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Educação e Filosofia

Print version ISSN 0102-6801On-line version ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.36 no.77 Uberlândia May/Aug 2022  Epub Jan 29, 2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v36n77a2022-63948 

Artigos

Educação como superação da barbárie: sombras do Esclarecimento em Lukács, Adorno e Honneth

Education as overcoming barbarism: enlightenment and reification in Lukács, Adorno and Honneth

La educación como superación de la barbarie: clarificación y cosificación en Lukács, Adorno y Honneth

*Doutor em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor Titular do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal da Grande Dourados. E-mail: jarbaslima@ufgd.edu.br


Resumo

O presente trabalho adota como ponto de partida a crítica do Esclarecimento (Aufklärung) realizada por Adorno e Horkheimer e investiga a hipótese desenvolvida pelo primeiro de uma concepção de educação como superação da barbárie. O artigo discute a fundamentação de noção adorniana de barbárie na teoria freudiana da cultura. Em particular, a hipótese de que a civilização origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório, procurando distinguir a relação dialética entre determinados processos de socialização e certas formas de objetificação do sujeito caracterizadoras dos fenômenos de reificação. Em seguida, tomando a racionalidade instrumental do esclarecimento como mecanismo de objetificação do sujeito na sociedade capitalista moderna, o artigo discorre sobre o conceito de reificação em György Lukács, sua relação com a crítica do Esclarecimento em Adorno e Horkheimer e a proposta elaborada por Axel Honneth de atualização desse conceito, a partir da teoria do reconhecimento.

Palavras-chave: Theodor Adorno; Axel Honneth; esclarecimento; barbárie; reificação

Abstract

The present paper takes as its starting point the critique of the Enlightenment (Aufklärung) made by Adorno and Horkheimer and investigates the hypothesis developed by first of a conception of education to overcome barbarism. The paper discusses the foundations of the Adornian notion of barbarism in Freud's theory of culture. In particular, the hypothesis that civilization originates and progressively strengthens what is anti-civilizing, seeking to distinguish the dialectical relationship between socialization processes and certain forms of objectification of the subject that characterize the phenomena of reification. Then, taking the instrumental rationality of the Enlightenment as a mechanism for objectifying the subject in modern capitalist society, the article discusses the concept of reification in György Lukács, its relationship with the criticism of the Enlightenment in Adorno and Horkheimer and updating proposal of this concept by Axel Honneth, from the recognition theory.

Key words: Theodor Adorno; Axel Honneth; enlightenment; barbarism; reification

Resumen

El presente trabajo adopta como punto de partida la crítica de la Ilustración (Aufklärung) realizada por Adorno y Horkheimer e investiga la hipótesis desarrollada por el primero de una concepción de educación como superación de la barbarie. El artículo discute la fundamentación del concepto adorniano de barbarie en la teoría freudiana de la cultura. En particular, la hipótesis de que la civilización origina y fortalece progresivamente lo anticivilizatorio, buscando distinguir la relación dialéctica entre determinados procesos de socialización y ciertas maneras de objetivación del sujeto que caracterizan los fenómenos de reificación. A continuación, tomando la racionalidad instrumental de la ilustración como mecanismo de objetificación del sujeto en la sociedad capitalista moderna, el artículo discute el concepto de reificación en György Lukács, su relación con la crítica de la Ilustración en Adorno y Horkheimer y la propuesta elaborada por Axel Honneth de actualización de este concepto, a partir de la teoría del reconocimiento.

Palabras llave: Theodor Adorno; Axel Honneth; ilustración; barbarie; cosificación

Introdução

Em Escola e Democracia, um clássico da literatura educacional brasileira, Demerval Saviani discute a dupla função da educação na sociedade capitalista, seja como instrumento de reprodução social, seja como agência crítica transformadora da sociedade (SAVIANI, 2012). O problema de fundo do presente trabalho consiste em retomar essa questão, mas sob uma perspectiva da Teoria Crítica enfocando o debate sobre os fatores que frustram o avanço de educação ante a barbárie. Há entraves conjecturados como concernentes às contradições dialéticas inerentes à própria racionalidade do Esclarecimento tomado como fundamento da educação1 moderna. Portanto o presente trabalho toma como ponto de partida o problema da educação contra a barbárie à luz da crítica ao Esclarecimento (Aufklärung) realizada pela Escola de Frankfurt2, que se notabilizou por superar os limites de uma abordagem estritamente marxista da educação, ainda que sem abandoná-la. Ou seja, partimos do pressuposto segundo o qual os teóricos da Escola de Frankfurt ao recorrerem à articulação do marxismo com outros saberes permitem discutir o problema da educação como reprodução/emancipação a partir da interpelação do próprio fundamento da educação moderna, a razão iluminista.

Com efeito, em consonância com tais diretrizes, os teóricos frankfurtianas propuseram uma teoria da sociedade capaz de compreender criticamente a experiência formativa do sujeito na sociedade capitalista, como um problema simultaneamente filosófico, sociológico, psicanalítico e político. Para Adorno e Horkheimer, por exemplo, essa perspectiva significou a necessidade de pensar a educação para além do problema da reprodutibilidade social, advertindo contra aquilo que é parte essencial do processo educacional, a razão instrumental. E abordando-a numa perspectiva mais abrangente, como emancipação do homem em relação aos embotamentos causados pela própria racionalidade moderna capitalista. Dessa forma, a filosofia social contida nesse conceito de educação corresponde a uma interpretação crítica e formativa, ao modo de uma educação política. Ou seja, encontra-se em Adorno e Horkheimer a possibilidade de pensar o problema da educação como alienação/emancipação a partir da interpelação dialética da própria racionalidade da sociedade capitalista, haja vista que, segundo esses autores, uma das causas das aberrações da sociedade moderna está situada em um de seus fundamentos mais sublimes, a saber: o Esclarecimento (Aufklärung)3.

Nesse sentido, parece haver um pressuposto ontológico fundamental, no qual se baseia a proposta desses autores, de uma vinculação íntima entre a questão da racionalidade moderna e a formação das subjetividades na sociedade capitalista. A análise desse pressuposto ontológico sugere o questionamento a respeito da reflexão sobre a extensão desse vínculo e de seus efeitos: qual o grau de dependência dos efeitos da racionalidade na formação subjetiva do homem moderno com a questão da alienação/emancipação? Por outro lado, a análise desse pressuposto implica no enfrentamento do desconcertante paradoxo: se a educação moderna na sociedade capitalista pode ser emancipatória, na medida em que esclarece o homem, por que razão a sociedade “esclarecida” mantém vivos, em sua própria essência, o mito, a ignorância, o preconceito, a barbárie?

Como indicou Saviani (2012), as teorias tradicionais e tecnicistas concebem educação como um processo fechado em si, como mera superação da ignorância, desprezando seus vínculos com a estrutura social e política de uma determinada sociedade, a não ser naquilo que ela possa influenciar no “progresso” - seja como desígnio, seja como ilusão. Para essas tais teorias de cunho positivistas e utilitaristas, a problemática educacional se encerraria no processo de escolarização formal, sendo os liames sociais e políticos que comportam a educação considerados exteriores ao processo. Não perturba tais teorias o fato de as motivações e os comportamentos assumidos no processo educacional terem uma racionalidade oculta lesiva aos próprios fins sugeridos no discurso de progresso. Um sistema educacional como o brasileiro, por exemplo - assim como na maioria das sociedades “ocidentalizadas” -, baseado nos ideais do esclarecimento (Aufklärung) como promessa de emancipação, chega a certo momento do processo de escolarização - em geral, na conclusão do ensino médio - em que o compromisso de emancipação e progresso é simplesmente abandonado. Os educandos que não conseguem entrar no ensino superior são deixados, literalmente, no meio do caminho. Logo podemos supor que o próprio sistema educacional comporta em sua lógica interna um expurgo de vidas do processo de esclarecimento, não apenas como um resíduo acidental de suas deficiências, mas como um abismo silencioso à espera dos excluídos do processo. Assim, na própria racionalidade do sistema educacional que se pretende inclusivo e contínuo, se encontra o gérmen da exclusão e da ignorância “oculta pela fachada limpa do cotidiano” (ADORNO, 2020, p. 47).

Em geral, o problema da exclusão de sujeitos, imposto pelo próprio sistema educacional meritocrático, é tratado pelas teorias não-críticas como uma contingência admissível e de menor relevância para a racionalidade formal do sistema. Para Adorno, pelo contrário, na racionalidade objetiva dos fenômenos educacionais observáveis reside o essencial: “a essência como contrapartida necessária das aparências” (COHN, 2008, p. 23). “Essência” na acepção daquilo que possui “significado essencial para a sobrevivência e para a liberdade da espécie humana” (ADORNO, apud COHN, 2008, p. 24). Com essa visada ontológica, Adorno critica as abordagens fragmentárias do positivismo sociológico empirista de amplo espectro, embora não menospreze os problemas específicos e práticos que envolvem a formação dos indivíduos no cotidiano:

Minimizar, por causa da estrutura do todo, a possibilidade de aperfeiçoamentos no âmbito da sociedade vigente, ou até mesmo - o que não faltou no passado - marcá-los como negativos, seria uma abstração idealista e danosa. Pois nisso expressar-se-ia um conceito de totalidade sobreposto aos interesses dos homens individuais que vivem aqui e agora [...]. (ADORNO, 2008, p. 98)

Assim o pensamento de Adorno articula uma visão de totalidade com os problemas reais e específicos da educação apoiando-se na abordagem dos fundamentos estruturantes de uma determinada sociedade e de seus efeitos na estruturação das subjetividades a elas correspondentes. Segundo Gabriel Cohn, a perspectiva adorniana permite uma conexão comunicativa entre o polo (universal) da humanidade e o outro polo (singular) do indivíduo - comunicação entre polos cuja dinâmica dá forma à própria ideia de totalidade frankfurtiana -. Assim, a questão da emancipação do homem universal leva Adorno ao problema essencial do Esclarecimento (Aufklärung) de conjugar conflituosamente a promoção da barbárie e a formação civilizatória. Na mesma medida, para ele, há conexão entre o problema da formação do homem na sociedade capitalista e o problema da sobrevivência da humanidade, na medida em que “a desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato da sobrevivência” (ADORNO, 2020, p. 126). Para o filósofo frankfurtiano, a desbarbarização da humanidade deve ser o objetivo precípuo da educação, embora ele mesmo reconheça possibilidades limitadas de alcançar tal finalidade. Isso posto, Adorno emprega o termo “barbárie” para referir-se “ao extremismo: o preconceito delirante, a opressão, o genocídio e a tortura” (ADORNO, 2020, p. 126), tudo isso que retorna em nossos dias num discurso da estupidez4 espantosamente representativo na conjuntura brasileira do início do século XXI. Daí impor-se como indispensável o debate sobre as possibilidades de uma concepção de educação cujo objetivo prioritário fosse exatamente prevenir e evitar a barbárie.

Na primeira parte deste trabalho, desenvolveremos exatamente a questão exposta acima. Em seguida, introduziremos a investigação sobre os fatores causais da barbarização da humanidade na sociedade moderna, onde discutiremos com mais profundidade os efeitos deletérios do Esclarecimento sobre a consciência do homem moderno e nos colocaremos a questão de como a racionalidade instrumental do Esclarecimento funciona como mecanismo de objetificação do sujeito na sociedade capitalista moderna. Nas duas últimas seções, investigaremos o conceito de reificação de György Lukács, sua relação com a crítica do Esclarecimento em Adorno e Horkheimer e a proposta elaborada por Axel Honneth de atualização do conceito lukácsiano a partir da teoria do reconhecimento.

Educação como superação da barbárie

No célebre artigo Educação após Auschwitz, Adorno reafirma a necessidade de nos mantermos atentos à sobrevivência até nossos dias dos germes que produziram os horrores do Holocausto. Por perceber o caráter não apenas contingencial daqueles episódios históricos que abalaram o mundo, o autor declarou a precedência desse debate em relação aos demais objetivos da educação: “Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: a exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação” (ADORNO, 2020, p. 129). Para Adorno, portanto, o sentido essencial da educação se organiza em torno de evitar-se a repetição de Auschwitz, de atuar-se contra os germes da barbárie:

[...] Fala-se de uma ameaça de regressão à barbárie. Mas não se trata de barbárie porque Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram essa regressão. É isso que apavora. Apesar da não visibilidade atual dos infortúnios, a pressão social continua se impondo. Ela impele as pessoas em direção ao que é indescritível e que, nos termos da história mundial, culminaria em Auschwitz. (ADORNO, 2020, p. 129)

Nosso objetivo em aprofundar a compreensão da concepção adorniana de educação como superação da barbárie faz parte dessa tarefa preventiva. Para iniciarmos o exame do tema, adotaremos como ponto de partida o próprio conceito adorniano de barbárie, o que nos leva ao vínculo estabelecido pelo autor entre barbárie e o conceito de regressão em Freud. Grosso modo, a noção de regressão no sentido psicanalítico diz respeito a uma ordenação linear de etapas ou fases do desenvolvimento da sexualidade humana, que evoluiria da sexualidade infantil difusa até chegar numa organização genital da sexualidade adulta - uma predisposição evolutiva da libido em fases (oral, anal, fálica). Essa concepção psicanalítica de regressão, porém, subverte a linearidade evolucionista, de tal forma que as estruturas do arcaico e do contemporâneo são capazes de se reconciliarem dialeticamente, ou de se conjugarem conflituosamente. A afinidade estabelecida por Adorno entre regressão psicanalítica e barbárie consiste exatamente na ausência de linearidade em benefício de uma perspectiva dialética. Assim como na regressão psicanalítica, Adorno supõe que a racionalidade moderna comporta uma forma de funcionamento que envolve o retorno de um elemento “arcaico” - sempre suposto na estrutura - pautado na hipótese da permanência do mito como um componente da estrutura da racionalidade moderna.

Adotando para barbárie o sentido psicanalítico de regressão como retorno do recalcado, Adorno inaugura uma rede de relações conceituais com concepções psicanalíticas presentes na teoria freudiana da libido5. Essencialmente, porém, esse vínculo entre barbárie e regressão lhe parece particularmente útil para indicar a reconciliação dialética entre anticivilizatório e civilização como um dos mais “perspicazes” conhecimentos proporcionados por Freud, por revelar um fato “desesperador”:

Dentre os conhecimentos proporcionados por Freud, efetivamente relacionados inclusive à cultura e à sociologia, um dos mais perspicazes parece-me ser aquele de que a civilização, por seu turno, origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório. Justamente no que diz respeito a Auschwitz, os ensaios O mal-estar na cultura e Psicologia das Massas e a análise do Eu mereceriam a mais ampla divulgação. Se a barbárie se encontra no próprio princípio civilizatório, então pretender se opor a isso tem algo de desesperador. (ADORNO, 2020, p. 130)

O agenciamento do conceito de barbárie como regressão no sentido psicanalítico, por outo lado, também representa um apoio importante para o pressuposto da indissociabilidade entre o social e o individual presente na abordagem de totalidade da escola de Frankfurt. Ou seja, Adorno encontrou em Psicologia das massas e análise do eu (FREUD, 2011), além da reconciliação dialética - que pressupõe a coexistência antitética - entre dois supostos estágios evolutivos da sociedade, o apoio para combater a dicotomia clássica entre indivíduo e sociedade.

Nesse ensaio no qual se baseia Adorno, Freud argumenta que, sob certas condições coletivas, um indivíduo sente e age de maneira inteiramente diferente de suas predisposições individuais. E chama a atenção para o fato particular de que, na massa, o indivíduo seja colocado em condições que lhe predisponham a lançar impetuosamente de si as repressões de seus impulsos pulsionais - isto é, o retorno do recalcado. Freud explica o surgimento dessas características subjetivas no indivíduo engolfado na massa do seguinte modo:

As características aparentemente novas, que ele então apresenta, são justamente as manifestações desse inconsciente, no qual se acha contido, em predisposição, tudo de mau da alma humana. Não é difícil compreendermos o esvaecer da consciência ou do sentimento de responsabilidade nestas circunstâncias. Há muito afirmamos que o cerne da chamada consciência moral consiste no “medo social”. (FREUD, 2011, p. 21)

Freud, por sua vez, está dialogando com a obra Psychologie des Foules (1895) de Gustave Le Bon, esquadrinhando, entre outras coisas, os fatos característicos da união de indivíduos que os definiria como uma “massa psicológica”6, capaz de neles exercer influência tão decisiva como a promoção da barbárie. Tentando explicar essa influência, o fundador da psicanálise toma como ponto de partida a questão - igualmente importante para o desenvolvimento da noção de regressão - do tipo da alteração mental que induz aos atos que a massa força no indivíduo, na medida em que, para Le Bon (1971[1895], p. 11), “certas ideias, certos sentimentos aparecem ou se transformam em atos apenas nos indivíduos em massa” (LE BON, 1971[1895] apudFREUD, 2011, p. 18). Apoiado em Le Bon, Freud identifica a característica mais importante da alteração mental que a multidão anima no indivíduo como resultando da preponderância dos impulsos inconscientes sobre a consciência. Essa característica justifica sobremaneira o agenciamento realizado por Adorno do conceito de barbárie como regressão.

Portanto, pelo simples fato de pertencer a uma massa, o homem desce vários degraus na escala na civilização. Isolado, ele era talvez um indivíduo cultivado, na massa é um instintivo, e em consequência um bárbaro. Tem a espontaneidade, a violência, a ferocidade, e também os entusiasmos e os heroísmos dos seres primitivos. (LE BON, 1971[1895], p. 14 apud FREUD, 2011, p. 24)

Freud (2011) caracteriza a “alma da massa” a partir da noção de regressão e da forma como Le Bon (1971 [1895]) a esboça:

  • a) “A massa é impulsiva, volúvel e irritável. É guiada quase exclusivamente pelo inconsciente” ;

  • b) “A massa é extraordinariamente influenciável e crédula, é acrítica, o improvável não existe para ela” ;

  • c) “[A massa] vai prontamente a extremos; a suspeita exteriorizada se transforma de imediato em certeza indiscutível, um germe de antipatia se torna um ódio selvagem” ;

  • d) “As massas nunca tiveram a sede da verdade. Requerem ilusões, às quais não podem renunciar. Nelas o irreal tem primazia sobre o real, o que não é verdadeiro as influencia quase tão fortemente quanto o verdadeiro”.

A explicação de Freud para esses atributos mentais a que o indivíduo envolvido na massa está sujeito se afasta do “reducionismo” de Le Bon ao explicá-los pela sugestão mútua dos indivíduos e o prestígio dos líderes. Para lançar luz sobre a psicologia da alma da massa, Freud utilizará o conceito de libido descrito com especial generosidade em Psicologia das massas e análise do eu:

“Libido” é uma expressão proveniente da teoria da afetividade. Assim denominamos a energia, tomada como grandeza quantitativa - embora atualmente não mensurável -, desses instintos relacionados com tudo aquilo que pode ser abrangido pela palavra “amor”. O que constitui o âmago do que chamamos amor é, naturalmente, o que em geral se designa como amor e é cantado pelos poetas, o amor entre os sexos para fins de união sexual. Mas não separamos disso o que partilha igualmente o nome de amor, de um lado o amor a si mesmo, do outro, o amor aos pais e aos filhos, a amizade e o amor aos seres humanos em geral, e também a dedicação a objetos concretos e a ideias abstratas. Nossa justificativa é que a investigação psicanalítica nos ensinou que todas essas tendências seriam expressão dos mesmos impulsos instintuais que nas relações entre os sexos impelem à união sexual, e que em outras circunstâncias são afastados dessa meta sexual ou impedidos de alcançá-la, mas sempre conservam bastante da sua natureza original, o suficiente para manter sua identidade reconhecível (abnegação, busca de aproximação). (FREUD, 2011, p. 43)

Portanto a psicologia das massas, segundo Freud, estaria apoiada na libido, cuja natureza é, primordialmente, sexual. Consequentemente, se o laço social dos indivíduos na massa tem o amor, ou o seu avesso, o ódio, como causa, e como alvo a suspensão da sutura gerada pelos recalques civilizatórios e pela insuportabilidade das diferenças individuais inerentes aos próprios indivíduos, isso se deveria aos efeitos gregários da libido. A alma da massa só alcançaria tal intento de suspensão do mal-estar da cultura pela remoção das inibições das pulsões próprias a cada indivíduo e pela adesão complacente desses indivíduos às manifestações de submissão da multidão a um líder. Eros representa a força que mantém o grupo unido e capaz de superar pelo amor/ódio as tensões internas despertadas pelas diferenças entre os indivíduos. Em nome do amor à unidade da massa e pelo amor7 dos indivíduos que a compõem, por exemplo, um líder é tomado como objeto unificador (FUCKS, 2007; GOLDENBERG, 2014). Uma ilustração disso é apresentada por Freud na formação das massas cristãs, onde “a ligação de cada indivíduo a Cristo é também a causa da ligação deles entre si”. (FREUD, 2011, p. 47-48).

Para complementarmos esse esboço da fundamentação psicanalítica da barbárie no pensamento adorniano teremos que retornar ao próprio Adorno no ponto onde o deixamos, a saber: “se a barbárie encontra-se no princípio civilizatório, então pretender se opor a isso tem algo de desesperador” (ADORNO, 2020, p. 130).

No já referido ensaio Educação após Auschwitz, publicado em 1967 e derivado de uma palestra realizada em 1965, Adorno reafirma a hipótese freudiana de que o fantasma da barbárie e a civilização coexistem silenciosamente. Consciente desse “elemento desesperador”, o filósofo se acha incitado a incorporá-lo a seu projeto emancipatório. Isso significava ceder às forças que o impeliam à conciliação entre os efeitos subjetivos da barbárie com a possibilidade de evitá-los pela educação. Admitir essa hipótese torna necessária uma inflexão em direção ao sujeito8: “é preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios” (ADORNO, 2020, p. 131).

Todavia conhecer tais mecanismos não seria possível sem levar em consideração que a reflexão e a racionalidade não serviriam por si só como proteção contra a barbárie, senão garantida por um escopo humanista: “as reflexões precisam, portanto, ser transparentes em sua finalidade humana” (ADORNO, 2020, p. 175). À educação caberia, pois, levar à consciência a crítica dos mecanismos sociais e psicológicos geradores da barbárie, função da educação a que Adorno denominou “função do esclarecimento”.

Parece contraditório que um crítico tão impiedoso do esclarecimento deposite tantas esperanças na função do esclarecimento na educação. No entanto, antes de tirarmos conclusões apressadas, é preciso observar que Adorno, ao fazer a crítica do esclarecimento, não age contra a razão, mas em direção à supressão dos efeitos da racionalidade instrumental sobre os indivíduos. Ao observar os efeitos subjetivos da ampliação de uma rede densamente interconectada de certas formas de socialização sobre os indivíduos, Adorno crê na emancipação do sujeito pela educação, mas sem deixar de admitir os efeitos indeléveis do esclarecimento sobre o sujeito no âmbito da sociedade. “Quando mais densa é a rede, mais se procura escapar, ao mesmo tempo em que precisamente a sua densidade impede a saída. Isso aumenta a raiva contra civilização. Esta torna-se alvo de uma rebelião violenta e irracional” (ADORNO, 2020, p. 132). O germe da barbárie é, inicialmente, identificado no interior do processo de socialização, caracterizado mais pela densidade da rede que produziria sua qualidade. O que determinaria tal qualidade seria uma espécie de adesão do indivíduo à “pressão geral dominante” percebida como forma de obediência. Esse estado de submissão não consciente em relação às injunções caracterizaria uma “heteronomia, um tornar-se dependente de mandamentos, de normas que não são assumidas pela razão própria do indivíduo” (ADORNO, 2020, p. 134). Admitindo-se a permanência desse tipo de vínculo social no mundo administrado, a heteronomia resultaria na condição básica para a produção da barbárie. Mas que qualidade de vínculos sociais produzem ou admitem a heteronomia, que faz o sujeito depender de normas que não são assumidas por sua própria razão?

A reificação habita o princípio da barbárie

Em Dialética do Esclarecimento (1985), Adorno e Horkheimer analisam aspectos do processo de autodestruição da função reflexiva no esclarecimento (Aufklärung). Duas teses desenvolvidas no primeiro ensaio desse livro permitem tornar inteligível a trama entre racionalidade e realidade social capaz de produzir a heteronomia, que faz o sujeito depender de normas que não são assumidas por sua própria razão. Sucintamente essas duas teses estão presentes em dois aforismos complementares e críticos da separação entre mito e esclarecimento como um processo de objetificação produzido na racionalidade: a) “o mito já é esclarecimento”; b) “o esclarecimento acaba por reverter à mitologia”. Ambos partem do mesmo pressuposto já identificado acima, a saber: o Esclarecimento como passo civilizacional de controle progressivo da natureza contém o germe do enclausuramento do homem num mundo administrado.

Analisar o modo como os autores desenvolvem a tese da objetificação do sujeito no processo de desencantamento da razão exige um mergulho nas águas geladas da abstração. Por prudência, tomaremos o primeiro ensaio de Dialética do Esclarecimento (1985), intitulado “O conceito de Esclarecimento”, fazendo o cotejo de nossa leitura com a exposição de Rodrigo Duarte em Adorno/Horkheimer e a Dialética do Esclarecimento (2002). Segundo Duarte, o ensaio de abertura do livro tem exatamente o objetivo de “elucidar o escopo da racionalidade restritiva que tem caracterizado o desenvolvimento da civilização ocidental, cujo programa ‘era o desencantamento do mundo’” (DUARTE, 2002, p. 18). Com efeito, nesse ensaio, Adorno e Horkheimer descrevem o Esclarecimento (Aufklärung) como um programa para dissolução dos mitos e a substituição da imaginação pelo conhecimento científico. O desprezo pela “tradição”9, muito bem representado pelo racionalismo experimental de Bacon como um dos fundamentos da ciência moderna, trazia o pressuposto do “saber” como instrumento da “superioridade do homem” sobre os outros homens - os reis, inclusive - e como mecanismo capaz de comandar a natureza na prática.

Apesar de seu alheamento à matemática, Bacon capturou bem a mentalidade da ciência que se fez depois dele. O casamento feliz entre o entendimento humano e a natureza das coisas que ele tem em mente é patriarcal: o entendimento que vence a superstição deve imperar sobre a natureza desencantada. O saber que é poder não conhece barreira alguma, nem na escravidão da criatura, nem da complacência em face dos senhores do mundo (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 18).

No contexto do esclarecimento, o princípio da barbárie estaria, portanto, situado na própria operation como procedimento eficaz, que transforma o saber em poder sobre a natureza e os homens. Esse procedimento, apoiado na eficácia da ciência, levaria à reificação, na medida em que a racionalidade do esclarecimento convertida em instrumento leva os homens, progressivamente, à alienação do seu trabalho, assim como à renúncia da exigência clássica da reflexão sobre o próprio pensamento. Ao fim e ao cabo, essa operação incidiria numa violência contra a própria razão ao provocar a fratura fundamental entre sujeito e objeto. Adorno e Horkheimer não deixam de notar ainda, na felicidade produzida por essa operação desencantadora do mundo, a volúpia sádica cujo fetiche seria o procedimento eficaz:

doravante, a matéria deve ser dominada sem o recurso ilusório a forças soberanas ou imanentes, sem a ilusão de qualidades ocultas. O que não se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 19).

Desse modo, Adorno e Horkheimer chegam a uma formulação categórica: “o esclarecimento é totalitário” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 19). Para a dupla de filósofos, o esclarecimento proscreve a multiplicidade presente nos atributos das diferentes figuras míticas, em nome da redução de tais diferenças à Unidade. Redução semelhante àquela identificada por Freud e Le Bon na “alma da massa”, na qual Eros constitui a força da Unidade demolidora das diferenças. Ao sujeito cognoscente calculador é atribuído o mesmo papel unificador exercido pelo líder da massa. Como efeito dessa operação unificadora manifesta-se a regressão do pensamento a um tipo de informação estereotipada repetida pela razão instrumental. A multiplicidade e a qualidade, assim como qualquer outro ser e acontecimento, só entram na cena do esclarecimento se reduzidas em uma unidade hierarquizada, ordenada e, sobretudo, calculável. “O que se continua a exigir insistentemente é a destruição dos deuses e das qualidades” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 20).

Da mesma forma, Adorno e Horkheimer identificam no esclarecimento uma forma totalitária de disposição do sujeito e a comparam ao arranjo do sujeito no animismo10: “o animismo havia dotado a coisa de uma alma, o industrialismo coisifica a alma” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 35). Resulta que, na racionalidade industrial, “[...] uma única distinção, a distinção entre a própria existência e a realidade, engolfa todas as outras distinções. Destruídas as distinções, o mundo é submetido ao domínio dos homens” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 21). O sujeito idêntico a si mesmo - assim como as coisas idênticas - constitui a unidade forçada da natureza: “É à identidade do espírito e a seu correlato, a unidade da natureza, que sucumbem as múltiplas qualidades” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 22).

A crítica ao sujeito como identificado a si mesmo e dominador da natureza está presente também no Eclipse da Razão, de Horkheimer. Na verdade, Horkheimer torna essa crítica ainda mais ácida ao apontar um princípio subjetivista egoísta11, através do qual a razão se restringe a mero instrumento. Isto é, seu valor operacional reduz-se ao critério da dominação dos homens e da natureza. No entanto, se a dominação da natureza aumenta o poder dos homens sobre as coisas do mundo, também carrega em si a objetificação do próprio homem.

Assim sendo, Adorno e Horkheimer identificam a operação fundamental do esclarecimento (Aufklärung) na forma de um sujeito que assume as características da “alma da massa”. Derivam desse primeiro movimento miríades de questões relacionadas ao modo como a modernidade produz a heteronomia, que aparta as normas essenciais da vida social do reconhecimento que têm dela os indivíduos em sua própria consciência. Abordada por diversos autores da Teoria Crítica, a questão da formação do sujeito heteronômico, em Horkheimer como em Adorno, é explicada pelo processo de “coisificação da alma”, pela amortização da razão reflexiva num instrumento racional concebido como auxiliar do sistema econômico.

Para Horkheimer, E. Kant12 visava “preservar a herança do transcendentalismo crítico” (HORKHEIMER, 2015, p. 105) ao iniciar o processo gradativo de introjeção do sujeito na experiência, e, principalmente, incorporar o sujeito à experiência de conhecimento, na medida em que o entendimento que construímos do mundo depende de fatores subjetivos. O positivismo, contudo, leva ao extremo a identificação do sujeito com o objeto, a ponto de amortizar o que há de subjetivo no sujeito, anulando suas qualidades e unificando-o como objeto abstrato.

Em que pese o acento na crítica ao esclarecimento (Aufklärung) como razão instrumental, o tratamento do tema da reificação em Adorno e Horkheimer sofre grande influência de George Lukács, expoente do marxismo do século XX, cuja teoria da reificação abriga como causa social a estrutura da mercadoria. Na esteira do conceito de fetichismo em Marx, Lukács identifica a essência da sociedade capitalista na estrutura da mercadoria; as relações mercantis são concebidas como um “protótipo de todas as formas de objetividade e de todas as suas formas correspondentes de subjetividade da sociedade burguesa” (LUKÁCS, 2018, p. 193). Para ele, a reificação “se baseia no fato de uma relação entre as pessoas tomar o caráter de uma coisa e, dessa maneira, de uma ‘objetividade fantasmagórica’” (LUKÁCS, 2018, p. 194). Isso implica na transformação do vínculo social numa coisidade [Dinghaftigkeit]. Lukács entende esse processo de coisificação como duas faces da mesma moeda: o objeto torna-se, ao mesmo tempo, uma reprodução fiel das relações mercantis nas relações sociais e uma forma ilusória de tais relações.

Fundamentado na obra Contribuição à crítica da Economia Política, de Karl Marx, Lukács explica as relações mercantis pelo processo de transformação de valores das mercadorias. Segundo essa perspectiva, nas formas embrionárias de relações comerciais - o intercâmbio direto de produtos - o valor de troca dependia tão somente do valor de uso. Na transformação dos produtos em mercadoria - a partir da produção de excedente da quantidade necessária ao consumo -, a essência deles se concentra no valor de troca. A mudança qualitativamente importante nas relações mercantis ocorre quando o sistema de produção se desvincula do valor de uso em benefício do puro valor de troca e transforma a mercadoria em forma dinheiro. Assim o advento do capitalismo moderno, em resumo, resultaria do consórcio entre a produção de mercadoria determinada pelo seu valor de troca (forma dinheiro) com a razão instrumental.

Na medida em que o valor de troca é calculado envolvendo as categorias tempo e trabalho socialmente necessário, o capitalismo submete o homem a normas de organização do tempo e de quantidade de trabalho alheias a sua consciência. Separado da racionalização e dos resultados do seu trabalho, “o homem é confrontado com sua própria atividade, com seu próprio trabalho como algo objetivo, independente dele e que o domina por leis próprias, que lhes são estranhas” (LUKÁCS, 2018, p. 199). A atividade laborativa humana submetida ao princípio da racionalização baseada no cálculo, assim como ocorre com o tempo, se objetifica numa categoria geral e abstrata formalmente idêntica, de forma a permitir sua objetificação em quantidades calculáveis. Reside nesse abstracionismo do processo de objetificação o aspecto fantasmagórico da reificação.

Dessa forma, com Lukács, a reificação torna-se um conceito central para o diagnóstico da sociedade capitalista. Sua contribuição do conceito de reificação para a produção de um tipo de diagnóstico de amplo alcance deve-se ao seu caráter ontológico. Segundo Honneth, esse caráter ontológico significa que “Lukács vê na reificação não um atentado contra princípios morais, mas a anomalia de uma práxis humana ou de um tipo de atitude que constitui a racionalidade de nossa forma de vida” (HONNETH, 2018[2006], p. 29).

Ora, diferentes povos, etnocentricamente, costumam chamar de barbárie aquilo que se apresenta como uma anomalia em relação à racionalidade de “sua” forma de vida. Afinal é comum a clássica referência à origem grega do termo βάρβαρος (barbaros) como indicação de ausência de humanidade naqueles povos incapazes de fazer uso da linguagem, senão como balbucio - os gregos utilizavam a expressão bar bar para se referirem às pessoas que não falavam a língua grega. A concepção de reificação de Lukács, portanto, não trata de um entendimento de barbárie nessa perspectiva etnocêntrica, mas certamente como anomalia de uma práxis humana, adquirida dentro de um sistema de produção social determinado, a sociedade capitalista.

Assim, para entendermos o sentido de reificação em Lukács, sugerimos uma aproximação entre Dialética do Esclarecimento (1985) e História da consciência de classe (2018), aproximação que aliás não é nova. Embora a forma como a propomos tenha emergido de nossa pesquisa, essa justaposição entre os dois textos já fora realizada - e em maior profundidade - pelo emérito professor Wolfgang Leo Maar, no brilhante artigo intitulado “Lukács, Adorno e o problema da formação” (MAAR, 1992). Leo Maar identifica o interesse no processo formador da consciência como o problema central comum aos autores de ambos os textos. Situa, a partir daí, o conceito de reificação como meio adotado por eles para explicar o processo formativo do sujeito na sociedade capitalista. Segundo ele:

Como problemática formativa, há um diálogo permanente entre História e Consciência de Classe e Dialética do Esclarecimento, entre a formação entendida a partir do capital, e a Bildung deformada pela troca.

O propósito lukacsiana da busca do sujeito consistia em desvendar o processo concreto pelo qual se constitui a sociedade real. Ao mesmo tempo isso explica como sujeito e objeto aparecem formados nos termos da tradição filosófica clássica, a Bildung, apreendida assim como articulação historicamente constituída a partir do capital.

Adorno mantém a perspectiva da formação cultural, da cultura formativa, mas como processo dialético por trás da figura assumida por ela na sociedade industrial-capitalista: o esclarecimento. A perda do indivíduo, a crise da cultura com o fenômeno da indústria cultural são manifestações de processos formativos tolhidos, auto-ofuscamentos no processo do esclarecimento (MAAR, 1992, p. 184).

Leo Maar ressalta ainda a especificidade da noção de formação em Lukács. Que consistiria na produção de consciência da classe trabalhadora dialeticamente baseada nas contradições da luta de classes. A formação de consciência da classe trabalhadora como sujeito coletivo se realizaria como ação política no processo histórico e entendida como fenômeno histórico coletivo, efeito das contradições imanentes à relação dialética entre trabalho e capital, e não como formação individual. Tais contradições, que englobam o próprio fenômeno da reificação, seriam superadas por uma determinada práxis cuja base estaria na prática política da classe trabalhadora enquanto tal.

A superação da reificação do processo formativo, de seus objetos e sujeitos reificados, não se encontra no âmbito da educação e da cultura desalienadoras. Mas reside num modo de conhecimento em que a prática - isto é, a interrupção do processo dialético por ação de um sujeito - constitui parte fundamental. A base para esta prática não é o indivíduo, mas a classe proletária e a condição para esta prática seria a consciência de classe (MAAR, 1992, p. 182).

Nesse contexto, a superação no processo de formação não se daria pelo esclarecimento. Sendo a reificação fruto das relações mercantis (“fetichismo da mercadoria”) e causa social da alienação da classe trabalhadora, sua emancipação como sujeito coletivo só seria possível com a superação da forma social capitalista.

Importa destacar dessa interpretação de Leo Maar a apresentação do conceito de reificação como elemento central da noção de formação em Lukács. Com ela, podemos situar a questão educacional como um problema em torno do qual também orbita o conceito de reificação, associando essa hipótese à possibilidade da atualização do conceito em Honneth. Axel Honneth, principal herdeiro da chamada “terceira geração” de teóricos críticos e atual diretor do Instituto para Pesquisa Social (Institut für Sozialforschung) da Universidade de Frankfurt, realiza em seu livro Reificação: um estudo da teoria do reconhecimento (2018[2006]), talvez a mais atual reflexão filosófica sobre a noção lukacsiana de reificação, na qual propõe inovadora revisão do conceito ao abordá-lo no interior das relações cotidianas. Essa atualização à luz de novas categorias - especialmente, aquelas advindas do interior de sua teoria do reconhecimento - visa à manutenção do interesse crítico-emancipatório da Teoria Crítica. Segundo Rúrion Melo (2018), isso significa a prévia admissão por parte de Honneth de que os fenômenos de reificação continuam se ampliando em função dos “avanços” da sociedade contemporânea, como previsto por seus eméritos pares da Escola de Frankfurt.

O esquecimento do reconhecimento é anterior à coisificação

A análise de Honneth sobre a noção lukacsiana de reificação toma como ponto de partida o contexto no qual o conceito foi elaborado, a crítica filosófica da sociedade alemã dos anos 1920 e 1930, no interior da qual se refletia sobre a crise social e econômica da República de Weimar e se observava uma finalidade fria e calculadora nas relações sociais. Honneth retoma dessa atmosfera difusa, exatamente, o impasse dos dilemas da formação da consciência de classe. Para ele, Lukács designa por reificação uma “coisidade” [Dinghaftigkeit], “um processo cognitivo pelo qual algo que não possui propriedades materiais - por exemplo, algo que possui elementos humanos - é considerado como algo material” (HONNETH, 2018[2006], p. 31-32). Todavia Honneth considera essa definição da reificação ambígua em sua caracterização filosófica, extraindo dela três acepções possíveis: a) como um erro categorial epistêmico; b) como uma ação moralmente condenável; c) como uma forma totalmente distorcida de práxis. Logo descarta a possibilidade de considerar a reificação como resultante de um erro categorial, haja vista que um erro cognitivo, segundo ele, seria incapaz de explicar a complexidade e a estabilidade do processo de reificação. Por outro lado, Honneth está interessado em advertir que Lukács desvincula a reificação de um nexo estrito com a esfera econômica, “na medida em que transfere as coerções decorrentes da reificação também à totalidade da vida cotidiana no capitalismo” (HONNETH, 2018[2006], p. 33). E demonstra que esse processo totalizante implica não uma única causa, mas pelo menos duas hipóteses explicativas do processo como um todo:

  • a) “que seria necessário para a expansão do capitalismo que todas as esferas da vida nas sociedades capitalistas sejam assimiladas ao padrão da troca de mercadorias” (HONNETH, 2018[2006], p. 33-34);

  • b) “que o processo de racionalização leva inevitavelmente a um aumento de atitudes racionais com respeito a fins naqueles âmbitos sociais que até então eram denominados pelas orientações tradicionais do comportamento” (HONNETH, 2018[2006], p. 34).

De qualquer forma, para Honneth, é essa perspectiva totalizante que leva Lukács a sua tese central demonstrada na ideia de reificação como uma “segunda natureza”, ou seja, como um costume de homens e mulheres na sociedade capitalista “de perceberem a si próprios e o mundo circundante segundo o esquema dos objetos meramente reificados” (HONNETH, 2018[2006], p. 34). Por outro lado, o autor chama atenção para a insuficiência dessa caracterização feita por Lukács da “segunda natureza” como “coisa” ou “coisidade”:

Ele atribui o conceito de “coisa” ou de “coisidade” de maneira descuidada a todos os fenômenos que são percebidos pelo sujeito em seu mundo circundante ou em relação à sua própria pessoa como grandezas economicamente utilizáveis; indiferentemente do fato de se tratar de objetos, de outras pessoas ou das próprias competências e sentimentos, de acordo com Lukács eles são vividos na qualidade de objetos reificados ao serem considerados do ponto de vista de sua utilidade nas transações econômicas. (HONNETH, 2018[2006], p. 34)

Segundo Honneth, um maior rigor no tratamento do conceito de reificação será necessário para que seja possível estender a noção de “segunda natureza” para além da esfera de ação da troca de equivalentes. O recurso de Lukács para enfrentar essa questão consistiu - como em Adorno - em abrir-se para os efeitos da reificação no sujeito, ou seja, para as transformações experimentadas no sujeito como efeito de sua relação total com a realidade circundante. Pois o sujeito reificado “se torna um ‘espectador impotente’ e ‘contemplativo’ diante daquilo que ‘se passa com sua própria existência considerada uma partícula estranha, integrada em um sistema estranho’” (LUKÁCS, apudHONNETH, 2018[2006], p. 35).

Nessa virada subjetiva lukácsiana, o sujeito é concebido como “espectador impotente” e “contemplativo”. Para Honneth, é aí que estão os elementos apropriados à atualização da noção de reificação como um conceito concernente a fenômenos exteriores às determinações da troca de mercadorias:

Nas esferas de ação sempre em expansão da troca de mercadorias, os sujeitos são forçados a se comportar não na qualidade de participantes, mas antes de observadores dos acontecimentos sociais, porque o cálculo recíproco dos possíveis ganhos demandam uma atitude puramente objetiva e a mais neutra possível em relação aos afetos; com essa mudança de perspectiva, introduz-se ao mesmo tempo uma percepção “reificante” de todos os elementos relevantes em uma dada situação, porque os objetos a serem trocados, os parceiros na troca e, por fim, as próprias capacidades pessoais só podem ser conhecidos em suas propriedades quantitativas de valorização; uma tal atitude se torna “segunda natureza” quando é transformada em um costume habitual por força dos processos de socialização correspondentes, de modo que tal atitude determine o comportamento individual de todo o espectro da vida cotidiana. [...] Lukács compreende sob o termo “reificação” o hábito ou o costume de um comportamento meramente observador, em cuja perspectiva o mundo circundante natural, o mundo das relações sociais e as próprias capacidades pessoais são apreendidos apenas com indiferença e de um modo neutro em relação aos afetos, ou seja, como se possuíssem as qualidades de uma coisa. (HONNETH, 2018[2006], p. 36-37)

Nesse sentido, a retomada de conceitos como os de “contemplação” - como observação indulgente e passiva - e de “indiferença” - quando o agente não é mais afetado emocionalmente pelos eventos - é fundamental para Honneth assinalar o conceito de reificação em Lukács como uma forma de socialização da sociedade capitalista, ou seja, como um sistema de comportamento reificante. O conceito lukácsiano de reificação, portanto, não pode ser classificado filosoficamente como um erro categorial epistêmico - que pudesse ser corrigido com um saber adequado -, nem como uma conduta moral imprópria. Em vez disso, Lukács estaria se referindo a uma forma de práxis deficiente em relação a uma práxis humana verdadeira. A emancipação dessa condição alienante da reificação só seria possível quando orientada por uma práxis baseada na participação e no interesse, numa “atitude intersubjetiva do sujeito” (HONNETH, 2018[2006], p. 40).

Assim a intervenção atualizadora de Honneth sobre o conceito de reificação em Lukács incidirá naquilo em que esse conceito pressupõe uma práxis idealizada como comportamento participativo do sujeito diante de si e do seu mundo, como um comportamento esperado da espécie humana. Segundo Honneth, para produzir esse modelo idealista de práxis, este último deixou de fora problemas importantes. Entre tais problemas, Honneth aponta as seguintes questões fundamentais: a) se “os processos econômicos de troca tem um significado tão profundo para os indivíduos a ponto de fazê-los modificar ou reorientar totalmente a relação que têm consigo mesmos e com o mundo” ou; b) “se Lukács não subestimou de modo grave a extensão em que, por razões de eficácia, sociedades altamente diferenciadas exigem que seus membros aprendam a se relacionar de maneira estratégica consigo mesmo e com os outros” (HONNETH, 2018[2006], p. 41).

Na esteira desses questionamentos, Honneth vai elaborando sua proposta de atualização do conceito lukácsiano de reificação. Discutir essa formulação teórica em detalhes não comporta nos limites de nossa explanação. Mas ainda é necessário indicar, em linhas gerais, as bases argumentativas nas quais Honneth trabalha e a direção de sua tese. Seu ponto de partida, sem dúvida, é considerar a reificação em Lukács como um déficit de envolvimento existencial do sujeito numa práxis ideal, déficit produzido por uma atitude caracterizada por um comportamento meramente “observador”. Honneth vê grande afinidade entre essa ideia de práxis participativa como forma de superação da apreensão neutra da realidade com noções desenvolvidas por John Dewey e Martin Heidegger a respeito da questão do engajamento numa práxis - embora, para Honneth, Heidegger não compartilhe com Lukács a busca de uma causa social para a construção do esquema de oposição sujeito-objeto. Por outro lado, considera que ambos concordam entre si na tarefa de apresentarem alternativas ao esquema rígido de um sujeito epistêmico neutro observador do mundo. Assim residiria no conceito heideggeriano de “cuidado” [Sorge] a caracterização da estrutura de uma relação engajada com o mundo, através da qual o sujeito não mais estaria numa posição de neutralidade diante da realidade, de modo que o mundo se apresentaria em seu significado qualitativo. Nesse sentido, o conceito de “cuidado” em Heidegger, assim como o pressuposto da práxis engajada em Lukács, serviriam para Honneth avançar a tese do primado da “perspectiva do participante”. Dessa aproximação entre Lukács e Heidegger se desdobram outras questões importantes discutidas pelo filósofo, porém, a noção de cuidado é a que mais lhe interessa para uma atualização do conceito de reificação no âmbito da teoria do reconhecimento:

A tese de que a atitude do cuidado possui um primado não apenas ontogenético, mas também conceitual diante de uma apreensão neutra da realidade [...] uma vez que pretendo substituir cautelosamente o conceito heideggeriano de “cuidado” pela categoria de “reconhecimento”, que remonta a Hegel. (HONNETH, 2018[2006], p. 54)

Além disso, Honneth encontra na percepção de John Dewey sobre uma relação originariamente holística dos homens com o mundo outra forma de demonstrar o primado do reconhecimento em relação a atitudes meramente cognitivas. Segundo essa concepção de Dewey, na base de todo conhecimento racional há uma experiência com o mundo rica em sensibilidade. Essa relação baseada numa experiência abrangente, existencial e prática de interação com o mundo circundante, Honneth chamará de “reconhecimento”.

Há em comum em todas essas ideias de Lukács (engajamento), Heidegger (cuidado) e Dewey (interação) cotejadas por Honneth a tentativa de elaborar uma alternativa ao esquema reificante sujeito-objeto como atitude originária do sujeito observador numa relação neutra frente ao mundo. A partir das características conceituais nelas presentes, Honneth as considera passíveis de permuta com a noção de “reconhecimento” através da qual elabora sua tese “de que o comportamento participativo precede a apreensão neutra da realidade, que o reconhecimento precede o conhecimento” (HONNETH, 2018[2006]).

A título de conclusão

O debate frankfurtiano sobre uma concepção de educação cujo objetivo prioritário fosse a superação da barbárie demonstra o poder do pensamento crítico, de per si, como forma de exercício de educação num mundo cada vez mais ameaçado por retrocessos éticos e ataques a liberdades individuais e aos valores democráticos, sob o manto da liberalidade no discurso neoliberal. Enquanto teoria educacional, essas reflexões chegaram a um denominador comum ao encontrarem no Esclarecimento e no fenômeno da reificação alvos em direção aos quais uma estratégia contra a barbárie deveria ser conduzida. Seja em Lukács, que explica a reificação pelo processo de transformação de valores das mercadorias, seja em Adorno, que a concebe no processo de formação do sujeito heteronômico como “coisificação da alma”, a hipótese da influência decisiva dos fenômenos reificantes sobre a subjetividade na sociedade capitalista é incontornável. Em Lukács, particularmente, o conceito remete a uma forma de comportamento humano simplesmente contemplativo em cujo contexto de interação os afetos seriam anulados. Ou seja, reificação seria a expressão de um déficit afetivo e de uma anomalia em relação a uma forma de comportamento humano engajado. Vista como padrão, essa práxis engajada originária teria uma qualidade subjetiva fundamental, em contraste com a qual a práxis reificada se instauraria como déficit de intersubjetividade. Essa é o ponto do conceito de reificação que será objeto da reformulação crítica de Honneth (MELO, 2018).

Nesse sentido, se o pensamento de Adorno trabalha no sentido de identificar a barbárie e de construir uma estratégia educacional contra a barbarização, e o de Lukács coloca a questão do engajamento, é viva e necessária a atualização dessa tradição frankfurtiana de reflexão sobre o esclarecimento, através do conceito de reificação no pensamento de Axel Honneth. Partindo do pressuposto do primado do reconhecimento em relação a todas as formas de conhecimento, Honneth procura identificar a barbárie no déficit de engajamento em relação à práxis originária e estruturante das relações sociais. Isso permite encaminhar a discussão da educação nas sociedades contemporâneas para um enfoque dos aspectos afetivos do engajamento do sujeito, considerando os efeitos do capitalismo neoliberal sobre os vínculos afetivos cotidianos, em especial aqueles estabelecidos durante o processo educacional.

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1Trata-se neste trabalho de dar continuidade a uma investigação realizada em momento anterior, que adotou a perspectiva marxista gramsciana como forma de pensar a formação da consciência e o papel da educação na sociedade capitalista. Esse movimento em direção aos aspectos superestruturais da formação nos encaminhou para uma aproximação com a Teoria Crítica e a um aprofundamento da questão da racionalidade moderna.

2O Instituto para Pesquisa Social (Institut für Sozialforschung) fundado em Frankfurt am Main, na Alemanha, em 1923, ligado à Universidade Johann Wolfgang Goethe de Frankfurt, estabeleceu inicialmente laços estreitos com as tradições do marxismo clássico. Durante esse período, o Instituto aglutinou um grupo de intelectuais marxistas alemães, entre os quais destacou-se Max Horkheimer. Após a nomeação de Horkheimer como diretor, em 1931, o Instituto passou por uma reorientação de suas pesquisas, especialmente depois da criação da Revista para a Pesquisa Social, em 1932. Ainda sob uma perspectiva marxista do fenômeno social, o acento passou a ser dado numa abordagem que chamaríamos hoje de interdisciplinar, ao integrar disciplinas como economia, psicologia, psicanálise, história e filosofia. Esse redirecionamento epistemológico viria dar à Escola de Frankfurt duas de suas principais características: por um lado, o estabelecimento de ampla conexão entre hegelianismo, freudismo e marxismo na elaboração da teoria crítica da sociedade. Por outro, encorajou-se a elaboração de uma teoria da sociedade considerada em sua totalidade, “mas uma teoria que fosse justamente crítica, ou seja, capaz de fazer emergir a contradição fundamental da sociedade capitalista” (REALE, 2017, p. 719).

3Seguimos o tradutor de Dialética do Esclarecimento, Professor Guido Antonio de Almeida, que traduz Aufklärung por esclarecimento em vez vertê-la para expressões mais usuais como “iluminismo” ou “ilustração”, geralmente, utilizadas para designar o que se conhece como Época ou Filosofia das Luzes. Para o Professor Guido Antonio de Almeida, o termo Aufklärung em língua alemã corrente também significa esclarecimento, no sentido de superação da ignorância e do preconceito sobre temas práticos (religiosos, políticos, sexuais etc.). Além disso, em conformidade com a argumentação desenvolvida na obra, Esclarecimento é um processo muito mais abrangente do que o mero Iluminismo europeu, podendo suas origens serem encontradas desde as narrativas míticas da Odisseia de Homero (ADORNO; HORKHEIMER, 1985).

5Sabe-se que o conceito de libido em Freud percorre um longo caminho até chegar a uma formulação à luz da Psicologia das massas e a análise do Eu. Desenvolver tal percurso não caberia nos limites deste trabalho, cujo objetivo principal, neste momento, é delinear os contornos psicanalíticos do conceito de barbárie em Adorno. Porém não podemos nos eximir de enfrentar a questão decisiva da “dialética psicanalítica” envolvida na agitação entre libido e civilização, considerando este último termo como inseparável da ideia de cultura (PUCCI; GEORGEN; FRANCO, 2007).

6Optamos por não utilizar somente o termo “grupo”, como na Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XVIII, nem o termo “multidão” presente na edição brasileira do livro de Gustave Le Bon Psychologie de foules, no qual o termo “foules” é traduzido por “multidões”, como aparece no título Psicologia das multidões (Martins Fontes; 2ª edição, 2016). Preferimos utilizar os temos “massa” ou “grupo”, dependendo da situação, como na tradução de Paulo Cesar Coelho das Obras Completas volume XV publicada pela Companhia das Letras, cujo título original do ensaio do texto de Freud Massenpsychologie und Ich-Analyse fora traduzido por Psicologia das Massas e Análise do Eu.

7Freud esclarece ainda que o narcisismo dos indivíduos só encontra saída “pela ligação libidinal com outras pessoas. O amor a si encontra limite apenas no amor ao outro, amor aos objetos” (FREUD, 2011, p. 58). Por isso, no capítulo VII de psicologia das massas e a análise do Eu, vamos nos deparar ainda com o problema de algumas formas de laço emocional entre pessoas a que Freud chamou de identificação.

8Essa inflexão, entretanto, não excluía os pressupostos objetivos da barbárie — tampouco se pode afirmar ser uma novidade no pensamento de Adorno a questão do sujeito, ela sempre esteve presente em seu pensamento. O movimento consiste muito mais em fazer cumprir o objetivo precípuo da Teoria Crítica de revelar os mecanismos do mundo administrado como geradores de assujeitamentos embotadores do sujeito.

9Do lat. traditĭo,ōnis “ação de dar; entrega; transmissão, tradição, ensino”.

10Talvez estejamos tão absortos nessa projeção especular do sujeito na natureza que, para melhor entendimento da crítica que lhe dirigem Adorno e Horkheimer, precisemos recorrer a outras formas de pensar a formação do sujeito, de maneira não especular. Um contraexemplo que pode ser elucidativo, a noção de Pessoa Araweté como descrita por Viveiros de Castro corresponde a forma diversa de estruturação de sujeito. Nela, o sujeito é concebido como devir: “o destino da Pessoa Araweté é um tornar-se outro, e isso é a pessoa — um devir. Intervalo tenso, ela não existe fora do movimento” (CASTRO, 1986, p. 22). Viveiros de Castro concebe a hipótese de um método Tupi-Guarani de construção da Pessoa, no qual o ciclo vicioso da especularidade é recusado. Estamos diante de um sujeito que recusa a identificação narcísica, em prol de uma relação com a natureza fundamentada em um procedimento de tendência “não-euclidiana”: processo de deformação topológica contínua, onde Eu e Outro, Ego e Inimigo, o vivo e o morto, o homem e o deus, o devorado e o devorador, estão entrelaçados — aquém e além da Representação, da substituição metafórica, e da oposição complementar. Movendo-se em um universo onde o devir é anterior ao Ser, e a ele insubmisso. (CASTRO, 1986, p. 22). A noção de devir associa-se aqui a um esvaziamento do sujeito como autoidentificado, trata-se da libertação do sujeito do domínio da Identidade e do Ser como identidade-a-si: “o ser da pessoa Araweté é um devir-outro, devir-deus, - inimigo, jaguar, onde se o Outro, enquanto objeto do Devir, é imaginário, o devir é real, e a alteridade uma qualidade do verbo, não um predicado seu” (CASTRO, 1986, p. 124).

11Tudo se passa como se Édipo realizasse, de fato, a fantasia de, identificado ao pai como unidade e fonte de poder, esposar a mãe (“mãe natureza”), substituindo-o na prática. O esclarecimento esboça assim a feição de um patriarcado do infans — sujeito incapaz de falar ou de falar bem —, cuja inépcia em articular é substituída diretamente pela alta capacidade de calcular. Dessa identificação egóica e posterior substituição metafórica ao “poder invisível”, o sujeito da razão instrumental arroga-se direitos patriarcais (normativos) sobre a natureza.

12Esta é uma questão cuja complexidade filosófica não podemos alcançar neste trabalho ao ponto de poder desenvolvê-la. O processo de unificação e abstração talvez esteja inscrito nos próprios conceitos formadores do esclarecimento como, por exemplo, nos conceitos de espaço presentes na reflexão filosófica de Kant (1724-1804) como formas de conhecimento a priori. Kant concebe o tempo não com um conceito referente ao conteúdo do pensamento, mas como um conhecimento independente da experiência e previamente inscrito em nossa razão. Sendo um a priori, o tempo se desvincula da experiência. Porém, como aponta Kurz, “ainda que o tempo seja uma forma apriorística inscrita na capacidade cognitiva humana, essa forma está sujeita a mudanças históricas e temporais” (KURZ, 2020, p. 69). A particularidade do esclarecimento como instrumento da sociedade capitalista consiste exatamente em negar o caráter histórico desses conceitos, isolando dos fatores que comumente lhe estão relacionados na realidade, ou seja, transformando-os numa abstração com um fim em si mesmo. O tempo torna-se um objeto, uma coisa útil à administração do trabalho também concebido como uma natureza unidimensional.

Recebido: 10 de Novembro de 2021; Aceito: 17 de Maio de 2022

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