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Educação e Filosofia

Print version ISSN 0102-6801On-line version ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.36 no.77 Uberlândia May/Aug 2022  Epub Jan 29, 2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v36n77a2022-63139 

Artigos

Teoria, Crítica e Prática Educacional: Sobre a relação entre pessimismo teórico e transformação do mundo em T.W. Adorno*

Critical theory and educational practice: on the relationship between theoretical pessimism and the transformation of the world to T.W. Adorno

Teoría, crítica y práctica educativa: sobre la relación entre pesimismo teórico Y transformación del mundo en T.W. Adorno

**Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil (2017). Professor Colaborador (bolsista PNPD/Capes) do Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: p.savi@hotmail.com

***Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil (2003). Professora Cat. Adjunta dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul , Brasil E-mail: monica.fare@pucrs.br


Resumo

O presente artigo trata da relação entre teoria e prática no pensamento de Theodor W. Adorno com o objetivo de analisar as possibilidades de emancipação do sujeito no âmbito da sociedade capitalista contemporânea, questionando sobre um suposto pessimismo do autor. Para tanto, serão contextualizadas as relações entre sujeito e objeto, natureza e razão, teoria e prática e formação e semiformação, com a finalidade de pensar a importância fundamental da teoria para a transformação do mundo a partir de uma análise crítica da sociedade, bem como a pertinência dessa análise ao atual momento brasileiro. A transformação do mundo será pensada a partir das possibilidades de emancipação do sujeito e do papel da formação humana nesse processo, no interior de um modelo educacional cada vez mais determinados pelos interesses do capital que direcionam a educação a aspectos meramente práticos de adaptação ao mercado de trabalho. A conclusão aponta no sentido da necessidade imperativa da manutenção da formação teórica e crítica diante dos constrangimentos de ordem prática de um mundo administrado pelos valores capitalistas.

Palavras-chave: Theodor W; Adorno; Relação teoria e prática; Semiformação; Pessimismo teórico

Abstract

This article deals with the relationship between theory and practice in the thought of Theodor W. Adorno with the aim of analyzing the possibilities of the subject’s emancipation in the context of contemporary capitalist society, questioning the author’s supposed pessimism. Therefore, the relationships between subject and object, nature and reason, theory and practice, and Bildung and Halbbildung will be contextualized, with the purpose of thinking about the fundamental importance of theory for the transformation of the world from a thought marked by a critical analysis of the society, as well as the relevance of this analysis to the current Brazilian moment. The transformation of the world will be thought from the possibilities of emancipation of the subject and the role of human formation in this process within an educational model increasingly determined by the interests of capital that led education to merely practical aspects of adaptation to the labor market. The conclusion points towards the imperative need to maintain theoretical and critical education in the face of practical constraints in a world managed by capitalist values.

Key-words: Theodor W; Adorno; Theory and practice relationship; Semi-formation; Theoretical pessimism

Resumen

Este artículo aborda la relación entre teoría y práctica en el pensamiento de Theodor W. Adorno con el objetivo de analizar las posibilidades de emancipación del sujeto en el contexto de la sociedad capitalista contemporánea, cuestionando el supuesto pesimismo del autor. Para eso, se contextualizarán las relaciones entre sujeto y objeto, naturaleza y razón, teoría y práctica, y formación y semiformación, con el propósito de pensar la importancia fundamental de la teoría para la transformación del mundo a partir de una análisis crítica de la sociedad, así como la relevancia de este análisis para el momento brasileño actual. La transformación del mundo se pensará desde las posibilidades de emancipación del sujeto y el papel de la formación humana en este proceso dentro de un modelo educativo cada vez más determinado por los intereses del capital que dirigen la educación a aspectos meramente prácticos de adaptación al mercado laboral. La conclusión apunta hacia la imperiosa necesidad de mantener una formación teórica y crítica frente a las limitaciones prácticas en un mundo gestionado por valores capitalistas.

Palabras-clave: Theodor W; Adorno; Relación teoría y práctica; Semiformación; Pesimismo teórico

Introdução

A relação entre teoria e prática é de fundamental importância no âmbito da chamada Teoria Crítica da Sociedade (TC) na medida em que é por meio dela que se compreende a possibilidade de emancipação dos sujeitos e, por consequência, de transformação do mundo. Se, por um lado, esse movimento teórico teve como impulso inicial dar continuidade ao pensamento de Marx (WIGGERHAUS, 2002, p. 41), por outro, igualmente importante, ele nasceu decidido a não repetir a orientação para a prática1, destinando, à teoria, uma “distância prudente da ação direta” (NOBRE, 2008, p. 268). No cerne dessa questão está a 11ª das Teses sobre Feuerbach: “os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é transformá-lo” (MARX, 2007, p. 538).

A TC segue a ideia de Marx de que a filosofia não deve ser mera interpretação do mundo e deve objetivar a emancipação do sujeito (NOBRE, 2014, p. 32), mas não toma como conclusão decorrente dessa premissa que a ação política deva ser o caminho para transformar a realidade: “Marx provavelmente quis dizer realmente que os filósofos deveriam abandonar suas atividades em favor da política” (ADORNO, 2008, p. 44, tradução nossa). Em vez disso, a TC compreende a transformação do mundo por meio de um tipo de teoria que, embora relacionada com a prática, conserva-se como tal: “[p]ensar é um agir, teoria é uma forma de práxis” (ADORNO, 1995b, p. 204). Contudo, esse tipo de teoria, para cumprir com o seu objetivo emancipatório, deveria ser distinto do até então produzido pela chamada Teoria Tradicional.

Max Horkheimer, principal articulador do Instituto de Pesquisas Sociais, sede física da TC (WIGGERSHAUS, 2002, p. 68), tratou da referida questão no texto Teoria Tradicional e Teoria Crítica, de 1937, no qual afirmou que a Teoria Tradicional aplicava às ciências em geral o modelo das ciências naturais, especialmente da física e da matemática, e tinha como principal objetivo descrever como a realidade objetivamente é. Contudo, no seio de uma sociedade dominada pelos interesses burgueses, a pretensa neutralidade científica é impossível e, em verdade, tenderia apenas a fortalecer os interesses dominantes:

[n]a medida em que o conceito da teoria é independentizado, como que saindo da essência interna da gnose (Erkenntnis), ou possuindo uma fundamentação a-histórica, ele se transforma em uma categoria coisificada (verdinglichte) e, por isso, ideológica (HORKHEIMER, 1983, p. 121).

Diferentemente da Teoria Tradicional, a TC assumiu uma postura não-neutra com o objetivo de desvelar as contradições do sistema capitalista, a partir da relação entre como a realidade é e como ela poderia ser à luz da emancipação, caso essa não fosse bloqueada pelas condições sociais inerentes à sociedade burguesa. Para tanto, buscou desenvolver métodos próprios para as Ciências Humanas e Sociais, através da constituição de um grupo interdisciplinar de pesquisadores (WIGGERSHAUS, 2002) e do desenvolvimento de um método próprio de pesquisa (SAVI NETO, 2018).

A preocupação da TC com a relação entre teoria e prática está fortemente presente no pensamento de Adorno e pode ser entendida a partir (1) do momento histórico do nascimento da sua filosofia, no qual ambas as categorias padeciam de uma crise de sentido, tanto isoladamente quanto em sua relação, e (2) do contexto teórico-político vivenciado pelo autor. Do ponto de vista teórico, no seio da esquerda intelectual alemã, a principal teoria que circulava era a de Lukács, com a qual Adorno não concordava por condicionar o potencial revolucionário da arte à prática político-partidária (FRANCO, 2000, p. 96); do ponto de vista das experiências políticas, as informações que chegavam sobre a prática materializada na ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) ofereciam fortes sinais de que não havia sido bem sucedida a tentativa de resistência ao capitalismo pela ação política direta. A partir desse estado de coisas, Adorno compreendeu, então, que o momento era oportuno para a construção de um caminho teórico alternativo, a ser elaborado justamente a partir dessas duas categorias fundamentais: teoria e prática.

Pensando sobre o atual contexto político brasileiro e internacional, a relação entre teoria e prática mostra-se, ainda e especialmente, atual e urgente, pois a grave crise, em nível nacional e internacional (humana e ambiental), parece convocar as pessoas para algum tipo de ação. Contudo, conforme preocupação que permeia a integralidade da obra de Adorno, jogar-se à ação sem a compreensão teórica adequada da complexidade dos contextos social e histórico tende, inevitavelmente, ao insucesso; ou, ainda mais grave, tende a agravar a situação pela repetição da mesma lógica que está na base da crise. Para romper com um ciclo de ações confinadas à repetição, Adorno defende a autonomia da teoria: “Continuo a pensar que é justamente sob os constrangimentos práticos de um mundo funcionalmente pragmatizado que devemos manter a teoria” (ADORNO, 2003, p. 136).

Se a prática realmente não é o caminho, a questão que surge é: como promover a transformação pela teoria de um mundo no qual o processo de formação cultural (Bildung2) é controlado pelos interesses da burguesia? A resistência à prática no interior de um movimento que pretende ser de emancipação é apontada por diversos pensadores como uma aporia (HABERMAS, 2000, p. 185). Diante dessa aparente aporia, Adorno constrói, como caminho possível, a sua dialética negativa como sendo um sistema de pensamento que se movimenta pelo tensionamento dialético não sintetizável e marcado por uma crítica da realidade (ADORNO, 2009, p. 7). Ele dedica parte representativa da sua obra para criticar diversos aspectos relacionados com a formação cultural da sociedade burguesa sem oferecer, contudo, um caminho mágico a ser percorrido para a saída da crise.

Adorno defende a manutenção da crítica enquanto crítica; enquanto teoria, como sendo a melhor possibilidade para saída da crise: “[d]iante da questão ‘que fazer’ eu na realidade só consigo responder, na maioria dos casos, ‘não sei’. Só posso tentar analisar de modo intransigente aquilo que é” (ADORNO, 2003, p. 133). Esse procedimento filosófico, despido de itinerários práticos de ação, acaba por revestir a sua obra com uma face aporética; com a aparência de um pensamento teórico que não merece ser conhecido pela sua lacuna no sentido de fornecer respostas tendentes à facilitação da atividade do sujeito/leitor, ou seja, pelo oferecimento de ações concretas para a resolução da crise. A construção teórica adorniana recebe, por conta disso, a classificação de uma filosofia pessimista.

Partindo dessas considerações preliminares, a relação entre teoria e prática será analisada com base na obra de Adorno, estabelecendo-se a relação entre as duas mencionadas categorias e o processo de formação, com o objetivo de pensar a importância fundamental da teoria para a transformação do mundo a partir de um pensamento marcado por uma análise crítica (pessimista?) da sociedade regida pelos interesses do capital.

Teoria e prática enquanto identidade

A diferença entre teoria e prática envolve teoricamente o fato de não se poder nem identificar puramente a prática com a teoria, nem colocá-la χωρίς em relação a ela. As duas não podem ser coladas uma à outra em uma síntese. (ADORNO, 2009, p. 238)

A filosofia de Adorno é construída dialeticamente e se movimenta especialmente a partir de conceitos centrais que se tensionam mutuamente sem que sejam sintetizados positivamente. Tal procedimento representa a compreensão por parte de Adorno de que a teoria precisa reconhecer a complexidade do mundo para ser capaz de pensá-lo adequadamente, sem recair em simplificações positivistas e facilmente mobilizáveis em favor da manutenção dos interesses hegemônicos, característica da Teoria Tradicional (ADORNO, 2009, p. 19). Para a análise, interessam, especialmente, os tensionamentos entre (a) sujeito e objeto, (b) natureza e razão e (c) teoria e prática (ADORNO, 1995b). O trabalho filosófico da dialética negativa de Adorno é demonstrar que o verdadeiro progresso racional, aquele capaz de conduzir à emancipação, depende da não-superação imediata (da não redução à síntese) de nenhum dos dois lados dessas relações dicotômicas; ambos os lados devem ser, ao mesmo tempo, conservados e superados, realizando o que Adorno denominou de dialética negativa (ADORNO, 2009).

Partindo da relação entre natureza e razão, Adorno afirma que o nascimento da razão se deu como forma de autopreservação da vida do ser humano em meio à natureza: “A ‘ratio’, no sentido mais amplo, surgiu como instrumento de autoconservação” (ADORNO, 1995b, p. 221). A necessidade de conservação da própria vida em meio à natureza hostil, de ordem prática e imediata, obriga o ser humano a raciocinar (teorizar) sobre os meios e as possibilidades para sua sobrevivência. Nessa medida, a ligação que se estabelece entre sujeito (razão) e objeto (natureza) não se trata simplesmente de uma relação de conhecimento desinteressada, mas de uma forma imediata de dominação: o sujeito necessita dominar o objeto-natureza como forma de preservar a sua própria vida. A razão, na origem ligada à necessidade de manutenção da vida em um ambiente marcado pela barbárie, inerente ao estado de natureza, precisa compreender a relação entre conhecimento e dominação para libertar-se da repetição e manutenção da barbárie na sociedade supostamente esclarecida racionalmente. A possibilidade de emancipação do sujeito e da transformação do mundo depende da compreensão dessa relação originária para eliminar a barbárie característica do estado de natureza.

Contudo, conforme tratado especialmente na Dialética do esclarecimento, a sociedade burguesa, em vez de superar, intensificou a referida relação, condicionando a sobrevivência do sujeito ao trabalho e, por consequência, determinando um tipo de prática necessário à manutenção da vida em sociedade. De acordo com Adorno (1995b, p. 206): “[a] práxis nasceu do trabalho”. O fato de a práxis ter nascido do trabalho conserva na própria prática um elemento de não-liberdade, pois, desde a origem, a prática é marcada por um agir contra a natural inclinação do ser humano ao prazer “a fim de conservar a própria existência” (ADORNO, 1995b, p. 206). Se a prática é condicionada pela não-liberdade característica da necessidade de sobrevivência, a verdadeira teoria, por outro lado, representa a possibilidade de liberdade para fugir das determinações de ordem prática regidas pelos interesses de conservação da vida na sociedade burguesa.

Essas relações de origem prática, mas que, pela racionalidade, característica distintiva do ser humano, demandariam o exercício teórico emancipador, acabam tornando-se condicionadas pela necessidade de sobrevivência. A possibilidade de exercício racional verdadeiramente livre é barrada pela necessidade prática material imediata de sobrevivência, determinando a identidade entre os polos da relação dialética: a teoria é determinada pela prática. Nesse sentido, os elementos antitéticos são sintetizados positivamente, misturados, confundidos e se tornam mera identidade: sujeito e objeto, natureza e razão, conhecimento e dominação, teoria e prática.

Entretanto, assim como a separação de sujeito e objeto não é imediatamente revogável pela decisão autoritária do pensamento, do mesmo modo, tampouco existe unidade imediata entre teoria e práxis: ela imitaria a falsa identidade entre sujeito e objeto e perpetuaria o princípio de dominação, instaurador da identidade, cuja derrota é do interesse da verdadeira práxis (ADORNO, 1995b, p. 210).

Embora a sociedade burguesa não tenha inaugurado a dominação da prática pela necessidade de sobrevivência, a sua lógica de funcionamento mantém e potencializa essa relação. Por baixo de uma aparência complexa, especialmente em tempos de capitalismo financeiro, a sociedade burguesa, desde a sua origem, se estrutura e se movimenta a partir de um único mecanismo muito simples: a troca de equivalentes. Tudo aquilo que não se enquadra como um valor apropriável por essa lógica de funcionamento é descartado. A relação que está na origem desse mecanismo é entre sujeito e objeto, pois, na sociedade burguesa, o sujeito encara o objeto tão-somente a partir da perspectiva do seu valor de troca. Como decorrência disso, a constituição da subjetividade do indivíduo na sociedade burguesa se dá pela identidade ao sistema que é dominado pela lógica de troca: “[s]e a estrutura dominante da sociedade reside na forma da troca, então a racionalidade desta constitui os homens; o que estes são para si mesmos, o que pretendem ser, é secundário” (ADORNO, 1995b, p. 186). Essa ideia é afirmada por Adorno em diversas passagens de sua obra e se constitui uma chave interpretativa fundamental para compreender conceitos centrais de sua filosofia, especialmente a relação que se estabelece, a partir daí, entre teoria e prática.

A pré-formação subjetiva do processo de produção material da sociedade, radicalmente diversa de uma constituição teórica, é o seu elemento irresoluto, irreconciliável com os sujeitos. A sua própria razão que, inconsciente como o sujeito transcendental, funda a identidade por meio da troca, permanece incomensurável para os sujeitos que ela reduz ao mesmo denominador comum: sujeito como inimigo do sujeito (ADORNO, 2009, p. 17).

A prática condicionada pela lei de troca da sociedade determina que “[n]enhuma teoria escapa mais ao mercado” (ADORNO, 2009, p. 12). Isso repercute na identidade entre teoria e prática, pois (a) a prática está condicionada à sobrevivência no mercado; (b) a teoria, para ter valor de troca (único critério relevante dentro da lógica burguesa), deve fornecer elementos (de aplicação fácil e imediata) para esse objetivo eminentemente prático. Tal lógica sugere um caráter de redução de toda forma de conhecimento à prática necessária para a sobrevivência na sociedade. Por decorrência, não se trata de uma prática com potencial de emancipação dos sujeitos; mas, sim, de uma prática fechada em si mesma, repetitiva, alienada de sentido e, por consequência, incapaz de gerar elementos para uma teoria autônoma.

A exigência da unidade entre práxis e teoria rebaixou irresistivelmente a teoria até torná-la uma serva; ela alijou da teoria aquilo que ela teria podido realizar nessa unidade. O visto prático que se requisita de toda teoria transformou-se em carimbo de censura. No entanto, na medida em que a teoria foi subjugada no interior da célebre relação teoria-prática, ela se tornou aconceitual, uma parte da política para fora da qual ela gostaria de conduzir; ela é entregue ao poder. A liquidação da teoria por meio da dogmatização e da interdição ao pensamento contribui para a má prática; é de interesse da própria prática que a teoria reconquiste sua autonomia. A relação recíproca entre os dois momentos não é decidida de uma vez por todas, mas se altera historicamente. Hoje, porquanto o funcionamento por toda parte predominante paralisa e difama a teoria, por meio de sua mera existência a teoria depõe contra ele em toda a sua impotência. Por isso, ela é legítima e odiada; sem ela, a prática que sempre quer transformar não poderia ser transformada (ADORNO, 2009, p. 125).

Diante desse quadro, a teoria é valorizada somente enquanto ferramenta de caráter prático de adaptação ao mundo existente, perdendo o seu potencial emancipatório para transformação da realidade. No contexto de um mundo pragmatizado em torno aos interesses do capital, a formação teórica mostra-se desnecessária e inconveniente aos interesses dominantes, pois ela reteria o potencial de pensar e apontar para um mundo diferente. Essa lógica se aplica à educação, ocasionando uma simplificação deformativa do processo educacional, que passa a ser dominado por pensamentos autodeclarados como teorias, mas que, em verdade, são meras orientações de caráter prático.

Teoria, crítica e prática educacional

Adorno (1995a) entende que a educação deve cumprir com um duplo papel: adaptação e emancipação. Nesse sentido, o processo educacional deve: (1) garantir a adaptação do sujeito ao mundo, mas não pode ficar apenas nisso; (2) deve, também, assumir o papel de despertar a consciência do sujeito para a necessidade de emancipação. No tocante à utilização da palavra emancipação, Vilela (2007) esclarece que

[p]ara entender o Theodor Adorno desse conjunto de textos, parece-nos fundamental esclarecer o termo alemão, utilizado por ele, para indicar seu pensamento sobre a escola e a Educação, pois o vocábulo português “emancipação” não revela o sentido pleno tomado pelo teórico. Ao escolher a palavra, Adorno procurou, com ela, revelar a essência do seu pensamento: a educação e o processo social de dominação apresentam uma mesma raiz. Mund significa “boca”. Mündigkeit significa a capacidade de falar pela própria boca, falar por si mesmo; mas, para essa condição, o sujeito precisa ser capaz de pensar por si mesmo. Entretanto, o processo social de dominação retirou do homem a capacidade de pensar por conta própria, retirou dele a capacidade de autonomia das suas ações, de falar e de agir por si mesmo (VILELA, 2007, p. 235-236).

Nessa linha, o autor compreende que os processos de formação na sociedade burguesa, progressivamente dominados pelos interesses do capital, conduzem apenas para uma necessária (à sobrevivência) adaptação, deixando de cumprir com o seu papel emancipatório. Tal redução do papel da educação já seria grave, contudo, torna-se ainda pior, com o avanço dos interesses do capital sobre a educação, culminando com o empobrecimento da própria tarefa de adaptação. A adaptação ao mundo existente, à realidade presente, é empobrecida e reduzida à mera adaptação ao mercado de trabalho. Esse processo de empobrecimento se dá justamente através da simplificação da formação teórica, que redunda na redução das oportunidades para o despertar do pensar teórico por parte dos sujeitos, formando sujeitos com pouca (ou nenhuma) capacidade de resistência a um tipo de sociedade que se estrutura e se desenvolve para a conservação de si mesma, especialmente, das relações de dominação (ADORNO, 1995a).

Regida pelos interesses do capital, a educação perde o seu potencial crítico emancipatório e limita-se à função de adaptação do sujeito para conservação do sistema. No texto Teoria da semicultura/semiformação (Theorie der Halbbildung), Adorno desenvolve essa ideia a partir do conceito de Bildung. Embora o conceito não tenha sido pensado na realidade atual, ele influenciou a concepção da educação contemporânea.

Compreender nossas tradições, as raízes de nossa atualidade, certamente auxilia na tarefa de refletir sobre a questão da educação a partir da ideia de Bildung advinda do século XVIII cunhada pelo idealismo alemão. Muitas das propostas vigentes contemporaneamente na educação receberam seus influxos do iluminismo e consequentemente da Bildung, a qual, segundo Gadamer (1990), constituiu o maior pensamento do século XVIII. Posto em outras palavras, Bildung configura um destes conceitos - Bewegungsbegriffe (conceito que gera movimento), que, ao mesmo tempo, são parte de uma conjuntura sociocultural e forças de transformação no desenvolvimento da mesma (MÖLMANN, 2010, p. 2).

A concepção de um conceito como o de Bildung somente foi possível em função do momento de otimismo com a racionalidade iluminista nascente à época, a qual se acreditava seria capaz de libertar o sujeito da dominação de elementos externos e desconhecidos. Essa promessa seria realizada por meio de um processo educacional apto para formar sujeitos livres, autônomos e racionais. Kant (2005) é um dos principais representantes desse ideal, ainda hoje muito citado quando se escreve sobre autonomia. O projeto da Bildung representou, no campo educacional, a possibilidade de libertação do sujeito do domínio da natureza (interna e externa).

Adorno concorda com Kant no sentido de que a emancipação é o objetivo da educação; eles, contudo, divergem sobre a sociedade burguesa ser ou não uma organização social favorável à emancipação. Para Kant, a sociedade iluminista, ou do esclarecimento, então nascente, oferecia as condições necessárias à saída do sujeito de sua menoridade; para Adorno, entretanto, além de não oferecer as condições necessárias, ela foi (como continua sendo) uma das principais responsáveis pela manutenção do estado de menoridade do sujeito. Suas divergências nascem, especialmente (mas não somente), do local e do tempo de fala de cada um: enquanto Kant viveu o auge do movimento iluminista e compartilhou do otimismo da razão que se acreditava libertadora, Adorno sofreu na carne a potencialização da barbárie viabilizada por essa mesma razão. Isso fica bastante claro na fala do próprio Adorno (1995a):

No ensaio que citei no início, referente à pergunta “vivemos atualmente em uma época esclarecida”. Kant respondeu: “Não, mas certamente em uma época de esclarecimento”. Nestes termos ele determinou a emancipação de um modo inteiramente consequente, não como uma categoria estática, mas como uma categoria dinâmica, como um vir a ser e não um ser. Se atualmente ainda podemos afirmar que vivemos numa época de esclarecimento, isto tornou-se muito questionável em face da pressão inimaginável exercida sobre as pessoas, seja pela própria organização do mundo, seja num sentido mais amplo, pelo controle planificado até mesmo de toda realidade interior pela indústria cultural. Se não quisermos aplicar a palavra “emancipação” num sentido meramente retórico, ele próprio tão vazio como o discurso dos compromissos que as outras senhorias empunham em frente à emancipação, então por certo é preciso começar a ver efetivamente as enormes dificuldades que se opõem à emancipação nesta organização de mundo (ADORNO, 1995a, p. 181).

Na citação, percebe-se que Adorno aponta duas formas de dominação do sujeito que obstruem a sua emancipação e mantêm a dominação: a própria forma de organização do mundo e o controle planificado exercido pela formação cultural. A primeira das formas de dominação nasce com a razão e se estabelece na relação entre sujeito e objeto e natureza e cultura; a segunda, com o estado burguês, e reside na administração do mundo pelos interesses de mercado. Ambas afetam diretamente o processo de formação humana e comprometem a emancipação dos sujeitos.

Pela representatividade do conceito, Adorno mantém a concepção de Bildung, porém tratado dialeticamente de forma tensionada com a sua não realização. Enquanto um conceito ideal não realizado pela sociedade burguesa, a Bildung permanece como uma promessa que mitiga o sentimento de dominação no sujeito: “[o]s ideais são um conglomerado de noções ideológicas que se interpõem entre os sujeitos e a realidade, e a filtram” (ADORNO, 1996, p. 397). A realidade dominadora e opressora torna-se mais suportável pela existência de uma promessa de libertação.

Nesse aspecto reside outra chave interpretativa para a mudança de perspectiva da relação entre teoria e prática para Marx e a TC: enquanto que o primeiro viveu a forma primária do capitalismo e acreditou que a exploração do trabalhador conduziria a um estado de insuportabilidade das condições materiais, contexto no qual a revolução seria o caminho natural; a TC pensou a partir do capitalismo tardio, de uma sociedade burguesa marcada por mecanismos de integração e promessa de integração, que mantinham a dominação em um nível de exploração falseado, ofuscado por elementos ideológicos. Um dos principais mecanismos de promessa de integração e libertação do sujeito é justamente o processo de formação. O sujeito deposita na educação a esperança para a superação de seu estado de dominação. A educação funciona como uma promessa de integração às classes mais privilegiadas economicamente.

É interessante, e angustiante, perceber que até mesmo esse caráter de libertação vem perdendo a sua aura no processo educacional contemporâneo. Se, em algum momento, a humanidade confiou no processo educacional como capaz de preparar os sujeitos para o exercício da autonomia, para a cultura, para a cidadania; hoje parece bastar que o processo educacional seja capaz de garantir algum lugar no mercado de trabalho. Ou seja, permanece o caráter de promessa, mas de uma versão empobrecida com relação à promessa inicial de uma concepção mais humanista de formação (Bildung): “[...] as raízes greco-latinas da Bildung convergem para três vetores responsáveis pela formação humana: o conhecimento, a ética e a estética” (BOMBASSARO, 2009, p. 202). A promessa que um dia foi da formação cultural do sujeito, atualmente não passa de uma promessa de preparação técnica ao mercado de trabalho como acesso ao mundo do consumo.

Nesse sentido, é importante reforçar que Adorno reconhece o caráter complexo do conceito de Bildung enquanto formação cultural, tanto no texto Teoria da semiformação/semicultura quanto no conjunto de sua obra, trabalhando o duplo significado da Bildung como educação formal e, também, como formação na cultura:

Traduzir a Bildung pela expressão Formação Cultural é uma proposta que garante sua complexidade, pois é revestida por um significado duplo, a saber: o ideal pedagógico formativo assentado em solo institucional, cultural, e o ideal de um auto cultivo, não necessariamente atrelado a uma instituição formativa (NICOLAU, 2013, p. 39).

Desses dois significados, estando a educação formal transformada em treinamento para o mercado de trabalho e a formação cultural, em mero entretenimento3, a Bildung é convertida em Halbbildung (semiformação e semicultura, pelo caráter polissêmico do termo). Embora o objetivo do presente texto esteja relacionado com a prática educacional, é importante referir que a formação cultural se encontra empobrecida pelas mesmas causas que a educação institucionalizada, pois, da mesma forma que o processo formativo é simplificado para atender os interesses de reprodução do sistema, o processo cultural adapta-se a sujeitos acostumados com estímulos simples e de fácil compreensão. Ao final de um dia intenso de trabalho, o sujeito/trabalhador quer apenas encontrar divertimento em uma produção cultural que não desafie o seu raciocínio, que, em última análise, não demande interpretação.

Assim, na América, Edward Schumann demonstrou, em genial estudo, que, entre dois grupos semelhantes que escutavam a chamada música erudita, um em audições ao vivo e outro apenas pelo rádio, o grupo do rádio reagia com maior superficialidade e menor entendimento. Do mesmo modo que para estes a música séria se transformava virtualmente em música de diversão, as formas espirituais, em geral, que atingem os homens com o impacto do repentino - que Kierkegaard equiparava ao demoníaco - tornam-se bens culturais congelados (ADORNO, 2010, p. 26).

Nessa medida, os bens culturais de circulação ampla não possuem potencial emancipatório, pois não desafiam a racionalidade do sujeito, sensibilizando-o para o exercício de um pensamento crítico com relação à arte e ao mundo, apenas tratam de entretê-lo. Mediante um movimento que se retroalimenta, sem uma demanda cultural de qualidade para desafiar a (in)compreensão do sujeito, a formação não é desafiada a complexificar-se, ficando restrita às questões de ordem prática direta de sobrevivência no mercado de trabalho: “[a] angústia frente à impotência da teoria proporciona o pretexto para se render ao omnipotente processo da produção e admitir assim plenamente a impotência da teoria” (ADORNO, 2001, p. 34).

Um dos aspectos mais graves da conversão da formação cultural (Bildung) em semiformação é a obliteração da primeira por uma formação deturpada, ajustada ao mundo administrado pelos interesses do capital. Se houvesse a ausência da semiformação seria possível cultivar a formação do sujeito; na existência de algo falso (e fortemente protegido) em seu lugar, a formação cultura (Bildung) fica sem oportunidade para conduzir a formação do sujeito. Essa constatação adorniana ganhou uma nova roupagem com as redes sociais: sujeitos que acreditam firmemente que estão bem (in)formados, quando, em verdade, estruturam a sua consciência a partir de interpretações simplistas, falsas e, na maioria das vezes, absurdas da realidade.

[...] o entendido e experimentado medianamente - semientendido e semiexperimentado - não constitui o grau elementar da formação, e sim seu inimigo mortal. Elementos que penetram na consciência sem se fundir em sua continuidade se transformam em substâncias tóxicas e, tendencialmente, em superstições, até́ mesmo quando as criticam, da mesma maneira como aquele mestre toneleiro que, em seu desejo por algo mais elevado, se dedicou à crítica da razão pura e acabou na astrologia, evidentemente porque apenas nela seria possível unificar a lei moral que existe em nós com o céu estrelado que está sobre nós (ADORNO, 1996, p. 402).

A Halbbildung mobilizada a serviço da lógica da sociedade capitalista limita-se à conservação dos seus próprios interesses: “Elementos formativos inassimilados fortalecem a reificação da consciência que deveria justamente ser extirpada pela formação” (ADORNO, 1996, p. 401). Adorno afirma que a educação, nesse contexto, em vez de emancipar, aprisiona o sujeito à repetição da lógica do mundo.

Compreende-se o conceito de semiformação justamente pela tentativa de oferecimento de uma formação educacional que se faz passar pela verdadeira condição de emancipação dos indivíduos quando, na realidade, contribui decisivamente tanto para a reprodução da miséria espiritual como para a manutenção da barbárie social. E o contexto social no qual a barbárie é continuamente reiterada é o da indústria cultural hegemônica (ZUIN, 2001, p. 10).

A absorção da teoria à prática do mercado de trabalho tem o grave efeito de produzir uma história cíclica, tal qual os ciclos produtivos do próprio mercado. Isso ocorre na medida em que uma sociedade formada por sujeitos carentes de capacidade de raciocínio teórico sequer é capaz de compreender como esse mecanismo de obliteração da emancipação se perpetua:

[o] sistema de ensino serve à sociedade burguesa como o lugar onde a geração em desenvolvimento deve aprender, segundo diferenciados interesses individuais, a adaptar-se às tarefas que devem ser realizadas para reprodução da sociedade (GRUSCHKA, 2014a, p. 151).

Nesse sentido, o empobrecimento da teoria tende a ser especialmente grave, pois um sujeito não habituado com a complexidade do raciocínio teórico não possui as ferramentas adequadas para compreender o funcionamento da sociedade de maneira suficiente para ser capaz de transformá-la. Sendo assim, o próprio indivíduo (carente de capacidade reflexiva) fortalece o sistema que o domina, porquanto compreende que a educação (e as práticas educativas) deve ser eminentemente prática. O pragmatismo e a consequente aversão à teoria terminam por perpetuar a dominação.

A aversão à teoria, característica de nossa época, seu atrofiamento de modo nenhum casual, sua proscrição pela impaciência que pretende transformar o mundo sem interpretá-lo, enquanto, em seu devido contexto, afirmava-se que os filósofos até então tinham apenas interpretado - tal aversão à teoria constitui a fragilidade da práxis (ADORNO, 1995a, p. 211).

Diante desse quadro, a simplificação da educação para fornecer respostas simples e facilmente aplicáveis projeta-se, inclusive, na formação dos professores e nas práticas pedagógicas. A simplificação da realidade para permitir o uso excessivo de apresentações parametrizadas para a projeção computadorizada causa: (a) nos estudantes, a compreensão de que a tudo é sintetizável e facilmente compreensível; (b) nos professores, a percepção de que uma boa aula é aquela da qual todos saem compreendendo plenamente o conteúdo.

Com isso, desperdiça-se o potencial da incompreensão, importante recurso pedagógico de uma educação emancipatória, para a formação de um conhecimento autônomo. O estudante que sai das aulas confiando ter compreendido tudo, não se sente motivado a buscar mais, a estudar por conta própria, a participar ativamente de seu processo formativo. Por outro lado, quando o professor é capaz de formular as questões adequadas e remetê-las ao não terceirizável esforço pessoal: “[o] aluno ainda não está formado, ainda está maravilhado com o incompreensível, que para ele ainda não cabe em nenhuma caixa” (GRUSCHKA, 2014b, p. 21).

Na educação contemporânea, o contato direto com textos densos e especulativos, o árduo trabalho interpretativo, são substituídos pelas projeções simplificadas de conteúdos que, pela sua própria essência, não são passíveis de simplificação. O sistema força o professor a admirar a tranquilidade de uma aula onde todos entendem a simplificação do conteúdo apresentado, sob pena de ser julgado um mal docente, e ter de lidar com as consequências disso: “[a] liberdade de cátedra é rebaixada a um serviço a clientes e deve sujeitar-se a controles” (ADORNO, 1995b, p. 223).

A constituição do sujeito em meio a uma sociedade que condiciona a sua sobrevivência à repetição da lógica de troca que determina o funcionamento do mercado retira-lhe a capacidade de relacionamento com aquilo que não se deixa apropriar por referida lógica. Tal questão assume uma relevância fundamental para o ser humano na medida em que a perda da capacidade de reflexão teórica, decorrente da descomplexificação da educação para atender às demandas do mercado do trabalho, redunda no recalcamento da capacidade do sujeito de relacionar-se adequadamente com as questões inequivocamente complexas que se intensificam em tempos de injustiça, de pobreza e de devastação da natureza, por exemplo. Nesse sentido, importante destacar que, de todos os aspectos e argumentos tratados no presente texto, parece-nos que mais grave é a ausência de instâncias para o desenvolvimento e prática de raciocínios verdadeiramente teóricos. Não simplesmente pela, por si só, grave perda de capacidade teórica, mas pelas consequências que tal perda ocasionam, quais sejam: dificuldade ou incapacidade de compreender as questões que ameaçam a sobrevivência do planeta e, a interligada, incapacidade de compreender a necessidade de articulação dos seres humanos em torno de causas, espaços, interesses comuns e indispensáveis para a manutenção da vida.

Feitas essas considerações com relação aos aspectos da Halbbildung, embora o contexto que tenha servido de base para a construção da análise adorniana tenha sido a sociedade alemã, fica clara a pertinência da reflexão e a sua aplicabilidade à realidade brasileira (especialmente no atual contexto político), a partir das similaridades que assumem contemporaneamente os modelos educacionais dos países capitalistas (neoliberais). Interessante notar que a Alemanha, apesar de mais desenvolvida economicamente, o que sugere um Estado mais forte e com mais condições de resistência a essa ordem de interferência dos interesses do mercado em funções fundamentais como a educação, paradoxalmente, é reconhecida pelo chamado sistema dual (explicitamente voltado e determinado pelo mercado de trabalho). Nessa linha, a obra de Andreas Gruschka (2014a), representante da atual geração de pesquisadores da Teoria Crítica, também justifica a sua pertinência.

A obra de Gruschka, amplamente fundamentada em estudos empíricos de sala de aula (VILELA, 2007), permite afirmar, não obstante as diferenças em termos de desenvolvimento econômico entre Brasil e Alemanha, a absorção da reflexão teórica à instrumentalização de uma prática voltada e determinada em função do mercado de trabalho: “[a] orientação à competência é uma história de sucesso e fracasso de dimensão deprimente. Impulsionada pelos ‘choques de PISA’, a palavra competência se tornou palavra mágica do século” (GRUSCHKA, 2014b, p. 8). O movimento de mercantilização da educação “preparou um terreno fértil para o renascimento da Teoria Crítica aplicada à educação” (GRUSCHKA, 2014b, p. 5). Nesse contexto atual, a análise de Adorno renova a sua pertinência e aplicabilidade ao cenário atual internacional e brasileiro.

Nesse sentido, no Brasil, é especialmente representativa a entrada em vigor da Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (Lei 9.394/96), evidenciando a intencionalidade do direcionamento da educação escolar cada vez mais ao atendimento das necessidades do mercado de trabalho, com uma clara intensificação do empobrecimento da formação teórica. A justificativa para a realização de tal alteração legislativa, constante da exposição de motivos do projeto da lei em questão, partiu de uma análise de dados que, na visão do legislador, relacionariam os resultados insatisfatórios do desempenho dos estudantes em avaliações realizadas, antes da mencionada reforma, à forma de organização e aos conteúdos constantes do ensino médio, que não estariam alinhados ao mundo do trabalho:

Atualmente o ensino médio possui um currículo extenso, superficial e fragmentado, que não dialoga com a juventude, com o setor produtivo, tampouco com as demandas do século XXI. Uma pesquisa realizada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento - Cebrap, com o apoio da Fundação Victor Civita - FVC, evidenciou que os jovens de baixa renda não veem sentido no que a escola ensina.

[...]

Isso [referindo-se ao mau desempenho escolar] é reflexo de um modelo prejudicial que não favorece a aprendizagem e induz os estudantes a não desenvolverem suas habilidades e competências, pois são forçados a cursar, no mínimo, treze disciplinas obrigatórias que não são alinhadas ao mundo do trabalho, situação esta que, aliada a diversas outras medidas, esta proposta visa corrigir, sendo notória, portanto, a relevância da alteração legislativa (BRASIL, 2016, p. 1-3, grifos nossos).

A reforma do sistema educativo em curso, seguindo a fundamentação da exposição de motivos da legislação mencionada, cortou do currículo escolar as disciplinas (dentre elas, filosofia e sociologia) que não desenvolvem diretamente competências práticas de interesse do mercado de trabalho (além de estar, referida reforma, explicitamente direcionada para uma maior aproximação do ensino escolar ao mercado, a partir de uma série de medidas que não serão analisadas por fugirem da questão central do presente texto). Conquanto se trate de uma questão legislativa pontualmente relacionada à realidade brasileira, ela é apenas parte de um movimento internacional de estreitamento íntimo da relação entre educação escolar e mercado. Nesse sentido, é possível afirmar a pertinência e a atualidade da análise de Adorno para a educação brasileira e para a educação contemporânea.

Considerações finais

O poeta Grabbe tem uma sentença: “Pois nada senão o desespero pode salvar-nos”. Isto é provocador, mas nada tem de tolo. Não vejo como condenar que se seja desesperançado, pessimista, negativo no mundo em que vivemos. Mais limitados serão aqueles que se aferram compulsivamente ao otimismo do oba-oba da ação direta, para obter alívio psicológico (ADORNO, 2003, p. 134).

Uma vez devidamente esclarecida a relação que se estabelece entre teoria e prática é possível compreender o tipo de autonomia da teoria defendida por Adorno, porquanto “[p]ensar é um agir, teoria é uma forma de práxis; somente a ideologia da pureza do pensamento mistifica este ponto” (ADORNO, 1995b, p. 204-205). Nessa medida, a qualificação de Adorno como pessimista parece apenas parcialmente defensável. Como o próprio filósofo afirma, uma análise crítica da prática do mundo inevitavelmente redunda em uma análise teoricamente pessimista. Uma vez que a intenção fundamental de sua obra é de justamente promover a referida crítica, há um inafastável relacionamento do autor com o pessimismo.

Contudo é possível realizar uma leitura nas entrelinhas da obra adorniana que aponta no sentido de uma esperança na transformação do mundo, a qual não seria compatível com um sujeito pessimista em sentido pleno. Nesse sentido, inclusive o pessimismo na Teoria Crítico é dialético (mas não contraditório!): tensiona o pessimismo teórico com uma prática otimista. Segundo Horkheimer (apud DE CAUX; MAZZOCCHINI, 2019, p. 241): “Em que consiste, no entanto, o otimismo que compartilho com Adorno, meu amigo falecido? Em que é preciso, apesar de tudo isso, tentar fazer e levar a cabo o que se toma pelo verdadeiro e pelo bom. E essa foi nossa máxima: ser pessimista teórico e otimista prático!”.

Tal leitura é reforçada por manifestações mais espontâneas de Adorno, dentre as quais se destaca um debate sociológico com Arnold Gehlen sobre a relação entre liberdade e instituição, transmitido pela televisão alemã em 1965, na qual o autor afirma que o ser humano, ao longo de toda sua história, jamais teve a oportunidade de mostrar efetivamente quem é e do que é capaz. Essa afirmação é bastante representativa e fiel ao projeto da Teoria Crítica da Sociedade de pensar (criticar) de forma intransigente o mundo que é sempre tendo em conta um mundo que poderia ser, e se deve ao entendimento do autor de que a liberdade dos seres humanos sempre esteve, de uma maneira ou de outra, reduzida ao longo da história; condicionada à necessidade de luta pela autopreservação.

Relacionado a isso, quando Adorno afirma que “nada no mundo administrado funciona sem rupturas” (ADORNO, 1995b, p. 217), pode-se compreender que as rupturas do mundo administrado permitem que, em alguns momentos, apareça a verdadeira humanidade e, por consequência, a possibilidade de transformação. Nesse sentido, houve ao longo da história, apesar da barbárie constante e do movimento de dominação sufocante, momentos cheios de esperança e otimismo protagonizados por seres humanos (muitos deles professores e, todos, educadores) que justificam a confiança por parte do sujeito na humanidade. Ao reconhecer isso, Adorno, dialético que é, apesar de todo peso de sua crítica, não pode ser considerado simplesmente um pessimista, sem a devida compreensão do seu pensamento.

Fazer teoria num mundo como o atual é, por si só, um exercício de esperança. Nessa medida, a educação deveria ser o espaço privilegiado da teoria, aquela capaz de pensar caminhos diferentes daqueles contaminados pela lógica do capital. Assim, entende-se que a simplificação da educação com a consequente redução (perda) da capacidade teórica tem como resultado mais grave, de todos os resultados graves já apontados ao longo do texto, a perda da esperança. De acordo com Adorno, referindo-se à dominação da teoria pela prática: “[o] horror é que, pela primeira vez, vivemos em um mundo em que não podemos mais imaginar um mundo melhor” (ADORNO; HORKHEIMER, 2011, p. 40). Quem não é capaz de teorizar não é capaz de imaginar um mundo diferente. Como resposta prévia às críticas, a esperança pode prescindir da teoria, contudo ela será solitária; assim, ingênua e facilmente superável. A possibilidade de transformação do mundo em um lugar livre da barbárie se refugia na teoria que resiste à prática redutora do ser humano e da natureza a meros instrumentos a serviço do capital4.

Referências

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* O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Código de Financiamento 001, especificamente com bolsa do Programa Nacional de Pós-Doutorado para Pedro Savi Neto.

1Segundo Franco, o conceito de prática em Adorno “apresenta sentido amplo, que abrange não apenas ‘prática’, mas também ‘práxis’.” (FRANCO, 2000, p. 86).

2Sobre o conceito de Bildung e a sua atualidade, v. Goergen (2017).

3Sobre a atualidade do conceito de indústria cultural, v. Zuin (2001).

4Texto dedicado aos nossos queridos estudantes que relatam um suposto pessimismo em nossas aulas.

Recebido: 08 de Setembro de 2021; Aceito: 19 de Janeiro de 2022

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