SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.36 número77Inclusión escolar en revisión (2001 a 2011): las (re)formulaciones discursivas de la revista Nova EscolaTeoría, crítica y práctica educativa: sobre la relación entre pesimismo teórico Y transformación del mundo en T.W. Adorno índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.36 no.77 Uberlândia mayo/ago 2022  Epub 29-Ene-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v36n77a2022-63135 

Artigos

O duplo aspecto da reprodução e sua influência na educação*

The double aspect of reproduction and its influence on education

Le double aspect de la reproduction et son influence en education

Maria Zélia Pinto da Silva** 
http://orcid.org/0000-0002-5008-447; lattes: 7032174099817646

Víctor Moita Pinheiro*** 
http://orcid.org/0000-0003-0160-9208; lattes: 4653005522089391

Fátima Maria Nobre Lopes**** 
http://orcid.org/0000-0003-4602-2443; lattes: 2514934974368526

Adauto Lopes da Silva Filho***** 
http://orcid.org/0000-0001-9061-840X; lattes: 7589742541348845

**Doutoranda em educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC). Bolsista CAPES/DS. E-mail: mzeliaps81@gmail.com

***Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará, Brasil (2021). Pesquisador colaborador da Universidade Federal do Ceará (UFC), Brasil. Email:victor.moitapinheiro@gmail.com

****Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora Efetiva - Associada I da Universidade Federal do Ceará (UFC), Brasil. E-mail: fatimanobreufc@gmail.com

*****Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro Permanente Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC), Brasil. E-mail: adautoufcfilosofia@gmail.com


Resumo

Tomando o pensamento lukacsiano, podemos afirmar que as distorções que se apresentam no trabalho refletem diretamente nos atos reprodutivos do homem, na sua sociabilidade. Portanto, todas as categorias da superestrutura ficam comprometidas, inclusive a educação, haja vista que o espelhamento da realidade estará fundamentado na exploração promovida pelo capital. Partindo dessas considerações o presente artigo objetiva mostrar como o duplo aspecto da reprodução também se reflete na educação. Para tanto tomamos o pensamento do filósofo György Lukács, a partir da sua obra Ontologia do Ser Social, demonstrando ainda que essa dupla face pode ser relacionada à tematização de Saviani em relação às Teorias Não-Críticas, Teorias Crítico-Reprodutivistas e à Pedagogia Histórico-Crítica. Em nossas conclusões afirmamos que a educação no sentido omnilateral correspondente à face positiva da reprodução, sendo uma das alternativas viáveis para a mudança do estado atual de coisas.

Palavras-chave: Trabalho; Reprodução; Educação

Abstract

Taking lukacsian thought, we can say that the distortions that appear at work reflect directly on the reproductive acts of man, on his sociability. Therefore, all categories of the superstructure are compromised, including the education, since the mirroring of reality will be based on the exploration promoted by capital. From these considerations the present article aims to show how the double aspect of reproduction is also reflected in education. For this we take the thought of the philosopher György Lukács, from his work Ontology of the Social Being, further demonstrating that this double face can be related to Saviani’s thematization in relation to Non-Critical Theories, Critical-Reproductive Theories and Pedagogy Historical-Criticism. In our conclusions we affirm state that education in the omnilateral sense, corresponding to the positive face of reproduction, is one of the viable alternatives for changing the current state of things.

Key-words: Work; Reproduction; Education

Résumé

Selon la pensée lukacsienne, nous pouvons affirmer que les distorsions existantes dans le travail influent directement sur les actes de reproduction de l’homme, sur sa sociabilité. Par conséquent, toutes les catégories de la superstructure sont compromises, notamment l’éducation, puisque le reflet de la réalité sera fondé sur l’exploitation promue par le capital. A partir de ces considérations, le présent article cherche à montrer comment le double aspect de la reproduction se reflète également en éducation. Pour ce faire, nous nous référons à la pensée du philosophe György Lukács, dans son œuvre L’ontologie de l’être social, en démontrant de même que cette double face peut être mise en relation avec la conceptualisation de Saviani, à propos des Théories non critiques, des Théories reproductivistes critiques et de sa Pédagogie historique-critique. Nous affirmons, pour conclure, que l’éducation en un sens omnilatéral correspond à la face positive de la reproduction, ce qui en fait une des alternatives viables en vue du changement de l’état actuel des choses.

Mots clés: Travail; Reproduction; Education

Introdução

A existência social dos homens se instaura com o processo do trabalho, contudo ela não é fruto exclusivo dessa atividade, posto que do trabalho decorrem diversas categorias sociais como: o direito, a justiça, o estado, a religião, a família, a educação etc. Segundo a teoria marxiana as consequências do trabalho geram características peculiares no seu tempo, a partir das quais se constrói a história humana, e isso tem importância vital para a continuidade do seu desenvolvimento. Aliado a isso, temos como influência determinante nas consequências do trabalho e, obviamente, na evolução histórica do homem, o modo como ele executa sua atividade vital. De fato, é suficiente observar a história para perceber no seu contexto como a presença das ações humanas interferem no cenário e no modo que ele vive. A título de exemplo podemos citar, considerando períodos mais remotos, a evolução dos instrumentos e utensílios para caçar e se alimentar. Mais recentemente temos a questão das revoluções industriais e, nos tempos atuais, das tecnologias ligadas às comunicações, à saúde, ao desenvolvimento genético no setor agrícola etc.

Assim, retrocedendo na história e fazendo reflexões sobre os hábitos humanos, é possível discorrer sobre o surgimento do homem enquanto ser social, bem como o seu desenvolvimento. Entretanto aqui não se trata de discutir sobre a vertente darwinista que trata da evolução do macaco ao homem. A competência de estudo dessa corrente de pensamento é da biologia. A questão que nos interessa utilizar como base para a nossa discussão é aquela referente à construção histórico-social do homem, esta de competência da Filosofia.

Seguindo essa perspectiva não menos importante - na verdade de aspecto fundamental -, como já é sabido dentro da teoria marxiano-lukacsiana, o que faz do homem um ser único na natureza é sua capacidade de realizar trabalho, ou seja, de produzir universalmente toda a sua sociabilidade e condições de transformação decorrente dessa categoria, bem como das consequências advindas dela; portanto é nela que reside toda a iniciativa de sua construção sócio-histórica.

Contudo o modo como o homem o realiza interfere diretamente em como o seu meio irá se construir. É por este motivo que no capitalismo o trabalho e tudo o que o homem produz e reproduz têm uma dupla função; ao mesmo tempo em que servem para satisfazer as suas necessidades enquanto ser, recebendo a denominação de criador de valor de uso, têm de forma predominante a função de mercadoria que serve ao capital para gerar lucro, o que é a sua dimensão enquanto criador de valor de troca. Podemos citar como exemplo o alimento produzido, que, mesmo tendo como utilidade saciar a fome, não é apenas alimento, passa à função de mercadoria vendida aos que podem adquiri-la, sem deixar de manter a lógica capitalista, o lucro. O remédio que é desenvolvido com a finalidade de curar doenças segue a mesma lógica, pois, no capitalismo, antes de atingir o seu propósito, tem caráter predominantemente de um produto vendável.

Temos, portanto, um ponto interessante que merece ser tratado a fim de alcançarmos um entendimento real do pensamento marxiano de como se dá o desenrolar das ações dos homens em sua reprodução social. Tendo o trabalho um duplo aspecto, como foi brevemente mencionado, é interessante discorrer como seria esse duplo aspecto na reprodução e a sua influência na educação, uma vez que a produção e reprodução da vida social dos homens passam necessariamente por um processo educativo.

Para tanto dividimos este artigo em três partes. Primeiramente remetemos a questão da reprodução a partir do trabalho; depois evidenciando a sua dimensão positiva, que se faz constante independe do modo de produção, bem como a sua dimensão negativa, que se evidencia no capitalismo, aquela que deve e pode ser suprimida pelos homens. Em nossas conclusões levamos esses conceitos para o âmbito da educação, onde mostramos como essa reprodução atua na educação, tendo como base para tal fechamento o pensamento de Saviani. Como base teórica utilizamos o pensamento de Karl Marx, principalmente em O Capital; György Lukács, a partir da obra Para Uma Ontologia do Ser Social; e Dermeval Saviani, no seu livro Escola e Democracia.

A dupla dimensão da categoria da reprodução como consequência da dupla dimensão do trabalho

Antes de iniciarmos as nossas considerações sobre como a categoria da reprodução apresenta seu duplo aspecto no sistema capitalista, devemos retornar ao ponto em que Lukács associa tal análise dentro do campo das teleologias secundárias, no âmbito da superestrutura. Para isso, temos que relembrar que o trabalho, categoria fundante do ser social e da sociabilidade humana, requer do homem uma interação tanto no campo das teleologias primárias, no contato com a natureza, como das secundárias, onde se desenvolve todo o processo de reprodução social.

Para demonstrar como decorre o processo do trabalho, utilizaremos uma conhecida passagem de Marx na obra O Capital. Nela o filósofo alemão tem a intenção de mostrar que, apesar de os animais também produzirem, há uma diferença crucial da produção humana para a produção animal, onde ele faz referência à capacidade exclusivamente humana de antecipar em sua mente aquilo que deseja obter como resultado final do seu trabalho. Diz Marx (1988):

Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já existia idealmente. (MARX, 1988, p. 142-143)

Ao mostrar a diferença entre a produção do homem e a produção do animal, Marx (1989) destaca algo que não se detém ao ato de produzir em si, pois, como ele próprio enfatiza, não há dúvidas de que os animais também produzem, pois, por exemplo, ao construir sua moradia. No entanto, não produzem mais do que o suficiente para a própria sobrevivência e para a sobrevivência de suas crias, ao contrário dos homens, que produzem universalmente, ou seja, produzem para si e para as demais espécies. Ao afirmar, nesta passagem, que o homem atinge, ao final do processo, aquilo que já estava presente em sua mente, fica explicitada a presença de uma teleologia, como afirma Lukács em sua Ontologia (2013), sendo esta denominada pelo autor de teleologia primária, aquela que o homem estabelece no ato da reprodução, ou seja, na transformação da natureza em objetos de uso.

Assim o processo do trabalho se inicia quando o homem, ao interagir com a natureza (causalidade natural), idealiza em sua mente o produto final que deseja atingir (causalidade posta), ou seja, algo novo inexistente naturalmente, mas possível de se concretizar pela ação humana. Para isso se faz fundamental que o homem ponha em movimento nexos causais para atingir tal objetivo, passando por uma gama de esferas que se fazem indispensáveis para que o resultado final seja alcançado, temos aqui o campo da superestrutura.

Devemos deixar claro que no campo da superestrutura encontramos todas as esferas que compõem a sociabilidade humana, como o direito, a família, a religião, a educação, entre outros. O desenvolvimento ocasionado pelo trabalho faz do homem um ser de relações que cada vez mais se distancia de sua base natural1, ou seja, se socializando cada vez mais em relação ao seu estágio inicial, tornando-se um ser que pertence a espécie humana. Assim, o modo de produzir e reproduzir a sua existência passa a se tornar permanente, sofrendo modificações de acordo com as necessidades sociais decorrentes desse mesmo processo de desenvolvimento.

Como sabemos, o homem é um ser histórico e processual que busca transformar a realidade, responder as perguntas que se formam frente as causalidades (naturais e sociais), com o propósito de avançar ainda mais no seu desenvolvimento. Importante frisar que no processo de desenvolvimento do homem bem como da sua sociabilidade, há mudanças substanciais no modo como ele age em sociedade, a depender do modo como produz e reproduz os seus bens.

Mesmo no capitalismo o produto final do trabalho tem como objetivo último a manutenção da existência humana, afinal não seria coerente produzir algo que não tivesse como função a satisfação do homem em qualquer dos seus sentidos, já que o produto da transformação se torna objeto de uso, embora haja predominância do seu aspecto enquanto valor de troca. Portanto o objeto produzido pelo homem, no modo de produção capitalista, ao mesmo tempo que serve aos donos dos meios de produção e do capital, gerando lucro, também não perde a função de atender as necessidades humanas, quer dizer, a sua função de valor de uso. Temos aqui o duplo aspecto da mercadoria, valor de uso e valor de troca, como afirma Marx (1988):

O valor de uso não é, de modo algum, a coisa qu’on aime pour lui-même (que se ama por si mesma). Produzem-se aqui valores de uso somente porque e na medida em que sejam substrato material, portadores de valor de troca. E para o nosso capitalista, trata-se de duas coisas. Primeiro, ele quer produzir valor de uso que tenha um valor de troca, um artigo destinado à venda, uma mercadoria. Segundo, ele quer produzir uma mercadoria cujo valor seja mais alto que a soma dos valores das mercadorias exigidas para produzi-la, os meios de produção e a força de trabalho, para as quais adiantou seu bom dinheiro no mercado. Quer produzir não só um valor de uso, mas uma mercadoria, não só um valor de uso, mas valor e não só valor, mas também mais-valia. (MARX, 1988, p. 148, grifo nosso)

O ponto em questão é que se o produto do trabalho possui dois aspectos, também a categoria da reprodução herda esse duplo aspecto, posto que os complexos sociais, no âmbito da superestrutura, são decorrentes do modo como o homem trabalha. Portanto a categoria da reprodução tem, da mesma forma que o trabalho, uma dupla função.

Lukács, em sua Ontologia, apresenta a categoria da reprodução demonstrando que o seu sentido biológico é indissociável da reprodução social. Não seria possível o desenvolvimento em nenhuma das demais esferas se este elo fundamental do caráter da reprodução fosse rompido. Quanto mais socializado o homem, mais complexa se torna essa etapa essencial em seu desenvolvimento, tanto enquanto ser natural, como enquanto ser social. A esse respeito diz Lukács (2013):

O ser social só tem existência em sua reprodução ininterrupta; a sua substância enquanto ser é por essência uma substância que se modifica ininterruptamente, consistindo justamente em que a mudança incessante produz de maneira sempre renovada e em constante intensificação quantitativa e qualitativa os traços especificamente substanciais do ser social. Como o ser social surgiu da natureza orgânica, ele forçosamente preserva as características ontológicas constantes da sua origem. (LUKÁCS, 2013, p. 201)

Com essa passagem observamos a base do caráter reprodutivo que faz o homem agir de forma a se manter enquanto ser particular-individual e enquanto ser genérico-social, que pertence a uma sociabilidade, que não devem ser delimitados e nem dissociados entre si. É nesse sentido que compreendemos que o processo de reprodução humana não está mais unicamente baseado na transformação direta da natureza em objetos de uso, como na forma mais primitiva do trabalho, pois temos agora o estabelecimento de teleologias secundárias, cuja direção é voltada para o próprio homem. Assim compreendemos a sociedade como um médium da práxis social, pois os homens passam a agir para além de uma continuidade do seu caráter eminentemente biológico, saindo de uma ação epifenomênica e pautando suas decisões alternativas, dentro de um contexto social, de modo a visar a relevância que tal decisão possa acarretar, ou seja, de forma consciente, e transformando não somente a natureza, mas a si mesmo e a sua sociabilidade, seja para o desenvolvimento social, seja para tornar permanente o que fora considerado efetivo para a realidade objetiva. Sobre o que foi discutido, Lukács (2013) afirma:

Em tudo isso, torna-se manifesto um dado ontológico fundamental do ser social: o homem como ser vivo não só biológico, mas ao mesmo tempo como membro trabalhador de um grupo social, não se encontra mais numa relação imediata com a natureza orgânica e inorgânica que o circunda, nem mesmo consigo como ser vivo biológico, mas todas essas interações inevitáveis são mediadas pelo medium da sociedade; mais exatamente, como a socialidade do homem representa seu comportamento ativo e prático em relação a seu meio ambiente como um todo, essa mediação ocorre de modo tal que ele não aceita simplesmente o meio ambiente e suas transformações nem se adapta, mas reage ativamente a eles, contrapondo às mudanças do mundo exterior um mundo de sua própria práxis, no qual a adaptação à irrevogabilidade da realidade objetiva e seus novos pores do fim que lhe correspondem formam uma unidade indissociável. (LUKÁCS, 2013, p. 204)

Compreendendo o homem como um ser ativo que media as suas ações práticas em torno de uma sociabilidade que lhe fornece as possibilidades de interação para tal fim, podemos agora, primeiramente, retratar como se dá esse caráter da reprodução do homem dentro do atual modo de produção capitalista que, mesmo possuindo uma predominância de reproduzir desigualdades, não elimina a forma essencial e fundamental que esta possui para a continuidade do ser social, o seu lado positivo e responsável pelo desenvolvimento humano-social.

A dimensão positiva da reprodução e o papel da consciência na sua processualidade

Até o momento vimos como o processo do desenvolvimento humano e social permeia a ação da práxis dos homens. Percebemos como o processo de interação social dos homens ganha nova expressividade frente aos acontecimentos que desembocam da maneira como desempenham o seu trabalho, produzindo e reproduzindo as condições para a sua existência, tendo sempre que escolher, dentre as alternativas que se apresentam na objetividade social, aquela mais adequada para trazer um resultado mais aproximativo possível à posição teleológica estabelecida.

Lukács (2013) nos fala da sociedade como um medium da práxis dos homens, nos fazendo perceber que nesse processo dialético, de interação humana frente à objetividade social que resulta das suas escolhas, o homem pode simplesmente se adaptar às mudanças que surgirem, mas também como pode reagir ativamente, interferindo e até transformando a realidade objetiva. Esta capacidade do homem se dá pelo fato de sua ação ocorrer de forma consciente, teleologicamente orientada a um fim. Devemos deixar claro que estamos falando daqueles pores teleológicos secundários, que visam agir na consciência de outros homens, pois encontramo-nos no campo da superestrutura.

Uma das primeiras observações feitas por Lukács no tocante ao campo da superestrutura, das teleologias secundárias, é que neste momento há mais possibilidades de não se atingir o fim desejado, haja vista que se trata de fazer com que o outro homem aja de determinada maneira, já que o transformado não mais será a natureza, como no âmbito primário, mas a consciência dos homens. Diz o autor (LUKÁCS, 2013):

Desse modo, o objeto desse pôr secundário do fim já não é mais algo puramente natural, mas a consciência de um grupo humano; o pôr do fim já não visa a transformar diretamente um objeto natural, mas, em vez disso, a fazer surgir um pôr teleológico que já está, porém, orientado a objetos naturais; da mesma maneira, os meios já não são intervenções imediatas sobre objetos naturais, mas pretendem provocar essas intervenções por parte de outros homens. (LUKÁCS, 2013, p. 84)

Com essa passagem podemos perceber que a práxis social dos homens também se faz fundamentada em pores teleológicos, ou seja, sua ação não é apenas uma mera ação instintiva, mas se trata de agir em busca de uma objetividade social. A dialética existente nesse processo de interação entre os homens desemboca na formação de toda a estrutura da sua sociabilidade, pois, das necessidades decorrentes do trabalho para a garantia da sua existência enquanto ser natural, também deriva necessidades que garantam a sua manutenção enquanto ser social, desenvolvida pelo trabalho e cada vez mais distante da sua barreira natural.

A consciência humana guarda traços essenciais à reprodução social, pois conduz o homem à um processo de continuidade daquilo que já fora fixado socialmente como benéfico ao ser, como, por exemplo, os costumes passados de uma geração à outra, ao mesmo tempo em que lhe possibilita a capacidade de reagir e transformar a realidade buscando o novo, elevando-se cada vez mais enquanto ser social. Para tornar clara a importância da consciência para o processo de reprodução, mesmo quando ela permanece possibilitando transformações da realidade, Lukács (2013) nos diz que:

[...] a consciência é o produto e sua expressão simultaneamente plenificada; um processo cuja continuidade conduz e dirige formas e conteúdos da consciência, os quais, no entanto, não poderiam se realizar como aquilo que por essência são sem uma transposição para a consciência. Portanto, na continuidade do processo, a consciência deve se desenvolver continuamente, deve preservar dentro de si o já alcançado como base para o que virá, como trampolim para o mais elevado, deve constantemente elevar à consciência o respectivo estágio já alcançado, mas de modo tal que, ao mesmo tempo, esteja aberta - na medida do possível - para não barrar os caminhos à continuidade rumo ao futuro. Por ser tal órgão da continuidade, a consciência representa constantemente certo estágio de desenvolvimento do ser e deve, por essa razão, acolher em si as barreiras dele como as suas próprias barreiras, e ela mesma inclusive só pode concretizar-se - de acordo com sua essência -, em última análise, em correspondência com o referido estágio. (LUKÁCS, 2013, p. 208)

Na passagem supracitada o autor nos mostra como a consciência permeia a ação humana, sendo ela fundamental ao processo de reprodução. Devemos lembrar que, antes mesmo de agir, o homem espelha a realidade em sua mente, para só então buscar os meios adequados para exteriorizar adequadamente aquilo que fora idealizado. Podemos dizer que esse caráter essencial da consciência na reprodução não se perde, independente do modo de produção no qual esteja baseado o trabalho. Os acontecimentos da vida cotidiana possibilitam ao homem a formação da sua consciência sobre como se desencadearam os processos que levaram à tal formação social. No entanto, como já fora dito, há a possibilidade de o homem reagir, ou não, aos acontecimentos sociais de forma a preservar ou a transformar o seu convívio.

É nesse sentido que compreendemos a importância da consciência no cotidiano dos homens, que surge desde os modos mais primitivos do processo de trabalho e se estende por toda a complexidade decorrente do seu desenvolvimento. Uma das características humanas é a necessidade de comunicação com outros homens, e somente quando tomam consciência da realidade que o circundam, tal comunicação entre eles se torna efetiva, conscientemente orientada a uma forma universal e genérica de comunicação, sendo este o caminho daquilo que conhecemos como linguagem2.

A efetiva ação do homem de se comunicar com uma linguagem universal torna a sua ação uma reprodução daquilo que já fora conquistado, desenvolvido e fixado ao seu cotidiano por seus antepassados, não necessitando um retrocesso aos modos de efetivação para a continuidade da sua existência. Por isso podemos associar essa característica da reprodução como positiva e indispensável ao ser social, já que o eleva a patamares superiores em sua existência, afastando-o cada vez mais da sua base natural, tornando-o mais hominizado. Sobre tal importância que a linguagem tem na vida social dos homens, Lukács (2013) nos diz:

O papel da consciência nesse processo de reprodução foi indicado por nós há pouco em seus traços mais gerais possíveis. Ficou claro agora que só com a linguagem surge, no sentido subjetivo, um órgão, no sentido objetivo, um medium, um complexo, com o auxílio do qual uma reprodução pode efetuar-se em circunstâncias tão radicalmente modificadas: como preservação da continuidade do gênero em meio à mudança ininterrupta de todos os momentos, tanto subjetivos como objetivos, da reprodução. Vimos que, para isso, é indispensável uma transposição dessas mudanças para a consciência, mais precisamente, no duplo sentido de preservar e aperfeiçoar, sendo que esses dois momentos necessariamente confluem no processo de reprodução, complementando-se mutuamente, ainda que muitas vezes de modo contraditório: a preservação pode até gerar tendências de fixação definitiva do que foi conquistado em dado momento e de fato o faz muitas vezes no curso da história, mas a orientação principal de sua função consiste mesmo em converter o que foi adquirido no passado em base para um desenvolvimento subsequente, para uma solução de novas questões postas pela sociedade. (LUKÁCS, 2013, p. 215)

A conservação de fatos já vividos na memória do homem sempre influenciará nas suas tomadas de decisões que irão dar legalidade à construção do futuro, seja para preservar os costumes e modo de produzir, seja para lançar um novo olhar para aquelas possibilidades que ainda não foram conquistadas no processo de desenvolvimento social, pois essas decisões passam pela consciência humana antes de se tornarem realidade objetiva na sociedade. Portanto temos aqui o delineamento da dimensão positiva da categoria da reprodução.

Por outro lado, vamos retornar a um dos pontos que já nos detivemos no início deste texto, que é a dimensão negativa da reprodução resultante do atual cenário produtivo, quer dizer, resultante do duplo aspecto do trabalho no capitalismo. Vamos nos deter nas considerações acerca de como essa reprodução, que é tão essencial ao processo de continuidade da existência social do homem e de direção para o seu futuro, ganha, no atual contexto do capital, um sentido que avilta a sua práxis a ponto de o deixar inconsciente sobre a sua situação e sem perceber que tal aviltamento decorre da própria decisão dos homens nas suas relações sociais, e que eles próprios são capazes de mudar o atual estado de coisas.

A dimensão negativa da reprodução e o espelhamento da realidade

Pudemos perceber que com o desenvolvimento social a partir do modo de produção capitalista e, com ele, a divisão de classes, o produto final do trabalho realizado torna-se mercadoria, adquirindo um valor de troca, ou seja, o produto do trabalho torna-se algo que não mais está simplesmente voltado à sua finalidade inicial, que é a manutenção e preservação das necessidades dos homens. Vimos que a maneira do homem dar continuidade à sua existência, de produzir e reproduzir a sua historicidade, ganha nova expressividade nesse contexto social, uma vez que o produto do trabalho se direciona prioritariamente para o valor de troca, embora não perca a sua dimensão de valor de uso. Em suma o produto do trabalho volta-se para a lógica mercadológica, para a obtenção de lucros.

O modo de produção capitalista que tem a sua lógica centrada na obtenção do lucro, numa processualidade que se dá de maneira reificada e degradante, também incidirá no processo de reprodução da vida social dos homens, uma vez que “o trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz [...]. O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata, quanto maior número de bens produz” (MARX, 1989, p. 159).

Quando falamos que, para a realização do trabalho, o homem põe em movimento os nexos causais que tornam possível o alcance do fim desejado, devemos lembrar que esses nexos se fazem presentes em uma gama de complexos sociais que envolvem a práxis como um todo, considerando que os pores teleológicos aqui são aqueles do tipo secundário, que dizem respeito a convencer a consciência dos demais homens. Vimos anteriormente que há uma dimensão positiva na reprodução do homem em sociedade, não importando a base econômica ao qual esteja fundada, e que esta é imprescindível para que seja construída a sua historicidade.

Lukács (2013) nos explica que, por haver essa continuidade na processualidade histórica, a formação da consciência humana sobre os acontecimentos da sua realidade objetiva se torna um medium fundamental ao processo desse desenvolvimento. Para o homem se reproduzir, biologicamente ou socialmente, não tem a necessidade de retroceder ao ponto inicial, ele simplesmente passa adiante os fundamentos para aquilo que já foi conquistado no desenvolvimento contínuo da sociedade, se complexificando e afastando de sua base natural.

Entretanto as consequências da reprodução não são apenas positivas, isso porque as escolhas que os homens fazem interferem diretamente no modo como eles produzem e reproduzem seus bens e sua vida social; e ao fazerem determinada escolha, haverá consequências reais na construção objetiva da sociedade. Essas consequências, por sua vez, tornam-se imprescindíveis às novas escolhas a serem feitas a fim de gerar novas situações sociais. Assim o processo do homem de reproduzir a sua vida em sociedade tem sua explicação na relação dialética dos homens entre si e com os objetos por eles produzidos, para a garantia da sua continuidade por suas próprias teleologias e ações.

A questão que envolve a face negativa da reprodução do homem deve começar a ser esclarecida exatamente no tocante à alternativa na práxis social, pois é sobre seguir este ou aquele caminho que o homem tem a liberdade de escolher entre as infinitas possibilidades existentes, que são geradas por possíveis conflitos sociais, de modo que estes resultam em modelos de socialidades totalmente diversos um dos outros. Devemos destacar o que Lukács fala sobre esse ato de escolha das alternativas no processo da objetividade social, dizendo ele que “[...] não se trata apenas de um único ato de decisão, mas de um processo, uma ininterrupta cadeia temporal de alternativas sempre novas” (LUKÁCS, 2013, p. 71).

O problema da reprodução no capitalismo está no seu próprio modo de se sustentar enquanto sistema produtivo. Sendo a sua essência a incessante busca da multiplicação de dinheiro, da própria geração da mais-valia, então todo ato reprodutivo seguirá esse viés. É importante lembrar que o problema não está presente na produção de riquezas em si, mas em como o homem se relaciona com essa produção e em como ela alcança os desígnios do capital. Marx (1989), referindo-se diretamente ao trabalho, faz a seguinte observação:

Claro, o trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz a privação para o trabalhador. Produz palácios, mas casebre para o trabalhador. Produz beleza, mas deformidade para o trabalhador. [...]. Produz inteligência, mas também produz estupidez e o cretinismo para os trabalhadores. [...]. A relação imediata do trabalho aos seus produtos é a relação do trabalhador aos objectos da sua produção. A relação dos possuidores de propriedade aos objectos da produção e à própria produção é uma simples consequência da primeira relação. [...]. Assim, ao perguntarmos pela relação essencial do trabalho, havemo-nos com a relação do trabalhador à produção. (MARX, 1989, p. 161, grifos dos autores)

Portanto, para Marx, servir ao capital é, predominantemente, reproduzir-se rumo a decadência do gênero humano, pois “com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção directa a desvalorização do mundo dos homens.” (MARX, 1989, p. 159, grifos dos autores). A indagação que agora paira é: por que o homem continua o seu processo reprodutivo dentro do capitalismo, causando ainda mais a degradação do gênero humano e, consequentemente, as desigualdades sociais?

Como já explicado no tópico anterior o espelhamento da realidade em sua consciência faz com que os homens reproduzam aquilo que está em seu entorno, assim, se esse espelhamento se dá de maneira deformada, ou seja, tendo como fundamento a exploração, é claro que o seu resultado será do mesmo modo deformado. É nesse sentido que podemos fazer alusão ao que Marx fala de formação de uma “falsa consciência”. É necessário esclarecer que a consciência aqui segue aqueles pores secundários que agem sobre o modo como os homens devem reagir frente a objetividade social.

No modo de produção capitalista os homens tendem a espelhar o tipo de realidade capitalista e de se reproduzir segundo ela, pois o que está posto em sua mente, em sua consciência, é a concepção de que, aquela forma de se reproduzir “seria” a mais perfeita dentro da sociedade, haja vista que se encontra no mais alto grau de desenvolvimento até então, logo se torna fundamental para a continuidade da sua existência. Sobre esse ato do espelhamento na consciência, Lukács (2013) diz:

Naturalmente, o espelhamento correto da realidade é a condição inevitável para que um dever-ser funcione de maneira correta; no entanto, esse espelhamento correto só se torna efetivo quando conduz realmente à realização daquilo que deve-ser. Portanto, aqui não se trata simplesmente de um espelhamento correto da realidade em geral, de reagir a ela de um modo geral adequado; ao contrário, a correção ou a falsidade, portanto, qualquer decisão que se refere a uma alternativa do processo de trabalho, pode exclusivamente ser avaliada a partir do fim, de sua realização. (LUKÁCS, 2013, p. 99-100)

Pudemos perceber que a realidade espelhada na consciência se torna o veículo condutor para que o homem busque concretizar o que ele idealizou, tornar a sua prévia ideação em uma causalidade posta por ele. Lukács nos diz que no curso do desenvolvimento, certos conceitos se tornam generalizados na práxis social, ao serem reproduzidos continuamente como meio necessário ao processo de continuidade das condições encontradas. A ação humana, que sempre alcança patamares elevados em sua práxis, pode ser acrescida de falsas representações, sem que esses homens percebam a necessidade de um retorno consciente do espelhamento da realidade a ponto de controlar e aperfeiçoar tais realizações. Quando falamos de falsas representações não estamos nos referindo ao espelhamento em si, mas ao tipo de função que ela tem para o homem.

O espelhamento da realidade é uma etapa necessária no processo de trabalho uma vez que, com esse distanciamento da realidade, o homem alcança os meios de realização do que fora espelhado em sua mente, podendo ele ser alcançado ou levado ao fracasso, mas sempre direcionando suas escolhas dentre as alternativas vistas como corretas para o alcance do fim. Devemos lembrar o que Lukács nos diz sobre esse espelhamento não ser a realidade em si, e sim o mais próximo possível do que foi idealizado, ou seja, o mais próximo possível do que estava espelhado na mente humana. Assim ele nos diz (LUKÁCS, 2013):

No espelhamento da realidade a reprodução se destaca da realidade reproduzida, coagulando-se numa “realidade” própria na consciência. Pusemos entre aspas a palavra realidade porque, na consciência, ela é apenas reproduzida; nasce uma nova forma de objetividade, mas não uma realidade, e - exatamente em sentido ontológico - não é possível que a reprodução seja semelhante àquilo que ela reproduz e muito menos idêntica a isso. Pelo contrário, no plano ontológico o ser social se subdivide em dois momentos heterogêneos, que do ponto de vista do ser não só estão diante um do outro como heterogêneos, mas são até mesmo opostos: o ser e o seu espelhamento na consciência. Essa dualidade é um fato fundamental no ser social. Em comparação, os graus de ser precedentes são rigidamente unitários. A remissão ininterrupta e inevitável do espelhamento do ser, a sua influência sobre ele já no trabalho, e ainda mais marcantemente em mediações mais amplas (as quais só poderemos expor mais adiante), a determinação que o objeto exerce sobre seu espelhamento etc., tudo isso jamais elimina aquela dualidade de fundo. É por meio dessa dualidade que o homem sai do mundo animal. Quando Pavlov descreve o segundo sistema de sinalização, que é próprio somente do homem, afirma corretamente que apenas esse sistema pode afastar-se da realidade, podendo dar uma reprodução errônea dela. Isso apenas é possível porque o espelhamento se dirige ao objeto inteiro independente da consciência, objeto que é sempre intensivamente infinito, procurando apreendê-lo no seu ser em-si e, exatamente por causa da distância necessária imposta pelo espelhamento, pode errar. (LUKÁCS, 2013, p. 66)

Fica claro como a importante etapa do espelhamento da realidade na mente humana interfere diretamente na construção prática da sua sociabilidade. O entrelaçamento das relações dos homens entre si com os objetos por eles produzidos e reproduzidos, uma práxis social que resulta do modo de produção, das suas escolhas dentre as alternativas na realidade que o circunda, sempre passará por sua consciência. Não podemos deixar de lembrar o que Lukács nos fala sobre aqueles atos do trabalho que se tornam tão comuns no processo de reprodução social, atos simples desde a vida cotidiana até os mais complexos, como nos setores da economia, que muitas vezes podem ser vistos pelos homens como involuntários às suas escolhas, como algo que não foi escolhido, mas que já estava fixado ao desenvolvimento social.

Essa estrutura ontológica do processo de trabalho, que o torna uma cadeia de alternativas, não deve ficar obscurecida pelo fato de que, no curso do desenvolvimento e mesmo em fases de desenvolvimento relativamente baixas, as alternativas singulares do processo de trabalho se tornem, através do exercício e do hábito, reflexos condicionados e, desse modo, possam ser enfrentados “inconscientemente” no plano da consciência. Deixando de lado aqui a discussão acerca da constituição e da função dos reflexos condicionados - que têm diversos níveis de complexidade, tanto no próprio trabalho como em qualquer outro campo da práxis social, por exemplo, como contraditoriedade da rotina etc. -, observemos apenas que, na sua origem, todo reflexo condicionado foi objeto de uma decisão alternativa, e isso é válido tanto para o desenvolvimento da humanidade como para o de cada indivíduo, que só pode formar esses reflexos condicionados aprendendo, exercitando etc., e no início de tal processo estão precisamente as cadeias de alternativas. (LUKÁCS, 2013, p. 72-73)

É nesse sentido que iremos agora nos referir ao processo de aprendizagem, ao qual os homens são submetidos ainda no processo de trabalho, de reprodução da sociabilidade, por eles realizados. Desde as suas escolhas mais simples da vida cotidiana até aqueles processos sistematizados de ensino que condicionam a ação do homem a uma lógica econômica, o homem estará em volto à formação de si mesmo enquanto um ser social. A formação humana decorrente do modo de produção ao qual o homem está relacionado, seja ela qual for, sempre irá interferir diretamente no modo como ele se reproduz e aprende a se desenvolver pelo trabalho que realiza.

Sendo assim, a formação da consciência humana está intrinsecamente relacionada com o seu contexto social, pois, embora o indivíduo já nasça num contexto histórico já formado, ele também passa a influenciar esse contexto. Como dizem Marx e Engels (1984, p. 56): “as circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as circunstâncias”. Esse processo de produção e reprodução da vida social ocorre desde que o homem iniciou suas atividades laborativas por meio das quais começou também a se educar, uma vez que o processo educacional é intrínseco ao trabalho humano. No entanto no atual sistema produtivo esse processo de educar não se volta prioritariamente para a formação humana, sendo muitas vezes levado à reprodução de métodos voltados para suprir o mercado capitalista e deixando em segundo plano a sua função de educar o homem de modo omnilateral. Diante dessas considerações teceremos em nossas conclusões algumas posições de Saviani a respeito da educação - no que diz respeito as Teorias Não-Críticas, Teorias Crítico-Reprodutivistas e Pedagogia Histórico-Crítica - relacionando-as com o duplo aspecto da reprodução.

A guisa de conclusão: relacionando a categoria da reprodução no âmbito da educação com a perspectiva de Saviani

Antes de adentrar propriamente na perspectiva de Saviani acerca da educação e fazermos uma relação desta com a categoria da reprodução, devemos recapitular alguns pontos importantes que foram discutidos nos tópicos anteriores, a começar pela relação do trabalho com a reprodução.

Retomando as nossas argumentações sobre a questão da reprodução, é importante lembrar o trabalho como categoria fundante e central do ser social e do seu desenvolvimento. Portanto, diante das colocações feitas acerca do trabalho, e de como ele se processa, no decorrer deste artigo, foi possível deixar claro que a reprodução está presente no campo da superestrutura e que se porta como medium entre a sociedade e sua práxis.

Desse modo, quando nos voltamos para a questão da reprodução sob o espectro do capitalismo, devemos transpor todas as características do trabalho para ter a correta percepção da sua realidade. Diante disso chegamos à conclusão que da mesma forma que a categoria do trabalho no capitalismo tem um duplo aspecto - o caráter de valor de uso, ineliminável em qualquer forma de sociedade; e o de valor de troca, que avilta e degrada a vida humana -, a reprodução também possui um duplo aspecto que, de maneira correlata, apresenta sua vertente positiva como aquela inerente ao desenvolvimento do homem e, por isso, se dá em qualquer forma de sociedade, e a negativa que é aquela que envolve a consciência de modo a contribuir com o desenvolvimento desigual da sociedade, favorecendo a expansão do capitalismo. É nessa analogia que podemos perceber esse duplo aspecto em cada categoria, porém, enquanto no trabalho o objeto é a mercadoria, na reprodução o objeto é a consciência.

Logo é no campo das teleologias secundárias que devemos tratar sobre a reprodução, e como subcategoria de análise, se assim podemos designar, nosso olhar deve se voltar à educação, já que “[...] a problemática da educação remete ao problema sobre o qual está fundada: sua essência consiste em influenciar os homens no sentido de reagirem a novas alternativas de vida do modo socialmente intencionado” (LUKÁCS, 2013, p. 178).

Sobre o modus operandi de educação que queremos abordar, o autor brasileiro Dermeval Saviani fez importantes considerações no seu livro Escola e Democracia (2008) a respeito dos grupos de teorias que denominou de Teorias Não-Críticas - quais sejam, Pedagogia Tradicional, Pedagogia Tecnicista e Pedagogia Nova - e Teorias Crítico-Reprodutivistas, grupo que compreende a Teoria do Sistema de Ensino como Violência Simbólica, de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, Teoria da Escola como Aparelho Ideológico de Estado, de Louis Althusser, e a Teoria da Escola Dualista, de Christian Baudelot e Roger Establet.

Apesar de citar as divisões de cada grupo, o que nos interessa não é dissecar cada divisão. Aqui iremos nos ater aos aspectos gerais de cada grupo de teorias, pois, da mesma forma que acontece no trabalho e na reprodução que tem duplo aspecto, já por nós explicitados, esses dois grupos de teorias se apresentam como duas faces antagônicas de uma mesma categoria, no caso, a educação.

Para ambos os grupos de teorias, a marginalidade3 é o objeto de estudo, entretanto, sob perspectivas diversas, Saviani (2008) diferencia as Teorias Não Críticas e as Teorias Crítico-Reprodutivistas, respectivamente da seguinte forma:

No primeiro, temos aquelas teorias que entendem ser a educação um instrumento de equalização social, portanto, de superação da marginalidade. No segundo, estão as teorias que entendem ser a educação um instrumento de discriminação social, logo, um fator de marginalização. (SAVIANI, 2008, p. 3-4)

Para as Teorias Não-Críticas a sociedade é harmoniosa, contudo eventualmente ocorre o fenômeno da marginalidade que afeta parte dos seus membros. Com o objetivo principal de combater a marginalidade e retornar à sociedade livre desse tipo de mazela, é utilizada como ferramenta de correção a educação. Dessa forma, não é difícil perceber que, para esse grupo de teorias, mesmo não tendo especificado as peculiaridades de cada uma, a escola tem o papel de equalizar a sociedade. Todavia desconsideram algo imprescindível para o correto entendimento da relação entre escola e sociedade. Pinheiro, Nobre Lopes e Silva Filho (2017) demonstram o problema dessas teorias ao dizer que

É importante lembrar que a processualidade histórica é parte constitutiva da hominização do homem, mas ela também perpassa os complexos sociais, dentre eles a educação, que sendo parte fundamental dessa processualidade, tem arraigada em sua essência uma construção histórica, social e dialética. (PINHEIRO; NOBRE LOPES; SILVA FILHO, 2017, p. 59)

Por desconsiderar a relação entre educação e sociedade, elementos que dão validade à interpretação da conjuntura social, e por unilateralizarem as determinações, haja vista a autonomia dada à educação para homogeneizar a socialidade, nas Teorias Não-Críticas os resultados não correspondem à teleologia expressa por elas, que seria a de superar o problema da marginalidade por meio da escola. Ao contrário, os seus resultados reforçaram ainda mais tal problema.

Nesse mesmo erro incorrem as Teorias Crítico-Reprodutivistas, no entanto considerando o contrário, ou seja, elas defendem que a educação só é instrumento de reprodução do problema da marginalidade. Elas conseguem perceber a relação entre escola e sociedade, todavia também incorrendo em análises unilaterais. A diferença é que, para aquele grupo de teorias, a escola apenas reproduz as mazelas sociais, contribuindo para a expansão do capitalismo, ao passo que as Teorias Não-Críticas consideram a educação somente como fator de equalização social, sem perceber o lado negativo da reprodução que impera. Saviani (2008, p. 4) comenta que, para as Teorias Crítico-Reprodutivistas, a educação “[...] é entendida como inteiramente dependente da estrutura social geradora de marginalidade, cumprindo aí a função de reforçar a dominação e legitimar a marginalização”.

Em face do exposto, podemos perceber a presença do aspecto negativo da reprodução tanto nas Teorias Não-Críticas como nas Teorias Crítico-Reprodutivistas, pois ambas as concepções acabam por contribuir para a permanência do sistema de dominação do capital frente aos homens, favorecendo distorções na sociedade e na consciência e, consequentemente, reforçando a reprodução das desigualdades.

Postas as fragilidades dos dois grupos de teorias, seja pela ingenuidade e otimismo do primeiro grupo, seja pelo pessimismo do segundo grupo, Saviani reconhece os seus limites e sistematiza uma pedagogia que traz em sua essência a metodologia marxiana ao considerar como elemento indispensável a processualidade histórica, o criticismo e a dialética entre educação e sociedade. Essa pedagogia, que Saviani denominou de histórico-crítica, é definida por ele como:

[...] a passagem da visão crítico-mecanicista, crítico-a-histórica para uma visão crítico-dialética, portanto histórico-crítica, da educação [...]. Essa formulação envolve a necessidade de se compreender a educação no seu desenvolvimento histórico-objetivo e, por consequência, a possibilidade de se articular uma proposta pedagógica cujo ponto de referência, cujo compromisso, seja a transformação da sociedade e não sua manutenção, a sua perpetuação. (SAVIANI, 2013, p. 80)

Na própria definição da Pedagogia Histórico-Crítica é possível perceber o vínculo desta com a ideia de educação omnilateral de Marx, pois permite a plena manifestação do homem em suas atividades, desenvolvendo a sua sociabilidade de modo corretamente orientado, que busca a construção humana longe das mazelas do capital. A respeito da educação omnilateral, diz Marx (1989):

O homem apropria-se do seu ser omnilateral de uma maneira omnicompreensiva, portanto, como homem total. Todas as suas relações humanas ao mundo - visão, audição, olfacto, gosto, percepção, pensamento, observação, sensação, vontade, actividade, amor - em suma, todos os órgãos da sua individualidade, como também os órgãos que são directamente comunais na forma, são no seu comportamento objectivo ou no seu comportamento perante o objecto a apropriação do sobredito objecto, a apropriação da realidade humana. (MARX, 1989, p. 196-197)

A relevância dessa passagem é decisiva para o que queremos demonstrar. A educação omnilateral, por ter como fundamento uma formação crítica da realidade e completa do homem como um ser genérico e processual, está de acordo com o que podemos associar à reprodução no seu sentido positivo. Esse modo de educar possibilita ao homem uma formação crítica da realidade existente, uma conscientização livre de distorções para o seu desenvolvimento social, pois percebe que, mesmo atendendo a lógica do sistema capitalista, haverá criticidade nesse homem para buscar, entre as alternativas que se apresentam, aquela mais viável para transformar a objetividade, em questão, em algo novo. Logo, a proposta da Pedagogia Histórico-Crítica condiz com a face positiva da reprodução, pois em seu seio há elementos que favorecem a formação de uma consciência humana, longe daquela falsa percepção da realidade que predomina na educação vigente no modo de produção capitalista.

Referências

LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social 2. Trad. Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013. [ Links ]

MARX, Karl. Manuscritos económico-filosóficos de 1844. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1989. [ Links ]

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Tradução de Régis Barbosa e Flávio R. Kothe. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (v. 1, t. 1). [ Links ]

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã (Feuerbach). Tradução de José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1984. [ Links ]

PINHEIRO, Víctor Moita; NOBRE LOPES, Fátima Maria; SILVA FILHO, Adauto Lopes. O funcionalismo no âmbito do trabalho docente no contexto das teorias não críticas. In: SILVA FILHO, Adauto Lopes; NOBRE LOPES, Fátima Maria; LIMA SALES, Francisco José (Orgs.). Ontologia, trabalho e formação humana. Curitiba: CRV, 2017. p. 59-69. [ Links ]

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. Campinas: Autores Associados, 2008. [ Links ]

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11. ed. Campinas: Autores Associados, 2013. [ Links ]

* Trabalho desenvolvido O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Brasil - Código de Financiamento 001. Recurso: CAPES.

1Queremos destacar que essa base natural nunca desaparece, até mesmo nos estágios mais evoluídos da sociabilidade humana.

2 Lukács (2013) diz que a linguagem é tão antiga quanto o trabalho, mas em termos de gênese social o trabalho é a categoria fundante.

3O termo marginalidade aqui empregado tem o sentido daquele que está à margem da sociedade.

Recebido: 07 de Setembro de 2021; Aceito: 19 de Janeiro de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons