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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.36 no.76 Uberlândia ene./apr 2022  Epub 29-Ene-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v36n76a2022-59150 

Artigos

“Sábios segundo a carne”: a crítica de Olavo de Carvalho aos intelectuais públicos

“Wise according to the flesh”: Olavo de Carvalho’s criticism to public intellectuals

“Sabios según la carne”: la crítica de Olavo de Carvalho a los intelectuales públicos

*Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor na Universidade Federal de Rondônia (UNIR). E-mail: lenodanner@unir.br

**Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor na Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR). E-mail: fernando.danner@gmail.com


Resumo

Reconstruiremos a crítica de Olavo de Carvalho à modernidade, à ciência e aos intelectuais públicos, a partir da sua proposta (a) de um dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico sob a forma de autoexclusão de espírito e matéria enquanto representando o drama humano ante o universo e a eternidade, e (b) de uma perspectiva metodológica dinamizada como intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado, o qual, como postura anti-estrutural e antissistêmica, capacitaria cada indivíduo humano, independentemente de mediações institucionalistas, cientificistas e tecnicistas, a acessar diretamente a Verdade absoluta e a compreender de si por si mesmo a objetividade do mundo e do homem. Em continuidade, explicitaremos exatamente essa correlação, feita por Olavo de Carvalho, entre modernidade, materialismo, ceticismo, relativismo e ideologia, que descamba para uma ciência positivista-perspectivista incapaz de produzir conhecimento objetivo e de gerar princípios e justificação racionais, para o horizonte da história como espaço do ceticismo e do relativismo, para o instrumento da política enquanto dinamizado por ideologias coletivistas e, finalmente, para a ação institucional-social intersubjetiva enquanto anulando o indivíduo. A modernidade como negação da ontoteologia e centralidade de materialismo, ceticismo, relativismo e ideologia, instaura os dois grandes macrossujeitos totalitários hodiernos, conforme Olavo de Carvalho: a academia e o partido de massas.

Palavras-Chave: Olavo de Carvalho; Modernidade; Intelectuais Públicos; Materialismo; Ideologia

Abstract

We intend to reconstruct the Olavo de Carvalho’s criticism to modernity, science and public intellectuals, from his proposal of (a) a ontological-anthropological dualism-manichaeism as mutual exclusion between spirit and matter as representing the human drama before universe and eternity, as well as (b) through a methodological perspective streamlined as personalist, privatized, spiritualist and interiorized intuitionism, which, as an anti-structural and anti-systemic posture, would able each individual, independently of institutionalist, scientist and technicist mediations, to directly access the absolute Truth, and to comprehend from himself and by himself the objectivity of world and man. From this, we will explicit exactly this correlation, constructed by Olavo de Carvalho, of modernity, materialism, skepticism, relativism and ideology, which leads to a positivist-perspectivist science unable to produce objective knowledge and to generate rational principles and justification, to the horizon of history as sphere of skepticism and relativism, to the instrument of politics as streamlined by collectivist ideologies, and finally to the institutional-social intersubjective action as annulling the individual. Now, modernity as negation of ontotheology and the centrality of materialism, skepticism, relativism and ideology institutes the two main totalitarian macro-subjects of our time, according to Olavo de Carvalho: academy and mass party.

Key-Words: Olavo de Carvalho; Modernity; Public Intellectuals; Materialism; Ideology

Resumen

Proponemos reconstruir la crítica de Olavo de Carvalho a la modernidad, la ciencia y los intelectuales públicos, a partir de su propuesta (a) de un dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico en forma de autoexclusión entre espíritu y materia como representación del drama humano ante el universo y la eternidad, así como (b) de una perspectiva metodológica dinamizada como intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado, que, como postura antiestructural y antisistémica, permitiría a cada individuo humano, independientemente de las mediaciones institucionalistas, científicas y técnicas, acceder directamente a la Verdad absoluta y comprender por sí mismo la objetividad del mundo y del hombre. En continuidad, trataremos de explicar exactamente esta correlación, hecha por Olavo de Carvalho, entre modernidad, materialismo, escepticismo, relativismo e ideología, que conduce a una ciencia positivista-perspectivista incapaz de producir conocimiento objetivo y generar principios y justificación racionales, para el horizonte de la historia como espacio de escepticismo y relativismo, para el instrumento de la política dinamizado por ideologías colectivistas y, finalmente, para la acción institucional-social intersubjetiva como anuladora del individuo. Ahora bien, la modernidad como negación de la ontoteología y centralidad del materialismo, el escepticismo, el relativismo y la ideología, establece los dos grandes macro-sujetos totalitarios de nuestro tiempo, según Olavo de Carvalho: la academia y el partido de masas.

Palabras-Clave: Olavo de Carvalho; Modernidad; Intelectuales Públicos; Materialismo; Ideología

Considerações iniciais

Olavo de Carvalho é, no Brasil de hoje, uma unanimidade teórico-política no que se refere a uma postura que vamos definir genericamente, para este momento, como extrema-direita e, de modo muito específico para o nosso artigo, em termos de uma perspectiva radical de crítica e de contraposição à modernidade, à ciência e aos intelectuais públicos. É uma unanimidade tanto entre os que o apreciam (não é nosso caso) quanto relativamente àqueles que o detratam e o combatem. Reconhecendo que muitos críticos de Olavo de Carvalho simplesmente não leram seus trabalhos ou se dignaram a efetivamente analisar suas premissas teóricas e, antes de tudo, percebendo sua força político-cultural no contexto dos adeptos do bolsonarismo hoje hegemônico, nos decidimos a fazer uma pesquisa sólida de seu trabalho. Acreditamos, no que diz respeito a isso, talvez até mais do que o próprio Olavo de Carvalho - já que temos dúvidas de se ele efetivamente leu, e de se leu detidamente e com honestidade intelectual aos teóricos que critica em seus trabalhos -, na necessidade de uma consideração e de uma avaliação intelectuais sérias, o que significa, em primeira mão, reconhecer o “adversário” como um interlocutor que merece ser lido, entendido e, então sim, criticado. Ademais, como mencionamos acima, a importância de suas ideias e de seus posicionamentos públicos, seja do âmbito da extrema direta de um modo geral, seja no contexto do bolsonarismo em particular, faz necessária a intervenção teórica disso que ele chama genérica e simplificadamente de intelectual coletivo, de esquerda e de marxismo cultural - e de modo mais pungente de imbecil coletivo. Ignorar o debate, a reconstrução de ideias e, com isso, a crítica aguda a suas posições é um erro crasso, questão que ele simplesmente não negligenciou contra seus adversários - embora, como demonstraremos ao longo do tempo, falsificou e deturpou poderosamente as posições destes.

Dito isto, abordaremos a sua crítica à modernidade, à ciência e aos intelectuais públicos, a partir de uma reconstrução teórica dinamizada em dois passos, a qual tem por foco a obra O imbecil coletivo: atualidades inculturais brasileiras, trabalho esse que resume o pensamento e a militância públicos de Olavo de Carvalho. Primeiramente, explicitaremos de modo sistemático - já que, mais uma vez, essa não é uma boa qualidade de Olavo de Carvalho - o sentido de sua crítica à modernidade iluminista, materialista, cética, relativista e ideológica, bem como, em consequência, à ciência moderna (como um todo) enquanto postura positivista-perspectivista e aos intelectuais públicos (como um todo) como retóricos e ideólogos que, ao recusarem a possibilidade do conhecimento objetivo, o qual depende de modo fundamental de uma retomada da ontoteologia (como determinação biológico-religiosa da antropologia-cultura-normatividade, como precedência de uma fundamentação essencialista e naturalizada com caráter pré-político, pré-cultural e a-histórico sobre exatamente a política, a cultura e a história), perdem seja a capacidade de uma discussão e de uma justificação racionais das suas teorias, seja os escrúpulos morais no âmbito da práxis política. É assim que, sem a escora ontoteológica como centralidade do espírito e como determinação religioso-biológica da antropologia-cultura-normatividade, a modernidade, a ciência e os intelectuais simplesmente assumem a ideologia como falsa representação da realidade e a utilizam como base tanto de sua supremacia em relação aos meros mortais sem título acadêmico quanto em termos de fomento de uma perspectiva coletivista, estatista e clientelista que anula a individualidade - assim como, por causa de sua base materialista e anti-espiritualista, já havia destruído o âmbito e os dons do espírito.

Em segundo lugar, reconstruiremos sinteticamente a teoria de Olavo de Carvalho, que embasa e dinamiza sua crítica à modernidade, à ciência e aos intelectuais. Nós a definiremos, já que ele não o faz, como uma correlação de dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico como autoexclusão entre espírito e matéria, o qual procura interpretar o, nas palavras de Olavo de Carvalho, drama humano ante o universo e a eternidade, e de intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado enquanto significando o método - anti-institucional, anti-estrutural e antissistêmico - proposto por este autor para que o indivíduo possa, ser o auxílio da ciência, da academia, da política, das instituições e de qualquer noção estrutural, intersubjetiva e macro, acessar a Verdade absoluta, resolver o problema da existência humana e entrar em contato e em unidade diretos com Deus mediante exatamente sua interiorização espiritual e desde esse intuicionismo personalista e privatista. O resultado da análise é um tanto decepcionante no que tange à coerência teórica, à força das suas premissas, à solidez de suas conclusões e mesmo no que se refere à honestidade intelectual do autor, de modo que procuraremos, nas considerações finais, tecer algumas críticas que, nosso modo de entender, denotam a fraqueza e a incoerência das ideias olavistas e que, de nossa parte, recolocam a modernidade, a ciência e os intelectuais como esfera, instituição e sujeitos estruturantes - embora não suficientes e nem autossuficientes, por óbvio - de uma democracia universalista e pluralista constituída como Estado democrático de direito, inclusive em termos de constituição de um universalismo anticolonial, antifascista, antitotalitário, antirracista e não-fundamentalista. No mesmo diapasão, a análise das ideias de Olavo de Carvalho e de sua ramificação prático-política em termos de bolsonarismo nos mostra que, de fato, há um processo regressivo cada vez mais pungente em curso, cujo cerne consiste no ataque à modernidade como um todo, o qual precisamos levar muito a sério, em primeiro lugar teoricamente.

“Sábios segundo a carne”: intelectuais públicos e o descaminho da modernidade

Uma das características fundamentais do pensamento de Olavo de Carvalho, tal como ele se expressa em suas obras teóricas e em seus posicionamentos públicos, consiste exatamente na crítica acerba e pungente aos intelectuais públicos, os quais representam, para ele, o problema mais grave para a consolidação de uma sociedade estabilizada, entendendo-se estabilização, nesse caso, seja como oferta de uma perspectiva solidamente objetiva em termos epistemológico-morais, seja, como consequência, a promoção de ideais superiores de uma cultura universal contra o relativismo moderno, seja, finalmente, questões mais pontuais como a promoção do patriotismo, da família e do homem de bem e chegando-se até a proteção da infância contra a degeneração moral e em favor da autoridade paterna. Essa crítica olavista é tão direta à intelligentsia como a culpada por todos os males sociais - o que também equivale a dizer que a modernidade é culpada por todos os males enfrentados hoje, conforme veremos mais adiante - que ele inclusive cunhou um termo para definir ao modelo de intelectual público moderno e, por conseguinte, para enquadrar o seu contexto de emergência e de dinamização, a modernidade iluminista: Olavo de Carvalho sintetiza o sentido e a orientação teórico-políticos dos intelectuais públicos pelo conceito de imbecil coletivo, querendo significar, com isso, a reunião, em um só bloco, de materialismo, ceticismo, relativismo e ideologia, de centralidade do grupo, das instituições, das estruturas sociais e do processo de socialização em relação ao indivíduo, do fato positivo e da análise social em relação ao intuicionismo privatista, personalista e espiritualista, da primazia da história e da política em relação ao contato direto entre homem (desde uma perspectiva de interiorização) e Deus, auxiliado pela Revelação e pela graça.

O imbecil coletivo, portanto, reúne todas aquelas posições teórico-políticas que conferem primazia ontogenética e determinação prático-política à socialização, às estruturas sociais, à ação macropolítica e ao papel organizador das instituições públicas, retirando o protagonismo individual e, não raro, apagando esse mesmo indivíduo como cerne da existência e como o próprio artífice de si mesmo (meritocracia), como aquele que descobre por si mesmo e desde si mesmo (em termos de interiorização intuicionista e espiritualista) a Verdade absoluta, o seu lugar no universo e na eternidade. No mesmo diapasão, o imbecil coletivo ensaca todas as posições filosófico-sociológicas que afirmam que o processo de subjetivação é dinamizado - Olavo de Carvalho usa o termo determinado - por uma perspectiva intersubjetiva, relacional e institucional (pensemos, aqui, nos conceitos de infraestrutura e superestrutura, de Karl Marx; de estrutura básica da sociedade, de John Rawls; de sistemas sociais, de Jürgen Habermas e de Anthony Giddens, a título de exemplo), situação que, para ele, implica na negação do indivíduo e de seu protagonismo e que leva à centralidade da massa, do partido, do sistema, da ação política, da intersubjetividade. Ademais, o imbecil coletivo abarca todas as posições filosófico-normativas que supostamente deslegitimam o conhecimento objetivo e, portanto, uma noção forte de universalidade epistemológico-moral e, ainda assim, acreditam na possibilidade de uma discussão, de uma justificação e de uma ação racionais desde um núcleo relativista. Nesse sentido, para Olavo de Carvalho, o conhecimento objetivo - como intersecção de uma base ontoteológica revelada e espiritualista e desde a determinação religioso-biológica da antropologia-cultura-normatividade - é a única condição estruturante capaz de viabilizar racionalidade-objetividade, o que mostra que, para ele, a modernidade iluminista, por causa (conforme Olavo de Carvalho, obviamente) de seu materialismo, relativismo e ateísmo-ceticismo, se torna incapaz de garantir racionalidade teórico-prática, descambando diretamente para a ideologia e gerando seja a degeneração moral, seja, finalmente, o totalitarismo e o genocídio (cf.: CARVALHO, 2018, p. 17-39). Ora, a crítica de Olavo de Carvalho em relação à modernidade e, por extensão, à ciência e aos intelectuais públicos começa exatamente pela acusação de que, ao assumirem o relativismo epistemológico-moral e, com isso, ao recusarem a possibilidade de conhecimento objetivo, essa mesma modernidade, essa mesma ciência e esses mesmos intelectuais públicos, que falam a partir daquela, em nome daquela, simplesmente perderam qualquer critério racional e moral para produzir e vincular intersubjetivamente conceitos, normas, práticas e valores. Ele diz:

Agora, a discussão sobre o relativismo impinge ao público inculto ou semiculto uma visão ainda mais seletiva e deformante das alternativas em jogo, dando a impressão de que o relativismo é a conclusão quase inevitável do desenvolvimento científico e de que, contra ele, a humanidade só tem duas opções cabíveis: apegar-se aos universais formais do positivismo científico ou ‘criar universais’ pela padronização das crenças coletivas. Em suma, só há três filosofias: o relativismo cético, o relativismo científico e o relativismo “politicamente correto”. O primeiro destrói todo conhecimento, ao negar os universais. O segundo procura os universais, informando, para alívio do relativista cético (e não sem íntima satisfação), que ainda não encontrou nenhum. O terceiro diz que é preciso “criar” universais pela persuasão e pela atividade política, o que é o mesmo que reduzi-los a mentiras socialmente úteis. Todas as alternativas são reunidas sob o rótulo de “dogmatismo” e rejeitadas como um passado longínquo, fora do raio de visão da plateia (CARVALHO, 2018, p. 54)1.

Olavo de Carvalho não menciona isso de modo explícito (é possível que não tenha compreendido completamente), mas, ao falar do relativismo - seu exemplo básico de relativista é o pragmatismo de Richard Rorty - muito provavelmente esteja querendo se referir a uma premissa fundamental própria às ciências humanas e sociais e, por conseguinte, à filosofia contemporâneas, a saber: de que a biologia-religião não justifica antropologia-cultura-normatividade ou, por outras palavras, de que não é mais possível recorrermos a uma base pré-política, pré-cultural e a-histórica (a Revelação, a natureza, a comunidade étnico-religioso-moral, a raça-genética, a correlação de corpo como aparelho fisiológico e de gênero como autocompreensão simbólico-normativa) enquanto fundamento da política, da cultura, da história, da linguagem, da intersubjetividade - é por isso, aliás, que, na filosofia contemporânea, a biologia-religião é substituída pela autorreferencialidade da cultura, da linguagem, da história, da sociabilidade! Ora, a consequência do processo de modernidade-modernização ocidental, sob a forma de racionalização das imagens metafísico-teológicas de mundo e em termos de emergência e consolidação da diferença, da alteridade, do multiculturalismo, do pluralismo, da diversidade, do/a Outro/a, é exatamente a centralidade de uma perspectiva de desnaturalização, historicização e politização da sociedade-cultura-consciência: essa é a grande tônica dos discursos filosóficos, sociológicos e antropológicos da modernidade-modernização ocidental e, para autores como John Rawls, Richard Rorty, Jürgen Habermas, Axel Honneth e Rainer Forst, é somente por essa condição de pluralização, diferenciação, heterogeneidade e complexidade sociopolíticas e epistemológico-normativas, dinamizadas por meio da racionalização sociocultural, que efetivamente temos um incremento e um estímulo radicalizados da justificação e da ação racionais: quanto mais desnaturalização, historicização e politização da sociedade-cultura-consciência, mais a justificação racional se faz necessária, seja para a construção da objetividade epistemológico-moral, uma vez que ela não é autoevidente e intuitiva, uma vez que não a acessamos diretamente, seja para sua aplicação intersubjetiva, porque, afinal, estamos tratando de vidas humanas plurais e sempre frágeis, o que exige não apenas a capacidade de ampliação da representação, da inclusão e da integração de todos/as e para com todos/as no círculo moral agora alargado, mas também a prática da moderação, da sensibilidade e do refreamento institucionais, necessitando-se cada vez mais de mediações epistêmicas e normativas estruturantes para se dar conta dessa heterogeneidade e dessas complexidade - o que significa, por exemplo, que o poder político democrático institucionalizado já não pode mais ser aplicado diretamente, mas tão só indiretamente, por meio de mediações jurídicas (separação e sobreposição entre poderes, primazia do direito em relação à política e à moral, necessidade de tradução da política e da moral ao direito, universalidade dos direitos e das garantias fundamentais, devido processo legal, esfera pública aberta etc.). No mesmo diapasão, a desnaturalização, a historicização e a politização da sociedade-cultura-consciência - que leva exatamente a esse processo de pluralização, diferenciação, heterogeneidade e complexidade sociopolíticas - implica na perda de obviedade das tradições herdadas e dos poderes intersubjetivamente vinculantes, os quais precisam ser reflexivizados e, quando for o caso, corrigidos ou abandonados por outros melhores. A perda da justificação biológico-religiosa da antropologia/cultura-normatividade exige mais, e não menos, reflexividade e compromisso com a racionalidade; exige mais, e não menos, universalidade; exige mais, e não menos, intersubjetividade vinculante (daí, por exemplo, a primazia do direito sobre a política e a moral, a centralidade do devido processo legal, a universalidade dos direitos e das garantias fundamentais e da segurança, da simetria, da isonomia e da horizontalidade jurídicas no que se refere ao âmbito institucional e social democrático) (cf.: HABERMAS, 2012a, p. 139-249; HABERMAS, 2012b, p. 87-202; RAWLS, 2000, p. 262-306; HONNETH, 2003, p. 265-280; FORST, 2010, p. 334-345; RORTY, 1994, p. 351-386).

Note-se, entretanto, na passagem acima, que há, por Olavo de Carvalho, um falseamento da discussão em torno à justificação pós-tradicional ou pós-metafísica, a qual, para este autor, não coloca mais alternativas (e, certamente, alternativas mais grandiosas, sublimes e universais) ao sujeito epistemológico-moral que não a aceitação do positivismo, isto é, do materialismo bruto e necessitarista, da redução de todos os fenômenos próprios ao mundo e o homem como fatos empíricos (centralizados e monopolizados pela comunidade científica situada verticalmente em relação ao homem comum, daí a acusação de ditadura dos intelectuais, conforme Olavo de Carvalho, posto que somente ela, por meio do método científico, diz o que é fato e o que não é fato, legitima o que é e o que não é conhecimento), ou a criação supostamente ex nihilo e arbitrária da universalidade, o que simplesmente, no caso de Olavo de Carvalho, desconsidera seja a autorreferencialidade da cultura, da história, da linguagem e da sociabilidade, seja a sempre necessária contextualização antropológico-normativa, seja, finalmente, a impossibilidade de se apagar as tradições herdadas e, assim, o sem sentido de se partir de um estado puro de indefinição, de um novo começo à revelia de todas essas tradições herdadas. Em um contexto de linguagem pública e de ilusão da linguagem privada pura e totalmente particular, não há outra alternativa a não ser partir-se do contexto e assumi-lo como um critério autorreferencial, autossuficiente e autossubsistente enquanto ponto de partida de sua compreensão, de seu enquadramento e de sua legitimação. De todo modo, é importante salientar-se que essa centralidade do contexto cultural, linguístico, histórico, social e político implica nisso que as teorias da modernidade chamarão de diferenciação das esferas de valor e, portanto, na separação das disciplinas científicas em campos e com metodologias de abordagem muito próprias: o juízo epistemológico-cognitivo enquanto específico às ciências naturais e exatas; o juízo político-normativo enquanto específico às ciências humanas e sociais; e o juízo de gosto enquanto próprio da esfera artístico-cultural - todas dinamizadas por uma perspectiva falibilista que, como estamos enfatizando, pungencia a discussão e a legitimação racionais e que implica em sensibilidade, moderação e reformulação permanentes da produção científica, em suas múltiplas áreas, e de sua vinculação institucional-social (cf.: HABERMAS, 2002a, p. 01-25; HABERMAS, 2002b, p. 07-53). Note-se que, ao contrário disso, Olavo de Carvalho assume que, na medida em que se trata de uma, por assim dizer, construção social da realidade (a qual, como ressaltamos acima, não se dá ex nihilo e arbitrariamente) que perde qualquer parâmetro objetivo, qualquer senso de racionalidade e qualquer moderação política, o relativismo leva exatamente à produção da “objetividade” como mentiras socialmente úteis, através de uma atividade científico-intelectual que, na verdade, é persuasão política pura e simplesmente. Ora, o fim da perspectiva ontoteológica (de modo específico, a determinação religioso-biológica da antropologia-cultura-normatividade, a fundamentação pré-política, pré-cultural e a-histórica da política, da cultura e da história), ao levar à impossibilidade e, no limite, à recusa do conhecimento objetivo por parte da academia, faz os intelectuais perderem não apenas a capacidade de uma discussão e de uma justificação racionais sobre a objetividade cognitiva, mas também o compromisso moral com o público de um modo mais geral: além de falsos profetas, se tornam manipuladores das mentes e dos corações alheios. Olavo nos diz, ao se referir ao relativismo epistemológico-moral da academia:

Uma dessas semelhanças, a mais significativa, é a negação do conhecimento objetivo e a consequente redução da atividade intelectual à propaganda e à manipulação das consciências. Tanto Gramsci quanto Rorty negam que o conhecimento humano possa descrever o real, e declaram que a única finalidade dos nossos esforços culturais e científicos é expressar desejos coletivos. Para um e para outro, não há conceitos universais, nem juízos universais válidos, mas pode-se “criar” universais pela propaganda, fazendo todas as pessoas compartilharem das mesmas crenças, ou melhor, das mesmas ilusões. A função da intelectualidade é, portanto, gerar essas ilusões e, como diz Rorty, “inculcá-las gradualmente” na cabeça do povo. Eles divergem somente quanto à identidade do intelectual: para Rorty, ele se constitui na comunidade acadêmica; para Gramsci, é o Partido ou o “intelectual coletivo” (CARVALHO, 2018, p. 67).

Note-se, na passagem, que, conforme reflexão de Olavo de Carvalho, a negação do conhecimento objetivo subverte completamente a atividade intelectual, que se transforma em propaganda barata e em manipulação das consciências: ao perder a referência objetiva à realidade, isto é, essa base religioso-biológica da antropologia-cultura-normatividade, a academia, a ciência e os intelectuais perdem também os escrúpulos morais que somente adviriam daquela perspectiva pré-política, pré-cultural e a-histórica, tornando-se em charlatães da objetividade epistemológico-moral e em manipuladores da vontade alheia, especialmente do homem comum, deslegitimado em sua capacidade individual de acessar a verdade de si e do mundo, subjugado pelas instituições e pelas estruturas sociais. Nessa passagem, ademais, aparece outro elemento fundamental para entendermos a cruzada olavista contra a modernidade, a ciência e os intelectuais públicos e, nesse sentido, em termos seja de promoção do indivíduo frente ao coletivo, seja de crítica às teorias sociais que conferem primazia exatamente às estruturas sociais, à intersubjetividade e à relacionalidade vinculantes, às instituições e aos processos macro no que se refere à constituição das práticas, dos símbolos, dos valores e, do fim das contas, do próprio indivíduo. A ciência moderna indistintamente e em bloco, na medida em que é relativista, isto é, na medida em que recusa a determinação religioso-biológica da antropologia-cultura-normatividade e assume a autorreferencialidade, a autossuficiência e a autossubsistência da cultura, da sociedade, da linguagem, da história, da sociabilidade, da política, da intersubjetividade, promove o apagamento do indivíduo e de sua autonomia, conferindo centralidade absoluta às estruturas sociais, às dinâmicas institucionais e aos macrossujeitos políticos. É daqui, aliás, que emerge, como grande consequência da modernidade materialista e relativista, o intelectual coletivo (ou, o que é o mesmo, o imbecil coletivo) que, ao afirmar essa construção social da realidade (que já não existe mais de modo anterior à sociedade, à cultura, à história, à linguagem, à intersubjetividade etc.), assume que a única coisa que conta são essas estruturas sociais, essas dinâmicas institucionais e esses macrossujeitos políticos e, assim, que os coloca como chave explicativa e legitimatória de toda e qualquer crença e ação possíveis, seja por parte das instituições, seja por parte dos indivíduos. Ora, o intelectual coletivo, na medida em que recusa a possibilidade de descrição da realidade essencialista e naturalizada (determinação biológico-religiosa da antropologia-cultura-normatividade), concebendo-a meramente como uma construção social autorreferencial, autossuficiente e autossubsistente, na medida, inclusive, em que perde, com a recusa dessa base pré-política, pré-cultural e a-histórica, quaisquer escrúpulos e compromissos morais, estabelece a propaganda como o instrumento de criação da objetividade e transforma-se em sujeito produtor e inculcador de ilusões (mais uma vez por meio da propaganda) na cabeça do povão. É assim, aliás, que o intelectual coletivo se ramifica em academia e em partido revolucionário. Ora, esse intelectual coletivo é demarcado exatamente pela ausência de critérios racionais para a justificação, produção, discussão e vinculação públicas da objetividade epistemológico-moral e, portanto, como quer Olavo de Carvalho, é um promotor da dóxa dourada com a pílula do “saber científico”, isto é, daquilo que a comunidade científica estabelece no grito como supostamente saber científico, o qual, além de ser validado no grito (sem qualquer critério racional), também reflete apenas vontade da maioria, tendências coletivas passageiras e modistas nada universais e fundamentalmente ideológicas (isto é, falsas):

A ideia do “intelectual coletivo” tem uma origem das mais comprometedoras. Nasceu nos clubes, assembleias e salões literários onde se gerou a Revolução Francesa - na ‘Repúblicas das Letras’. Foi ali que pela primeira vez a intelectualidade moderna sentiu a força da sua união e se sagrou rainha sob o título de “opinião pública”. De fato, esse termo não designava a opinião das massas, mas o sentimento comum das elites letradas. O característico desses clubes, que os diferenciava, por um lado, das sociedades científicas como hoje as conhecemos e, por outro, dos centros de debates da universidade medieval, era a completa ausência de critérios racionais para a validação dos argumentos: era o império da “opinião” - no sentido grego da dóxa ou pura crença. Questões teóricas de gnosiologia, de metafísica, de economia e mesmo de ciências naturais eram ali decididas no grito, segundo as preferências da maioria. A doutrina verdadeira não era a que coincidisse com a realidade, mas a que melhor expressasse as aspirações do coletivo, na linguagem mais lisonjeira às paixões do momento. Passado o vendaval da revolução, as instituições científicas e universitárias da burguesia vencedora trataram, obviamente, de não se organizar segundo o exemplo das sociedades revolucionárias, mas segundo os moldes consagrados da universidade medieval e dos círculos científicos do Renascimento. A ‘República das Letras’, todos sabiam, servira para agitar as massas, mas não poderia servir para produzir conhecimento. Não é de estranhar, portanto, que o modelo da sociedade de debates revolucionários tenha sido encampado, em seguida, pelos excluídos da nova ordem: pela intelectualidade socialista (CARVALHO, 2018, p. 68-69).

A modernidade, nesse sentido, é demarcada pela ausência de critérios racionais para a produção, legitimação e implementação do conhecimento objetivo, o qual passa a ser somente ideologia, opinião dourada com a pílula da cientificidade e imposta no grito - na falta de uma base ontoteológica para a fundação da objetividade epistemológico-moral, tem-se a ausência de critérios racionais garantidores de uma justificação não-contraditória e de uma ação normativa escorreita, restando apenas a manipulação, a propaganda, o grito. Essa perspectiva ideológica, enquanto resultado da atuação da ciência moderna, tem por consequência a consolidação do intelectual coletivo, e isso tanto no que diz respeito à centralidade das doutrinas coletivistas, adequadas às massas e direcionadas aos modismos do momento, passando pela afirmação, como dizíamos acima, da centralidade dos processos de socialização, das estruturas sociais, das instituições públicas e dos macrossujeitos políticos frente ao indivíduo de carne e osso (e, em geral, anulando-o, massificando-o, instrumentalizando-o), quanto do sentido profundamente militante - e, mais uma vez, diretamente ideológico - dessa mesma ciência e dos intelectuais públicos, com o que a academia e o partido revolucionário se transformam nos dois grandes e imbricados macrossujeitos hegemônicos dessa modernidade iluminista, sobrepostos aos meros mortais e deturpando exatamente essa base ontoteológica com caráter universalista que tradicionalmente embasou o grande ideal de uma civilização ocidental universalista e de alta cultura na correlação de tradição judaico-cristã, metafísica greco-latino-medieval e cultura renascentista. Ora, para Olavo de Carvalho, o resultado dessa centralidade do fato empírico, contra a base ontoteológica da tradição judaico-cristã e greco-latino-medieval, é a consolidação das teorias coletivistas enquanto chave analítica interpretadora da natureza e legitimadora da cultura e, nesse sentido, a sua consequência é a ditadura da academia ou dos intelectuais públicos, do partido comunista-socialista e das ideologias políticas totalitárias. Como vimos acima, ao abandonarem a ontoteologia e, assim, a objetividade e a universalidade do mundo e do homem, a ciência moderna e os intelectuais públicos abandonam também o conteúdo moral substantivo que vinha como prêmio por essa determinação religioso-biológica da antropologia-cultura-normatividade, aferrando-se a uma militância prática que permitia e que permite, de um só golpe, sua hegemonia social e a massificação completa de todos aqueles que estavam e estão fora dessa fronteira constituída pela academia e pelos seus charlatães, os intelectuais. É exatamente por isso que, no bojo da modernidade iluminista e em termos da ciência e dos intelectuais públicos dali dinamizados, não há qualquer possibilidade de discussão racional, de modo que passa a imperar a retórica política, a persuasão psicológica e a chantagem das massas por meio da “ciência” agora transformada em ideologia. Ele diz:

Nessa atmosfera, a discussão racional torna-se impossível: o consenso forma-se por ondas de sentimentos que confusamente se agitam no ar e produzem breves calafrios na epiderme. As crenças moldam-se e dissolvem-se em uma atmosfera impressionista, como manchas móveis de tinta em um papel molhado. É o tempo da retórica, da persuasão psicológica, da vaga chantagem camuflada que toma o lugar da argumentação. E, enfim, o estado de fato reclama sua elevação ao status de norma e lei: surgem os Böhm, os Feyerabend, os Kuhn, os Rorty, que advogam a legitimidade do argumento retórico, do apelo emotivo e até mesmo da influência subliminar como meios de prova científica. A noção de ‘veracidade’ - que a primeira geração de proletários já reduzira a um formalismo convencional, esvaziando-a de sua substância ontológica - esfuma-se por completo e enfim é negada ostensivamente. As ideias conquistam adeptos por contágio afetivo; e, uma vez dominantes, já não precisam sequer ostentar a pretensão de veracidade. Possuem argumento melhor: a força do número, que espalha nas almas dos recalcitrantes o temor do isolamento, vagamente identificado com a miséria e a loucura. Por baixo da adesão festiva às novas modas intelectuais, range soturnamente a máquina persuasiva do terror psicológico (CARVALHO, 2018, p. 71).

Uma ciência agora transformada em ideologia e uma postura intelectual agora subsumida em propaganda falsificada e massificadora não convence mais pela razão, não busca mais o esclarecimento das consciências, mas simplesmente a manipulação das paixões do momento - é uma dinâmica de epiderme, nunca de vinculação essencial, espiritual. Perde-se, com isso, até mesmo a pretensão de veracidade, de aproximação de nossos juízos cognitivos-morais com uma realidade objetiva pressuposta ou imaginada, de modo que a ciência e os intelectuais se aceitam e se assumem efetivamente como persuasão retórica barata e como fenômenos de massa para os quais a absoluta determinação social da consciência e, assim, o coletivismo político-moral radicalizado são os dois princípios estruturantes - não por acaso, como Olavo de Carvalho nos disse acima, o resultado do materialismo moderno e da sua recusa da ontoteologia é exatamente essa correlação de academia e partido político, desde a centralidade das ideologias de massa, o que leva, como veremos no próximo capítulo, aos regimes totalitários vivenciados desde a Revolução Francesa (esta, na verdade, como o primeiro - mas não o último - regime ideológico e totalitário gerado pela modernidade iluminista) até nós. Nesse sentido, aparece uma das conclusões mais importantes da posição de Olavo de Carvalho em relação à tríade modernidade iluminista, ciência e intelectuais públicos, a saber, a de que a modernidade iluminista como materialismo é ideologia, de que a ciência moderna, calcada no materialismo, é retórica ou ideologia “científica” e de que, por consequência, os intelectuais públicos são basicamente retóricos ou ideólogos que se utilizam do suposto marketing científico e institucional para promover o coletivismo, deturpar a herança da ontoteologia e anular o indivíduo de carne e osso. Olavo diz:

[...] o poder da ciência sobre a sociedade não advém do conteúdo cognitivo do saber científico, e sim da ideologia científica, que é pura retórica. Quem elevou a classe dos técnicos e cientistas ao estatuto de uma casta sacerdotal não foi nem a física de Einstein, nem a genética de Mendel, nem qualquer teoria científica, mas a retórica iluminista e, depois, positivista. Os homens que criaram o poder científico - Voltaire, Condorcet, Comte, Renan - não eram cientistas nem mesmo em um sentido aproximativo do termo, mas comunicadores, homens de marketing [...]. A noção mesma de “intelectual” no sentido moderno é sobretudo a de um retórico - um agitador de ideias, que nada descobre ou cria por si, mas faz um barulho imenso e põe em movimento a máquina da História. O tipo, todo mundo sabe, é inaugurado por Voltaire. À testa de todas as correntes de opinião que agitam o mundo há duzentos anos não se encontra nunca um verdadeiro homem de ciência, um filósofo no sentido clássico do termo, um genuíno artista criador, um religioso autêntico ou mesmo um puro homem de ação, mas sempre e invariavelmente um “intelectual” - um indivíduo que tem o dom de, pela palavra, transformar as ideias em forças agentes. Vale dizer: um retórico, um publicitário. São publicitários os autores da Enciclopédia, os pioneiros do movimento socialista, os ideologues do liberalismo, os propagadores do espiritismo e da teosofia, os apologistas do positivismo, os instigadores da Comuna de Paris, os porta-vozes de ambos os partidos no Caso Dreyfus; são retóricos Lênin, Trotski, Hitler e Mussolini, Churchill e Roosevelt, Ghandi e Mao; são retóricos os que difundem no mundo o existencialismo, o marxismo, a New Left e a New Age, como hoje são retóricos Alvin Toffler, Fritjof Capra e todos os ideólogos em circulação no mercado (CARVALHO, 2018, p. 131-132).

Um dos primeiros e mais impressionantes pontos que se pode observar na passagem acima é essa salada mista que coloca em um mesmo pode e em uma mesma condição lideranças políticas e religiosas e teóricos tão diferentes quanto, por exemplo, Ghandi, Lênin, Hitler e Capra. Realmente é difícil até mesmo tentar encontrar qual o argumento que Olavo de Carvalho utiliza para colocar em um mesmo saco todas estas figuras, definindo-as como retóricos e como ideólogos, como marqueteiros teórico-políticos. É muito provável que ele queira significar aqueles sujeitos que, sem base ontoteológica objetiva, utilizem-se das palavras para fomentar paixões e estados de espírito coletivistas e, assim, para direcionar a consciência e a vontade das massas conforme seus (destes retóricos, ideólogos e marqueteiros) interesses. Note-se que, conforme pressuposição de fundo, Olavo de Carvalho parece argumentar que deve haver uma base essencialista e naturalizada capaz de garantir exatamente essa objetividade epistêmica e essa correção normativo-moral que efetivamente constituem isso que poderia se chamar de ciência, de filósofo, de artista criador e de líder religioso autêntico - sem essa base anterior à linguagem, anterior aos (e embasadora dos) próprios conceitos, a linguagem e esses mesmos conceitos não possuem conteúdo, não possuem referência e, na verdade, são construídos de modo arbitrário, tornando-se meros jogos de palavras produzidos sem fundamento e utilizados de modo manipulativo; ademais, essa base não pode ser factual, empírica, mas exatamente essencialista, naturalizada e a-histórica, de modo que a interpretação científica do fato, agora dotada da ontoteologia, não o assumiria como algo inidentificável (ao estilo da coisa em si) e como mera pressuposição (fenômeno), mas como uma existência efetiva para além da consciência e não submetida aos acasos da necessidade cega ou à arbitrariedade da interpretação subjetivista, sem um propósito último, maximamente universalista. Note-se, no mesmo diapasão, que ele parece atribuir essa perspectiva ontoteológica exclusivamente à tradição judaico-cristã e greco-latina, talvez juntamente com a tradição filosófico-teológica árabe, fundidas em termos de filosofia e de teologia medievais e com ramificações até o Renascimento. Só de posse dessa base ontoteológica e dos seus consequentes princípios epistemológico-morais poderia haver alguém e algo genuínos; tudo o mais que não se funda na ontoteologia e que não a assume, tudo o mais que a nega é materialismo e, assim, ceticismo, relativismo e ideologia. Por isso mesmo, aliás, só a posição de Olavo de Carvalho é de fato genuína, objetiva, científica, ao passo que todas as outras são exatamente materialismo, ceticismo, relativismo e ideologia (abordaremos mais essa questão no próximo capítulo). Ora, retomando a passagem acima, a ciência não possui nenhum poder cognitivo e, desse modo, sua autoridade pública devém da propaganda, do marketing publicitário, da persuasão e da manipulação permanentes do público de cidadãos. Essa hegemonia no grito da modernidade iluminista, materialista, cética, relativista e ideológica, essa hegemonia epistêmico-política por retórica, marketing e charlatanismo é extremamente grave, porque leva à dissolução da ontoteologia; e essa dissolução da ontoteologia leva ao vale-tudo moral. Especialmente no que se refere às sociedades sem uma tradição filosófico-cultural clássica consolidada, como é o caso do Brasil, o poder dos intelectuais públicos assume um sentido destrutivo e disruptivo da vida institucional e social - daí, inclusive, que a grande cruzada olavista se dirija, no caso do Brasil, contra as ciências humanas e sociais e contra seus intelectuais públicos, adentrando em muitas situações no negacionismo científico explícito (cujo primeiro passo foi dado, ou seja, a definição da ciência como ideologia e retórica, como não possuindo qualquer conteúdo cognitivo substantivo). Ele diz:

Eis, em resumo, as tendências dominantes no debate científico e filosófico no mundo de hoje. Em países mais velhos, que conservam valores herdados da Idade Média e do Renascimento, essas tendências podem ser compensadas, às vezes, por alguma reação crítica e ordenadora. Mas os países novos, que entraram para a História depois da Revolução Francesa e pouco absorveram do legado dos séculos anteriores, não têm a mínima defesa contra o espírito do “intelectual coletivo”, que neles tende a ser identificado, em um dogmatismo inconsciente, como a única encarnação possível da ideia de cultura superior. Tornar-se um “intelectual”, aí, não é adquirir certos conhecimentos e demonstrar capacidade em certos gêneros de investigação ou criação, mas ser aceito em determinados meios, falar em determinado tom, adquirir determinados trejeitos em que se reconheça a identidade da casta. [...] O Brasil é a terra prometida do “intelectual coletivo” (CARVALHO, 2018, p. 71).

Note-se a insistência, por Olavo de Carvalho, nessa perspectiva de que a ciência moderna e os intelectuais públicos não possuem nenhuma base cognitiva objetiva e, como ele nos disse logo acima, nenhum compromisso moral com a universalidade, com a construção e a promoção de uma cultura superior. São basicamente sujeitos epistemológico-políticos materialistas, céticos, relativistas e ideológicos que, ao se renderem à impossibilidade da ontoteologia, no caso da determinação religioso-biológica da antropologia-cultura-normatividade, também se degeneraram ao ponto de assumirem essa atuação retórica e marqueteira charlatã, manipuladora e instrumentalizadora seja da moral e dos bons costumes, seja, então, do pobre homem individual de carne e osso. Por isso mesmo, na leitura da obra olavista, somos impactados com sua afirmação de que todos os problemas que enfrentamos hoje no Brasil em particular e no Ocidente de um modo mais geral se devem exatamente à modernidade iluminista, à ciência materialista, cética, relativista e ideológica e aos intelectuais públicos enquanto retóricos, ideólogos e marqueteiros que, ao mesmo tempo, negam essa herança ontoteológica e promovem um coletivismo totalitário apagador das consciências individuais, além de moralmente corrompido e degenerado. Em suma, a culpa pela degeneração humana é da modernidade, da ciência e dos intelectuais públicos, e não de qualquer outra coisa (nem mesmo da ontoteologia). Como ele nos diz:

Se examinarmos a história do período ditatorial, veremos em miniatura e semente, no microcosmo da classe letrada, o nascimento de todas as tendências morbosas, destrutivas e cínicas que depois viriam a contaminar a sociedade inteira, produzindo o quadro descrito pelo prof. Velho. É entre os intelectuais que nasce, da depressão e do isolamento, o apelo às drogas: antes de tornar-se um comércio florescente, o vício da maconha, do LSD, da cocaína foi uma teoria, uma ideologia, defendida por professores do alto das cátedras como um “caminho de libertação”. A droga logo tornou-se moda entre estudantes, atores, jornalistas. Do grêmio letrado, já envolta em prestígio, desceu para a classe média e daí para o povo. Foi o marketing dos intelectuais que criou o mercado: os traficantes não fizeram senão aproveitar a brecha.

Foi também entre os intelectuais que brotou o apelo ao pansexualismo; primeiro como teoria elegante, depois como moda entre letrados, depois - por imitação - entre as classes altas, e médias, e baixas.

Dos intelectuais partiu, para depois infectar a nação inteira, o espírito negativista e cético, o descrédito de todos os valores, o culto do macabro e do abissal. O mais breve exame da imprensa nanica daquele período mostra como esse espírito foi-se disseminando inicialmente entre as camadas letradas - em um país cujo povo ainda acreditava em família, em religião, em honestidade, em beleza e verdade -, e depois, gradativamente, foi ganhando o movimento editorial, os grandes jornais, as novelas de TV, graças à ação contínua, perseverante e incansável de uma espécie de militância do abismo (CARVALHO, 2018, p. 91-92).

Não rebateremos essas acusações, de tão estapafúrdias e delirantes que são, mas ressaltaremos o ponto fundacional que as dinamiza: da modernidade iluminista, da ciência materialista, cética, relativista e ideológica e dos intelectuais públicos como retóricos, marqueteiros e ideólogos emergiu toda a degeneração ocidental, seja sob a forma de regimes totalitários, seja em termos do ateísmo, da anarquia, do hedonismo e do coletivismo, seja, então, como negação do indivíduo pelas estruturas sociais, pelas instituições públicas e pelos macrossujeitos políticos. Eliminando a ontoteologia, a modernidade perdeu a capacidade de produzir conhecimento objetivo - ou melhor, de explicitar essa base biológico-religiosa pré-cultural, pré-política e a-histórica - e, com isso, descambou para o oportunismo moral e para a manipulação política das consciências, descaradamente, despudoradamente. Ora, qual é a base normativa que garante a Olavo de Carvalho essa postura de crítica à modernidade, à ciência e aos intelectuais públicos? Por que a modernidade, a ciência e os intelectuais públicos são afirmados como materialistas, relativistas, coletivistas e ideológicos? E, assim, qual a proposta olavista enquanto contraponto à degeneração da modernidade? A qual situação devemos retornar? Reconstruiremos essa posição e as respostas consequentes no próximo capítulo.

A metafísica olavista como escatologia dualista-maniqueísta e intuicionismo personalista, privatista e espiritualista: os fundamentos olavistas de crítica à modernidade

A crítica de Olavo de Carvalho à ciência e aos intelectuais públicos em particular e, de modo mais geral, à modernidade iluminista se dinamiza a partir de uma perspectiva ontológico-antropológica muito singular e curiosa, a qual vamos chamar, nesse texto, de correlação de dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico como contradição entre espiritualismo e materialismo e de intuicionismo privatista, personalista, espiritualista e interiorizado como método de acesso à Verdade absoluta e de resolução do drama humano ante o universo e a eternidade. É a partir desse radical dualismo ontológico-antropológico entre espírito e matéria, o qual não admite mediações (espírito e matéria como realidades mutuamente auto-excludentes), e dessa ênfase no contato pessoal, via interiorização intuitiva, entre o homem (individual) e Deus, recusando-se, aqui, qualquer perspectiva auto-organizativa e construtiva à ciência, à política, à história e à ação institucional-social intersubjetiva (mais uma vez assumindo a auto-exclusão recíproca entre, de um lado, o indivíduo, sua interiorização espiritual e o contato direto com a Verdade absoluta, versus a ação política, a estrutura social e o papel regulativo e orientador das instituições públicas), que Olavo de Carvalho reconstrói, primeiramente, o drama universal do homem (sempre o homem individual) frente ao universo e à eternidade e, por conseguinte, em segundo lugar, assume essa postura de crítica incisiva e pungente à modernidade iluminista, como vimos acima. Nesse sentido, qual é efetivamente o drama humano frente ao universo e a eternidade que afeta todos os sujeitos humanos, cada sujeito humano, e que é desvelado exatamente por essa intersecção de dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico entre espírito e matéria e de intuicionismo privatista, personalista e espiritualista interiorizado? E por que a modernidade é cética, relativista e, assim, completamente ideológica? Para começo de conversa, Olavo de Carvalho concebe uma, por assim dizer, metafísica da existência humana que é demarcada por uma perspectiva dualista-maniqueísta em termos da auto-exclusão de uma linha vertical (de baixo para cima e de cima para baixo) caracterizada pelo contato direto entre Deus e o homem, contato esse mediado pela graça divina na pessoa de Jesus Cristo e viabilizado e constituído como interiorização personalista, privatista e espiritualista desse mesmo indivíduo voltado para dentro de si mesmo, profundamente interiorizado e intuitivo - note-se, nesse caso, que o acesso à Verdade absoluta e ao sentido do drama humano frente ao universo e à eternidade (a condição fundacional da existência humana, para Olavo de Carvalho) se dá pelo protagonismo individual em termos exatamente dessa interiorização espiritual, personalista e privatista, com caráter intuitivo; note-se, ademais, que a salvação da alma atormentada pela necessidade natural e pelo corpo-mente desregrados só pode ser alcançada pela graça divina que, por meio de Jesus Cristo, oferece a salvação, embora não tão gratuitamente. Nessa metafísica olavista da existência humana, a linha vertical Deus-homem-graça-interiorização é complementada por uma linha horizontal, constituída como necessidade natural e substantivada pela história, pela política e pela ciência, profundamente materialistas. Aqui está, nesse sentido, a postura dualista-maniqueísta de autoexclusão e de autodestruição recíprocas da metafísica olavista: a linha vertical é a esfera do espírito, da espiritualidade; a linha horizontal é o espaço da matéria, da materialidade. Onde há espírito (origem de todo o bem), a matéria (origem de todos os males) foi vencida; onde predomina a matéria (origem de todos os males), o espírito (origem de todo o bem) foi vencido. No mesmo diapasão, na linha vertical do espírito, tem-se a Verdade absoluta em termos ontoteológicos (definição biológico-religiosa da antropologia-cultura-normatividade), a qual somente pode ser acessada pelo indivíduo em termos de interiorização espiritualista, personalista e privatista, com caráter intuicionista, de modo que o ceticismo, o relativismo e a ideologização da vida são vencidos; ao contrário, na linha horizontal da matéria tem-se, com essa impossibilidade de conhecimento objetivo e de correção moral (mais uma vez no sentido de determinação biológico-religiosa da antropologia-cultura-normatividade), a vitória da necessidade natural, dos instintos cegos e da degeneração moral. Ademais, na linha vertical do espírito, há o indivíduo em sua plenitude como o único protagonista de si, por meio da interiorização espiritualista e do acesso intuicionista a Deus; na linha horizontal da matéria, como história, política e ciência, há a hegemonia das estruturas sociais, das instituições públicas e dos macrossujeitos políticos, por meio exatamente da ação revolucionária cientificamente guiada. Ora, é por isso mesmo que Olavo de Carvalho parte exatamente da utilização da escatologia cristã para construir sua metafísica dualista-maniqueísta enquanto autoexclusão de espiritualismo e materialidade e para argumentar em torno ao intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado (o método olavista) mais uma vez enquanto contraponto ao “conhecimento” científico objetivo e à ação política revolucionária modernos. Ele diz:

[...] os monstros bíblicos Behemot e Leviatã, na gravura de William Blake, o primeiro imperando pesadamente sobre o mundo, o maciço poder de sua pança firmemente apoiado sobre as quatro patas, o segundo agitando-se no fundo das águas, derrotado e temível no seu rancor impotente. Não usei a gravura de Blake por boniteza, mas para indicar que atribuo a esses símbolos exatamente o sentido que lhes atribuiu Blake. Detalhe importante, porque essa interpretação não é nenhuma alegoria poética, mas [...] a aplicação rigorosa dos princípios do simbolismo cristão (CARVALHO, 2018, p. 28).

Note-se que a tensão e a autoexclusão entre espiritualismo e materialidade, entre a linha vertical do contato direto, intimista, personalista, individualista, privatista, interiorizado, espiritualista e intuicionista entre homem (individual) e Deus versus a linha horizontal do materialismo, da história, da política, da ciência e, assim, da ação social intersubjetiva, do predomínio das estruturas sociais, da dinâmica das instituições públicas, dos macrossujeitos políticos e até do positivismo radicalizado são interpretadas como uma consequência da escatologia judaico-cristã, são interpretados a partir do instrumental ontológico-antropológico e analítico-normativo da escatologia judaico-cristã, conforme pode se perceber na passagem acima (e em outras que apresentaremos a partir de agora), nas figuras bíblicas de Behemot e de Leviatã. Recordemos mais uma vez, rapidamente: na linha vertical, temos o contato direto do indivíduo com Deus, de baixo para cima e via interiorização espiritualista, personalista e privatista, com caráter intuitivo, temperado com a Revelação e a graça divina na pessoa de Jesus Cristo, portanto, de cima para baixo, sem mediações - relação singular (indivíduo) com Singular (Deus); na linha horizontal termos a materialidade e, portanto, a necessidade natural e o âmbito das paixões e dos instintos, da impossibilidade de verdade e de objetividade (portanto, a cegueira teórico-prática) e do ilimitado e do incontrolado (ou seja, da vontade indomada, autodestrutiva e totalitária), isto é, Behemot (necessidade natural, história e política) e Leviatã (impulsos e instintos destrutivos da psiquê humana). Perceba-se, desse modo, que a materialidade, ou seja, a história e a política como materialidade, inclusive a ciência como positivismo e/ou perspectivismo, representam o espaço da ilusão, da falsidade, da mentira, da ideologia, em termos da figura de Behemot, e da ação social incontrolada, indomável, ilimitada e destrutiva, sob a forma de Leviatã. Essa é, para Olavo de Carvalho, a descrição metafísica - e sob a forma desse dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico que falamos acima - do mundo humano, e ela não é uma figura alegórica, mas exatamente a condição essencial do dilema humano, do drama humano ante o universo e a eternidade, o qual a escatologia judaico-cristã exemplifica e representa à perfeição. Ele continua:

[...] unidade de essência entre o homem e o monstro: Behemot é a um tempo poder macrocósmico e uma força latente na alma humana. Quanto a Leviatã, [...] a força da revolta está na língua, ao passo que o poder de Behemot, como se diz em Jó (40:11), reside no ventre. Maior clareza não poderia haver no contraste de um poder psíquico e de um poder material: Behemot é o peso maciço da necessidade natural, Leviatã é a infranatureza diabólica, invisível sob as águas - o mundo psíquico - que agita com a língua (CARVALHO, 2018, p. 29).

Ora, o drama humano frente ao universo e a eternidade é um drama demarcado pela tensão entre o poder macrocósmico da necessidade natural - talvez até da finitude - e a alma humana, isto é, toda e qualquer alma individual: a necessidade natural ou Behemot é tanto um princípio externo, o mundo material, quanto um princípio interno (os instintos, as paixões, o ego, o superego). Não é um drama em torno à história e à política, e também não é um drama dinamizado em termos de intersubjetividade, de ação intersubjetiva: perceba-se, por ambas as passagens, que a questão chave é a materialidade como necessidade natural (natureza físico-biológica) e como ego e instintos desmedidos (pensemos, por exemplo, nas paixões da carne), assim como esse drama é o drama do indivíduo situado nesse meio material que o prende e o puxa para baixo, dificultando, quando não impedindo, sua ascensão vertical sob a forma de interiorização intuicionista, personalista, privatista e espiritualista; perceba-se, ademais, que a história, a política e a ciência (como herança da modernidade iluminista), na medida em que são materialistas e, portanto, ao perderem a base ontoteológica essencialista, naturalizada, a-histórica, pré-política e pré-cultural dada por aquela, simplesmente não têm condições de conhecimento objetivo e, como consequência, tanto de justificação racional quanto de correção moral, descambando para o ceticismo, o relativismo e a ideologia - ou seja, radicalizando Behemot e Leviatã, dando-lhes poderes supremos e anulando seja o indivíduo, seja a graça, arrebentando com a linha (metafísico-teológica) vertical da condição humana, a única verdadeira, caindo completamente na falsidade e não possuindo recursos nem para percebê-la como falsidade, nem para sair dela como ideologia. Ora, como o indivíduo pode ser salvo do materialismo e, assim, da jaula de ferro da história, da política e da ciência e dos tentáculos de Behemot e das garras de Leviatã? A resposta de Olavo de Carvalho é surpreendente, a saber:

O sentido que Blake registra nessas figuras não é uma ‘interpretação’, na acepção negativa que Susan Sontag dá a essa palavra: é, como deve ser toda boa leitura de texto sacro, a tradução direta de um simbolismo universal. Para Blake, embora Behemot represente o conjunto das forças obedientes a Deus, e Leviatã o espírito de negação e rebelião, ambos são igualmente monstros, forças cósmicas desproporcionalmente superiores ao homem, que movem combate uma à outra no cenário do mundo, mas também dentro da alma humana. Entretanto, não é ao homem, nem a Behemot, que cabe subjugar o Leviatã. Só o próprio Deus pode fazê-lo. A iconografia cristã mostra Jesus como o pescador que puxa o Leviatã para fora das águas, prendendo sua língua com um anzol. Quando, porém, o homem se furta ao combate interior, renegando a ajuda do Cristo, então se desencadeia a luta destrutiva entre a natureza e as forças rebeldes antinaturais ou infranaturais. A luta transfere-se da esfera espiritual e interior para o cenário externo da História (CARVALHO, 2018, p. 29).

Primeiramente, da passagem acima, ressalte-se essa ideia de que, para Olavo de Carvalho, a escatologia cristã não é uma mera alegoria, não é uma simples uma ficção, por assim dizer, mas, na verdade, um simbolismo universal que expressa e desvela exatamente esse drama individual ante o universo e a eternidade, entre espírito e matéria, entre sujeito e natureza. Em segundo lugar, e aqui entra exatamente o confronto estabelecido por Olavo de Carvalho com a modernidade iluminista, com a ciência e com os intelectuais públicos, perceba-se que, para ele, essa tensão entre a linha vertical do contato direto entre o indivíduo e Deus versus a linha horizontal da materialidade, da história, da política, da ciência e da ação estrutural intersubjetiva-social não pode ser resolvida no próprio horizonte da história (não-verdade) e da política (ideologia), nem por parte da ciência positivista (não-identidade entre noumeno e fenômeno; fatos não geram valores, materialidade não gera universalidade), mas somente na ordem do espírito e em termos de graça divina, em termos da intervenção de Jesus Cristo: Behemot e Leviatã, necessidade natural e instintos e paixões do ego são incontroláveis, desmesurados e descomedidos, levando ao ilimitado. Por conseguinte, o indivíduo - sempre o indivíduo - não pode salvar-se apenas por suas próprias forças, necessitando buscar (e ele precisa querer buscar, obviamente) a graça divina na pessoa do pescador de homens Jesus Cristo, o que significa sair do âmbito da materialidade e da intersubjetividade e adentrar no âmbito da espiritualidade interior, privatista, personalista e intuitiva. Nesse sentido, o homem precisa assumir, como critério não só de salvação, mas também seja de merecimento da graça divina, seja finalmente de acesso à Verdade absoluta, o combate espiritual que se dá sob a forma de interiorização espiritualista, personalista e privatista com caráter intuitivo. Ora, quando o homem nega a sua interioridade, a sua espiritualidade, o contato direto entre ele, como indivíduo, e Deus, quando o indivíduo nega seu intuicionismo personalista e a graça divina (se recusando, inclusive, a buscá-la e a aceitá-la), só lhe sobra o âmbito da materialidade, isto é, da história como não-verdade, como ausência completa de critérios objetivos (nos parece curioso, de todo modo, sobre a possibilidade de objetividade por parte de um intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado!); e ele, no âmbito histórico-material, só dispõe da política (como ideologia, retórica, manipulação coletivista) com caráter ilimitado e autodestrutivo, além de somente dispor de uma ciência positivista com caráter perspectivista e demarcada pela ideia de que fatos não geram normatividade. Ao renegar Cristo e ao fugir do intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado, só sobra ao homem a ciência, a história e a política como o espaço da não-verdade, da ideologia e do ilimitado. Note-se, assim, que podemos entender agora a crítica radical (o que não quer dizer bem fundamentada e justa) de Olavo de Carvalho em relação à modernidade iluminista: ao recusar a ontoteologia e, de modo muito específico, ao recusar essa noção curiosa e próxima da aberração construída por Olavo de Carvalho como ontoteologia, a saber, correlação de perspectiva ontológico-antropológica dualista-maniqueísta entre espírito e matéria, graça e história, interioridade e política, indivíduo e coletivo, e de intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado (contra as estruturas sociais, as instituições públicas e os macrossujeitos políticos), a modernidade descambou, mergulhou fundo, enraizou-se profundamente (e sem possibilidade de correção, o que implica na necessidade de regressão antimoderna e antimodernizante) no materialismo, no ceticismo, no relativismo e, assim, na ideologia, promovendo a primazia dos poderes coletivistas sobre o pobre indivíduo solitário, a centralidade da história em relação à teologia, o caráter fundacional da intersubjetividade em relação à subjetividade, a primazia da política em relação à interioridade, a primazia da ciência positiva em relação à ontologia. Porém, ao fazer isso, não tendo mais nenhuma base objetiva garantidora de uma orientação epistemológica segura e não-contraditória, de um sentido universalista último e de uma ação moral escorreita, a modernidade descambou para a correlação de não-verdade (falsificação, propaganda e marketing científicos) e para o ilimitado político-moral (ideologias totalitárias). Assim, Olavo de Carvalho consegue explicar todas as tragédias produzidas e sofridas pelos homens ao longo da história de um modo geral e em termos de modernidade iluminista em particular:

É assim que a gravura de Blake, inspirada na narrativa bíblica, nos sugere com a força sintética de seu simbolismo uma interpretação metafísica quanto à origem das guerras, revoluções e catástrofes: elas refletem a demissão do homem ante o chamamento da vida interior. Furtando-se ao combate espiritual que o amedronta, mas que poderia vencer com a ajuda de Jesus Cristo, o homem se entrega a perigos de ordem material no cenário sangrento da História. Ao fazê-lo, move-se da esfera da providência e da Graça para o âmbito da fatalidade e do destino, onde o apelo à ajuda divina já não pode surtir efeito, porque ali já não se enfrentam a verdade e o erro, o certo e o errado, mas apenas as forças cegas da necessidade implacável e da rebelião impotente (CARVALHO, 2018, p. 29).

Toda a violência e toda a degeneração humanas, portanto, para Olavo de Carvalho, são causadas pelo abandono, por parte do indivíduo, de sua interioridade, de seu combate espiritual pessoal e privatista, bem como por sua recusa da graça divina em termos da ajuda oferecida por Jesus Cristo - todos as tragédias do mundo, mesmo antes de Jesus Cristo e da noção de subjetividade, se devem à recusa de Jesus Cristo e à negação da subjetividade, à ênfase no materialismo e à deslegitimação do espiritualismo! Note-se, nesse sentido, não apenas o fato de que o drama humano frente ao universo e à eternidade diz respeito à tensão entre espírito e matéria e, nesse caso, ao desafio do indivíduo ante à necessidade material, o qual depende dessa correlação de interiorização espiritualista, intuicionista, privatista e personalista direta e de graça divina; mais ainda, é importante ressaltar-se que toda a possibilidade de universalismo e de objetividade repousa no conflito interior de cada indivíduo contra a ordem da carne, contra a necessidade natural, os instintos e as paixões. Toda a violência, toda a dor, todo o sofrimento e todos os descaminhos tomados pelos homens ao longo do tempo devêm dessa recusa ou dessa incapacidade de interiorizar-se espiritualmente e de buscar a graça divina, da mesma forma como a solução para todos esses problemas e desafios passa por interiorização intuicionista, espiritualista, privatista e personalista e pela aceitação de Jesus Cristo! Ou seja, se os problemas do mundo se devem ao materialismo sob a forma de centralidade da ciência positivista e perspectivista, da história, da política e da ação institucional-social intersubjetiva e estrutural, a solução para esses problemas exige uma retomada da correlação de Revelação, graça divina e intuicionismo espiritualista, personalista, privatista e interiorizado! Trata-se de uma supersimplificação muito estúpida, mas é esta supersimplificação que dinamiza toda a crítica de Olavo de Carvalho à modernidade, à ciência e aos intelectuais, uma supersimplificação que, ademais, se for levada a sério, impede toda a ciência, toda a política, toda a ação intersubjetiva e implode não só com essa noção normativa de modernidade, mas com sua consequência prática, o universalismo pós-tradicional sob a forma de atribuição incondicional e irrestrita, para todos e cada um, dos direitos humanos ramificados em direitos e garantias fundamentais, em segurança, isonomia, simetria e horizontalidade jurídicas, o pluralismo ou multiculturalismo, o Estado democrático de direito e as mediações jurídico-institucionais estruturantes! Note-se, ademais, na passagem acima, outra consequência fundacional dessa concepção ontológico-antropológica dualista-maniqueísta como contraposição entre espírito e matéria e desse método de interiorização intuicionista, espiritualista, personalista e privatista (sempre mediado pela graça divina) para o acesso à Verdade absoluta: no âmbito da história e da política, não se pode confrontar o certo e o errado, a verdade e a mentira, exatamente porque esse mesmo âmbito da história e os seus instrumentos, a ciência institucionalizada e ação política, na medida em que são materialistas, não possuem qualquer critério racional e substantivo para se desvelar, legitimar e garantir a objetividade epistemológico-moral, de modo que, na história e como política, só existe ideologia - na história e em termos de política, tudo é ideologia, e todas as posições que afirmam a centralidade da história e da política e, portanto, a primazia das estruturas sociais, das instituições públicas e dos macrossujeitos políticos, são ideológicas e promovem pura e simplesmente ideologia. Só no âmbito do dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico como autoexclusão entre espírito e matéria e sob a forma de uma metodologia demarcada pela correlação de intuicionismo privatista, personalista, espiritualista e interiorizado e de graça divina é que pode haver Verdade, que se pode chegar à verdade e agir bem, vencendo a Behemot e a Leviatã. Ora, daqui também devém a acusação de que a modernidade iluminista como um todo é materialista, cética, relativista e, portanto, ideológica, levando diretamente ao incremento da dor, do sofrimento, da degeneração, da violência e da morte, a começar pela Revolução Francesa:

[...] a logomaquia universal que, se não produziu desde a Revolução Francesa nenhum resultado intelectualmente valioso, ao menos elevou de certo modo a um plano superior de existência uns 200 milhões de seres humanos, alçando-os deste baixo mundo para o assento etéreo, já que esse é mais ou menos o número de vítimas das guerras ideológicas dos dois últimos séculos (CARVALHO, 2018, p. 42).

Note-se, na passagem acima, primeiramente a afirmação de que a modernidade não produziu nenhum resultado intelectualmente produtivo, mas apenas o assassinato de milhões de pessoas por causa das guerras ideológicas que emergem em cheio exatamente por causa dessa condição materialista (e, portanto, não-espiritualista) da modernidade, que lhe consolida o ceticismo (a não-existência de uma base ontológico-antropológica essencialista e naturalizada, tornando impossível a objetividade epistêmico-cognitiva), o relativismo (a não-verdade), a degeneração moral (o ilimitado, o profano) e, finalmente, como fecho de abóboda de tudo isso, a ideologia (manipulação, massificação, instrumentalização políticas dos indivíduos). A modernidade, enquanto uma condição antropológica e normativa materialista, equivale à primazia absoluta da linha horizontal da metafísica olavista em relação à linha vertical; equivale, por conseguinte, à centralidade absoluta da história, da política, da ação intersubjetiva em relação ao espírito, à graça divina e à interiorização; e leva, assim, à consolidação do ceticismo, do relativismo, do hedonismo e da luta ideológica, sectária e totalitária em relação à identidade e ao contato diretos e de essência entre o indivíduo e Deus. Por isso mesmo, na modernidade temos apenas logomaquia, isto é, discussão ideológica, mero exercício retórico de palavras acerca de mais palavras, acerca de mais palavras e assim indefinidamente (por isso, inclusive, as guerras geradas por ideologia, por meras palavras sistematicamente ordenadas e deliberadamente manipuladoras). Recusando seu fundamento ontoteológico e perdendo qualquer base cognitiva objetiva e garantidora da correção moral, a modernidade se reduz a jogos de palavras autorreferenciais, que não têm base de comprovação, de enquadramento, de crítica e de reflexivização, os quais, na medida em que também já não possuem qualquer fundamento normativo orientador, perdem quaisquer compromissos e vinculações morais, descambando para o oportunismo, o charlatanismo, a deturpação e a violência. Por isso mesmo, no âmbito da história e da política como materialidade, tem-se a exclusão pungente e a deslegitimação aguda da esfera do espírito, da linha vertical que não apenas representa o único lugar da busca da Verdade (por interiorização), mas também da resolução dos problemas do mundo (por graça divina e em termos de recusa da política). Resta ao homem, assim, no que se refere à modernidade ocidental, as ideologias várias, e sua consequência é exatamente o ilimitado, o incontrolado, a destruição, uma vez que, sem a base ontoteológica (linha vertical) e abandonando seja a interioridade espiritualista-intuicionista-privatista-personalista, seja a graça divina na pessoa de Jesus Cristo, o homem torna-se completamente dominado por Behemot e Leviatã. E Olavo de Carvalho complementa, nessa sua acusação da modernidade como materialismo, ceticismo, relativismo e ideologia:

[...] as ideologias, quaisquer que fossem, estavam sempre limitadas à dimensão horizontal do tempo e do espaço, opunham o coletivo ao coletivo, o número ao número; perdida a vertical que unia a alma individual à universalidade do espírito divino, o singular ao Singular, perdia-se junto com ela o sentido de escala, o senso das proporções e das prioridades, de modo que as ideologias tendiam a ocupar totalitariamente o cenário inteiro da vida espiritual e a negar ao mesmo tempo a totalidade metafísica e a unidade do indivíduo humano, reinterpretando e achatando tudo no molde de uma cosmovisão unidimensional (CARVALHO, 2018, p. 30).

Perceba-se que as ideologias estão totalmente e sempre presas à esfera horizontal do maniqueísmo-dualismo ontológico-antropológico olavista, limitando e aferrando os indivíduos exatamente a esta esfera, massificando-os e instrumentalizando-os ao ponto de desidentificá-los em sua singularidade: na história e na política, cada indivíduo é só mais um indivíduo, mais um número entre todos os outros, e sua pessoalidade simplesmente não conta. Note-se, ademais, tanto que o âmbito da materialidade, como história e política, é simplesmente ideologia, do mesmo modo que todas as posições filosófico-normativas que afirmam a centralidade da história, da política e da ação institucional-social estrutural e intersubjetiva, ainda que em aspectos mínimos, são apenas ideologia, produzem e fomentam apenas ideologia. Ora, no âmbito da história e da política como materialidade, a pessoalidade do indivíduo, isto é, sua singularidade, não conta, não é promovida e, na verdade, é destruída, restando apenas a massa, a totalidade, o número, o partido, a estrutura, a instituição, o macrossujeito, o fato social-natural etc. Só na linha vertical do dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico olavista a singularidade do indivíduo é promovida e afirmada seja em termos de sua dignidade, seja no que se refere à descoberta e ao acesso à Verdade absoluta como unidade da alma individual e da universalidade do espírito divino por meio da intuição interior e direta. Ora, na medida em que predomina a materialidade e, portanto, o ceticismo e o relativismo, destrói-se a efetividade dessa linha vertical e dessa união da alma individual e do espírito divino, de modo que só restam as ideologias - e, na verdade, de modo que as ideologias, como vimos na passagem acima, preenchem todo o espaço de sentido possível aos indivíduos. Desse modo, negando a totalidade metafísica e a unidade (direta, interior, intuitiva, personalista, privatista) do indivíduo com Deus via Revelação e graça divina, consolida-se uma perspectiva materialista unidimensional e massificadora, com a prevalência de ideologias imoderadas e ilimitadas - cujos principais defensores são a ciência e os intelectuais públicos modernos. Apaga-se a ontoteologia, recusa-se a Deus e a graça divina e elimina-se o contato direto entre o indivíduo e Deus em termos desse intuicionismo privatista, personalista, espiritualista e interiorizado. Ora, além da violência simbólico-material totalitária causada pelas ideologias geradas pelo materialismo, pelo ceticismo e pelo relativismo modernos, outro ponto importante por eles efetivado é a anulação do indivíduo e a promoção iracunda do coletivismo, com sua (desse mesmo indivíduo) subsunção pelas estruturas sociais, pelas instituições públicas e pelos macrossujeitos políticos. É por isso que Olavo de Carvalho acusa a modernidade iluminista e, por extensão, a ciência e os intelectuais públicos de causarem a “perda da individualização da consciência” (CARVALHO, 2018, p. 68), individualização da consciência que é viabilizada exatamente por essa tradição cultural-civilizacional milenar que é substantivada pelo dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico de Olavo de Carvalho via intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado, temperado com a graça divina por Jesus Cristo. No caso, a modernidade e, então, mais uma vez, a ciência e os intelectuais públicos passam seja a fomentar o coletivismo em relação ao individualismo, seja a colocar todo o peso do processo de subjetivação nas estruturas sociais, nas instituições públicas, nos macrossujeitos políticos. Ele diz:

Se levada mais a fundo, essa “revolução cultural” acabará por perverter todo o senso moral da população, instaurando a crença de que o dever de ser bom e justo incumbe primeira e essencialmente à sociedade, e só secundariamente aos indivíduos. Muitos intelectuais brasileiros tomam como um dogma infalível esse preceito monstruoso, que resulta em abolir todos os deveres da consciência moral individual até o dia em que seja finalmente instaurada sobre a Terra a “sociedade justa” - um ideal que, se não fosse utópico e fantasista em si, seria ao menos inviabilizado pela prática do mesmo preceito, tornando os homens cada vez mais injustos e maus quanto mais apostassem na futura sociedade justa e boa (CARVALHO, 2018, p. 114-115; os destaques são de Olavo de Carvalho).

Note-se que a crítica central tanto ao coletivismo (como utopia normativa da sociedade justa por meio da mudança institucional e da ação intersubjetiva) quanto à correlação de socialização (estruturas sociais, instituições públicas, macrossujeitos políticos, dinâmicas intersubjetivas) e subjetivação possui o seu sentido, em Olavo de Carvalho, no fato de que eles têm por consequência a desvirtuação da consciência moral, que deixa de ser afirmada seja como a única protagonista de sua vida (e do acesso à Verdade absoluta em termos de contato interiorizado, intuicionista, personalista e privatista com Deus), seja como responsável por seus próprios atos e por suas próprias escolhas, levando, então, à inversão dos valores sociais e individuais. Por isso mesmo, no ideário da ciência ideológica e dos intelectuais públicos esquerdistas, com a primazia do social sobre o indivíduo, da coletividade sobre o homem particular, o ladrão passa a ser vítima da sociedade, e não um criminoso, ao passo que a verdadeira culpada por todos os problemas sociais e por todas as degenerações humanas passa a ser a própria sociedade, as próprias instituições, os próprios valores intersubjetivos. Ou seja, na medida em que anula o indivíduo e o subsume na dinâmica objetiva - que ele supostamente não consegue controlar e resolver, pela qual ele é completamente instrumentalizado (para a esquerda, obviamente, conforme argumenta Olavo de Carvalho) -, conferindo todo o peso da determinação da subjetividade às estruturas sociais, às instituições públicas e aos macrossujeitos políticos, inclusive atribuindo a possibilidade de transformação seja à centralidade e autorreferencialidade da história e da política, seja à ação de massas intersubjetiva, a ciência moderna e os intelectuais públicos não só apagam e negam o protagonismo individual, como fomentam a inversão dos valores, ao ponto de, como vimos acima, o criminoso ser vítima da sociedade injusta e esta ser a responsável por todas as degenerações individuais. Ele diz:

Ela transforma o delinquente, de acusado, em acusador. Seguro de si, fortalecido em sua autoestima pelas lisonjas da intelligentzia, o assassino então já não aponta contra nós o cano de uma arma, mas o dedo da justiça; de uma estranha justiça, que lança sobre a vítima as culpas pelos erros de uma entidade abstrata - “o sistema”, “a sociedade injusta” -, ao mesmo tempo que isenta o criminoso de quase toda a responsabilidade por seus atos pessoais. Perseguida de um lado pelas gangues de bandidos, acuada de outro pelo discurso dos letrados, a população cai no mais abjeto desfibramento moral e já não ousa expressar sua revolta (CARVALHO, 2018, p. 117).

A modernidade materialista, cética, relativista e ideológica é também coletivista, no duplo sentido do termo: centralidade da massa, do grupo sobre o indivíduo; primazia das estruturas sociais, das instituições públicas e dos macrossujeitos políticos em termos de determinação dos processos de subjetivação. Isso, para Olavo de Carvalho, como podemos perceber na sua fala acima, não apenas apaga a responsabilidade pessoal pela própria vida, como também leva à perda da individualização da consciência (o indivíduo mergulha na massa indiferenciada, mero corpo aclamativo, mera paixão irrefreada e ilimitada, basicamente um instrumento do coletivo) e causa a deturpação dos valores sociais, em particular o da responsabilização individual pelo próprio destino, pelas próprias ações, conferindo um poder absoluto à sociedade como macroestrutura, às instituições públicas como estatismo, aos super-sujeitos políticos (como o partido e a classe). Assim, os intelectuais públicos, em nome da modernidade, desferem o golpe de morte nos valores universais do humano e no protagonismo individual, fazendo esse mesmo indivíduo mergulhar em um estado profundo de anomia, inação e desespero, tornando-o cobaia fácil para lideranças populistas, regimes de massa violentos e movimentos revolucionários sedutores, mas destrutivos. Não por acaso, no que diz respeito a isso, vimos, no primeiro capítulo, que a ciência moderna e os intelectuais públicos, abandonando a ontoteologia dualista-maniqueísta e o intuicionismo privatista, personalista, espiritualista e interiorizado, assumindo o materialismo, o ceticismo, o relativismo e a ideologia, descambaram para uma dupla e correlacionada ditadura: a academia, com sua ditadura do conhecimento, mas de um conhecimento que é, para Olavo de Carvalho, “ideologia cientifica”; o partido, com sua ditadura política e em termos de ideologia política coletivista, estatista e totalitária. Essas são as consequências do fim do indivíduo e da perda da individualização da consciência por essa mesma modernidade materialista, cética, relativista e ideológica, e por seus arautos fundamentais, a ciência e os intelectuais públicos. Olavo de Carvalho continua:

O “intelectual coletivo” tem de optar entre a unidade de uma tirania e a multiplicação das línguas; entre a submissão explícita ou implícita a uma consciência individual qualquer e a dissolução em uma inconsciência coletiva que, em última análise, acabará sendo manipulada discretamente por algum indivíduo esperto; enfim: entre tirania declarada e tirania dissimulada (CARVALHO, 2018, p. 68).

Na medida em que o indivíduo é anulado em seu protagonismo pessoal e em sua capacidade crítica relativamente aos demais e às próprias estruturas sociais, tornando-se mais um na massa, sendo subsumido no grupo, na coletividade como mero corpo, ele se torna massa de manobra, todos os indivíduos se tornam massa de manobra. Daí que os intelectuais públicos, supostamente respaldados no conhecimento científico, e os partidos de massa - em particular o comunismo-socialismo - assumam hegemonia epistêmico-político-cultural e simplesmente dominem esses indivíduos por meio da manipulação, da retórica e da persuasão ideológicas. Ora, a consequência da consolidação e da expansão da modernidade iluminista e, nesse caso, do protagonismo social e institucional da ciência e dos intelectuais públicos consiste exatamente na destruição da liberdade individual e, como vimos logo acima, na inversão dos valores morais objetivos. É por isso, aliás, que, para Olavo de Carvalho, o fenômeno da modernidade e, nesse caso, da ciência e dos intelectuais públicos ou dos intelectuais coletivos adquire pungência e exige uma atitude antimoderna e antimodernizante cada vez mais aguda, porque ele representa um momento histórico potencialmente perigoso em termos de destruição da tradição cultural/civilizacional ocidental (isto é, da tradição judaico-cristã e da ontoteologia greco-latino-medieval, ainda que interpretada desse modo enviesado como dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico entre espírito e matéria e sob a forma de intuicionismo privatista, personalista, espiritualista e interiorizado). Por ser um fenômeno que se pretende definitivo da história humana, ameaçando destruir todo este legado ontoteológico e, de quebra, a própria individualização da consciência por meio do primado da ideologia, Olavo de Carvalho assume essa cruzada de crítica, contraposição e superação da modernidade, bem como, por extensão, de combate e de deslegitimação da ciência moderna e dos intelectuais públicos. Ele diz:

Erraria por excesso de otimismo quem visse essa involução como um fenômeno passageiro que arranha apenas a superfície da História. Ela tem uma dimensão antropológica, ele afeta o destino da espécie humana no cosmos: basta uma geração de ‘intelectuais coletivos’ dominar o mundo para que se perca a individualização da consciência, prêmio de um esforço evolutivo milenar (CARVALHO, 2018, p. 68).

Essa involução como modernidade, como materialismo, ceticismo, relativismo, ideologia, coletivismo e totalitarismo, exatamente por não ser um fenômeno passageiro, constituindo-se como uma dimensão antropológica substantiva (primado de Behemot e de Leviatã sobre a ontoteologia, primado do coletivismo sobre o indivíduo, primado do fato material sobre o contato direto e a unidade essencial entre o espírito ou indivíduo e Deus), ameaça o destino da espécie humana (noção biológico-religiosa, com caráter essencialista e naturalizado, de base pré-política, pré-cultural e a-histórica) no cosmos (isto é, natureza, e não sociedade, nem política, nem história). E, como estamos dizendo, além da degeneração moral (já que não há mais uma base biológico-religiosa da antropologia-cultura-normatividade), tem-se o apagamento da individualização da consciência por meio do coletivismo político-moral e das estruturas sociais-institucionais. Por isso mesmo, o eixo estruturante da contraposição de Olavo de Carvalho em relação à modernidade, à ciência e aos intelectuais tem uma dupla - embora interligada - hélice: retomada de uma noção de cultura/civilização ocidental pré-moderna, antimoderna e antimodernizante, sintetizada pela tradição judaico-cristã, pela ontologia greco-latina, pela teologia medieval (cristã e eventualmente árabe) e pela cultura renascentista, ainda que, conforme estamos insistindo no texto, esta ontoteologia como cultura/civilização ocidental seja concebida como dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico sob a forma de autoexclusão recíproca entre espírito e matéria e dinamizada por meio do intuicionismo personalista, privatista, particularista, espiritualista e interiorizado como método de resolução do drama humano ante o universo e a eternidade e de acesso à Verdade absoluta, temperada com a Revelação e a graça divina na pessoa de Jesus Cristo; e a defesa irrestrita do indivíduo (responsabilidade individual e contato e unidade diretos entre indivíduo e Deus por meio da intuição interior, privatista, pessoal e espiritualista) contra o coletivismo (primazia da massa, do grupo sobre o indivíduo; centralidade das estruturas sociais, das instituições públicas e dos macrossujeitos políticos sobre a subjetivação). Ele diz, primeiramente, enquanto crítica à ciência e aos intelectuais públicos brasileiros:

O desejo de segurança é um impulso normal do ser humano. Foi ele que impeliu os primeiros filósofos a buscarem uma verdade para além das flutuações de opinião. Mas esse desejo toma, entre os intelectuais brasileiros, um sentido caricatural e perverso. Em vez de buscar segurança em uma intuição direta e pessoal, imaginam poder encontrá-la na adesão coletiva e epidêmica às tendências de prestígio mais recente no que chamam “os grandes centros produtores de cultura” - expressão que já revela toda uma concepção coisista e mercadológica do que seja cultura. Temerosos demais para tentar atinar por si com o certo e o errado, encontram alívio e proteção no sentimento de estar em dia com a opinião mundial, ou com o que tal lhes parece (CARVALHO, 2018, p. 40).

Note-se, portanto, que o que atormenta Olavo de Carvalho em relação à postura dos intelectuais públicos está exatamente em que eles são incapazes ou covardes de acessar à objetividade por meio de uma intuição pessoal direta! Daqui advêm algumas das grandes degenerações próprias à modernidade, dinamizadas institucional e culturalmente por esses intelectuais em nome da ideologia científica. Ao invés de acessarem a verdade em termos de interiorização pessoal espiritualista, preferem se ater aos modismos passageiros dessa mesma modernidade, contra todo o legado da tradição ocidental como dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico e - e por meio do - intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado em termos de unidade e de contato diretos entre o homem e Deus mediado pela graça (o anzol) de Jesus Cristo. Ora, abrindo mão e recusando esse intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado como método de acesso à objetividade e abandonando a unidade e o contato diretos entre o indivíduo (alma) e Deus como chave analítica e direcionamento em termos de resolução do drama humano ante o universo e a eternidade, os intelectuais públicos, por meio da ideologia científica moderna, não só coisificam a cultura, como também massificam as mentes individuais em uma totalidade social indiferenciada e coletivista alienada, impotente e imobilizada. É surpreendente o nível de falsificação, simplificação e deturpação da realidade assumido por Olavo de Carvalho. Com efeito, dessa deslegitimação por parte dos intelectuais, da intuição interior direta, espiritualista, personalista e privatista como fonte de acesso à Verdade e de resolução do drama humano ante o universo e a eternidade, por meio da prisão dos indivíduos no materialismo e da consolidação do ceticismo, do relativismo e da ideologia, chega-se, em termos de ciência moderna e por parte dos intelectuais públicos, a uma perspectiva de coletivismo e de estatismo que se torna o corolário, no nível político, daquela deturpação no âmbito ontológico, antropológico e epistêmico: da ênfase no materialismo, e não no espiritualismo, da primazia da história e da política em relação à ontoteologia revelada, da centralidade das estruturas sociais, das instituições públicas e dos macrossujeitos políticos em relação ao intuicionismo pessoal, privatista e espiritualista direto, a ciência moderna e seus intelectuais públicos consolidam exatamente o estatismo, o coletivismo e, assim, o clientelismo, dando o golpe de morte na autonomia e na meritocracia individuais. Olavo de Carvalho nos diz:

Essas ideias são manifestamente atraentes, sobretudo para mim, que jamais acreditei que homem algum tivesse nada a esperar de governos. Reivindicar do governo, mesmo aquilo que é teoricamente justo, resulta sempre, na prática, em rebaixamento moral: um homem que entre por esse caminho acaba por não enxergar outra forma de ação que não seja a reclamação. Por trás da vociferação raivosa, não haverá dentro dele senão a passividade atônita de um bebê que chora e que nada pode fazer por si mesmo. Um governo que se mete em tudo obriga as pessoas a tudo reivindicarem dele: avilta o povo ao atender as suas demandas, premiando a indisciplina e o protesto, e também, ao não atendê-las, semeando a desesperança e o cinismo (CARVALHO, 2018, p. 125).

Exigir do governo o que é justo rebaixa moralmente ao indivíduo. Não exigir dele leva à desesperança e ao cinismo. Quem se mete a sujeito político, abre mão de sua autonomia, de seu protagonismo, de seu mérito. Note-se, assim, que, se no âmbito ontológico o materialismo apaga o espiritualismo; se no âmbito antropológico, o ceticismo e o relativismo conduzem à perda de uma referência normativa objetiva e de critérios mínimos de justificação, discussão e ação racionais; se no âmbito epistemológico, o fim da verdade universalista conduz à ideologização da vida como um todo; na esfera política temos exatamente a consolidação de um coletivismo e de um estatismo tão fortes que tolhem toda a iniciativa individual, todo o mérito de cada sujeito humano, tornando-o simplesmente um cliente fiel das benesses do Estado, tudo esperando deste, assim como culpando a este por todos os males. No contexto do coletivismo, do estatismo e do clientelismo públicos, os indivíduos se tornam basicamente bebês chorões, incapazes de ação de si por si mesmos. A política, enfim, vicia e deseduca os indivíduos: se, por meio de sua revolta, conseguem a realização de suas reivindicações, se tornam dependentes do Estado, aprendendo que, por meio de “malcriações públicas”, poderão conseguir o que quiserem; se não conseguem, por meio dessa revolta e dessas malcriações, a realização institucional de suas reivindicações, então se tornam desesperançados, cínicos e impotentes. Se a política dá certo, ela dá errado, porque deseduca os indivíduos e lhes retira o protagonismo; se ela dá errado, então ela dá certo, uma vez que, nesse último caso, comprova exatamente a degeneração materialista, ideológica, coletivista, estatista e clientelista que a perpassa, conforme quer Olavo de Carvalho. Em ambos os casos, comprova-se o dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico olavista, a saber, de que o âmbito horizontal da vida humana frente ao universo e à eternidade, demarcado por materialismo, positivismo, perspectivismo, história, política e ação institucional-social intersubjetiva é meramente ideologia, o lugar da não-verdade, da degeneração e da perdição. Aliás, emerge aqui mais uma consequência dessa recusa da ontoteologia como espiritualismo e do intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado por parte dessa mesma modernidade materialista, cética, relativista e ideológica, a saber, como já dizíamos acima, a deslegitimação e a desumanização do homem de bem e a promoção do criminoso como vítima da sociedade. Olavo de Carvalho diz:

Humanizar a imagem do delinquente, deformar, caricaturar até os limites do grotesco e da animalidade o cidadão de classe média e alta, ou mesmo o homem pobre quando religioso e cumpridor dos seus deveres - que neste caso aparece como conformista desprezível e virtual traidor da classe -, eis o mandamento que uma parcela significativa dos nossos artistas tem seguido fielmente, e a que um exército de sociólogos, psicólogos e cientistas políticos dá discretamente, na retaguarda, um simulacro de respaldo “científico” (CARVALHO, 2018, p. 113).

Ora, é contra essa degeneração da moral e dos bons costumes (no sentido de recusa da tradição ontoteológica como determinação biológico-religiosa da antropologia-cultura-normatividade, individualismo econômico e privatismo apolítico-despolitizado) e contra a negação do indivíduo (no sentido de intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado, bem como de meritocracia e de responsabilização exclusivamente pessoais), causadas pela modernidade iluminista, materialista, cética, relativista e ideológica através do protagonismo institucional e cultural da ciência empírico-normativa em bloco e da ação concertada dos intelectuais públicos que Olavo de Carvalho direciona sua militância teórico-prática. Em primeiro lugar, seu objetivo consiste em devolver a centralidade a esse indivíduo assolado pelo coletivismo, pelo estatismo e pelo clientelismo dos intelectuais esquerdistas. Nesse sentido, Olavo de Carvalho nega qualquer estrutura intersubjetiva “abstrata” e qualquer “roupagem ideológica” que se sobreponha ao indivíduo “de carne e osso”, querendo muito provavelmente significar com isso a promoção de uma identidade individual existente de modo íntimo e anterior a essa localização espacial, temporal, cultural e normativa (realmente não dá para saber o que resta da identidade individual quando retiradas todas essas condições contextuais, vinculantes e carnais, por assim dizer). Sobre isso, Olavo de Carvalho nos diz de modo enfático:

[...] regra que me impus alguns anos atrás, de nunca falar impessoalmente nem em nome de alguma entidade coletiva, mas sempre diretamente em meu próprio nome apenas, sem qualquer retaguarda mais respeitável que a simples honorabilidade de um animal racional, bem como de nunca me dirigir a coletividades abstratas, mas sempre e unicamente a indivíduos de carne e osso, despidos das identidades provisórias que o cargo, a posição social e a filiação ideológica superpõem àquela com que nasceram e com a qual hão de comparecer, um dia, ante o trono do Altíssimo. Estou profundamente persuadido de que somente nesse nível de discurso se pode filosofar autenticamente (CARVALHO, 2018, p. 33).

Perceba-se, primeiramente, esse contraponto radical entre “coletividades ou estruturas abstratas” e o indivíduo “de carne e osso”, como que em uma perspectiva de autoexclusão recíproca - perceba-se, inclusive, a própria ideia seja de que entidades coletivas são abstratas, e não propriamente núcleo estruturante da própria autocompreensão normativo-simbólica das identidades pessoais (inclusive de sua formação ao longo do tempo), seja de que há um indivíduo de carne e osso - todos como indivíduos de carne e osso -, por um lado, e, por outro, também há “identidades provisórias” (cargo, posição social, filiação ideológica) que, como exterioridade, como epiderme (esse termo, inclusive, foi citado por Olavo de Carvalho para se referir às ideologias), simplesmente se diferenciam de modo essencial (na verdade, essas identidades provisórias são acidentais, de modo que essencial mesmo é somente a alma, o espírito). Ou seja, há a entidade coletiva abstrata versus o indivíduo de carne e osso; há as “identidades provisórias” versus a identidade “com a qual os indivíduos nasceram” e, finalmente, há a ideologia (a epiderme, a vestimenta, o acidente) e o espírito com o qual um dia todos compareceremos ante o “trono do Altíssimo”, prestando contas diretamente a ele do que fizemos e do que não fizemos. Note-se, finalmente, e aqui já entraríamos no segundo objetivo básico da militância teórico-prática de Olavo de Carvalho contra a modernidade, a ciência e os intelectuais públicos materialistas, céticos, relativistas e ideológicos, que, como pudemos ver no final da passagem acima, o “indivíduo de carne e osso”, isto é, a identidade com a qual “cada indivíduo nasceu”, retornará um dia a Deus. Essa passagem, por isso mesmo, resume o dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico de Olavo de Carvalho como autoexclusão recíproca entre a esfera vertical do espírito e o âmbito horizontal da matéria e, nesse sentido, aponta para o - assim como reforça o - método olavista de desvelamento da verdade, isto é, seu intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado, a partir da correlação de identidade e unidade de alma humana e Deus e de Revelação e graça divina. Ora, a militância teórico-prática de Olavo de Carvalho direciona-se de modo pungente a uma crítica implacável da modernidade que exige exatamente uma perspectiva antimoderna e antimodernizante, tal como ele a define com as seguintes palavras:

Tarefa que é, em essência, a de romper o círculo de limitações e constrangimentos que o discurso ideológico tem imposto às inteligências deste país, a de vincular a nossa cultura às correntes milenares e mais altas da vida espiritual no mundo, a de fazer em suma com que o Brasil, em vez de se olhar somente no espelho estreito da modernidade, imaginando que quatro séculos são a história inteira do mundo, consiga se enxergar na escala do drama humano ante o universo e a eternidade. Tarefa que é, no seu mais elevado e ambicioso intuito, a de remover os obstáculos mentais que hoje impedem que a cultura brasileira receba uma inspiração mais forte do espírito divino e possa florescer como um dom magnífico a toda a humanidade (CARVALHO, 2018, p. 33).

Por outras palavras, é necessário sair da modernidade, abandonar a modernidade, isto é, a intersecção de materialismo, ceticismo, relativismo e ideologia gerada pela ciência empírico-normativa moderna e propagada pelos intelectuais públicos caudatários dessa mesma modernidade. O objetivo de Olavo de Carvalho, assim, consiste em esclarecer-nos ante o verdadeiro drama humano frente ao universo e à eternidade, e esse drama humano, como vimos ao longo do texto, não pode ser desvelado e resolvido nem por essa modernidade materialista, cética, relativista e ideológica, nem pelos seu espaço, pelos seu instrumento e pelo seu valor basilares, a saber, a história, a política e a ação institucional-social intersubjetiva, incluindo-se a própria ciência positivista-perspectivista. A cultura brasileira precisa retomar a ontoteologia, mas, observe-se bem, a ontoteologia a la Olavo de Carvalho, enquanto dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico espiritualista e antimaterialista através de um intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado, demarcado seja pela unidade e pela identidade entre alma e Deus, seja pela centralidade da Revelação (nesse sentido dado a ela por Olavo de Carvalho, obviamente), seja, então, como fecho de abóboda, complementado pela graça divina na pessoa de Jesus Cristo. Nessa posição, portanto, tudo o que não é espiritualista, isto é, tudo o que não é “indivíduo de carne e osso”, “intuição interior direta”, e tudo o que não se dá como Revelação enquanto determinação biológico-religiosa da antropologia-cultura-normatividade, é ideologia, de modo que temos, como consequência, o fim da ciência, o fim da política, o fim das instituições e o fim da ação institucional-social, seja intersubjetiva, seja, como vimos em passagem acima, propriamente subjetiva. Temos uma sociedade de mônadas espiritualistas que não saem do seu quartinho, temos um diálogo privatista com a objetividade, temos uma intuição direta do sentido do mundo e do homem. Em suma, estamos voltados para nós mesmos como espíritos exclusivistas, como interioridades absolutas, e isso é suficiente para o conhecimento objetivo, para a autorrealização pessoal e para a resolução de nossos problemas - na verdade, parcialmente suficiente, pois precisamos, de modo inultrapassável e complementar, da graça divina na pessoa de Jesus Cristo. Pronto, com estas condições resolvemos nosso drama pessoal ante o universo e a eternidade, mandamos Behemot e Leviatã para os quintos dos infernos, ou melhor, para os quintos da modernidade e, finalmente, nos alçamos diretamente diante do trono do Altíssimo para prestar-lhe contas, a ele exclusivamente, sobre tudo o que fizemos, esperando sua benevolência garantidora da vida eterna. Aqui chegados, descobrimos que não é Francis Fukuyama o arauto do fim da história, do fim da política, do fim das ideologias, mas exatamente Olavo de Carvalho, assim como descobrimos que não é Friedrich Nietzsche o filósofo do fim da modernidade, mas, mais uma vez, Olavo de Carvalho. Temos disponível, agora, seja a explicação para todos os males do mundo, seja a rota para a resolução deles, o dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico olavista como autoexclusão entre espírito e matéria; e temos acessível, cada um de nós, indivíduos, sem necessidade de mediações institucionalistas, cientificistas e tecnicistas, o método olavista de produção da objetividade epistemológico-moral, de interpretação e de resolução do drama humano frente ao universo e à eternidade e de contato com a Verdade absoluta, capaz de vencer a Behemot e a Leviatã, a saber, o intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado. E, sortudos que somos, ainda temos mais: a Revelação e a graça divina, que dão o empurrãozinho que nosso espírito recalcitrante necessita para fugir do mundo, da história, da política, da intersubjetividade e refugiar-se em si mesmo como autossuficiência, chegando a partir dali diretamente a Deus. Só faltava um governo alinhado a essa perspectiva para termos um enfrentamento prático-político (já que o de Olavo de Carvalho se direciona mais ao âmbito teórico) contra a modernidade, a ciência e os intelectuais públicos. Não falta mais!

Bolsonaro sempre alertou: no Brasil, tão ou mais grave que a corrupção, é a questão ideológica. O dinheiro roubado pode ser recuperado, já a liberdade, não! A esquerda usa os legítimos instrumentos da democracia, como o voto e o funcionamento dos poderes, para corrompê-la e se perpetuar no poder (BOLSONARO, 2017, p. 130-131).

Considerações finais

Aqui chegados, interessa-nos discutir um pouco mais sobre esse dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico olavista enquanto autoexclusão de espírito e matéria, bem como sobre a proposta, por Olavo de Carvalho, de seu método de acesso à Verdade absoluta e de resolução do drama humano ante o universo e a eternidade, a saber, seu intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado, em termos de unidade e identidade diretas entre a alma e Deus, mediada pela Revelação e auxiliada pela graça divina na pessoa de Jesus Cristo. Como vimos ao longo do texto, todos os problemas humanos se devem à negação ou à destruição dessa linha vertical demarcada exatamente pelo espírito e pelo seu acesso direto a Deus via interiorização intuicionista, espiritualista, personalista e privatista. Todos os problemas do mundo, nesse sentido, são causados pela primazia da esfera horizontal da necessidade natural como materialidade, que se ramifica em ciência (postura positivista-perspectivista), história (espaço da não-verdade) e política (ideologia ilimitada, totalizante e totalitária). Dessa descrição dos males humanos e do caminho de saída da perdição em que os seres humanos se encontram, radicalizada pela modernidade iluminista, materialista, cética, relativista e ideológica, tal como nos apresenta e nos propõe Olavo de Carvalho, gostaríamos de salientar alguns problemas estruturais, para além da supersimplificação, da falsidade teórica e da estupidez propriamente ditas, assumidas por este autor.

Salta aos olhos, em primeiro lugar, que esse dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico como autoexclusão recíproca entre espírito e matéria utilize de modo desbragado e generalista o termo ideologia para se referir aos adversários de Olavo de Carvalho, desde Gandhi, passando por Mao-Tsé-Tung, por Winston Churchill e chegando-se até a Fritjof Capra (como vimos na passagem final, a crítica da ideologia, o combate à ideologia também é a meta de vida de Jair Messias Bolsonaro, inclusive agora, que é presidente da República e cabeça de um movimento coletivo que podemos chamar de bolsonarismo, com caráter antimoderno, antimodernizante, antissistêmico e anti-institucional). Tentando dar um contorno sintético e sistemático a esse conceito em Olavo de Carvalho, já que este autor não o faz, podemos perceber que, em seu pensamento, o termo ideologia significa e abarca tudo aquilo que é: (a) material, materialidade, materialismo, no sentido de fato empírico, de autorreferencialidade do fato empírico, o que leva ou ao perspectivismo (fato é uma interpretação construída, dependente de um contexto), ou ao idealismo (fato é uma ideia, ideia é o fato), ou ao subjetivismo (interpretação pessoal, que recusa a própria objetividade do fato), ou, finalmente, à cisão entre noumeno e fenômeno, com o que teríamos a não-correlação entre o que é e o que deve ser - o materialismo, portanto, não só não permite conhecimento objetivo, como também não gera correção e obrigatoriedade moral, contrapondo-se de modo fundamental à ontoteologia e, nesse caso, à condição essencialista e naturalizada do mundo material e humano, única condição geradora seja de conhecimento objetivo, seja de substantividade conceitual, seja, finalmente, de fundamentação e rigor morais; (b) coletivo, intersubjetivo, institucional e estrutural, colocando em xeque o indivíduo, seu espírito, sua autonomia, sua meritocracia, sua capacidade pessoal de acessar por si mesmo e desde dentro de si mesmo, via interiorização intuitiva, personalista, privatista e espiritualista, à Verdade, bem como de vencer na vida, de modo que, com a primazia das estruturas sociais, das instituições públicas e dos macrossujeitos políticos (da sociedade, da classe etc.) sobre o indivíduo, teríamos sempre a determinação heterônoma da subjetividade e, assim, sua anulação; (c) tudo aquilo que é histórico e político, isto é, que se dá no espaço e no contexto da história humana, coletiva e pessoal, e que se realiza por meio do instrumento da ação coletiva-individual no âmbito da intersubjetividade e das instituições; e (d) tudo aquilo que é metodológico, no sentido de uma atividade científica estrutural e mediada, sob a forma de comprovação, verificação e validação teórico-institucional e de linguagem lógico-matemática técnica e em termos de mensuração e de comprovação empírica das regularidades. Portanto, só não são ideológicos: (a) a ontoteologia, no sentido de primazia do espírito sobre a matéria, em termos seja de Revelação, seja de determinação biológico-religiosa (fundamentos essencialistas e naturalizados) da antropologia-cultura-normatividade; (b) o indivíduo de “carne e osso”, despido de todas as suas vestes em termos de cargo, posição social e compreensões ideológicas de mundo; e (c) o intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado como método não-estrutural e antissistêmico de acesso à Verdade absoluta e em termos de unidade, identidade e contado diretos entre o indivíduo e Deus. Tudo o que é sistêmico, no sentido de totalizante, estrutural e interdependência histórico-políticas, é ideológico. Ora, se Olavo de Carvalho fosse de fato coerente com o que pensa, deveria inclusive parar de comer, quanto mais publicar seus livros, uma vez que isso é e exige mediação comum, intersubjetividade estrutural e objetividade no mínimo linguístico-conceitual - sem algo comum e sem instância mediadora intersubjetiva, nem a Revelação, nem o dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico e nem o intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado seriam possíveis! Alguém, um bom samaritano como Olavo de Carvalho, em sua luta abnegada e árdua contra a academia e a esquerda comunista como um todo, precisa vir em apoio objetivo, público, intersubjetivo, estrutural e metodológico às vítimas da modernidade, às cobaias da ciencia e dos intelectuais públicos.

Em segundo lugar, é importante salientar-se sua proposta de um método anti-estrutural e antissistêmico de acesso à Verdade absoluta e de resolução do drama humano ante o universo e a eternidade que permitiria a cada indivíduo a vitória sobre Behemot e Leviatã e o contato direto com Deus sem necessidade da mediação científica, do protagonismo acadêmico, da práxis política, da intersubjetividade vinculante e, finalmente, da centralidade das instituições públicas. O intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado de Olavo de Carvalho se propõe como a única plataforma de acesso à Verdade absoluta, de superação do materialismo, de derrocada de Behemot e de Leviatã, de contato direto entre o indivíduo que o utiliza e Deus e, finalmente, mas não menos importante, de desvelamento de tudo o mais abaixo do espírito puro e sem vestes como materialismo, ceticismo, relativismo e ideologia. Recorde-se, antes de prosseguirmos na análise - se possível for, não estamos muito confiantes em nossa capacidade! - do método olavista, que ele acusou exatamente a modernidade iluminista, pense-se aqui na sua passagem sobre Richard Rorty logo no início do primeiro capítulo, de, na medida em que se centra no materialismo e, portanto, seja na autorreferencialidade do fato empírico, seja no consequente perspectivismo simbólico-semântico-normativo em torno a ele, de ser e de levar à mera logomaquia, a discussão sobre palavras sem fundamento, que leva a mais discussão sobre palavras vazias e arbitrárias. Ora, na medida em que, por causa desse materialismo como positivismo e perspectivismo, a modernidade nega seja a Revelação, seja a determinação religioso-biológica da antropologia-cultura-normatividade, seja, então, a precedência de uma posição pré-cultural, pré-política e a-histórica como espiritualismo e fundamentação essencialista e naturalizada, ela perde e abdica de qualquer possibilidade de conhecimento objetivo e, assim, já não tem mais condições de justificar racionalmente suas crenças, seus princípios estruturantes, seus conteúdos cognitivo-morais, os quais se tornam ideológicos e impelem a uma postura propagandista, marqueteira, partidária e massificadora - ao ponto de a modernidade, a ciência e os intelectuais modernos ganharem no grito acerca do que é e do que não é objetivo epistemologicamente e do que é e do que não é certo moralmente. Entretanto, agora que descobrimos e reconstruímos o dualismo-maniqueísmo ontológico-antropológico olavista como autoexclusão entre espírito e matéria e, mais ainda, o seu método de acesso à Verdade absoluta, de resolução do problema representado por Behemot e Leviatã e, assim, de desvelamento das ideologias materialistas, nos damos conta de que, para Olavo de Carvalho, somente em termos de intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado o indivíduo consegue chegar à objetividade (ele não a produz, obviamente, e nem pode entendê-la a partir de teorias estruturais, positivistas e intersubjetivas em relação à materialidade). Ora, em seguindo a proposta de Olavo de Carvalho, a Revelação só se manifesta a cada indivíduo - já que não existem “coletividades abstratas”, sequer pode existir a comunidade religiosa, a Igreja e, de modo ainda mais pungente, a própria tradição judaico-cristã, a ontoteologia greco-latino-árabe-medieval e mesmo a cultura renascentista, que são concepções genéricas, nunca individualizadas, antissistêmicas e não-estruturais de homem, de mundo, de saber, de instituição, de intersubjetividade, de natureza humana e de escatologia e teodiceia. No mesmo diapasão, mais uma vez segundo a proposta de Olavo de Carvalho, o acesso à Revelação, isto é, seja o conhecimento da Verdade absoluta, seja o contato e a interação diretos e imediatos entre o indivíduo e Deus, somente é possível por esse intuicionismo interiorizado, personalista, particularista e espiritualista, próprio e realizado apenas por cada indivíduo desde seu íntimo, como privatismo. Porém, se assim for, como cada indivíduo “saberia” efetivamente acessar desde seu interior à Verdade absoluta e dialogar com Deus ou, ainda, como ele teria consciência que está no caminho certo, de que não é meramente um sujeito com esquizofrenia? Ora, ele simplesmente não teria nenhum critério racional e nenhum parâmetro objetivo para avaliação, posto que, entre ele e Deus, entre ele e o texto sagrado, não há um mediador, um terceiro sujeito-princípio-instituição. Portanto, ao contrário do que Olavo de Carvalho nos diz, é exatamente ele e sua posição simplista em termos desse dualismo-maniqueísmo e desse intuicionismo interiorizado que não possuem nenhuma condição de gerar critérios racionais garantidores de conhecimento objetivo e de ação moral escorreita. Talvez por isso ele tenha recorrido à graça divina e à ajuda de Jesus Cristo, mostrando exatamente seja a impotência de sua teoria, seja, antes de tudo, sua incapacidade de compreender tanto a modernidade quanto a tradição judaico-cristã, a ontologia greco-latino-medieval e a cultura renascentista. E, finalmente, é essa visão simplificadora e estéril incapaz de gerar, assumir e utilizar critérios racionais, objetividade epistêmica e correção moral que o leva à desonestidade intelectual inveterada, como seu vício mais básico, ao ponto de mentir, caricaturizar e falsificar o debate teórico-prático desenvolvido em termos de ciência moderna. Finalmente, esse método olavista, com caráter anti-estrutural e antissistêmico, demarcado exatamente como um exercício intuitivo de interiorização pessoal, privatista e espiritualista, através da identidade, do contato e do acesso direto do indivíduo para com Deus, leva ao perigo de negação não só da modernidade, mas também de toda a tradição que Olavo de Carvalho julga se basear, defender e promover, isto é, com seu intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado com caráter antissistêmico, não-estrutural, anti-objetivo e anti-institucional, Olavo de Carvalho nega toda a tradição judaico-cristã, a ontoteologia greco-latina-medieval e a cultura renascentista, porque toda ela depende de uma Revelação mediada institucional, sistemática e intersubjetivamente tanto pelos textos religiosos fundadores e canônicos quanto pelas comunidades religioso-clericais que, por meio da legitimação interna e verticalizada qua instituição, aplicam-nos aos crentes em geral - portanto, não há acesso direto a Deus e, de modo mais específico, à compreensão do texto por parte de cada indivíduo interiormente, intuitivamente, mas desde a mediação eclesial, clerical e através da centralidade da doutrina objetiva, o que significa que tradição, ontologia e teologia são doutrina objetiva, sistemática, estrutural, institucional e, assim, intersubjetiva, sempre mediadas e dependentes da centralidade das instituições (infelizmente para ele, Olavo de Carvalho terá de fazer graduação, mestrado e doutorado!). Sem doutrina sistemática, tradição objetiva e estrutural e prática institucionalizada de interpretação e reinterpretação dos textos, simplesmente não há religião, Revelação. Aliás, não há nada, nem o próprio indivíduo, posto que, como falamos acima, se a posição olavista fosse correta ou coerente, deveria nos fazer todos assumirmos a posição de um vegetal ou voltarmo-nos completamente para nosso interior, sem qualquer relacionalidade, intersubjetividade e perspectiva estrutural - deveríamos regredir a uma posição anterior ao nosso nascimento (talvez até anterior à própria fecundação), posto que, a partir dele, somos seres inseridos e dependentes exatamente de um contexto relacional, intersubjetivo e estrutural, somos seres dependentes das outras pessoas.

Finalmente, em terceiro lugar, como vimos ao longo do segundo capítulo, o intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado como único método de acesso à Verdade absoluta e à compreensão e à resolução do drama humano ante o universo e à eternidade, bem como para se vencer Behemot e Leviatã e para se desvelar as ideologias materialistas, descamba para um ideal de meritocracia e de autonomia individual que nega a intersubjetividade, a socialização e as dinâmicas institucionais e sociais estruturais. Ora, se essa dupla perspectiva do método olavista (intuicionismo espiritualista, personalista, privatista e interiorizado; meritocracia e responsabilização individual exclusivas) for levada a sério, e parece que ele tem muitos adeptos atualmente, inclusive e principalmente um certo presidente da República, a consequência está exatamente na impossibilidade e, no limite, no fim da ciência, da política, do trabalho das instituições públicas, da ação intersubjetiva e mesmo da própria ação individual. Como vimos ao longo do texto, a ciência, a história e a política são materialistas e, por isso mesmo, céticas, relativistas e ideológicas, produzindo logomaquias várias, todas falsas, massificadoras, instrumentalizadoras e degeneradas, as quais não resolvem o drama individual ante o universo e a eternidade e agudizam a supremacia e a pungência do conflito de Behemot e de Leviatã. Nesse sentido, a ação institucional-social intersubjetiva, na medida em que se funda no materialismo, não possuindo qualquer base de verdade, qualquer resquício de racionalidade e qualquer comprometimento moral, descamba para um coletivismo, para um estatismo e para um clientelismo totalizantes contra os indivíduos, anulados em sua meritocracia. Entretanto, também vimos ao longo do texto que, para Olavo de Carvalho, a própria ação política dos indivíduos é um equívoco, porque, se dá certo, ela solidifica neles o espírito de revolta às normas e de dependência e de vício relativamente às instituições públicas e, se dá errado, fomenta o desânimo, a inação e a impotência. Portanto, nem a ação intersubjetiva, nem a atuação estrutural das instituições públicas e nem mesmo a ação individual social, política e institucionalmente servem para resolver os problemas humanos, restando essa interiorização privatista, personalista, espiritualista e intuitiva das mônadas humanas, necessitadas apenas de Deus e acessando-o diretamente desde dentro de si mesmas, e de nada mais. Ou seja, mais uma vez se a proposta de Olavo de Carvalho for levada a sério temos a inação absoluta, a interiorização impotente e um espiritualismo simplificador que não nos dá nenhum critério objetivo, nenhum princípio estruturante e nenhuma saída moral. Temos a negação de tudo, da modernidade à tradição judaico-cristã, das ciências em bloco à ontologia e à teologia, da coletividade ao indivíduo. Só restará uma máxima vazia, uma orientação errática e, por fim, o silêncio completo: “Método olavista como intuicionismo personalista, privatista, espiritualista e interiorizado: gratuito, não comprovado por ninguém, visto apenas pelos olhos da alma! Por meio dele, você, homem comum, sem diploma universitário, pode se livrar dos intelectuais degenerados e opressores e alcançar diretamente e sem mediações à Verdade absoluta. Disponível no Youtube. Não se pode lê-lo, porque a leitura depende de interpretação sistemática e mediada, e isso é ideologia anuladora do indivíduo, mas também não se pode ouvi-lo, porque também nesse caso você dependerá de mediação e interpretação, no caso pelo próprio mestre Olavo de Carvalho, e isso mais uma vez é ideologia que anula a individualidade! Força, você é capaz de descobrir o mundo por si mesmo! Adentre em seu íntimo e intuitivamente alcance a Verdade absoluta! Confie na graça divina e a busque, embora você não saberá quando e como achá-la, nem terá certeza por si mesmo se a achou, dependendo de Jesus Cristo! Mas, espere, isso também é mediação e, portanto, ideologia! Enfim, já não sei mais de nada! Se vire você mesmo! Espere novamente: ‘se virar por si mesmo’, como método estrutural, é válido intersubjetivamente, mas isso também é ideologia! Zzzz... De todo modo, acredite em mim, não acredite nos intelectuais! Mas isso é mediação de novo, de novo ideologia! Zzzz...”.

Referências

BOLSONARO, Flávio. Jair Messias Bolsonaro: mito ou verdade? Rio de Janeiro: Tiziano Editorial, 2017. [ Links ]

CARVALHO, Olavo. O imbecil coletivo. Rio de Janeiro: Record, 2018. [ Links ]

FORST, Rainer. Contextos da justiça: filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo. São Paulo: Boitempo, 2010. [ Links ]

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RORTY, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. [ Links ]

1Essa posição, entretanto, é uma completa falsificação e deturpação da justificação pós-tradicional ou pós-metafísica. Sobre isso, pode-se conferir: HABERMAS, 1990, p. 11-104; HABERMAS, 1989, p. 17-60; HABERMAS, 2004, p. 09-67; RORTY, 1994, p. 351-386.

Recebido: 03 de Dezembro de 2020; Aceito: 15 de Junho de 2022

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