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Educação e Filosofia

versão impressa ISSN 0102-6801versão On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.36 no.77 Uberlândia maio/ago 2022  Epub 29-Jan-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v36n77a2022-64147 

Artigos

Narrativa e formação humana: uma abordagem a partir do pensamento de Paul Ricœur

Narrative and human formation: an approach from Paul Ricœur’s thought

Narration et formation humaine : une approche à partir de la pensée de Paul Ricœur

*Doutor em Educação pela Universidade de Passo Fundo e doutorado sanduíche na École des hautes études en sciences sociales-Paris e no Fonds Ricoeur. Professor no curso de Teologia do Instituto de Teologia e Pastoral. Email: regiano_bregalda@hotmail.com.


Resumo

Este artigo aborda a compreensão de formação humana na perspectiva da narrativa em Paul Ricœur, partindo da obra O si mesmo como outro. Parte-se da compreensão de que a narrativa não se esgota em seu enredo linguístico, mas, por facultar a elaboração das experiências, ela promove a atribuição de sentido e a significação da existência, sendo constituidora do sujeito. A pergunta que orienta este estudo é: em que medida a narrativa possibilita pensar uma noção alargada de sujeito, capaz de o auxiliar a fazer a leitura de suas experiências e do mundo? Nossa hipótese é de que no vínculo entre experiência e narrativa - que se dá no e pelo diálogo - é que os sentidos são atribuídos, o qual oportuniza alargar as compreensões e significações de si mesmo, do outro e do mundo, permitindo postular uma noção alargada de formação humana. Para dar conta desse ensejo, dividimos este estudo em três seções, buscando primeiramente encontrar, na ideia de narrativa, aspectos que possibilitam compreender a constituição do sujeito. Na segunda seção, evidenciamos a perspectiva formativa da narrativa enquanto autoformação. E, em um terceiro momento, perscrutamos alguns traços da narrativa que possibilitam pensar a formação do sujeito renovada e alargada, capaz de ser luz aos desafios contemporâneos de uma sociedade complexa e plural.

Palavras-chave: Narrativa; Experiência; Paul Ricœur; Formação humana; Educação

Abstract

This article approaches the understanding of human formation from the perspective of narrative in Paul Ricœur’s work Oneself as another. It is based on the understanding that the narrative is not limited by its linguistic plot, but, because it allows the elaboration of experiences, the narrative provides the attribution of meaning and the significance of existence, being constitutive of the subject. The question that guides this study is: to what extent does narrative make it possible to think about an enlarged notion of subject, capable of contributing to the reading of one’s experiences and of the world? Our hypothesis is based on the bond between experience and narrative - which occurs in and through dialogue - is that meanings are attributed, which provides the opportunity to enlarge understandings and significations of oneself, of the other, and of the world, allowing the postulation of an enlarged notion of human formation. To accomplish this purpose, we divided this study into three sections, searching firstly to find in the idea of narrative, aspects that enable to understand the constitution of the subject. In the second section, we emphasize the formative perspective of narrative as self-formation. And, in a third moment, we analyze some traces of the narrative that permit the thinking of a renewed and enlarged subject formation perspective, capable of being light to the contemporary challenges of a complex and plural society.

Keywords: Narrative; Experience; Paul Ricœur; Human Formation; Education

Résumé

Cet article porte sur la compréhension de la formation humaine du point de vue de la narration dans l’œuvre de Paul Ricœur, Soi-même comme un autre. Cette approche vise à comprendre que le récit ne s’épuise pas uniquement dans sa trame linguistique, mais qu’en permettant l’élaboration d’expériences, il favorise l’attribution de sens et de signification à l’existence, étant constitutif du sujet. La question qui guidera cette étude est la suivante : dans quelle mesure le récit permet-il de penser une notion élargie du sujet, capable de lui permettre de lire ses expériences et le monde ? Notre hypothèse est que dans le lien entre l’expérience et le récit - qui se produit dans et par le dialogue - que les sens sont attribués, ce qui offre la possibilité d’élargir les compréhensions et les significations de soi-même, de l’autre et du monde, permettant ainsi de postuler une notion large de la formation humaine. Afin de rendre compte de cette aspiration, nous avons divisé cette étude en trois sections, en cherchant d’abord à trouver dans l’idée de récit, des aspects qui permettent de comprendre la constitution du sujet. Dans la deuxième section, nous soulignons la perspective formative de la narration en tant qu’auto-formation. Et, dans un troisième temps, nous chercherons à scruter certains traits du récit qui nous permettent de penser à la formation d’un sujet renouvelé et élargi, capable de faire face aux défis contemporains d’une société complexe et plurielle.

Mots-clés: Récit; Expérience; Paul Ricœur; Formation humaine; Éducation

Introdução

Nossa época se caracteriza concomitantemente pelo afastamento do horizonte de expectativas e por um encolhimento do espaço da experiência. Sofrida passivamente, essa ruptura faz do presente um tempo de crise, no duplo sentido de tempo de juízo e de tempo de decisão. Na crise, exprime-se a distensão própria à condição histórica, homólogo da distentio animi agostiniana. O presente é todo ele crise quando a expectativa se refugia na utopia e quando a tradição se transforma em depósito morto. (RICŒUR, 2016, p. 339)

A contemporaneidade é marcada por múltiplos desafios que afetam as dimensões pessoais e interpessoais do sujeito. Diríamos que se trata de uma fragilidade da própria condição do ser sujeito, que o impossibilita, em sentido Ricœuriano, identificar-se como sujeito capaz. Esse desafio não é exclusividade do contexto atual; todavia, é enaltecido por essa sociedade reconhecida como plural e complexa (CENCI; MARCON, 2016), marcada inegavelmente por uma aceleração das mudanças sociais, pela individualização do sujeito e pelos novos papéis sociais. Trata-se de um momento de crise.

A perplexidade desse novo contexto não espanta apenas pela imediatez das relações, mas especialmente pela ausência de sentido e significado àquilo que acontece, às experiências. Jean-François Mattéi (2002, p. 12) afirma que essa civilização é marcada pela “barbárie interior”, ou seja, pelo “colapso humano e a sua regressão a uma violência despida de significado”. Essa ausência de significação fragiliza a capacidade reflexiva, aquela que dá ao sujeito condições de fazer por si mesmo a leitura de mundo, de se formar e se autoformar. O sujeito torna-se incapaz de compreender as próprias experiências e aquilo que lhe afeta diretamente em todos os seus sentidos. Tal incapacidade impede, entre tantas coisas, a consciência de si e do outro, o compreender-se responsável pelos próprios atos e pelas mudanças que causa no curso do mundo, bem como tolhe o reconhecimento das mazelas do agir humano e da percepção das injustiças sociais.

Desse modo, o pensamento de Ricœur oferece algumas contribuições para problematizar esses temas. Primeiramente, por dialogar com inúmeras tradições teóricas, o que lhe dá competência e legitimidade de pensamento; também por pautar-se por um método reflexivo-fenomenológico, explicitando a experiência como fundamento de suas reflexões; e, por fim, que é o que mais nos interessa, o autor busca compreender e problematizar acerca do sentido da vida e, para isso, ancora-se na perspectiva da narrativa. Para o filósofo, a compreensão e a formação do sujeito são frutos da capacidade de interpretar as experiências, o que é, per si, um trabalho hermenêutico. Entretanto, esse percurso não acontece apenas no âmbito da linguagem, mas também da ação, pois, para ele, o sujeito é compreendido de maneira alargada, como um ser falante, agente, narrador e capaz de imputar moralmente.

O objetivo desse estudo não é apenas realizar uma análise histórica do pensamento Ricœuriano, pois muitos autores já o fizeram. O nosso interesse é pela narrativa. Não exclusivamente acerca do que é a narrativa1, seu enredo, personagem, autor e leitor, mas trata-se da busca por evidenciar a força da narrativa como formadora do sujeito. Desse modo, as perguntas que orientaram as linhas que seguem são assim pontuadas: em que medida a narrativa permite pensar uma noção alargada de sujeito, capaz de o auxiliar a fazer a leitura de suas experiências e do mundo? O que há na narrativa que promove pensar uma noção alargada de formação humana?

A narrativa, para Ricœur, é linguagem, e esta é diálogo. Diálogo é a relação recíproca das pessoas que se dá na e pela palavra. Ao pronunciar a palavra, o sujeito pronuncia-se, revela-se e dá-se a conhecer. Através do diálogo, os sujeitos se anunciam e se revelam, oportunizando que as consciências se encontrem e se ponham em confronto, facultando o reconhecimento mútuo. Assim, só é possível pensar a formação humana pelo diálogo. Neste traço reside o elemento que ancora a ideia de formação humana no sentido Ricœuriano, pois é pela experiência narrativa que o sujeito compreende a si mesmo, uma vez que “a compreensão de si é uma interpretação; a interpretação de si, por sua vez, encontra na narrativa [...], uma mediação privilegiada” (RICŒUR, 2014, p. 112). A narrativa como provedora do diálogo possibilita ao sujeito compreender-se como um ser de relações e, ao mesmo tempo, capaz de significar e ressignificar suas experiências. É nessa perspectiva que apontamos a hipótese deste trabalho, que repousa no entendimento de que, no vínculo entre experiência e narrativa, reside a contribuição nuclear do pensamento Ricœuriano à formação humana, visto a narrativa ser formadora do horizonte de sentido, que impulsiona a compreensão e significação de si mesmo, do outro e do mundo.

Para clarear esse percurso, no presente texto, optou-se por fazer uma incursão na obra O si mesmo como outro2 e buscar nela elementos que auxiliem a compreender a formação do sujeito na perspectiva da narrativa. Nessa obra, Ricœur se ocupa em estreitar o vínculo entre a narrativa e a ética e começa fazendo a seguinte questão: quem sou eu? A resposta a essa pergunta reside, segundo Ricœur, na hermenêutica do si, cujo elemento sistematizador desse horizonte aponta para a narrativa, aquela que significa o existir e o atribuir sentido e significado àquilo que acontece.

Para dar conta destes elementos, dividiu-se este estudo em três seções, buscando primeiramente encontrar na ideia de narrativa aspectos que possibilitam compreender o sujeito e sua constituição. No segundo momento, aborda-se a perspectiva formativa da narrativa. E, por fim, se buscará apontar alguns elementos presentes na ideia de narrativa Ricœuriana que possibilitam pensar a formação do sujeito e lançar luzes aos processos educativos.

A narrativa como constituidora de si-mesmo

Ricœur, na obra Soi-même comme un autre (O si-mesmo como outro), desenvolve uma filosofia do sujeito, visto a intenção principal da obra ser a de identificar o que constitui o si-mesmo. Para isso, recupera autores como Heidegger, Arendt, Davidson, Parfit, Taylor, Schapp, Kant, Propp, Nietzsche, Butler, Locke, Hume etc., que lhe dão suporte para ancorar a primeira parte de seu projeto. Ele divide sua obra em dez capítulos, visando em cada um deles explorar a constituição de si, que é atravessada pela perspectiva linguística, fenomenológica, hermenêutica e ética. Para dar conta deste ensejo, o autor inicia sua análise pela filosofia da linguagem (capítulos I e II), ponderando, a partir da semântica e da pragmática, a complexidade entre ação e agente. Nestes estudos iniciais, seu intuito, partindo da indagação quem?, busca evidenciar a primeira e mais frágil identificação do si, que se dá na e pela enunciação. Seguindo esse propósito, avança (capítulos III e IV) recorrendo à filosofia da ação, que, todavia, está intrinsecamente ligada à linguagem, visto Ricœur justificar que “é pelos atos da fala que o agente se designa como aquele que age” (RICŒUR, 2014, p. XXXII)3. Linguagem e ação não são perspectivas dicotômicas, mas extensões uma da outra, ou seja, elas se conectam, relacionam-se e se completam. Somente depois de demarcados esses traços é que o autor buscará desenvolver sua teoria narrativa (capítulos V e VI), ancorando-a na ideia de identidade narrativa, que é revelada “pela dialética da ipseidade e da mesmidade” (RICŒUR, 1990, p. 167, tradução nossa)4. É narrando que o ser humano é capaz de significar seu existir e fazer uma hermenêutica da vida. É sob essa última ideia que nos ocuparemos nas linhas que se seguem.

Ricœur sustenta que a narrativa possui um papel elementar que capacita o sujeito a conhecer a si-mesmo e a reconhecer-se como um ser de alteridade, tornando-se capaz de fazer a leitura de mundo. A narrativa seria, nas palavras do autor, “o primeiro laboratório do juízo moral” (RICŒUR, 1990, p. 167, grifos do autor, tradução nossa)5, por isso, ela serve de suporte para a constituição da ação e do si. Poderia o leitor, ante essas ideias, colocar-se algumas questões: o que é narrar? Em que medida a narrativa possibilita ao sujeito autocompreender-se? Em que medida ela contribui para orientar o sujeito em seu agir e a significar aquilo que o cerca? E, por fim, como a narrativa pode ser extensão da ação?

Conjuntamente com Benjamin (1994), Ricœur (2014, p. 175) entende que o “narrar é a arte de trocar experiências”. Ao narrar o sujeito, expressa a si-mesmo e aquilo que lhe acontece, impulsionando a uma das atitudes mais nobres do humano: dobrar-se sobre si-mesmo e reavaliar suas ações. A narrativa representa muito mais do que o enredo em si, pois é aquela que configura uma vida, facultando ao sujeito interpretar e escrever a história de uma vida, que, como veremos, apesar de frágil e vulnerável, é a melhor versão de si.

A narrativa como sistematizadora ou portadora das experiências vividas possibilita ao sujeito a compreender-se em sua integralidade (compreensão de si porosa, visto estar sempre em construção), conduzindo-o a agir reflexivamente e o tornando capaz de ressignificar seu existir, atribuindo sempre novos sentidos e significados àquilo que lhe acontece. Ela se manifesta no diálogo consigo mesmo e com o outro e busca responder à pergunta nuclear da existência humana: quem sou eu? A resposta a esse questionamento não é imediata e supostamente dada, mas obtida à medida que o sujeito responde a outras quatro perguntas derivadas desta: Quem fala? Quem age? Quem se narra? E, quem é o sujeito moral de imputação? (RICŒUR, 2014).

Ao dar centralidade à pergunta quem?, Ricœur marca a intenção de pensar o sujeito numa perspectiva reflexiva, não apenas como um ser que pensa, tampouco como um ser independente, sem necessidade do outro, desconsiderando inevitavelmente a intersubjetividade (RICŒUR, 2014). Em outras palavras, a constituição do sujeito é, para Ricœur, uma construção progressiva do si, o que envolve a linguagem, a ação, a narração e a ética.

São as ações, relações, emoções, volições... que constituem o sujeito, no que inclui também as fragilidades e incoerências do agir. Com isso, Ricœur busca elaborar uma filosofia do sujeito que vai além de uma filosofia do eu ou da consciência, pois, para ele, o sujeito é um composto das suas experiências, ou seja, de tudo aquilo que lhe afeta. Com esse postulado, o autor francês dá um passo para além de outras duas perspectivas marcantes, como a de Descartes (sintetizada na máxima “penso logo existo”, que compreende o sujeito como resultado exclusivamente de sua capacidade cognitiva) e de Nietzsche (em quem a consciência só é alcançada indiretamente), que, na sua leitura, padecem do limite de o sujeito ser identificado apenas como um “eu”. Segundo Ricœur, Nietzsche apenas entendeu o eu como um ser independente, sem necessidade do outro, desconsiderando inevitavelmente a intersubjetividade, empobrecendo assim o ideal de sujeito. A intenção Ricœuriana, doutro modo, é marcar o primado do si reflexivo sobre a posição do sujeito entendido apenas enquanto eu ou apenas enquanto consciência. Ricœur salienta a fragilidade de ambas as teorias (Descartes e Nietzsche), pois na primeira a consciência seria vista apenas como ponto de chegada e não de partida do sujeito cognoscente e, na segunda, haveria a proclamação de um sujeito decadente, frágil e sem motivações ao agir (RICŒUR, 1990).

Essa nova perspectiva leva a compreender que a constituição de si-mesmo é fruto da capacidade interpretativa do sujeito em realizar a leitura daquilo que lhe acontece. A consciência de si é uma atividade hermenêutica, que leva ao sujeito a dar-se conta de que o si não é apenas uma estrutura físico-biológica e/ou cognitiva, mas sim, um sujeito composto, portador de volições, emoções, sentimentos e de fenômenos inconscientes que, juntos, compreendem a integralidade do sujeito. Esse sujeito, por sua vez, não é autossuficiente e completo, ou seja, um ensimesmado, uma vez que ele é inconcluso e está sempre em construção. Sua constituição é uma constante hermenêutica de si mesmo que se expressa no espelho das palavras. É em tese um já e ainda não, um ser que, quando é, já não é mais.

É essa ideia que caracteriza a humanidade e a unidade dos sujeitos, fazendo-os pertencentes uns aos outros. A capacidade de sentir-se com e para o outro conduz o ser humano a compreender-se integrado em tudo e em todos, permitindo que sua vida seja perpassada pela ideia de mutualidade, aquela que o qualifica como sujeito e lhe dá condições de significar a vida. Essa capacidade de significação de si forma a identidade narrativa, que é nutrida pela identidade idem (mesmidade) e pela identidade ipse (ipseidade) (RICŒUR, 2014). Na distinção das pessoas gramaticais encontra-se a novidade Ricœuriana que o distancia de Lèvinas e de Husserl, por exemplo, uma vez que tais autores não apontam para a perspectiva ética da ipseidade. Essa duplicidade do si enriquece a compreensão da pessoa, uma vez que assinala para um percurso original. A diferenciação a esses termos mediadores é explicitada pelo autor na seguinte passagem:

A identidade, no sentido de idem, por sua vez, apresenta uma hierarquia de significados [...] e cujo grau mais elevado constitui a permanência no tempo; a ele se opõe o diferente, no sentido de mutável, variável. Nossa tese constante será a de que a identidade no sentido de ipse não implica nenhuma asserção referente ao pretenso núcleo não mutável da personalidade. (RICŒUR, 2014, p. XIII, grifo do autor)

A primeira, a identidade idem, assinala que o sujeito é um ser de relação, por isso, é “um conceito de relação e uma relação de relações” (RICŒUR, 2014, p. 115). Ela caracteriza-se por dois aspetos: por um lado, por ser identidade numérica e, por outro, por ser qualitativa. A primeira - identidade numérica - realça ao sujeito duas características, sua unicidade e sua identificação (embora sendo muitos, identifica o sujeito como um-único). Nesse sentido, a identidade enquanto idem é aquela que identifica o ser humano como sendo ele, apesar da passagem do tempo, ou seja, configura sua fórmula genética. A segunda - identidade qualitativa - revela uma semelhança redundante, pelo qual manifesta a igualdade entre dois sujeitos comparados. Ricœur exemplifica essa dimensão afirmando: “dizemos que X e Y usam o mesmo traje, ou seja, roupas tão semelhantes que é indiferente se uma é confundida com a outra” (RICŒUR, 2014, p. 115). Por isso, essa identidade qualitativa não possui perda semântica.

A segunda dimensão, a identidade ipse, caracteriza o sujeito moralmente, visto perpassar seu caráter, cuja máxima reside na promessa, aquela que lhe abre para “o passado e ao futuro” (CESAR, 2013, p. 102), garantindo a fidelidade a si e ao outro. É aquilo que Ricœur denomina de dení du changement (negação da mudança) (RICŒUR, 1990), caracterizando a dimensão volitiva do si, o que a distancia da mesmidade. É a partir da ipseidade que se abre para o diverso de si e ao mesmo tempo o coloca como constitutivo de si. Há um sujeito que se abre para a análise da ação, cujo movimento é reflexivo, permitindo-lhe reconhecer-se e assumir-se como autor e responsável da ação. É na dimensão da ipseidade que reside a perspectiva reflexiva do si e lhe dá condições de interpretar o mundo.

É o aspecto da ipseidade que fundamenta a hermenêutica do si, impulsionando o ser humano a assumir-se como sujeito, capaz de respeito, estima de si, solicitude e abertura ao outro. Ela também indica o ser humano falante, agente (sofredor), narrador e responsável, uma vez que carrega consigo uma dimensão ética (RICŒUR, 2014). O ser humano somente o é quando se compreende como um todo, e é neste sentido que a resposta à pergunta Quem? busca exatamente ir ao núcleo dessa questão, que é apontar para aquilo que marca o sujeito e o identifica como tal, apesar da passagem do tempo. Tal pergunta estará sempre aberta e inconclusa, visto que nunca findamos por responder à questão quem sou eu?, pois, afinal, somos seres finitos que almejamos ser sempre mais. Aqui também se desdobra uma das dimensões intrínsecas à formação humana, uma vez que o ato de formar-se exige conhecimento de si, de ser capaz de interpretar o mundo e significar aquilo que passa a seu entorno. Um sujeito nesses termos é capaz de “caracterizar a pessoa na totalidade do seu ser agente como fonte de todas as suas intenções e iniciativas no mundo” (CORÁ, 2010, p. 60).

Pode-se dizer assim que a narrativa abre possibilidades para a compreensão a si-mesmo, pois, em sentido socrático, é capaz de examinar aquilo que lhe acontece, suas experiências etc. A identidade narrativa é aquela que permite redescrever a realidade, e isso é uma ação criadora que não apenas exprime conceitos e palavras, mas tudo aquilo que afeta direta ou indiretamente o sujeito, ou seja, como diria Ricœur (2014, p. 149), “conserva ao longo de toda a história uma identidade correlativa à da própria história”. Isso é possível porque o ser humano somente consegue compreender a si mesmo, e aquilo que se passa ao seu entorno, interpretando-os pela narrativa, “no espelho das palavras” (RICŒUR, 1978, p. 374). A narrativa, nesse sentido, é aquela que devolve ao sujeito uma imagem de si próprio. Essa atitude permite ampliar este si, tornando-o diferente de quando chegou na narrativa.

Esse movimento da história com as palavras conduz Ricœur a pensar a identidade narrativa como hermenêutica da vida, visto que tudo que se narra aconteceu no tempo, e, se aconteceu no tempo, pode ser narrado. É por isso que, no ver de Corá (2004, p. 61), “a narração é entendida como sendo a guardiã do tempo na medida em que não existiria tempo pensado se este não fosse narrado”, permitindo intuir, assim, que a narrativa recolhe e apresenta, ao mesmo tempo, os grandes ensinamentos da humanidade.

A identidade narrativa presente na ideia de mesmidade e ipseidade torna possível ao ser humano entender sua ação como prática, a medida que responde à questão quem? Ao identificar uma pessoa, responde-se também à questão: quem desenvolveu a ação?, e isso possibilita ao sujeito ter a certeza de pertencer ao mundo e de ter uma história, compreendendo-se como um ser que vive e transforma o mundo. Nas palavras de Ricœur (2014),

a narrativa resolve a seu modo a antinomia, por um lado conferindo uma iniciativa à personagem, ou seja, o poder de começar uma série de acontecimentos, sem que esse começo constitua um começo absoluto, um começo do tempo; por outro lado, dando ao narrador como tal o poder de determinar o começo, o meio e o fim de uma ação. (RICŒUR, 2014, p. 154)

É nesse sentido que Ricœur encontra embasamento de sua teoria em Hannah Arendt, afirmando que responder à questão quem é contar a história de uma vida (RICŒUR, 2014), ou seja, contar histórias sobre si mesmo, de forma que sejam inteligíveis e aceitáveis. A resposta ao quem, ao autor da ação, ao agente, é encontrada na história narrada, o que constitui uma identidade narrativa.

Ao narrar, o sujeito torna-se leitor e escritor da sua história de vida, o que permite, através da hermenêutica das palavras, interpretar a si-mesmo. Ou seja, “o indivíduo, narrando sua vida, refigura suas experiências, sua existência, e, deste modo, dá-lhes um sentido” (CESAR, 2002, p. 53). Isso permite que o sujeito não se torne egoísta, narcísico, mas, concomitantemente ao pensamento socrático, torne-se um ser capaz de examinar sua vida e torná-la plena de sentido, afinal, “o sujeito se reconhece na história que ele conta a si mesmo de si mesmo” (CORÁ, 2004, p. 69).

A crença de Ricœur é de que não há conhecimento de si que não passe pelos signos, símbolos, obras culturais etc., ou seja, que não atravesse o campo das experiências e dos sentidos. É nessa perspectiva que não há conhecimento de si sem a passagem pela narrativa, aquela que sistematiza e dinamiza aquilo que se passa ao sujeito. É narrando que o sujeito interpreta a si mesmo e o mundo, o que lhe faculta autoformar-se. Narrar implica, nesse sentido, o falar, o agir e a responsabilidade, afinal, a história que teço de mim mesmo diz respeito a todas as dimensões que me constituem. Como afirma Ricœur (2017, p. 75-76, tradução nossa), “as histórias que são contadas, as histórias que o historiador escreve, são as mais permanentes dessas expressões culturais. Há uma permanência, uma certa continuidade no ato de contar...”. Narrar-se é um ato formador, configurador e refigurador de si, ou melhor, é a possibilidade de o sujeito tecer uma exegese e uma hermenêutica de si. O ato de narrar é o núcleo estruturante que permite ao sujeito compreender-se como um sujeito de experiências. Como o autor afirma,

Possivelmente é porque nossa própria existência é inseparável da narrativa que nós podemos fazer a nós-mesmos. É narrando a nós mesmos que nos damos uma identidade. Nós nos reconhecemos a nós mesmos nas histórias que contamos sobre nós: as histórias, sejam elas verdadeiras ou falsas- pouco importa! -, as ficções quanto as histórias exatas, digamos verificáveis, têm este valor de nos dar uma identidade. (RICŒUR, 2017, p. 77-78, tradução nossa)

Para Ricœur, a narrativa permite que o ser humano, ao longo do seu existir, possa trocar experiência com o outro, com o desconhecido e, com isso, alargar sua leitura de mundo, que, consequentemente, oportuniza uma reelaboração de si mesmo e de seu agir no mundo. Ao narrar, o sujeito expressa a si-mesmo e aquilo que lhe acontece, impulsionando a uma das atitudes mais nobres do humano: dobrar-se sobre si-mesmo e reavaliar suas ações. A narrativa como sistematizadora ou portadora das experiências vividas possibilita ao sujeito compreender-se em sua integralidade, conduzindo-o a agir reflexivamente e o tornando capaz de ressignificar seu existir, atribuindo sempre novos sentidos e significados àquilo que lhe acontece.

Se a narrativa oferece uma possibilidade de ser personagem de sua história, de ser o autor das histórias que contamos sobre nós mesmos e sobre o que nos acontece, ela então não cessa de participar da construção da realidade social, buscando tramar uma síntese entre as múltiplas intrigas que cercam o agir humano. Nesse sentido, as histórias que narramos de nós mesmos não deixam de ser histórias da sociedade, uma vez que somos seres de alteridade. Por ser uma identidade que atravessa temporalidades, histórias, experiências, vivências conjuntas, a identidade narrativa não é uma identidade estável e sem falhas, mas, ao contrário, o componente ficcional e as inúmeras variações imaginativas que a narração de si integra a sua dimensão histórica, o que faz da narrativa ser esse espaço desestabilizador, que não cessa de se fazer e refazer. Construir a história de si requer o desenvolvimento de todas as dimensões humanas e, portanto, exige alteridade, reconhecimento, possibilidades e condições para que se possa compor a história de si.

Narrativa e interpretação: atribuindo sentido à vida

Ao aprofundar o pensamento Ricœuriano, evidencia-se que a narrativa é portadora de um percurso de reconhecimento capaz de devolver ao ser humano a capacidade de fazer memória, de ter história e almejar um bem viver. A narrativa permite ao sujeito encontrar aquilo que de mais humano há no humano: o si-mesmo. Essa perspectiva aponta para um sujeito capaz de conhecer a si-mesmo, reconhecer o outro e atribuir sentido às suas experiências. Diante essa perspectiva, duas questões são pertinentes: o que torna o ser humano, de fato, humano? E quem sou eu? Para respondê-las, resgatamos as palavras de Ricœur (2014):

as perguntas quem?, o quê?, como? etc. podem designar os termos discretos da rede conceitual da ação. Mas, do ponto de vista sintagmático, as respostas a essas perguntas formam uma cadeia que outra não é senão o encadeamento da narrativa. Narrar é dizer quem fez o quê, por quê e como, estendendo no tempo a conexão entre esses pontos de vista. (RICŒUR, 2014, p. 153, grifos do autor)

Para Ricœur, a narração é aquela que dá ao sujeito a capacidade de interligar aquilo que acontece na vida, ou seja, oferece as condições necessárias para fazer a leitura daquilo que o cerca. Mais ainda, ela se torna mediadora de significação do vivido, atribui sentido à existência e, sobretudo, revela elementos profundos das experiências que o ser humano realiza no seu percurso vital. Ela congrega uma dimensão intrinsecamente ética, uma vez que, ao atribuir sentido à vida, impulsiona ao bem viver. Fazer a leitura do mundo no espelho das palavras é o que provoca o sujeito a entender a si-mesmo como outro.

Essa capacidade de compreender-se como outro só é possível através da dimensão reflexiva do ser humano que lhe permite compreender-se como um si, e não como um eu. O si, por congregar todas as pessoas gramaticais, é expansivo, aberto, capaz de empatia e alteridade. O si é fruto da reflexão feita sobre aquilo que acontece ao sujeito, sobre as suas experiências e isso lhe permite entender que o outro fez, faz e continua fazendo parte desse si. O si-mesmo como outro é obra do distanciamento/estranhamento (RICŒUR, 1986) de si-mesmo para um encontro posterior, consequentemente mais qualificado e ressignificado pelas relações e inter-relações que lhe cruzaram.

Se a narrativa dá ao sujeito condições de fazer a leitura do mundo e compreender a si-mesmo como outro, parece, então, que ela possui um laço estreito com a formação humana e, consequentemente, com os processos educativos. Afinal, não é também tarefa deles auxiliarem o ser humano a compreender-se como um ser de relações e inter-relações, modificando constantemente o seu olhar e a sua ação sobre o mundo? E a narrativa, entendida como aquela que permite ao sujeito compreender a si-mesmo e aquilo que se passa ao seu entorno, não seria um elemento crucial para pensar a formação humana? Compreendendo a narrativa como formadora do ser humano, ela não só orienta o agir como também se torna mediadora e impulsionadora da constituição do sujeito.

Ricœur entende que narrativa e vida se complementam, pois não haveria vida bem vivida se ela não fosse carregada de sentido e de busca pelo bem viver. A narrativa seria, então, esse instrumento ou essa capacidade que permite apreender aquilo que se passa, atuando como uma extensão da realidade humana, ou seja, oportunizando uma reinterpretação das experiências. A narrativa absorve aquilo que se passa no mundo prático e atribui-lhe sentido e significado, possibilitando que as experiências possam ser interpretadas e ressignificadas. A esse movimento, Ricœur denomina de hermenêutica da condição humana, entendendo a narrativa como construtora da identidade pessoal. Nessa perspectiva, a narrativa e as experiências humanas integram-se e tornam-se elementos chaves dos processos educativos, como veremos adiante.

Podemos afirmar que a narrativa, para Ricœur, desempenha um papel determinante para o conhecimento de si, do outro e da vida, pois capacita o sujeito a bem agir, atuando com phrónesis (RICŒUR, 2014), dando-lhe condições necessárias a fim de bem deliberar em suas ações. Essa relação entre narração e ética possibilita pensar os processos educativos como orientação do agir, capazes de inserir o ser humano no mundo e compreender-se nele. A narrativa como phrónesis ou exercício da sabedoria prática auxilia nas tomadas de decisões, nas escolhas do sujeito, nas aprovações ou desaprovações das ações, bem como de louvar e censurar os agentes (RICŒUR, 2014). Podemos, com isso, afirmar que ela oferece um ideal de formação humana que permite ao sujeito orientar a sua ação no mundo, conduzindo-o a agir de forma prudente e cautelosa, além de julgar coerentemente suas ações e emoções.

Devemos agregar que a narrativa, em linguagem metafórica, mostra-se como ponte entre o sujeito e o mundo, entre o sujeito e o outro e entre o sujeito e si-mesmo, estabelecendo, assim, uma teia de relações que o conduz a um autocompreender-se, pois, quem se autocompreende sabe que necessita dos outros para constituir-se. Sendo assim, a narrativa como orientadora do agir humano instiga ao bem viver, impulsionando o sujeito a reconhecer-se como um ser de alteridade. Por dar ao sujeito condições de atribuir sentido e significado à existência e ser provocadora do bem viver, a narrativa está intimamente ligada ao mundo da ética, afinal, segundo Corá e Vieira (2013), a dimensão ética da narrativa

oferece um laboratório conceitual em que são testadas variações imaginativas referentes aos caracteres e aos atos dos personagens, levando o leitor/espectador a exercer um primeiro juízo moral acerca das ações perpetradas na trama. Além disso, ao narrar a si mesmo, a pessoa se percebe num mundo compartilhado por todos; ela vê como sua própria história está entrelaçada com as de outros. (CORÁ; VIEIRA, 2013, p. 139)

A força da narrativa é que ela não se esgota ao que se refere puramente ao ato de ler, escrever e/ou interpretar um texto, mas, especialmente, ela oportuniza a reelaboração da experiência vivida. Nela e através dela, o sujeito expressa a si-mesmo, se reconhece e se reinterpreta, proporcionando um duplo movimento: um ao próprio autor e outro ao leitor. O primeiro é que o narrador, ao relatar-se, modifica a si-mesmo, pois o ato de narrar é ao mesmo tempo um narrar-se, ato que por si só é formativo, uma vez que conduz o ser humano a voltar-se sobre si-mesmo, ressignificando a sua vida à luz das palavras. Ao narrar, o sujeito narra-se e, através de sua capacidade reflexiva e interpretativa, vai atribuindo um novo sentido às suas vivências. Sendo assim, mais do que modificar o autor, ela faz ao mesmo tempo com que o leitor, mergulhado nas experiências narradas pelo autor, possa refleti-las e atualizá-las de acordo com o contexto no qual está inserido. Pela capacidade interpretativa, o leitor atribui um novo sentido ao seu agir, pois é provocado a olhar para si e para o mundo de maneira alargada. Esse alargamento produzido no leitor não decorre em si do significado da experiência que o autor viveu, mas da capacidade de interpretar de uma maneira nova aquilo que outrora fora narrado. A experiência do autor permanece privada, mas é pública e formativa a significação dessa experiência despertada no outro. Conforme o autor, “no momento em que a obra se destaca de seu autor, todo o seu ser é recolhido pela significação que o outro lhe dá” (RICŒUR, 2014, p. 165). Assim, a narrativa é sempre única e ao mesmo tempo sempre nova, haja vista que o olhar do leitor desperta sempre uma nova leitura.

Ao interpretar a narrativa, o intérprete é convidado a interpelar a si-mesmo, independentemente de o contexto ser distinto e longínquo daquele em que o autor relatou. Isso acontece por a narrativa - entendida como discurso e discurso como obra (RICŒUR, 2009) - ser portadora do mundo da ação, ou seja, por conter em si uma significação do mundo que, no entanto, é ressignificada pelo olhar do leitor. Em cada narrativa, uma nova maneira de compreender a si-mesmo e ao mundo apresenta-se, pois, ao interpretar, o sujeito recria aquilo que anteriormente fora interpretado. A cada interpretação, surge um novo acontecimento, que, por sua vez, pela ressignificação do texto pelo leitor, gera um novo acontecimento e assim sucessivamente a cada nova leitura feita. A narrativa torna-se uma ética da iniciativa, visto que lê-la e interpretá-la conduz o indivíduo a entender-se como outro e e a agir de uma maneira totalmente nova em cada situação que se lhe apresenta, modificando, com isso, a si-mesmo e os implicados na ação.

Nesses termos, a narrativa nunca se prende ao autor, o que deixa o texto autônomo, permitindo que cada ser humano atribua sentido e significado àquilo que anteriormente fora narrado por outrem. O outro está presente antes, durante e depois da narrativa - é sempre Sine qua non. Nessa dinâmica, a narrativa, para Ricœur, é aquela que ancora a visada ética, também em razão de que não haveria ambas sem o reconhecimento de si-mesmo e do outro. Há, aqui, um paralelismo crucial com os processos educativos, uma vez que, mediados pela narrativa, eles podem transformar o aprendizado para além da tecnicização e da instrumentalização.

A narrativa como formadora de horizontes de sentidos abre o horizonte do sujeito para tornar-se mais, para compreender-se aberto, para compreender-se no mundo e na relação com os outros, sempre com capacidade e possibilidade de tecer-se e alargar-se. Aliás, toda narrativa implica um outro, dado que tudo que se manifesta e se constitui em nós mesmos depende da mediação do outro. O outro passa a ser imperativo à narração da história de si, já que todo ser humano é dependente do outro, isto é, pressupõe uma dimensão ética. O sujeito é constituído pela história, é sua história e é produtor dessa história.

O sentido é lugar no qual estabelecemos contato e relação com tudo aquilo que nos atravessa, sejam nossas relações, interrelações, seja socialmente ou com as coisas. Daí que a narrativa é uma forma de sistematizar e organizar o sentido que atribuímos a nossa existência. O sentido está para além de um viés cognitivo ou mesmo físico, pois ele perpassa ambos. Daí uma importante tarefa: a de aguçar a sensibilidade para os sentidos, no intuito de qualificar o sentir. Como afirma Tommasi (2019, p. 61, tradução nossa), “minha identidade é fruto desta interação entre o que aconteceu e a forma como interpreto e confiro sentido às minhas experiências”.

Podemos afirmar, portanto, que a narrativa rompe com a dicotomia entre empírico e metafísico, ligando, assim, a vida àquilo que provoca o ser humano a guiar as suas ações e atribuir um novo estado de ser. Ao sujeito, compete a necessidade de compreender as inúmeras possibilidades que a narrativa lhe apresenta, interpretando-as à luz da realidade que o cerca. Mesmo que tenha sido escrita em outra época e contexto, o que interessa é a interpretação feita pelo leitor, colocando novas perguntas e extraindo novos significados, pois a função da narrativa é auxiliar a descobrir novos caminhos à vida, possibilitando a criação de mundos e a sua socialização.

A narrativa e a formação do sujeito

A narrativa, por ser constituidora de si-mesmo e atribuir sentido e significado ao existir, torna-se um elemento nuclear à formação do sujeito, uma vez que proporciona a autoformação e a autorreflexividade. Como salientamos, a primeira contribuição da narrativa à formação humana perpassa pela ideia de sujeito. A narrativa impede o olhar solipsista de pessoa, pois, ao narrar, o sujeito abandona a imagem de um eu e passa a entender-se como um si, um si qualificado, como um ser que se completa no e pelo outro. Todavia, não é um sujeito completo, um ensimesmado. O que há é um ser para, inacabado, inconcluso, e que se constitui na mediação frente àquilo que lhe acontece. Por isso, o si-mesmo é uma atividade permanente de interpretação de si. Isso equivale a dizer que o sujeito nasce humano, mas não humanizado, pois a humanização é fruto de um processo constante que se desenvolve ao longo da vida na hermenêutica das experiências.

Como formadora do si-mesmo, a narrativa possui o papel elementar de “articular a história de uma vida” (RICŒUR, 2014, p. 146). Ela orienta o sujeito a ir compreendendo o seu lugar no mundo, a descobrir-se e iniciar-se constantemente. Mas não se narra apenas para si próprio e sempre da mesma maneira, razão pela qual todo narrar é uma atitude criativa que se está sempre imbuída do outro. O outro como constitutivo do si possibilita em cada narrativa um compreender-se de maneira alargada. Ou seja,

Se o momento da leitura é o de uma parada (ou estase) que suspende a ação, é também o de um endereçamento que repercute sobre ela; a narrativa, com efeito, nunca é neutra: mesmo se é fictícia e não fala de mim, a leitura que dela faço é sua reescrita, na qual me identifico, identificando-me com o autor ou com as personagens, quer dizer, buscando no que dizem ser o reflexo do que eu próprio sou e, pois, do que me empenho a fazer. (DARTIGUES, 1998, p. 20)

Ao narrar, um novo acontecimento surge, já que, cada vez que o leitor vai à narrativa, extrai dela elementos novos que transformam a si e aquilo que o cerca. O sujeito narrador é um eterno aprendiz, capaz de iniciar-se e reiniciar-se no mundo. Nesse processo, a narrativa pode ser entendida como uma ética da iniciativa, capaz de reativar as potencialidades não realizadas no passado e fazer com que as novas gerações deem continuidade à história (RICŒUR, 2016).

Por ser orientadora de mundo e impulsionadora de sentido à vida, a narrativa possui a capacidade de ampliar os horizontes de experiência do mundo vivido, pois ela é obra do autor e do leitor. Ao narrar, o autor não é mais dono da narrativa, e o leitor, ao lê-la, amplia e aprimora o narrado. É uma ação constante e interminável, visto a narrativa estar sempre aberta a novas interpretações. Assim, a capacidade narrativa permite que o leitor encontre, no texto, a expansão de si-mesmo, permitindo-lhe ampliar e enriquecer o seu olhar frente ao mundo. Não haveria força da imaginação se o compreender não estivesse enraizado nas experiências humanas, naquilo que se passa ao sujeito. Assim, a narração, compreendida como diálogo/mundo do texto, pode ser entendida como mundo da ação.

Se o ato de formar-se é fazer com que o sujeito dobre sobre si-mesmo, se compreenda como sujeito, entenda o outro como um si-mesmo e dê sentido e significado à vida, a narrativa pode ser entendida como a coluna vertebral dessa perspectiva, servindo de âncora para pensar a formação do sujeito e os processos educativos. Soma-se que a narrativa atua como mediadora para uma compreensão reflexiva e profunda da existência, tornando o ser humano, sujeito de sua história, capaz de exercer a sua subjetividade e construir, como reitera Ricœur, a sua identidade narrativa. Segundo o filósofo francês,

Es evidente que nuestra vida, abarcada en una única mirada, se nos aparece como el campo de una actividad constructiva, derivada de la inteligencia narrativa, por la cual intentamos encontrar, y no simplemente imponer desde fuera, la identidad narrativa que nos constituye. Hago hincapié en esta expresión de identidad narrativa porque lo que llamamos subjetividad no es ni una serie incoherente de acontecimientos ni una sustancia inmutable inaccesible al devenir. Ésta es, precisamente, el tipo de identidad que solamente la composición narrativa puede crear gracias a su dinamismo. (RICŒUR, 2006, p. 21, grifos do autor)

Por ser constituidora do sujeito, portadora da capacidade de reconhecimento de si-mesmo e do outro, a narrativa revela que as histórias pessoais não são isoladas de outros sujeitos, aliás, elas encontram-se, enriquecem-se e ampliam-se. Assim, pensar a formação do sujeito numa perspectiva narrativa é buscar uma vivência ética, capaz de levar o sujeito a reconhecer aspectos da vida comum, essenciais à vivência humana. Por isso, educar narrativamente implica ampliar os mundos do sujeito, dar condições de sociabilidade e humanidade e, acima de tudo, possibilitar ao sujeito narrar a sua própria história, compreendendo a si-mesmo como outro.

Um si que constrói a história de si, portanto, é sempre um sendo, sempre aberto ao porvir. É um si poroso, situacional, atravessado pela vida e pelos aconteceres. A história de si, tornar-se uma versão que ao longo do percurso vital o sujeito foi capaz de tecer. Trata-se, então, não de uma história perfeita, mas de uma “história possível”. Formar-se é exatamente a possibilidade de, no curso da vida, narrar sua história e reconhecer-se nela. Mesmo sabendo de sua fragilidade, compreende que esta foi a melhor versão de si mesmo. Aqui repousa o elemento nuclear da concepção formativa da narrativa: ela é autoformação. O sujeito, a partir da leitura de mundos, tece sua história nos atravessamentos com outras histórias. Afinal, narrar a si é a expressão de uma hermenêutica da vida, é o resultado de todas as mediações que cercam o sujeito. É a narrativa que sustenta as perspectivas da alteridade, da elaboração da experiência, da possibilidade do reconhecimento, da vida democrática, da vida cooperativa, mas, sobretudo, é ela quem garante a cada sujeito as condições e possibilidades de desenvolvimento de suas capacidades, ou seja, a possibilidade de ser-no-mundo.

Considerações finais

Ao longo desta pesquisa, buscamos investigar em que medida a perspectiva da narrativa possibilita pensar uma noção alargada de sujeito e as implicações disso à formação humana e aos processos educativos. Evidenciamos, no percurso, a centralidade da pergunta quem sou eu?, aquela que acompanha o indivíduo durante toda a sua vida e que o torna capaz de compreender e atribuir sentido e significado a seu existir. Aliás, é a busca da resposta a esse questionamento que leva o sujeito a reflexionar sobre si e sobre aquilo que lhe acontece, tornando-o capaz de compreender a si mesmo, ao outro e àquilo que se passa em seu entorno.

Recorrendo a alguns elementos centrais da teoria da narratividade, observamos que o sujeito não é apenas um produto biológico, nem mesmo um sujeito cerebral e não se caracteriza como um ensimesmado ou como um eu humilhado, deposto de si-mesmo. Em Ricœur, há uma noção ampliada de sujeito, uma vez que ele é entendido como um si, ou seja, transpassado por todas as pessoas gramaticais, tornando-se um sujeito ampliado, enriquecido e, acima de tudo, reflexivo, capaz de oferecer sentido e significado à sua existência. Um sujeito perpassado pela narrativa é capaz de fazer a leitura do mundo, donde acontecem as experiências que marcam a sua existência. A narrativa, perpassada pela dimensão da ipseidade, permite ao sujeito a examinar sua própria história; aliás, só há conhecimento de si pelo autoexame. Conforme Ricœur (2016),

uma vida examinada é, em grande medida, uma vida depurada, clarificada pelos efeitos catárticos das narrativas tanto históricas como fictícias veiculadas por nossa cultura. A ipseidade é portanto a de um si instruído pelas obras da cultura que ele aplicou a si mesmo. (RICŒUR, 2016, p. 419)

É de uma vida examinada que surge a capacidade da leitura das experiências, uma vez que torna o sujeito capaz de agir reflexivamente, a superar os instintos e a frivolidade humana.

Nesse sentido, a perspectiva narrativa Ricœuriana coloca em movimento algumas contribuições basilares à formação do sujeito e aos processos educativos (estes últimos pouco destacados neste estudo, porém, com inúmeras possibilidades de problematizá-los). Se postulamos que formar o sujeito diz respeito a iniciar o novo no mundo, esse ensejo passa pela criatividade e pela imaginação - elementos provocados pelo ato de narrar. Somado a isso, a narrativa leva à compreensão de que os sujeitos são constituídos das relações e inter-relações que estabelecem ao longo de suas vidas, frutos do diálogo com o outro. Mas, não só isso; como vimos, a narrativa potencializa a capacidade de fazer a leitura de mundo, de interpretar a história e o que nela acontece. Pensar a formação do sujeito nestes termos enriquece a busca pelo bem viver, pelo sentir-se com, bem como leva ao dar-se conta das fragilidades e incoerências do agir, tornando os sujeitos capazes de enfrentar as injustiças e as mazelas humanas. Enfim, a narrativa provoca um constante reinventar-se, pois ela conecta a linguagem à ação, proporcionando uma vivência ética, justa e igualitária, o qual Ricœur (2014, p. 186) resume na súmula: ‘Visar o bem viver com e para o outro em instituições justas’. É por isso que, para Ricœur, narrativa e ética andam de mãos dadas. Porém, não é nosso objetivo explorar isso neste momento.

Enfim, problematizar a formação do sujeito no olhar hermenêutico Ricœuriano é pensar a partir daquilo que acontece ao sujeito, que lhe modifica e enriquece à luz das palavras, levando-lhe a imputar moralmente sobre as suas escolhas e ações. Nesse horizonte, o processo torna-se vivo e toca no mais profundo do humano, permitindo que ele, mais do que um aprendizado técnico e instrumental, seja capaz de compreender-se como sujeito, livre para tomar decisões, para realizar escolhas prudentes e, com isso, tornar-se um sujeito capaz. Em outras palavras, poderíamos afirmar que a perspectiva Ricœuriana auxilia o sujeito a compreender a si-mesmo como outro, sendo capaz de reconhecer-se mutuamente.

Referências

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1Não nos ocupamos dessa problemática neste texto, entretanto, para maior aprofundamento, indicamos a obra Temps et Récit.

2A obra Soi-même comme um autre (O si-mesmo como um outro) foi publicada em 1990 e traduzida para o português em 1991. Ela é fruto de conferências chamadas Gifford Lectures, proferidas em Edimburgo - Escócia, no ano de 1986.

3Do original: “c’est dans des actes de discours que l’agent de l’action se designe comme celui qui agit” (RICŒUR, 1990, p. 29).

4Do original: “dans la dialectique de l’ipséité et de la mêmeté”.

5Do original: “le premier laboratoire du jugement moral”.

Recebido: 30 de Dezembro de 2021; Aceito: 17 de Maio de 2022

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