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Educação e Filosofia

versión impresa ISSN 0102-6801versión On-line ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.36 no.77 Uberlândia mayo/ago 2022  Epub 29-Ene-2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v36n77a2022-63782 

Artigos

A duração em Henri Bergson: fundamento da educação com as diferenças1

The duration in Henri Bergson: foundation of education with the differences

La duración en Henri Bergson: fundamento de la educación con las diferencias

Luka Carvalho Gusmão** 
lattes: 0276132560528531; http://orcid.org/0000-0001-8006-9697

Luciana Pacheco Marques*** 
lattes: 5969492483399686; http://orcid.org/0000-0003-2430-831X

**Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Professor da Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais. E-mail: lukagusmao87@yahoo.com.br

***Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: luciana.marques65@gmail.com


Resumo

Tendo como contexto as mudanças paradigmáticas da Atualidade, o objetivo deste artigo é refletir sobre os fundamentos filosóficos de uma educação com as diferenças a partir do conceito de duração desenvolvido por Henri Bergson. A teoria bergsoniana da duração instaura uma visão radical das diferenças humanas, baseada nos seguintes aspectos: a dimensão viva e pulsante das temporalidades dos diversos sujeitos; a irredutibilidade das diferentes temporalidades humanas a signos matemáticos; a totalização da temporalidade no âmbito da memória; e, enfim, seu potencial de liberdade e criação. Partindo dos referidos fundamentos filosóficos, o artigo defende que uma educação com as diferenças precisa repensar a noção de sujeito ideal, as práticas de ensino e avaliação baseadas em quantificações e classificações, as lógicas fragmentadas e impessoais de produção de conhecimento e, finalmente, a ideia de formação para a liberdade e a responsabilidade ética.

Palavras-chave: Duração; Henri Bergson; Educação; Diferenças

Abstract

Taking the current paradigmatic changes as a context, the aim of this article is to reflect on the philosophical foundations of an education with the differences based on the concept of duration developed by Henri Bergson. The bergsonian theory of duration establishes a radical view of human differences, based on the following aspects: the living and pulsating dimension of the temporalities of the different subjects; the irreducibility of different human temporalities to mathematical signs; the totalization of temporality within the scope of memory; and, finally, its potential for freedom and creation. Based on these philosophical foundations, the article argues that education with the differences needs to rethink the notion of ideal subject, teaching and evaluation practices based on quantifications and classifications, fragmented and impersonal logics of knowledge production and, finally, the idea of formation for freedom and ethical responsibility.

Key-words: Duration; Henri Bergson; Education; Differences

Resumen

Tomando como contexto los cambios paradigmáticos actuales, el objetivo de este artículo es reflexionar sobre los fundamentos filosóficos de una educación con las diferencias basada en el concepto de duración desarrollado por Henri Bergson. La teoría bergsoniana de la duración establece una visión radical de las diferencias humanas, basada en los siguientes aspectos: la dimensión viva y pulsante de las temporalidades de los diferentes sujetos; la irreductibilidad de diferentes temporalidades humanas a signos matemáticos; la totalización de la temporalidad en el ámbito de la memoria; y, finalmente, su potencial de libertad y creación. Con base en estos fundamentos filosóficos, el artículo sostiene que la educación con las diferencias necesita repensar la noción de sujeto ideal, prácticas de enseñanza y evaluación basadas en cuantificaciones y clasificaciones, lógicas fragmentadas e impersonales de producción de conocimiento y, finalmente, la idea de formación para la libertad y la responsabilidad ética.

Palabras clave: Duración; Henri Bergson; Educación; Diferencias

Introdução

De um modo geral, nota-se que as ideias veiculadas pelo senso comum relacionam a concepção de educação inovadora à crença de que o termo inovação indica sobretudo modernização tecnológica. Com base nessa crença, entende-se que uma educação inovadora é necessariamente aquela que lança mão de novas tecnologias nas práticas de ensino.

Sem nos opormos ao valioso aporte que as tecnologias da informação e da comunicação oferecem ao campo educacional, entendemos que elas, por si sós, não bastam para engendrar mudanças pedagógicas mais significativas. Tais mudanças dependem, antes de tudo, de deslocamentos paradigmáticos em relação a conceitos como os de sujeito, conhecimento, tempo e espaço. De acordo com esse entendimento, para que o processo educacional seja considerado inovador não é essencial que ele faça uso de novas tecnologias, mas sim que consiga ressignificar as concepções nas quais se fundamenta e, a partir disso, engendrar experiências pedagógicas que afetem os modos pelos quais os sujeitos da educação pensam, sentem e agem no mundo.

Conforme assinala Carlos Marques (2001), o deslocamento que parece ser o mais desafiador para a renovação das lógicas e práticas sociais e educacionais de nossa época é o do paradigma do Universal para o do Múltiplo. De acordo com Carlos Marques (2001), uma característica marcante do período histórico da Modernidade foi a instauração de concepções Universais de conhecimento, sujeito, mundo e sociedade. No campo filosófico e científico as concepções cartesianas de ser humano e de racionalidade tornaram-se hegemônicas e sobrepuseram-se a outras formas de existir e construir conhecimento de diferentes grupos culturais; no âmbito da cosmologia a física newtoniana consolidou as ideias de espaço homogêneo e de tempo universal, levando a ciência a desviar sua atenção das diversas formas pelas quais os seres humanos se relacionam com o binômio espaço-tempo; no campo social o projeto Iluminista procurou disseminar os saberes filosóficos, científicos e artísticos acumulados pela cultura europeia, considerada, então, o ápice do progresso humano e, portanto, aquela que deveria ser a meta da evolução de todos os outros povos; por fim, baseada na concepção universal de ser humano, a sociedade Moderna estabeleceu a separação entre normalidade e anormalidade e criou uma série de dispositivos que promoveram a segregação de todos os grupos e sujeitos considerados anormais.

Sendo a escola uma das instituições remodeladas pelo pensamento Moderno a fim de servir à sua própria manutenção, é possível perceber nela, ainda hoje, diversos mecanismos excludentes decorrentes do paradigma do Universal. Segundo Veiga-Neto (2002), um dos dispositivos centrais nos processos de exclusão promovidos pela maquinaria escolar foi o tempo disciplinar. Entendido enquanto uma das dimensões de formação e representação do sujeito Moderno, o dispositivo tempo - essencialmente de caráter espacial e matemático - passou a ser um dos elementos de distinção entre os traços de normalidade e anormalidade atribuídos aos indivíduos, porquanto determinou um ritmo único de ensino e aprendizagem, no interior do qual os comportamentos socialmente desejáveis estavam prescritos de antemão.

Na Atualidade2, o horizonte epistemológico, ético, político e educacional que nos desafia é o da superação das lógicas e práticas de exclusão Modernas em favor da construção do paradigma do Múltiplo, isto é, do princípio segundo o qual a multiplicidade dos modos de pensar, sentir e agir do seres humanos são inerentes à existência, ou seja, dimensão imanente à vida e constituinte da sociedade. Sustentamos que a construção do referido paradigma é desafiadora na exata proporção em que exige de nós a reinvenção de modos de existir que foram historicamente naturalizados. As concepções instauradas nos últimos séculos pelo paradigma do Universal passaram a fazer parte não só de nossas ideias, mas também de nossa identidade, de tal maneira que ser de outra forma pode nos parecer impensável. Portanto, a construção do paradigma do Múltiplo exige um esforço constante de inflexão no qual nossas próprias concepções e práticas se tornam objeto de indagação e desnaturalização. De acordo com Luciana Marques (2008; 2010a; 2010b; 2012a; 2012b, 2020), no cenário do cotidiano escolar a transição do paradigma do Universal para o do Múltiplo se manifesta na passagem da negação e da marcação das diferenças para a comunhão com as diferenças.

Na medida em que o tempo se tornou um dispositivo de exclusão nas lógicas e práticas educacionais, consideramos que a passagem da negação e da marcação das diferenças para a comunhão com as diferenças implica fundamentalmente em repensar e ressignificar esse dispositivo, tendo em vista as múltiplas temporalidades dos sujeitos. Para tanto, o diálogo com pensadores que consideram o Múltiplo como a mais legítima expressão da vida e da sociedade - entre eles podemos destacar Michel Foucault, Gilles Deleuze, Boaventura de Souza Santos, Edgar Morin e Paulo Freire - oferece elementos importantes para a instauração de novas ideias e práticas educacionais. Neste artigo, tomando como pano de fundo as mudanças paradigmáticas às quais aludimos nos parágrafos anteriores, assumimos como objetivo refletir sobre os fundamentos filosóficos de uma educação com as diferenças a partir do diálogo com a teoria do filósofo Henri Bergson, focando especificamente o conceito de tempo desenvolvido em sua obra, o qual é denominado por ele de duração.

Entendemos como educação com as diferenças aquela que considera a convivência equânime e a efetiva participação nos processos formativos na/da escola de educandos pertencentes a diferentes grupos que se identificam de acordo com as gerações, classes socioeconômicas, etnias, pertenças regionais, condições físicas e mentais, gênero e orientação sexual, bem como, enfim, todas as singularidades por meio das quais a existência humana se manifeste e que escapem de qualquer forma de categorização.

Para alcançar o objetivo do artigo, primeiramente apresentaremos e discutiremos a teoria bergsoniana da duração, buscando evidenciar sob quais aspectos ela pode fornecer as bases filosóficas para a compreensão ontológica das diferenças humanas. Em seguida, problematizaremos algumas dimensões do paradigma do Universal presentes na própria base da dinâmica escolar e procuraremos apontar em que medida o conceito bergsoniano de duração contribui para superá-las. Por fim, embora não indiquemos técnicas pedagógicas universais, supostamente aplicáveis a qualquer contexto de ensino e aprendizagem, defendemos o que acreditamos serem os fundamentos filosóficos de uma prática educativa que tenha como horizonte a comunhão com as diferenças.

A duração como fundamento das diferenças humanas

Henri-Louis Bergson foi um filósofo francês que viveu entre os anos de 1859 e 1941. Sua obra influenciou de maneira singular a produção intelectual de importantes filósofos contemporâneos, como Maurice Merleau-Ponty e Gilles Deleuze. Morato Pinto, Borba e Kohan (2007) informam que até a primeira metade do século XX o livro A evolução criadora - aquele que garantiu a Bergson o prêmio Nobel de Literatura de 1927 - foi a obra de língua francesa mais traduzida no mundo. Contraditoriamente, não obstante a relevante contribuição de Bergson para nossa época, em termos mais gerais seu pensamento encontrou ressonância problemática na segunda metade do século XX. Neste período, diz Renaud Barbaras citado por Morato Pinto, Borba e Kohan (2007, p. 10), a germanofilia do meio filosófico francês “só viu em Heidegger, o autor crucial para o século XX, aquele que soube infletir a metafísica e dela fazer a crítica mais decisiva [...] e esqueceram-se assim da importância de Bergson”. Graças à obra Presença e campo transcendental: consciência e negatividade na filosofia de Bergson, escrita pelo filósofo brasileiro Bento Prado Júnior, o pensamento bergsoniano fora ressignificado no horizonte da filosofia francesa contemporânea e inserido no cenário acadêmico de nosso país. Chaui (1988), comentando o livro de Bento Prado Júnior, esclarece que a referida obra nos leva a entender que:

a filosofia de Bergson cria um campo de pensamento em que se moverá a filosofia francesa posterior, tanto em modos de pensar - as discussões sobre as relações entre filosofia e ciência, entre a epistemologia e a metafísica, entre a ontologia e a psicologia -, como em temas - as relações entre consciência e corpo próprio, consciência e mundo, práxis e especulação, filosofia e religião, representação e não representação (p. 12).

Ainda na década de 90, outro destacado filósofo brasileiro chamado Franklin Leopoldo e Silva publica sua tese de livre-docência, intitulada Bergson - intuição e discurso filosófico. A partir de então se iniciou no Brasil uma rede crescente de investigadores da filosofia bergsoniana, orientada em sua maioria por Bento Prado Júnior e Franklin Leopoldo e Silva.

Mais recentemente alguns pesquisadores vêm se dedicando a refletir sobre as contribuições de Bergson para o campo da educação. Isso fica explícito em algumas situações que elencaremos adiante. A primeira delas foi o Colóquio Internacional Henri Bergson: 100 anos de A Evolução Criadora, organizado no ano de 2007 pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A segunda consiste no número de trabalhos de mestrado e doutorado em Educação que dialogam diretamente com a teoria bergsoniana. Poderíamos destacar, a título de exemplo, a tese de doutorado de Rita Célia Magalhães Torreão, intitulada Nas asas da borboleta: filosofia de Bergson e Educação, defendida em 2010 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia; a dissertação de mestrado de Alexsandro dos Santos Machado, cujo título é Intuições para uma Pedagogia da Intuição: a Amizade enquanto uma Experiência Integral pela Dinâmica das Cartas, defendida em 2012 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; a tese de doutorado de Sandrelena Monteiro da Silva, chamada Experiências temporais constitutivas do ser professora: uma leitura bergsoniana, defendida em 2014 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora; a dissertação de mestrado de Gabriel Torelly Fraga Correa da Cunha, denominada Memória e fabulação em Henri Bergson: notas para uma estética do ensino de história, defendida em 2014 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; e, por fim, a dissertação de mestrado de Luka de Carvalho Gusmão, intitulada As diferenças e o currículo: reflexões à luz da filosofia bergsoniana, defendida em 2017 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora. É neste cenário histórico que se insere nosso estudo da obra bergsoniana e suas possíveis contribuições para a educação em geral e para a reflexão sobre a comunhão com as diferenças especificamente.

A filosofia bergsoniana, embora rica em ideias originais, tem no conceito de duração seu objeto central. No contexto de sua juventude, quando procurava encontrar um ponto de apoio com base no qual pudesse desenvolver seu trabalho filosófico, Bergson se aproximou da obra de Herbert Spencer. Apesar de identificar na obra spenceriana um conjunto de generalidades vagas, as quais denotavam fragilidade quanto ao aprofundamento das ideias últimas da mecânica, Bergson considerou que poderia retomar esta parte da obra, completando-a e consolidando-a. Ao iniciar tal empreendimento, Bergson (2006) diz ter se surpreendido, pois notou que a concepção de tempo na qual se apoiava o evolucionismo de Spencer era a mesma que a física mecânica utilizava para calcular o movimento de objetos no espaço. Tal concepção, concluía Bergson (2006), negligenciava o tempo real - denominado por ele de duração - para representá-lo em função de símbolos matemáticos extraídos de nossa visão do espaço.

O modelo mecanicista de apreensão do conhecimento e representação da natureza, inaugurado no século XVII por René Descartes, defendia que o movimento e a mudança eram nada mais do que o deslocamento mecânico de partículas materiais no espaço. Ora, se o movimento era a soma das unidades de espaço percorrido por uma partícula ou um corpo, o tempo era uma sucessão de instantâneos justapostos, unidade homogênea cuja finalidade era servir de convenção para calcular a velocidade de uma trajetória. O que não se viu, salienta Bergson (2006), é que, assim representado, o tempo não passa de simples projeção do espaço: “Estuda-se então o espaço, determina-se sua natureza e função, e depois se transportam para o tempo as conclusões obtidas” (p. 7). Desse modo, passa-se pelo tempo sem nele tocar, pois expresso segundo a representação do espaço, ele perde sua característica fundamental, que, de acordo com Bergson, consiste em durar.

Para penetrar no estudo da duração, Bergson (2005) faz da experiência psicológica humana seu primeiro campo de investigações. Mergulhando, então, em nossa própria vida interior, o que vemos? O que caracteriza nosso existir? Em um primeiro momento, poderíamos dizer que é a mudança, pois passamos constantemente de um estado de consciência a outro. Todavia, se repararmos com mais cuidado no modo de representação da mudança dos nossos estados de consciência, veremos que falamos de nossas sensações, sentimentos e volições como se constituíssem blocos homogêneos que se substituem mutuamente. Ora, de fato mudamos incessantemente, entretanto, em um fluxo no qual cada um dos referidos estados não cessa ele mesmo de alterar-se a cada novo instante. Ao caminhar pela estrada do tempo, inflamos continuamente com a duração que vamos reunindo; nosso ser, “[...] por assim dizer, faz bola de neve consigo mesmo” (BERGSON, 2005, p. 2). No entanto, é mais cômodo e útil à nossa ação sobre as coisas não nos aplicarmos com atenção a essa mudança ininterrupta e só repará-la quando se torna considerável o suficiente para comunicar uma nova reação ao corpo ou um outro impulso à consciência. Exatamente porque cerramos os olhos à contínua transformação de cada estado da consciência, vemo-nos forçados, quando a modificação tornou-se significativa a ponto de se impor à nossa atenção, a dizer que um outro estado se sobrepôs ao anterior. Nosso olhar se fixa na passagem da duração da consciência por uma série de atos descontínuos, e por isso percebe estados separados uns dos outros. Se, todavia, por um esforço de atenção contínua, abarcássemos nossa duração psicológica em sua verdadeira natureza, veríamos o movimento de nossa consciência como uma melodia na qual as notas musicais se misturam, produzindo um efeito dinâmico.

A duração ultrapassa a concepção de tempo espacializado que, conforme dito antes, consiste num encadeamento linear de instantes interligados em uma cadeia matemática de causa e efeito. Ela se apresenta como fluxo ininterrupto de criação que incorpora uma pluralidade de elementos que se fundem dinamicamente. Bergson (2006) considera que a duração conjuga o uno - pois é uma única corrente de movimento - e o múltiplo - pois essa corrente é composta por uma multiplicidade qualitativa de elementos subjetivos que se interpenetram. Todavia, justamente porque não se deve nunca substituir a vivência efetiva de uma consciência por sua tradução em conceitos gerais, é que não podemos resumir a experiência psicológica humana ao puro jogo especulativo entre uno e múltiplo. Certamente Bergson não pretende contradizer suas primeiras considerações sobre a duração da consciência. O tempo de nossa experiência psicológica, de fato, apresenta-se como um movimento uno tingido por uma multiplicidade qualitativa que se interpenetra dinamicamente. No entanto, essa noção não deve nos manter no campo da abstração pura, mas sim preparar-nos para entrar nos domínios da mobilidade interior em sua coloração própria. Assim, o que Bergson (2006) procura indicar é que o conceito não substitui a percepção simples que se pode obter quando se entra em contato com a consciência que, agindo, sentindo e desejando, se diferencia, isto é, se torna única.

Ao avançar na estrada da duração, cada um de nós se singulariza, nosso passado se conserva por inteiro, segue-nos a cada momento, evidenciando-se no conjunto dos hábitos que adquirimos ou nas lembranças de certos fatos particulares de nossa vida. Graças à conservação da memória, nossa consciência se vê impossibilitada de reproduzir integralmente uma mesma vivência. Ainda que as condições materiais nas quais realizamos um ato sejam aparentemente similares às anteriores, ainda que também nos esforcemos para evocar o que sentíramos na ação original que procuramos imitar, ao executá-lo nós próprios nos encontramos em um momento diferenciado de nossa duração psicológica: já não somos hoje a pessoa que éramos ontem. Por esse motivo, nossa duração é irreversível.

Ao mesmo passo em que vamos nos constituindo pelos eventos que já nos ocorreram, deparamo-nos também com acontecimentos novos, os quais podemos verdadeiramente considerar que são imprevisíveis. Ora, diz Bergson (2005), se de um lado não nos é possível passar duas vezes pelo mesmo estado, de outro vamos nos formando na relação com os eventos que emergem na própria caminhada do tempo. Toda vez que procuramos antever determinado acontecimento de nossa vida, lançamos no futuro uma projeção que, em última análise, é composta por imagens de fatos que havíamos percebido no passado, ou por um novo arranjo que elaboramos a partir dessas mesmas imagens. Porém, se no porvir nossa consciência experimentará sensações e sentimentos que nunca antes tinha percebido, podemos concluir que o passado não poderia abranger o futuro e que este, consequentemente, será imprevisível. Enfim, cada uma de nossas vivências é “[...] um momento original de uma história não menos original” (BERGSON, 2005, p. 7).

A estrada da duração que percorremos não é indeterminada só porque nosso futuro não está dado, mas também porque a pessoa que seremos mais adiante depende, pelo menos em parte, das escolhas que formos realizando no fluxo do devir. A esse respeito, Bergson (2005) faz a seguinte consideração:

Cada um de nós, deitando um lance de olhos retrospectivo sobre sua história, constatará que sua personalidade de criança, ainda que indivisível, reunia nela pessoas diversas que podiam permanecer fundidas entre si porque estavam em estado nascente: essa indecisão cheia de promessas é mesmo um dos maiores charmes da infância. Mas as personalidades que se interpenetram tornam-se incompatíveis ao crescer e, como cada um de nós só vive uma única vida, por força tem de fazer uma escolha. Na verdade, escolhemos incessantemente e incessantemente também abandonamos muitas coisas. A estrada que percorremos no tempo é juncada pelos destroços de tudo o que começávamos a ser, de tudo o que poderíamos ter-nos tornado (p. 109).

Mas não são exclusivamente nossas escolhas que se diferenciam, porquanto as razões que encontramos para realizá-las também são distintas. Bergson (2005) diz que:

Essa criação de si por si é tanto mais completa, aliás, quanto melhor raciocinamos sobre o que fazemos. Pois a razão não procede aqui como na geometria, onde as premissas são dadas de uma vez por todas, impessoais, e onde uma conclusão impessoal se impõe. Aqui, pelo contrário, as mesmas razões poderão ditar a pessoas diferentes, ou a uma mesma pessoa em diferentes momentos, atos profundamente diferentes, ainda que igualmente racionais. A bem dizer, não são exatamente as mesmas razões, uma vez que não são as razões da mesma pessoa, nem do mesmo momento. É por isso que não se pode operar sobre elas in abstracto, de fora, como na geometria, nem resolver para outrem os problemas que a vida lhe coloca. Cada um deve resolvê-los de dentro, por sua conta (p. 7-8).

Em síntese, no fluxo da duração cada consciência torna-se singular graças à constante mudança de estados no conjunto de sua vida psicológica, ao contínuo crescimento da memória, à vivência de novas e imprevisíveis experiências a cada momento, ao que escolhe fazer das coisas e de si mesma e, por fim, às razões que toma como referência para dar sentido às suas vivências.

A duração como fundamento para a educação com as diferenças

Buscando entender as maneiras pelas quais o pensamento Moderno foi engendrando discursos e práticas educacionais em relação à diversidade humana, Luciana Marques (2008; 2010a; 2010b; 2012a; 2012b, 2020) destaca que uma de suas características mais significativas foi a negação das diferenças. Tal negação caracterizou-se por tomar como base o binômio normal versus anormal, por fazer a apologia da normalidade e, consequentemente, por não trabalhar ou mencionar explicitamente as diferenças, entendidas como elementos perturbadores e indesejáveis. A lógica da negação das diferenças teve como pano de fundo implícito a compreensão de uma suposta essência universal do ser humano. Conforme destaca Veiga-Neto (2003), assumindo seu papel de instituição difusora das lógicas de uma nova sociedade, a escola Moderna apoiou-se no pressuposto Iluminista de um sujeito ideal, imagem abstrata de um pretenso tipo humano universal, detentor de toda a bagagem dos saberes acumulados pela cultura europeia, socialmente funcional e economicamente produtivo.

É válido destacar que importantes pensadores contemporâneos, como Georges Canguilhem e Michel Foucault, problematizaram os conceitos de normalidade e anormalidade. De acordo com Canguilhem (2000), “[...] um ser vivo é normal num determinado meio, na medida em que ele é a solução morfológica e funcional encontrada pela vida para responder a todas as exigências deste meio” (p.113). Já para Foucault (2002), a construção discursiva da anormalidade obedece a princípios epistemológicos contestáveis:

É, pois, um discurso do medo e um discurso da moralização, é um discurso infantil, é um discurso cuja organização epistemológica, toda ela comandada pelo medo e pela moralização, não pode deixar de ser ridícula (p. 44).

O currículo, entendido como um artefato pedagógico fundamental na estruturação da escola Moderna, teve na concepção de tempo um forte dispositivo disciplinar que reforçou ainda mais a concepção de sujeito ideal. A ideia de tempo ligada à lógica da negação das diferenças vinculou-se ao intento de padronização dos sujeitos. Entendendo que o projeto Iluminista de sociedade trazia como ideal a marcha da humanidade aos supostos cumes da evolução cultural representada pelas aquisições do pensamento europeu, fazia-se necessário universalizar não só os conhecimentos acumulados, mas também, como salienta Veiga-Neto (2002), disseminar a visão de mundo Moderna em sua totalidade, inclusive com sua concepção de tempo. Como esse conceito era entendido enquanto uma linha matemática entrecortada por segmentos fixos, foi necessário que a própria temporalidade do currículo se vinculasse a essa ideia. Assim, o quadriculamento do tempo e a homogeneização do ritmo de progressão dos sujeitos na temporalidade do currículo se tornaram fortes mecanismos de controle.

As atividades escolares foram divididas em horários predeterminados, devendo em cada compartimento de tempo ser seguido rigorosa e exclusivamente aquilo que fora previsto, com exclusão de todo elemento perturbador. Estes horários eram, além de predeterminados, repetidos cíclica e regularmente, em dias, horas, minutos, períodos letivos, anos letivos, bimestres, trimestres, semana de prova etc. Os sujeitos deveriam se adaptar ao processo educacional proposto de antemão, de tal maneira que qualquer outra possiblidade de experiência temporal que não fosse vinculada ao ritmo pré-estabelecido era sequer cogitada. Com base nesse aparato disciplinar estabeleceu-se a crença de que há uma temporalidade típica, normal e desejável, e outras temporalidades atípicas, das quais fazem parte todos os indivíduos considerados disfuncionais e desajustados. Desse modo, a escola passou a ser concebida como o espaço de universalização do tempo próprio dos ditos normais e, por conseguinte, de exclusão de qualquer vivência temporal relacionada aos sujeitos entendidos como anormais.

Historicamente, porém, observou-se um deslocamento de sentido na direção da superação desse modelo excludente de sociedade e escola por um novo modelo fundado no reconhecimento e no respeito às diferenças. Nesse contexto, situou-se o confronto entre o discurso dominante da exclusão e aquele construído a partir da voz dos nomeados como os diferentes e/ou das pessoas com eles envolvidas na luta por reconhecimento. Tal deslocamento de sentido tem seus pilares na organização e na ascensão dos movimentos sociais, cujas vozes procuraram - ou pela denúncia das práticas discriminatórias ou pela reivindicação de igualdade social - dar visibilidade às diferenças e ocupar os espaços deixados pela lógica dominante, o que se dá tanto em relação ao espaço físico quanto em relação ao espaço discursivo.

Nessa formação discursiva, que Luciana Marques (2008; 2010a; 2010b; 2012a; 2012b, 2020) denomina de marcação das diferenças, parte-se do princípio de que a diversidade é inerente à vida. Porém, a explicitação das diferenças, nesse caso, é utilizada para marcá-las, estratificando a existência, loteando a vida com a edificação de sólidas barreiras de identificação da diferença que está em mim e/ou no grupo do qual faço parte versus a diferença que está no outro. No movimento de deslocamento da perspectiva que nega a existência da diversidade para a que a marca, mantemos, ainda que implicitamente e com outras nomenclaturas, a dicotomia entre normalidade e anormalidade, pois não se avança até uma concepção mais radical e abrangente da multiplicidade humana. Para Veiga-Neto (2011), esse processo é denominado de incluir, para excluir, pois a integração dos ditos diferentes nos processos sociais e educacionais ocorre ainda sob o signo do binômio normal-anormal.

Em relação à forma como o tempo escolar se vincula ao discurso da marcação das diferenças, observa-se que, a rigor, não houve rupturas significativas em comparação com o discurso da negação. Com o surgimento dos movimentos em defesa dos direitos dos grupos historicamente excluídos, bem como com seu acesso ao espaço escolar que estava preparado apenas para receber os ditos normais, processos de desencaixes no tempo escolar se fizeram evidentes. A sensação de que os excluídos que foram integrados no processo educacional tinham um tempo atípico de desenvolvimento e aprendizagem, não conseguindo, por isso, acompanhar o suposto tempo normal proposto pelo currículo escolar manteve-se como pano de fundo das práticas escolares. Essa sensação, longe de levar o discurso da marcação a uma problematização mais profunda sobre a própria crença de que existe um tempo normal e outro anormal, engendrou outras nomenclaturas para identificar e enformar os diferentes tempos dos sujeitos. Instaurou-se aquilo que Bergson (2020) identificou nos estudos da psicologia como sendo diferenças de grau entre as experiências subjetivas, isto é, a tradução imprecisa de vivências qualitativas e, portanto, absolutamente singulares, em signos matemáticos que as expressam em termos de mais e de menos. Tais diferenças de grau vinculam a duração de cada sujeito à concepção abstrata do tempo matematizado, que, sendo considerada a padrão, determina quem são aqueles que estão atrasados em relação ao tempo, acompanhando o tempo ou adiantados em relação ao tempo. Estabelece-se ainda as comparações entre os tempos de aprendizado dos sujeitos em termos quantitativos, como quando se diz que alguém aprende mais devagar ou mais depressa. Nessa concepção, trabalha-se ainda com uma lógica que não problematiza a relação normalidade versus anormalidade, mas sim a reforça na medida em que sustenta a concepção do tempo universal e matematizado.

Na Atualidade o ser humano vem realizando profundas reflexões no sentido de repensar a sua própria existência. De acordo com Carlos Marques (2001), parece que a humanidade está chegando à conclusão de que o desejo ressentido da normalidade somente acirrou ainda mais os mecanismos de segregação. Dessas considerações, vem emergindo uma terceira formação discursiva, identificada por Luciana Marques (2008; 2010a; 2010b; 2012a; 2012b, 2020) como a comunhão com as diferenças. Nessa perspectiva, o legítimo reconhecimento de todas as formas de existência como protagonistas do teatro da vida constitui o vetor da mudança de paradigma. Conviver com as/nas diferenças é mais do que um simples ato de tolerância, é a afirmação de que a vida se amplia e se enriquece na multiplicidade. Este é, com certeza, o dado inovador: o múltiplo como necessário, ou ainda, como o único universal possível (MARQUES; MARQUES, 2003). Rompe-se, assim, com a dicotomia paradigmática da normalidade versus anormalidade, do capaz de ajudar versus o necessitado de ajuda etc. Todos, no caso, têm o mesmo valor existencial e, por isso mesmo, devem compartilhar dos mesmos tempos e espaços, sem qualquer discriminação. Estamos nos deslocando do lugar imutável que herdamos da Modernidade para um outro lócus: o da comunhão com as diferenças.

Partindo das considerações expostas acima, entendemos que a construção de lógicas e práticas pedagógicas que avancem de modo mais radical na compreensão das diferenças humanas não depende da simples adoção de novas metodologias de ensino. Em última análise, é justamente a redução da ação docente à aplicação de técnicas pedagógicas que elimina do fenômeno educacional seus aspectos mais essenciais. Urge entender que toda metodologia de ensino está amalgamada a um conjunto de princípios ontológicos e epistemológicos, mesmo que nem sempre eles estejam claros. Desse modo, a reinvenção da escola no sentido de uma comunhão efetiva com as diferenças depende, antes de tudo, da adoção de novos modos de se entender o próprio ser humano para além da concepção de sujeito ideal indicada acima. Trata-se, portanto, de realizar primeiramente deslocamentos conceituais, para que, então, se possa habitar o cotidiano escolar com outras disposições educacionais.

Para fomentar algumas reflexões que podem auxiliar nesses deslocamentos, trazemos a seguinte questão: na medida em que desenvolve uma teoria do tempo baseada no conceito de duração, de que modo a filosofia bergsoniana possibilita uma ressignificação das concepções e práticas educacionais no sentido da comunhão com as diferenças humanas?

O que Bergson (2006) denuncia no conceito de tempo espacializado é sobretudo sua incapacidade de explicar a experiência efetiva que o ser humano tem do tempo. Em outras palavras, o tempo espacializado é uma abstração cuja finalidade é contribuir na compreensão de determinados fenômenos físicos ou na organização de certos eventos da vida em sociedade; todavia, essa imagem conceitual em nada se assemelha ao tempo de nossa subjetividade. A duração da consciência humana é viva, pulsante, colorida pela multiplicidade de desejos, sentimentos, sensações e tudo mais que a subjetividade comporte. Qualquer tentativa de representar o ser humano como ente universal e abstrato sempre deixará escapar os sujeitos reais, os viventes em suas durações concretas. Esse princípio basilar da filosofia bergsoniana revela as diferenças humanas em seu aspecto mais profundo, pois já não se pode dizer, em hipótese nenhuma, que um grupo de indivíduos considerados normais possui uma mesma temporalidade de desenvolvimento, ou que outros tidos como anormais tenham um tempo de desenvolvimento atípico. Do ponto de vista educacional, isso significa dizer que cada sujeito, estudante ou professor, é um ser com duração própria, substancial e viva, que nada têm de abstrata ou generalizável. A rigor, cada vivente do cotidiano escolar experimenta o tempo de modo singular; compreensão que funda uma significativa abertura para o conceito de multiplicidade em seu sentido pedagógico, isto é, como elemento fundamental da formação do ser humano.

Para Bergson (2005), um desdobramento importante do princípio anunciado no parágrafo anterior é aquele segundo o qual as experiências da consciência humana não podem ser expressas por signos quantitativos. Porém, se entendermos o tempo como uma sucessão linear de instantes justapostos, os fenômenos da subjetividade como fatos que crescem ou diminuem de intensidade e as operações cognitivas como eventos que revelam maior ou menor nível de inteligência, de fato nos parecerá possível representar os dados da consciência em termos numéricos. Ao estabelecermos a tradução de uma experiência psicológica por meio de signos matemáticos, logo nos parecerá possível também comparar os números obtidos por diferentes sujeitos e estabelecer juízos de valor entre eles, como melhor e pior, bom e ruim, desejável e indesejável, superior e inferior etc. Ora, se a duração é, antes de tudo, uma experiência subjetiva singular, ela só pode ser efetivamente percebida enquanto um fluxo qualitativo. Esse princípio filosófico, na medida em que revela a impossibilidade de traduzir a temporalidade humana em signos matemáticos, mostra também a inviabilidade de traçar mensurações e posteriores comparações entre diferentes sujeitos. No campo educacional isso implica em afirmar que as lógicas de ensino e avaliação que se sustentam em processos de quantificação, classificação e comparação entre diferentes indivíduos se afastam muito de qualquer possibilidade de apreender efetivamente os processos de transformação e desenvolvimento de cada consciência. Tendo em vista que cada ser humano tem uma duração singular, é crucial que haja um esforço de atenção para práticas de ensino e avaliação que considerem cada sujeito em seu percurso próprio. Os instrumentos de ensino e avaliação desenvolvidos nas escolas geralmente buscam abordar e mensurar um aspecto específico da aprendizagem - o cognitivo -, para depois representá-lo matematicamente. Essa representação matemática se faz acompanhar de um juízo de valor que acaba por se tornar uma marca indelével sobre o sujeito. Com base no conceito de duração postula-se, porém, que a experiência humana é multifacetada, não podendo ser reduzida a apenas um dos seus aspectos, como o cognitivo. Entende-se também que as características apresentadas por um sujeito em determinada etapa de sua duração não permanecem como marcas fixas, pois o tempo da subjetividade é movente. Portanto, é essencial que os processos avaliativos e as práticas de ensino que dele podem advir, além de qualitativos e individuais, sejam também multidimensionais e contínuos, permitindo a compreensão dos sujeitos em seu amplo desenvolvimento em diversos momentos de suas trajetórias de vida.

Outra dimensão importante do conceito de duração desenvolvido por Bergson (2005) diz respeito à compreensão de que as experiências da subjetividade são vividas como totalidade, isto é, em profundidade a subjetividade não vive fatos ou acontecimentos fragmentados e isolados. Se a duração representa a temporalidade viva da consciência, o âmbito no qual essa temporalidade vibra em sua integralidade é justamente o da memória. Ela, a memória, não é um departamento no qual a subjetividade armazena e busca recordações de acontecimentos passados; é sobretudo o substrato que vai se avolumando e transformando qualitativamente a partir de nossas experiências e que permanece sempre presente em nosso modo de pensar, sentir e agir. A memória é, por assim dizer, o fio invisível que costura numa tapeçaria única as imagens das múltiplas experiências de uma consciência: ela, enfim, indica mais propriamente a singularidade pulsante de cada ser humano e a indissociabilidade das experiências subjetivas. Do ponto de vista das práticas escolares, de modo mais geral a memória é entendida como um instrumento de registro e reprodução mecânica dos saberes curriculares. Ela acaba assumindo a feição de impessoalidade, universalidade e fragmentação que é própria da epistemologia Moderna, a qual hipersegmentou os saberes científicos e os depositou em compartimentos isolados para o ensino escolar. Assim, o modo como as práticas pedagógicas entendem a organização dos conhecimentos curriculares e o uso da memória desconfiguram a vivacidade e a totalidade das temporalidades dos diferentes sujeitos. Dessa forma, a defesa de modos mais transversais de organização do currículo e a busca por tornar significativa para os diversos estudantes a produção de conhecimentos não são apenas princípios didáticos relevantes; são as condições mesmas de uma educação que se esforça para ser coerente com o princípio segundo o qual as diferentes temporalidades humanas são vivas e integrais.

Por fim, Bergson (2005) entende que nos tornamos sujeitos singulares não só em decorrência dos princípios citados acima, mas também por realizarmos nossas próprias escolhas no curso do devir, bem como por atribuirmos razões pessoais a essas escolhas, dando-lhes sentidos únicos. A rigor, na medida em que avançamos na estrada do tempo nossas escolhas e produções de sentido determinam o modo como nos inserimos no mundo e, retroativamente, criam a singularidade de nossa consciência: somos, pelo menos em parte, artífices de nós mesmos. Certamente, o potencial criador de nossa liberdade por si só não é portador dos princípios éticos que cabem ao ser humano na medida em que esse se faz responsável por suas ações. Para que tais princípios se incorporem às reflexões com base nas quais a consciência decide e dá sentido a seus atos, é fundamental que haja um processo educacional. Agir no mundo, conviver com os outros e recriar a si com a compreensão cada vez mais ampla de sua liberdade e consequente responsabilidade ética é um aprendizado. A concepção Iluminista de sujeito que está na raiz da escola Moderna entende que a liberdade do ser humano é uma conquista mediante a aquisição do conhecimento científico, isto é, o auge de um longo processo de ilustração da inteligência pelo qual passa o estudante. Assim entendida, ela, a liberdade, não está dada como um potencial que se manifesta no ser humano em qualquer etapa de sua vida e, portanto, como fenômeno que precisa se tornar objeto de reflexões e aprendizado dos próprios estudantes em todas suas vivências. Por consequência, o desenvolvimento de uma compreensão ética que permita a cada estudante assumir gradualmente as responsabilidades por sua ação no mundo e por seu próprio processo de formação, condição indispensável para uma educação com as diferenças, não é pedagogicamente estimulado. Todavia, se entendemos que a duração de cada consciência é inseparável de seu potencial de escolha e criação e que esse mesmo potencial determina em grande parte a construção de nossas singularidades, assumimos de modo incontornável que uma educação com as diferenças é necessariamente uma educação com as liberdades. Em suma, as condições para que os estudantes reflitam sobre seu potencial de liberdade e criação, bem como sobre uma determinada dimensão de responsabilidade ética que lhes cabe em cada momento de seu desenvolvimento, é um aspecto indispensável do processo educacional desde o início da escolarização.

Conclusões

No início do texto procuramos situar o problema mais geral da transição paradigmática da Modernidade para a Atualidade, colocando no centro desse problema o deslocamento da concepção universal de ser humano para aquela que pensa os múltiplos modos de sentir, pensar e agir dos sujeitos. Indicamos que na base do referido problema está uma mudança profunda no conceito de tempo, entendido na Modernidade como um dispositivo disciplinar a serviço da apologia da normalidade e da exclusão da anormalidade. Anunciamos, então, que iríamos repensar o conceito de tempo à luz da filosofia bergsoniana, trazendo para a discussão o conceito de duração.

Após mostrar os sentidos do conceito bergsoniano de tempo, indicando-o como experiência subjetiva qualitativa, como realidade viva e substancial, como memória que totaliza as vivências da consciência e, por fim, como fluxo de onde emana um potencial de liberdade e criação, cremos ter evidenciado em que medida o conceito de duração instaura uma compreensão radical das diferenças humanas.

Concluímos o texto buscando explorar as noções de negação, marcação e comunhão com as diferenças a fim de evidenciar em que direção o conceito bergsoniano de duração poderia contribuir para o debate educacional em questão. Então, desdobramos tal conceito em relação ao campo da educação com as diferenças, apontando como princípios importantes a realidade temporal dos sujeitos em sua concretude, a multidimensionalidade e processualidade dos processos de ensino e avaliação, a organização de lógicas mais integradas e significativas de produção de conhecimento e, finalmente, a liberdade e suas consequências éticas como objetos de reflexão e aprendizagem.

Finalizamos reafirmando que o pensamento filosófico, em diálogo com o campo da educação, não tem como compromisso central a proposição de técnicas pedagógicas que possam ser generalizáveis e que acabem, por isso mesmo, se tornando receituários de uma suposta prática pedagógica ideal. Nossa pretensão foi tão somente indicar e, talvez, reafirmar princípios que estão na base mesma de qualquer prática educativa que tenha como horizonte a comunhão com as diferenças humanas.

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1Uma versão preliminar do texto foi publicada nos anais do XX Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, ocorrido em novembro de 2020.

2Carlos Marques (2001) denomina de Atualidade o momento histórico que vivemos, o qual se caracteriza pelo questionamento das grandes verdades acabadas que nos foram legadas pela Modernidade.

Recebido: 27 de Outubro de 2021; Aceito: 19 de Janeiro de 2022

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