifo do autor).

“Mistagogo da ciência” (NIETZSCHE, 1992b, p. 94), Sócrates confere sacralidade ao conhecimento racional, de modo a fazer com que se instaure o que Nietzsche compreende como “sublime ilusão metafísica”, “profunda representação ilusória”, “[...] aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo” (NIETZSCHE, 1992b, p. 93).

A inconsciência quanto à ausência de limite inscreve as pulsões teóricas no âmbito da crença, da religiosidade, da imagem, do mito, da fé. Nietzsche ensinará que a natureza não se mostra por inteiro a quem quer que seja (HEIT; PICHLER, 2015), motivo pelo qual a objetividade futura anunciada em Genealogia da moral só pode ser obtida a partir da livre expressão da pluralidade de perspectivas interpretativas que se voltam para os eventos do mundo, cada qual com o seu próprio peso significativo e seu próprio valor elucidativo. A virtude grega limitou o impulso científico com o impulso artístico, o que concorreu para o fortalecimento e a fecundação de uma cultura (O nascimento da tragédia) afirmativa da vida, da finitude, da dor e da beleza.

Ao indicar que também a verdade perseguida pela ciência se configura como obra de arte edificada historicamente para “[...] embelezar e fortalecer a vida coletiva [...]”, e não como “[...] um modelo existente fora de nós, do qual o espírito apenas teria que nos dar a imagem fiel [...]” (ANDLER, 2016, p. 30), Nietzsche salienta que o tipo homem teórico, a exemplo do tipo artista, é também motivado pelo prazer, e não exclusivamente vinculado à questão da verdade, de modo que, em seu trabalho, busca proteção contra os efeitos nocivos do pessimismo:

Também o homem teórico tem um deleite infinito com o existente, qual o artista, e, como ele, é protegido, por esse contentamento, da ética prática do pessimismo e de seus olhos de Lince, que só brilham na escuridão. Se, com efeito, o artista, a cada desvelamento da verdade, permanece sempre preso, com olhares extáticos, tão-somente ao que agora, após a revelação, permanece velado, o homem teórico se compraz e se satisfaz com o véu desprendido e tem o seu mais alto alvo de prazer no processo de um desvelamento cada vez mais feliz, conseguido por força própria. Não haveria ciência se ela tivesse a ver apenas com essa única deusa nua [a Verdade] e com nenhuma outra (NIETZSCHE, 1992b, p. 92-93, grifo do autor).

A ciência se fia em sua própria máscara da descoberta de verdades e assim constrói as suas verdades. Na medida em que “[...] uma ficção não existe sem efeitos bem reais [...] (BENOIT, 2011, p. 448)”, as verdades científicas são “[...] ficções úteis para a sobrevivência e manutenção da espécie [...]” e, também,

[...] para que haja condições de crescimento de potência, ou seja, para a autossuperação [...]. Neste caso, o importante não é a verdade ou a falsidade de uma proposição, mas o quanto ela contribui ou dificulta o aumento de potência (MARTON, 2016, p. 142).

Nesse sentido a ciência, “[...] otimista em sua essência mais profunda (...)”, é tomada por Nietzsche em O nascimento da tragédia como a “[...] oposição mais ilustre à consideração trágica do mundo (NIETZSCHE, 1992b, p. 92-93, grifo do autor)”. Portanto, em uma operação de sintomatologia - destinada a investigar as produções culturais enquanto sintomas da vida e traduções fisiopsicológicas dos distintos momentos da civilização, ao longo da história -, à sabedoria imediata promovida pela tragédia, Nietzsche opõe o conhecimento mediatizado pela lógica. O que está em jogo na crítica nietzschiana à ciência é o tipo hegemônico de existência gerado por ela, o grau de vigor frente à verdade incontornável da finitude.

Será o pessimismo necessariamente o signo do declínio, da ruína, do fracasso, dos instintos cansados e debilitados - como ele o foi entre os indianos, como ele o é, segundo todas as aparências, entre nós, homens e europeus ‘modernos’? Há um pessimismo da fortitude? Uma propensão intelectual para o duro, o horrendo, o mal, o problemático da existência, devido ao bem-estar, a uma transbordante saúde, a uma plenitude da existência? (NIETZSCHE, 1992b, p. 14, grifo do autor).

No pessimismo da fortitude que caracteriza a tragédia, a verdade dionisíaca acerca do absurdo da existência é submetida à bela forma da arte, o que torna habitável o confronto entre a existência particular e o seu fundo aterrador. Já o otimismo socrático se enreda na ilusão de que o terror da existência, inscrito no fato da finitude, possa ser superado pelo conhecimento racional, lógico, causal.

Há talvez um sofrimento devido à própria superabundância? Uma tentadora intrepidez do olhar mais agudo, que exige o terrível como inimigo, o digno inimigo em que pode pôr à prova sua força? Em que deseja aprender o que é ‘temer’? O que significa, justamente entre os gregos da melhor época, da mais forte, da mais valorosa, o mito trágico? E o descomunal fenômeno do dionisíaco? O que significa, dele nascida, a tragédia? - E, de outra parte: aquilo de que a tragédia morreu, o socratismo da moral, a dialética, a suficiência e a serenojovialidade do homem teórico - como? (NIETZSCHE, 1992b, p. 14, grifo do autor).

O pessimismo trágico compartilhado numa cultura forte requereria o encontro estético com o terrível da existência. É preciso desafiar a benevolência do destino e fazer disputas, configurar inimigos, aprender o que é temer. O socratismo, ao contrário, expressa um desespero frente à finitude, um cansaço da finitude. A partir dessa impressão, Nietzsche inverte a posição hegemônica e considera que a decadência poderia estar com a mistagogia socrática.

Não poderia ser precisamente esse socratismo um signo de declínio, do cansaço, da doença, de instintos que se dissolvem anárquicos? É a ‘serenojovialidade grega’ do helenismo posterior, tão-somente, um arrebol do crepúsculo? A vontade epicúria contra o pessimismo, apenas uma precaução do sofredor? E a ciência mesma, a nossa ciência - sim, o que significa em geral, encarada como sintoma da vida, toda a ciência? Para que, pior ainda, de onde - toda a ciência? Como? É a cientificidade talvez apenas um temor e uma escapatória ante o pessimismo? Uma sutil legítima defesa contra - a verdade? E, moralmente falando, algo como covardia e falsidade? E, amoralmente falando, uma astúcia? Ó Sócrates, Sócrates, foi este porventura o teu segredo?, ironista misterioso, foi esta, porventura, a tua - ironia? (NIETZSCHE, 1992b, p. 14, grifo do autor).

A relação com a dor é componente indispensável para o vigor de uma cultura. O tipo predominante de relação com a dor é justamente a espinha dorsal do caráter. O grego antigo se regozijava com a tragédia em um momento histórico no qual a força de seu povo era transbordante e este estado era condição de possibilidade para o desenvolvimento do espírito trágico como elemento de identidade cultural. Se um impulso contrário toma conta dos espíritos e chega a se hegemonizar no imaginário coletivo, será ele um signo de enfraquecimento? Para Nietzsche, Sócrates deu à luz o espírito teórico numa irônica e astuciosa articulação. Seu objetivo teria sido o fomento da obsessão pelo saber absoluto, exatamente em função da covardia que passara a caracterizar a relação do grego com a dor. Como sintoma da vida na cultura, o trágico teria sua origem fisiopsicológica na superabundância de bem-estar, de força vital, de saúde, de vigor do povo grego. O socratismo seria sintoma de características opostas. O desespero diante da finitude seria o motor ressentido do tipo socrático, teórico, científico. Sabe-se quanto vale o amedrontamento para as classes dominantes exercerem controles (ideológicos, políticos, econômicos, culturais) sobre a população em geral, para criarem desejos mercadológicos e para venderem produtos referentes a eles. Amedrontar e enfeitiçar para governar são táticas recorrentes na política14.

Em Nietzsche a tarefa do pensamento deve ser crítica por natureza: suspeitar, desvelar e superar performances que carreguem essas marcas de alienação e conservadorismo.

Referências

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1Na segunda metade do século XIX, enquanto a ciência e a tecnologia passaram por um processo de amplo e acelerado desenvolvimento, o idealismo alemão, corrente filosófica até então hegemônica, passou a enfrentar um esvaziamento epistemológico. À filosofia restou recompor seu estatuto interpretativo e se reposicionar no campo do conhecimento, o que gerou duas perspectivas distintas: o materialismo alemão, cuja elaboração filosófica se caracteriza pela aplicação direta dos resultados obtidos pelas ciências; e o retorno a Kant, como referência de filosofia pensada a partir do diálogo com a ciência (ITAPARICA, 2018).

2 Itaparica (2018) trabalha com as duas categorias seguintes: filósofos cientificamente informados e cientistas filosoficamente informados.

3Em A gaia ciência, Nietzsche teria afirmado que, no século XIX, a ciência ainda não poderia se desvencilhar completamente da religião e da metafísica, de modo que mesmo os estudos naturalistas se encontravam contaminados de transcendentalidade (MIGNONI, 2017).

4Entrevista de Freud a George Sylvester Viereck, intitulada O valor da vida, traduzida para o português por Claudia Rossi. Realizada em 1926 e publicada no livro Glimpses of the Great. No Brasil, a entrevista foi publicada originalmente no livro A Arte da Entrevista: Uma Antologia de 1823 aos Nossos Dias, organizado por Fábio Altman (ROSSI, 1998).

5Entrevista de Freud a George Sylvester Viereck, intitulada O valor da vida, traduzida para o português por Claudia Rossi (1998).

6A tese de que a matéria busca reduzir maximamente a quantidade de dor em favor do prazer teria sido apresentada a Nietzsche pelo físico Johann Karl Friedrich Zoellner, em A natureza dos cometas, de 1871. Zoellner defendia que centros emotivos sensíveis ao ritmo seriam constitutivos da matéria, o que confirmava a filosofia da música de Schopenhauer. Também de acordo com a filosofia schopenhaueriana, Zoellner teria sido precursor ao estabelecer uma função para os raciocínios inconscientes na pesquisa sobre as condições de possibilidade do conhecimento (ANDLER, 2016; FREZZATTI JUNIOR, 2001; 2007).

7Conectar uma pré-história hipotética à história recente é um traço distintivo da perspectiva genealógica em Nietzsche (GIACOIA JUNIOR, 2001).

8Interpretação defendida pelo Prof. Dr. Jorge Viesenteiner (Departamento de Filosofia e Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo), durante exposição on-line no grupo de pesquisa Crítica e subjetividade, no segundo semestre de 2020 (durante o primeiro ano da pandemia de Covid-19). Pela riquíssima oportunidade acadêmica, cabem aqui nossos sinceros agradecimentos ao professor.

9A articulação entre ordem epistemológica e ordem moral ou o estabelecimento das condições de possibilidade morais da ciência se realiza pela reação entre vontade de verdade e vontade de potência. A vontade de verdade, que é a crença de que nada é mais necessário do que o verdadeiro, de que o verdadeiro é superior ao falso, de que a verdade é um valor superior - crença que funda a ciência e constitui a essência da moral e da metafísica - é a expressão de uma vontade negativa de potência. Se a ciência não se opõe ao niilismo moral e deve mesmo ser considerada sua forma mais recente e mais bem elaborada é porque a vontade de verdade que a caracteriza se encontra no âmago do ideal ascético (MACHADO, 1999).

10Enquanto gênero literário, a tragédia nasceu em Atenas, no início do século V a. C. As encenações se davam durante as festas primaveris de celebração do nascimento e morte do deus Dionísio, entre março e abril. Na ocasião, tragediógrafos e comediógrafos disputavam uma premiação (ZILBERMAN, 2001).

11Clademir Luís Araldi (2015) comenta que a proximidade entre David Hume e Friedrich Nietzsche é enfatizada por Craig Beam (BEAM, 1996 apudARALDI, 2015), para quem ambos se caracterizam como filósofos da natureza humana.

12A metafísica de artista é transformada na obra madura de Nietzsche em fisiologia da arte, circunscrita na investigação sobre a relação entre condições pulsionais e criação de obras de arte. Frezzatti Junior acredita que a Genealogia da moral, O caso Wagner, O anticristo, O problema de Sócrates e Considerações de um extemporâneo (capítulos de Crepúsculo dos ídolos) são aplicações do critério fisiopsicológico de Nietzsche. Para o comentador, o procedimento genealógico deriva do § 23 de Além de bem e mal (JUNGES, 2019).

13Consideramos este postulado também útil para se pensar sobre a crítica ao domínio mercadológico da ciência no sistema capitalista. A partir de Nietzsche, entende-se que o mercado não deve valer como causa final de toda a ciência, mas sim o florescimento da vida. O problema a se superar, portanto, é a regência ideológica exercida pelo mercado sobre a cultura e não a prática científica. Neste caso, “trocar alhos por bugalhos” pode levar a um negacionismo ingênuo e logicamente desencontrado.

14Conforme já registrado neste trabalho, Nietzsche (2000) destaca os impactos da ciência sobre a política quando afirma que a adesão a explicações científicas precipitadas causa desastres no campo político.

Recebido: 18 de Março de 2022; Aceito: 17 de Maio de 2022

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