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Revista Eletrônica de Educação

versão On-line ISSN 1982-7199

Rev. Elet. Educ. vol.13 no.1 São Carlos jan./abr 2019  Epub 05-Ago-2019

https://doi.org/10.14244/198271992331 

Demanda Contínua - Artigos

Práticas de leitura e círculo bakhtiniano: algumas aproximações

Ana Estela Ferreira I  

Raquel Lazzari Leite Barbosa II  

Rosaria de Fátima Boldarine III  

IMestre em Educação - Unesp/Marília (2018). Especialista em Literatura e Ensino - FACCAT/Tupã (2014). Graduada em Letras FAP/Tupã (2008). Membro do grupo de estudos GEPLENP (Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Linguagem, Ensino e Narrativa de Professores) da Unesp-Assis/SP. Professora de Língua Portuguesa na Secretaria Estadual de Ensino de São Paulo. E-mail: anaestela_7@hotmail.com - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Marília-SP, Brasil

IIProfessora adjunta na Unesp - Assis/SP e professora orientadora no Programa de Pós-Graduação em Educação na Unesp - Marília/SP. Livre-docente em Didática pela Unesp de Marília. Doutora em Educação pela Unicamp e Mestre em Educação pela PUC-SP. Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Linguagem, Ensino e Narrativa de Professores - GEPLENP da Unesp-Assis/SP. - E-mail: raqueleite@uol.com.br - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Marília-SP, Brasil

IIIDoutora em Educação - Unesp/Marília (2014). Mestre em Educação - Unesp/Marília (2010). Especialista em Literatura - PUC/SP (2000). Graduada em Letras - Faculdades Oswaldo Cruz (1997). Membro do grupo de estudos GEPLENP (Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Linguagem, Ensino e Narrativa de Professores) da Unesp-Assis/SP. Professora convidada do curso de especialização em “Língua Portuguesa e Literatura” da Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail: rosariaboldarine@gmail.com - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo-SP, Brasil


Resumo

O objetivo deste trabalho é discutir brevemente sobre as aproximações possíveis entre alguns conceitos propostos pelo círculo bakhtiniano e algumas orientações para ensino de linguagem e leitura nos documentos oficiais de educação dos anos finais do ensino fundamental. A escolha desse nível escolar dá-se pelo fato de ser um momento de transição, entre a escuta de textos (hábito comum nos primeiros anos escolares) e a leitura autônoma, a qual deveria se estabelecer já nesta etapa e tornar o leitor proficiente, entendido como aquele que lê, e estabelece sentido para os diversos gêneros discursivos que circulam em nossa sociedade, especialmente os gêneros da esfera literária, sempre mais distantes da realidade da maioria das pessoas. Nas orientações para o ensino dessas práticas na escola, concebidas como lugar concreto de interação social, e verbal, convém refletir sobre que lugar ocupa a interlocução, diante do ideal de suscitar relações entre leitores e gêneros discursivos em ambiente escolar e o dialogismo, no processo em que o texto se torna discurso, o leitor “sai” da condição passiva, e passa a ser também autor de discursos. A mudança do estado de escuta de textos para o de leitura e produção de textos é perpassada por condicionamentos que tornam este processo de apropriação conturbado, refletem os impasses entre os estudos acerca do ato de ler e da leitura, e a apropriação destes pelos profissionais da educação.

Palavras-chave: Linguagem; Dialogismo; Práticas de leitura

Resumen

El objetivo de este trabajo es discutir brevemente sobre las aproximaciones posibles entre algunos conceptos propuestos por el círculo bakhtiniano y algunas orientaciones para enseñanza de lenguaje y lectura en los documentos oficiales de educación de los años finales de la enseñanza fundamental. La elección de ese nivel escolar se dá por el hecho de ser un momento de transición, entre la escucha de textos (hábito común en los primeros años escolares), y la lectura autónoma, la cual debería establecerse ya en esta etapa y convertirse en el lector proficiente , Entendido como aquel que lee, y establece sentido para los diversos géneros discursivos que circulan en nuestra sociedad, especialmente los géneros de la esfera literaria, siempre más distantes de la realidad de la mayoría de las personas. En las orientaciones para la enseñanza de estas prácticas en la escuela, concebidas como lugar concreto de interacción social, y verbal, conviene reflexionar sobre qué lugar ocupa la interlocución, ante el ideal de suscitar relaciones entre lectores y géneros discursivos en ambiente escolar y el dialogismo, en el proceso En el que el texto se convierte en discurso, el lector “sale” de la condición pasiva, y pasa a ser también autor de discursos. El cambio del estado de escucha de textos para el de lectura y producción de textos es atravesado por condicionamientos que hacen este proceso de apropiación conturbado, reflejan los impasses entre los estudios acerca del acto de leer y de la lectura, y la apropiación de éstos por los profesionales de la comunicación Educación.

Palabras claves: Lenguaje; Dialogismo; Prácticas de lectura

Abstract

The main goal of this paper is to briefly discuss possible approaches among some concepts proposed by the Bakhtinian circle and some guidelines for language and reading teaching in official educational documents of Elementary School final grades. The choice of this school level is due to the fact that it is a moment of transition, between the listening of texts (common habit in the first school years), and the autonomous reading, which should be established already at this stage and make the reader proficient, that is, the one who reads, and establishes meaning for the various discursive genres that circulate in our society, especially the genres of the literary sphere, always more distant from the reality of most people. In the guidelines for the teaching of these practices in school, conceived as a concrete place of social and verbal interaction, it is necessary to reflect on what place occupies the interlocution, before the ideal of provoking relations among readers and discursive genres in school environment and dialogism, in the process In which the text becomes discourse, the reader “leaves” the passive condition, and moreover becomes the author of speeches. The change from the state of listening to texts to the reading and production of texts is permeated by constraints that make this process of appropriation troublesome, reflects the impasses between the studies about the reading and reading, and the appropriation of these by the education professionals.

Keywords: Language; Dialogism; Reading practices

Introdução

A ideia de que a leitura pode contribuir para transformar a realidade já é há muito estudada, porém ainda se faz necessário compreender quais são as crenças que sustentam o desenvolvimento desse saber na escola, as condições efetivas para a constituição das crianças e jovens enquanto seres de leitura e escrita, bem como a arquitetônica, ou o tempo espaço em que necessidades são despertadas, não só de ler e escrever, mas as necessidades humanizadoras criadas a partir da leitura e da linguagem, em um processo nunca acabado de significação do mundo e das situações, ou seja, a escola precisa de uma reflexão muito mais profunda para entender como se tecem as relações dialógicas entre leitor e texto, enquanto sentido.

Conforme BAKHTIN, 2010,

A unidade do mundo da visão estética não é uma unidade de sentido, não é uma unidade sistemática, mas uma unidade concretamente arquitetônica, que se dispõe ao redor de um centro concreto de valores que é pensado, visto, amado. É um ser humano este centro, e tudo neste mundo adquire significado, sentido e valor somente enquanto tornado desse modo um mundo humano (BAKHTIN, 2010, p. 124).

O desenvolvimento da leitura supõe, antes, uma concepção de linguagem que a apresente como central para a constituição da consciência humana, uma vez que todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso dela (BAKHTIN, 2016, p.11). Dessa forma, a linguagem não pode ser pensada estando fora da realidade material, social e da vida tal como ela se apresenta.

Na escola, a linguagem e a leitura são tratadas, muitas vezes, pelas práticas de ensino, de maneira positivista, centralizadora e homogeneizante (SOARES, 1999; SAVELI, 2003; SILVA, 2008; BITENCOURT, 2013). Quando isso ocorre, o trabalho com o objeto sobrepõe-se ao sujeito, à situação e ao sentido, não permitindo que se assuma a discussão em torno da palavra, e do signo. (BAKHTIN, 2004, p. 46). Desta maneira, uma concepção dialógica de linguagem e de ensino de leitura, a partir da posição parcial da constituição do enunciado e os valores ideológicos que mobilizam a língua e a fazem funcionar, é fundamental para que de fato ocorram mediações de leitura capazes de desencadear o processo de formação leitora para a autonomia. Assim, é necessário repensar o ponto de vista em meio ao qual se dão essas práticas de ensino escolares, para que se possa tentar promover relações dialógicas, que possibilitem aos estudantes (sem fórmulas mágicas) se tornarem participantes ativos na construção do sentido, e agentes em sua transformação como ser social.

O principal objetivo desse trabalho é discutir brevemente sobre as aproximações possíveis entre alguns conceitos propostos pelo círculo bakhtiniano e algumas orientações para as práticas de ensino de linguagem e literatura em sala de aula, bastante comuns no ciclo II do ensino fundamental. A escolha desse nível escolar dá-se pelo fato de ser um momento de transição, entre a escuta de textos (hábito comum nos primeiros anos escolares), e a leitura autônoma, que deveria se estabelecer já nesta etapa e tornar o leitor proficiente, entendido como aquele que lê, e estabelece sentido para os diversos gêneros discursivos que circulam em nossa sociedade, especialmente os gêneros da esfera literária, sempre mais distantes da realidade da maioria das pessoas. Nas orientações para o ensino dessas práticas na escola, situadas como lugar concreto de interação social, e verbal, convém refletir sobre que lugar ocupa a interlocução, diante do ideal de suscitar relações entre leitores e gêneros discursivos em ambiente escolar.

Linguagem e dialogismo

Os estudos do círculo bakhtiniano têm início na Rússia, nas duas primeiras décadas do início do século passado, permeadas de reviravoltas sociais e políticas, avanço tecnológico e guerras, bem como a queda do império russo, e a ascensão da revolução comunista. Neste período conturbado, alguns teóricos assumiram a inquietação do momento histórico em que viviam. As discussões do chamado círculo de Bakhtin, composto por Mikhail Bakhtin, Valentín Nikoláievitch Volóchinov, Pavel Medviédev, e outros, trazem a tentativa de pensar a linguagem do ponto de vista dos estudos marxistas. São atribuídas ao próprio Bakhtin as obras: Estética da Criação Verbal, Para uma Filosofia do Ato Responsável, Problemas da poética de Dostoievski, Cultura Popular na Idade Média: o contexto de François Rabelais. Enquanto são atribuídas à Volóchinov as obras: Freudismo, Marxismo e Filosofia da Linguagem, e a Medviédev a obra: O método formal nos estudos literários.

Em Marxismo e Filosofia da linguagem, Bakhtin (Volóchinov) propõe que um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico (BAKHTIN, 2006, p. 32). As relações sociais, dentre elas as relações escolares, se dão através da linguagem, e da complexidade que envolve essa realidade refratada.

Sabemos que cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória. A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto da interação viva das forças sociais. (BAKHTIN, 2006, p. 67).

As práticas de ensino de linguagem e de leitura em sala de aula acontecem em meio a esse jogo de forças contraditórias no interior da palavra. Os processos de leitura e interpretação de gêneros textuais, em toda sua dinamicidade e riqueza de existência, num tempo e espaço, podem fazer transbordar o ser humano, a sua consciência sócio individual, e se materializar por meio de enunciados, ou discursos também complexos, uma vez que “é na e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito” (BENVENISTE apud AMORIN, 2004, p. 102).

Das discussões desse grupo surgem os fundamentos de uma ciência nova, bastante ligada à Filosofia da Linguagem, em que o conhecimento não se realiza fora do ser e de sua existência concreta e real, nos acontecimentos. Na obra bakhtiniana, a linguagem é apresentada como uma atividade dinâmica, em que se exerce o ato responsivo por meio da produção de discursos. Bakhtin parte de um princípio dialógico de linguagem, que sendo interacional, dar-se-á no enunciado, ou seja, o autor compreende “a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da linguística” (BAKHTIN, 2008, p. 207).

O Enunciado é, nesse contexto, apresentado como a unidade de troca verbal, de natureza social, como um acontecimento único e singular que se antepõe ao conceito de frase como sendo aquele em que há unidade da língua e se dirige a alguém, à presença do outro no interior desse próprio enunciado. Bakhtin apresenta as posições enunciativas no interior do texto, bem como as relações dialógicas como relações de sentido entre os enunciados. A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes. (BAKHTIN, 2006, p. 128)

Aliado a este conceito, é também formulada a noção de gênero, apresentado pelo autor como a construção de tipos relativamente estáveis de enunciados que dominam a alteridade humana:

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos - o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional - estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2006, p.261-262)

Todos estes aspectos vão compondo alguns conceitos dos estudos deste círculo, o qual não tem por objetivo apresentar respostas ou metodologias a serem seguidas, mas que por outro lado, provocam sempre a necessidade de refletir sobre a palavra e as interlocuções em torno dela.

A este trabalho, especificamente, interessa observar nas orientações dos documentos oficiais o lugar do enunciado nas relações de leitura no cotidiano escolar, ou seja, a importância da linguagem no interior das práticas de leitura, as interlocuções possíveis na passagem da situação de escuta de textos (literários ou não), à situação de leitura autônoma, na medida em que há um processo pelo qual os leitores em formação teriam de ser conduzidos a “enfrentar” o objeto texto, e dar-lhes sentido. No processo em que o texto se torna discurso, o leitor “sai” da condição passiva, e passa a ser também autor de discursos, e assim se apresenta o conceito de dialogismo, proposto por Bakhtin, o qual pensa essa relação e dá-lhe vida (KILANE, apud AMORIN, 2004, p.92).

Bakhtin apresenta a noção de dialogismo como aquela em que há a pluralidade de vozes dentro do texto. O dialogismo é explicado por Bakhtin a partir da análise dos romances de Dostoiévski. Nesses romances, não há o apagamento de vozes em detrimento da voz autoritária do autor. Como afirma Bakhtin:

Assim, pois, nas obras de Dostoiévski não há um discurso definitivo, concluído, determinante de uma vez por todas. (...) A palavra do herói e a palavra sobre o herói são determinadas pela atitude dialógica aberta face a si mesmo e ao outro. (...) No mundo de Dostoiévski não há discurso sólido, morto, acabado, sem resposta, que já pronunciou sua última palavra. (BAKHTIN, 2008, pp. 291-292).

Esse conceito se contrapõe ao de monologismo em que no discurso não há espaço para essa pluralidade, pelo apagamento dessas outras vozes. No entanto, cabe ressaltar a distinção entre a monologização e monologismo, na medida em que a primeira é entendida como um ato responsivo, uma verdade provisória, sendo, portanto, necessária, uma vez que é no falar que se organiza o próprio discurso interior.

Quando o leitor descobre sua exterioridade, sua particularidade, de não coincidência em relação ao outro, de que a sua leitura não precisa necessariamente passar pela boca do outro, quando consegue perceber e reafirmar a sua presença, pela presença do outro, é que o interlocutor pode mais ativamente compreender o sentido de um determinado enunciado, de forma que se pode dizer que só existe verdadeira leitura no dialogismo, dada a abertura à multiplicidade de sentidos e de relações possíveis a serem desenvolvidas na escola e na complexidade de seu cotidiano.

No entanto, é característica do pensamento do círculo o contínuo reportar-se às práticas do cotidiano, valorizando-as como espaços em que já estão embutidas as bases da criação ideológica mais elaborada e as fontes da sua continua renovação. (FARACO, 2009, p.62).

Assim como o ensino de gramática e de aspectos linguísticos de língua portuguesa no dia a dia das salas de aula, muitas vezes, ainda está bastante próximo da explanação por orações ou palavras soltas e descontextualizadas, como a dissecar um objeto inerte, o trabalho com a leitura de textos na escola, em alguns contextos, ainda é ancorado por análises estruturais das características dos gêneros, tendo por finalidade a localização de informações explícitas em textos, as listas de atividades de perguntas e respostas, entre outras práticas para as quais muitas vezes não há espaço para o sentido. Que há de fato nas mediações de leitura na escola, especialmente no ciclo II do ensino fundamental? Quem verdadeiramente lê nas salas de aula atualmente?

Os questionamentos acima surgem em meio a uma relação ainda bastante presente no cotidiano das leituras escolares. A dicotomia entre oralidade e escrita, refletida ou refratada (a usar o termo bakhtiniano) nas práticas de leitura escolares, permeia o ideal de formar leitores autônomos, e tem raízes mais profundas. O ensino de leitura baseado no oral é um resquício dos primeiros anos escolares, tanto para os estudantes recém-chegados de lá, quanto para os professores do ciclo II que receberam essa formação, e diante da complexidade de situações e dificuldades em sala de aula, tendem a repeti-las ainda que sem tomar consciência disso. Mas se o discurso oral é ligado à escuta, e a escrita tem suas próprias leis, o algo em comum entre oralidade e escrita deveria ser apenas o sentido, sob o ponto de vista é claro, de que a compreensão é um grande jogo de sentidos, e não apenas a mera decodificação do significado das palavras. Dessa forma, tentar-se-á refletir sobre algumas maneiras de ler na escola a partir dos conceitos de dialogismo, e interlocução, e da relação de forças que perpassam essas situações.

Práticas de leitura em uma perspectiva bakhtiniana

As práticas de leitura escolares são constituídas pelos documentos federais e estaduais oficiais para a educação no Brasil. Neste trabalho, foram verificados os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) para o ensino de língua portuguesa e o Currículo Oficial do Estado de São Paulo (2012), nas orientações para esta disciplina, embora se ressalte que nestas orientações, a competência de leitura e escrita é de responsabilidade a ser desenvolvida por todas as disciplinas e atividades escolares.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais foram organizados e publicados em 1997, como um resultado de todas as discussões que vinham sendo feitas em torno da escola no Brasil, e com o objetivo de se compor um referencial para estas discussões e para o desenvolvimento e revisão das propostas pedagógicas.

Este trabalho não tem o objetivo de analisar profundamente este referencial curricular, mas apenas delinear alguns pontos principais que norteiam o ensino de leitura na escola e em sala de aula, bem como a formação de leitores e toda a complexidade de seu processo. Cabe então salientar que os PCNs refletem as exigências de um momento educacional de alguns anos atrás e hoje já é possível olhá-los sob a ótica da prática escolar e de alguns desdobramentos desses parâmetros primeiros, exemplo disso, é a Proposta Curricular do Estado de São Paulo, neles fundamentada e presente no dia a dia das escolas da rede estadual de ensino, inclusive com a adoção de um material específico, utilizado desde 2008, o qual busca um sistema de ensino unificado.

Embora muitas críticas possam ser feitas aos PCN’s, é importante pontuar que eles trouxeram um avanço no que diz respeito aos estudos sobre linguagem até então realizados. Com a intenção de ser ancorado em percepções linguísticas e situações comunicativas que propiciem a vivência de práticas sociais contextualizadas aos seus falantes, aliado a uma concepção de linguagem interacionista, em sua multiplicidade de usos e sentidos, os parâmetros têm como objetivo levar os estudantes a terem um domínio do discurso nas diversas situações comunicativas, utilizando-se das linguagens orais e escritas, e refletindo sobre essas, ou seja, o enfoque, no momento em que tais parâmetros foram pensados, passou a ser a produção e recepção de textos, o que supõe a noção de Gêneros orais e escritos, com características específicas, e a maneira como estes serão compreendidos pelos alunos, privilegiando aqueles que exercem certa função relevante para a sociedade.

Segundo os Parâmetros, a escola deve estar organizada como um todo para a formação de leitores, com destaque para o papel dos professores como mediadores entre os alunos e a leitura, como referência para o leitor em formação, contribuindo para a construção de alguns valores ligados à prática da linguagem como: o interesse pela leitura, a compreensão de textos orais e escritos, a troca de informações lidas, o diálogo com outros leitores e a inserção a ambientes relacionados à leitura, bibliotecas, livrarias, dando continuidade ao encontro com a leitura.

Para o terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental, composto por adolescentes que já começam a buscar a própria autonomia e independência (de 11 e 15 anos), os PCNs buscam considerar as características próprias desta faixa etária, mas tendo como eixo as particularidades da linguagem e suas práticas. Pressupõem o direito à palavra, e o encontro desta com o discurso de outrem. Esta etapa é situada como tendo um papel decisivo na formação de leitores, pois é nessa fase que muitos desistem de dar passos em direção a leituras mais complexas. A leitura literária, por exemplo, é assim definida como um procedimento em que “o leitor realiza um processo ativo de compreensão e interpretação do texto” (BRASIL, 1998, p.69), mas ressalta que isto não significa uma mera decodificação, “mas uma atividade que implica estratégias de seleção, antecipação, inferências, e verificação sem as quais não é possível proficiência” (BRASIL, 1998 p.69), por meio de um movimento metodológico de Ação, reflexão, Ação, baseado em sequências didáticas que buscam levar o aluno a refletir sobre o uso da linguagem e sua finalidade social.

Com relação à educação literária, propõem-se atividades de prática de leituras diferenciadas, que estejam a favor de uma formação de leitores reais, principalmente relacionadas à recepção destes textos, o que se revela realmente uma mudança na concepção de leitura em sala de aula, pois insere outros gêneros textuais e refletem melhor sobre as instâncias ligadas a esse processo, abrindo caminho para uma relação mais dialógica. Pressupõem também o papel do leitor para a interpretação, na medida em que “o texto não está pronto quando escrito, o modo de ler é também um modo de produzir sentidos” (BRASIL, 1998 p.70). Essa questão pode ser entendida como uma mudança em relação às concepções anteriores que enfocavam o texto em detrimento da maneira como estes eram recebidos pelo público, em seus diversos tipos e daquela maneira nem sempre contribuíam para a formação de leitores capazes de reconhecer “as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias” (BRASIL, 1998, p.27). Entre os gêneros literários situados como imprescindíveis para as práticas de escuta e leitura segundo os PCNs encontram-se: conto, novela, romance, crônica, poema, e texto dramático, também contextualizado por situações didáticas em espiral que preveem um aprofundamento no decorrer dos ciclos.

A formação de leitores no contexto escolar das aulas de língua portuguesa pontua algumas práticas as quais vão servir de esteio à didática do professor, tais como: a leitura autônoma para textos que os alunos já tenham proficiência, a leitura colaborativa do professor com a classe, leitura programada, leitura de escolha pessoal e destaca a leitura em voz alta, como (no momento de produção do documento e segundo ele), ainda não era bastante difundida em sala de aula.

Neste documento a leitura em voz alta pelo professor é assim descrita:

Além das atividades de leitura realizadas pelos alunos e coordenadas pelo professor, há as que podem ser realizadas basicamente pelo professor. É o caso da leitura compartilhada de livros em capítulos que possibilita ao aluno o acesso a textos longos (e às vezes difíceis) que, por sua qualidade e beleza, podem vir a encantá-lo, mas que, talvez, sozinho não o fizesse. A leitura em voz alta feita pelo professor não é prática comum na escola. E, quanto mais avançam as séries, mais incomum se torna, o que não deveria acontecer, pois, muitas vezes, são os alunos maiores que mais precisam de bons modelos de leitores. (BRASIL, 1998, p.73).

Representações e condicionamentos permeiam estes momentos junto à correções e advertências para que o silêncio absoluto seja ouvido. Sobre relações como essas, Faraco (2009) afirma:

(...) para haver relações dialógicas é preciso que qualquer material dialógico tenha entrado na esfera do discurso [...] tenha sido transformado em enunciados, tenha fixado a posição de um sujeito social, só assim, é possível responder [...], isto é, fazer réplicas ao dito, confrontar posições, dar acolhida fervorosa à palavra do outro, confirmá-la ou rejeitá-la, buscar-lhe um sentido profundo, ampliá-la. (FARACO, 2009, p.66)

Dessa forma, como se dá a interlocução diante do ato de ler para o outro até mesmo para gêneros textuais curtos? De acordo com Chartier (2007, p.155), as escolhas pedagógicas dos professores não se realizam apenas fundamentadas em considerações técnicas e documentais, mas também em princípios, isto é, por adesão a valores, ou seja, as práticas de leitura em classe, também se dão por meio das concepções e valores construídos pelas experiências dos professores e demais profissionais da realidade escolar durante toda a vida, bem como, entram em relação com as concepções, expectativas e bagagem cultural dos estudantes, desde os seus primeiros anos de vida. As práticas de leitura são, portanto, permeadas de valores, os quais também vão suscitando dificuldades para a atribuição de sentido, no cotidiano escolar.

A leitura coletiva em voz alta parece ratificar ou acentuar as dificuldades de leitura dos alunos que ainda não alcançaram certa autonomia do ato de ler. A decifração bem-sucedida em voz alta é confundida com o status de leitor fluente, e diante desta prática, que geralmente é realizada sem uma leitura prévia, há inclusive, a distorção do texto, modificando-lhe a estrutura. Na leitura em voz alta a pessoa que se interpõe entre texto e leitor geralmente é o professor, teoricamente um profissional da leitura, mas nas rodas de leitura coletiva, os mediadores são os outros estudantes, tornando ainda mais complexo o contato com o texto gráfico, dificultando o processo de letramento das crianças que não tiveram e não têm contato com os livros nos primeiros anos de vida.

A tensão criada nesse processo, por meio da entonação ou acentuação, altera o sentido do texto lido, muitas vezes negativamente, e também do próprio ato de ler, dificultado pelas paradas entre um trecho e outro, que ocorre quando muitas pessoas leem. Entre as vozes que leem e o texto escrito, deveria estar a compreensão, mas para isso, é necessário um contexto dialógico, um ambiente propício para respostas, enunciados.

A leitura programada apresentada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, é o item mais próximo da prática de leitura e compartilhamento que se tem em sala de aula atualmente. Também sob a ênfase da mediação do professor, e da maneira como é proposta nos PCNs, a leitura programada seria necessária para a discussão de uma obra literária um pouco mais difícil para a leitura dos alunos, o que justifica a segmentação de trechos.

A leitura programada é uma situação didática adequada para discutir coletivamente um título considerado difícil para a condição atual dos alunos, pois permite reduzir parte da complexidade da tarefa, compartilhando a responsabilidade. O professor segmenta a obra em partes em função de algum critério, propondo a leitura sequenciada de cada uma delas. Os alunos realizam a leitura do trecho combinado, para discuti-lo posteriormente em classe com a mediação do professor. Durante a discussão, além da compreensão e análise do trecho lido, que poderá facilitar a leitura dos trechos seguintes, os alunos podem ser estimulados a antecipar eventuais rumos que a narrativa possa tomar, criando expectativas para a leitura dos segmentos seguintes. Também durante a discussão, o professor pode introduzir informações a respeito da obra, do contexto em que foi produzida, da articulação que estabelece com outras, dados que possam contribuir para a realização de uma leitura que não se detenha apenas no plano do enunciado, mas que articule elementos do plano expressivo e estético. (BRASIL, 1998, p.73)

Na definição desta prática, atualmente, ela se apresenta como uma sequência de momentos de interação entre professor (condutor da leitura), estudantes e textos, em geral não muito extensos, como contos, ou crônicas, mas também se estendendo a gêneros de outras esferas do discurso. Nesse contexto, e de acordo com o que argumenta Solé (1998, p.22) “o significado que o escrito tem para o leitor não é uma réplica do significado, que o autor quis lhe dar, mas uma construção que envolve o texto, os conhecimentos prévios do leitor que o aborda e seus objetivos.”

Dessa forma, o professor, em leitura prévia, seleciona alguns momentos do texto para pausas estratégicas que possam ajudar a facilitar a aproximação dos leitores e dos textos, de maneira que se possa despertar gosto ou prazer. A leitura em voz alta se inicia com a exploração oral e discussão do texto, na lógica do Antes (exploração do título, biografia do autor, horizonte inicial de expectativas), durante (pausas durante a leitura, que enfatizam algum aspecto considerado relevante pelo professor, quebra das expectativas iniciais, e projeção de outras), e depois, com a interpretação final do texto, confirmação ou negação de hipóteses, e relacionamento do texto com outros gêneros textuais.

Formar leitores autônomos também significa formar leitores capazes de aprender a partir dos textos. Para isso, quem lê deve ser capaz de interrogar-se sobre a sua própria compreensão, estabelecer relações entre o que lê e o que faz parte de seu acervo pessoal, questionar seu conhecimento e modificá-lo, estabelecer generalizações que permitam transferir o que foi aprendido para outros contextos diferentes [...] (SOLÉ, 1998, p. 72)

Da maneira como se apresenta, a leitura compartilhada funciona como uma alternativa, uma saída para certos entraves de leitura em sala de aula, uma vez que foge à regra da leitura em voz alta, distante e previsível, e a leitura silenciosa, conflituosa desde sempre. Mas assim como argumenta Chartier

[...] um método de leitura não pode pretender transformar magicamente o fracasso em sucesso. Por outro lado, pode, por suas escolhas didáticas, ratificar uma situação que todos criticam, contribuindo até mesmo para reforçá-la. (CHARTIER, 2007, p.156)

Embora não se possa negar que esta prática estimule expectativas de leitura nos estudantes ouvintes, quando se sabe utilizar bem o texto, impor entonações adequadas e fazer perguntas que despertem o interesse dos estudantes pelo texto ouvido, deve-se compreender que não há uma metodologia de ensino de leitura que resolva de uma vez por todas, o problema de não se querer ler em sala de aula, ou fora dela.

Nesta relação entre estudantes, gênero textual, e voz do professor, não se pode negar que há relações dialógicas, mas elas se apresentam tal como as breves réplicas do diálogo cotidiano (BAKHTIN, 2016, p.12). As conversas entre os interlocutores durante esta situação de leitura, as respostas dadas espontaneamente ao professor pelo anseio de conhecer a sequência de uma história, operam no nível da compreensão, uma vez que o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo (BAKHTIN, 2016, p.25). No entanto, o sentido ainda se encontra muito mais relacionado ao ouvido, do que ao lido.

As práticas de leitura na escola passam pelo crivo e orientação dos documentos oficiais, mas também da concepção de escola, ensino, e linguagem em formação que os professores têm, e com a qual foram formados, gerando tensão entre cotidiano e ensino, leitura e institucionalização de leitura. Para uma perspectiva de linguagem dialógica em que possa haver de fato interação entre leitores e gêneros textuais, no interior do signo:

Os signos são intrinsecamente sociais, isto é, são criados e interpretados no interior dos complexos e variados processos que caracterizam o intercâmbio social. Os signos emergem e significam no interior de relações sociais, estão entre seres socialmente organizados [...] para estudá-los, é indispensável situá-los nos processos sociais globais que lhes dão significado. (FARACO, 2009, p.49)

A leitura silenciosa, que supõe o contato direto do leitor com o objeto gráfico a sua frente desencadeia a leitura no interior da palavra e dessa tensão suscitam enunciados. Aproximar a prática da leitura silenciosa de uma perspectiva dialógica em que a interlocução possa desencadear cada vez mais processos de compreensão, da fala viva, ou do enunciado vivo da natureza ativamente responsiva, em que toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente e o ouvinte, se torna falante ( BAKHTIN, 2006, p.25), é permitir que encontrem ou que tenham lugar as múltiplas vozes, a polissemia que é própria da linguagem, e também que se possam ouvir as vozes presentes nos gêneros discursivos, em toda as suas singularidades.

Para Indursky (2005, p.70) a dialogia está diretamente vinculada a outras noções que lhe são correlatadas: fala de outrem, vozes diferentes, (...), inter-relação dialógica, ressonâncias dialógicas, multiplicidade de vozes, polifonia, interação verbal entre outras, e essa presença do outro, ou do discurso do outro, no processo de enunciação que ocorre na leitura, possibilita a construção da sua própria identidade como leitor, e permite pensar o acabamento do texto, ainda que provisoriamente.

(...) a procura da palavra pessoal é, na verdade, uma procura da palavra não pessoal, da palavra que é maior que si, uma aspiração a fugir de suas próprias palavras com a ajuda das quais não se consegue dizer nada de substancial. (BAKHTIN, apud AMORIN, 2004, p. 119)

A procura da palavra pessoal é a compreensão, que fica em segundo plano em sala de aula, dada a formatação das matérias que norteiam as práticas, aos problemas com indisciplina, ou dificuldades de aprendizagem e, assim, o professor gesta a noção de que o estudante leitor não compreende o lido, ou compreende erradamente. Bakhtin, no entanto, argumenta que a compreensão passiva do discurso ouvido é apenas um momento abstrato da compreensão ativamente responsiva e plena, que se atualiza na subsequente resposta real e em voz alta (2006, p.25), ou seja, se é possível compreender o discurso ouvido como aquele presente nos diversos gêneros textuais, inclusive os escritos. Deve-se entender também que o que se chama de não compreensão por parte do leitor, é apenas uma distorção no interior da prática, que tenta impedir o discurso monológico.

Há compreensão no centro do ato de ler, e o leitor a cria de diversas formas, dependendo também do gênero do discurso com a qual dialoga. Os gêneros jornalísticos suscitam réplicas, necessidade de passar adiante o fato em discussão, os gêneros humorísticos são respondidos com riso, ou escárnio, gêneros líricos, muitas vezes têm como resposta o silêncio. De acordo com Bakhtin:

Cedo ou tarde, o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes ou no comportamento do ouvinte. Na maioria dos casos, os gêneros da complexa comunicação cultural foram concebidos precisamente para essa compreensão ativamente responsiva de efeito retardado. Tudo o que aqui dissemos refere-se igualmente às respectivas mudanças e adendos ao discurso escrito e ao lido (BAKHTIN, 2006, p. 25).

O Currículo Oficial do Estado (2008) apresentado como sendo articulado sobre os princípios do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) tem como eixo de trabalho algumas competências, tais quais: a escola que também aprende e o currículo como espaço de cultura, priorizando a competência da leitura e da escrita, também centrada na constituição da linguagem uma vez como parte integrante da vida das pessoas e intimamente ligada ao exercício da cidadania e ao desenvolvimento da consciência do mundo, intenta propiciar aos sujeitos a autonomia na aprendizagem e a contínua transformação, inclusive das relações pessoais e sociais. (SÃO PAULO, 2012, p.17)

Neste documento, o contato com o texto é desenvolvido por meio da aproximação com diferentes esferas de produção de textos (artística, literária, jornalística, publicitária, institucional, pública, ocupacional, divulgação científica e etc.). Com diversas situações de leitura em que o ato de ler aparece no cotidiano, ou seja, ler em situação pessoal, de trabalho ou de educação formal.

Sob o ponto de vista do desenvolvimento por meio da aprendizagem e não dos conteúdos, o documento como já foi citado, adota como competências para aprender aquelas que foram formuladas no referencial teórico do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM, 1998), assim explicitadas:

Dominar a norma-padrão da Língua Portuguesa e fazer uso das linguagens matemática, artística e científica; construir e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento para a compreensão de fenômenos naturais, de processos histórico-geográficos, da produção tecnológica e das manifestações artísticas; selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e informações representados de diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar situações-problema. Relacionar informações, representadas em diferentes formas, e conhecimentos disponíveis em situações concretas, para construir argumentação consistente. Recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para elaborar propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade sociocultural. (SÃO PAULO, 2012, p.21)

Todas estas competências são explanadas no documento e nos materiais utilizados em sala (caderno do professor) em habilidades específicas para cada disciplina e cada conteúdo, no caso dos gêneros textuais, o trabalho em sala de aula deve orientar-se em desenvolver habilidades relacionadas a cada gênero lido ou produzido. Já o ato de ler é concebido também nesta perspectiva, de maneira geral, como interpretação (atribuir sentido ou significado), compreensão de fenômenos, antecipação de ações para intervir e argumentar e resolver os problemas decorrentes dele, e ainda como aquela que sintetiza a capacidade de escuta, suposição de informações, bem como tomar decisões em uma escala de valores.

Sobre a metodologia de ensino-aprendizagem dos conteúdos básicos para língua portuguesa no ensino fundamental, embasado no estudo de agrupamentos tipológicos, gêneros e discurso, há o desenvolvimento de dois aspectos: estudo de conteúdo baseado em sequências didáticas e aspectos linguísticos que possam desenvolver (segundo o material), habilidades centradas em quatro grandes competências (escritora, de leitura, orais e linguísticas).

É bastante presente nestes documentos também, o uso de termos ou conceitos que teoricamente se aproximam dos estudos do círculo bakhtiniano, em destaque os conceitos de gênero e enunciado. O primeiro (conceito de gênero) aparece neste material como sendo o de um evento linguístico social que organiza os textos a partir de características sociossemióticas: conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição estrutural (SÃO PAULO, 2012, p.34) estando mais próxima a textualidade, ou seja, apresentado como gênero textual, este conceito difere-se um pouco do sentido de gênero para os estudos bakhtinianos, muito mais ligado à ideia de enunciado.

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses elementos - o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional - estão indissoluvelmente ligados no conjunto do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um campo de comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais determinamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2016, p.12)

Diante desse contexto, o trabalho com os gêneros textuais em sala de aula, pode indicar uma perspectiva de ensino de textos, ainda muito ligada à linguística estruturalista. Dessa forma, é necessário compreender como se dá a aproximação entre leitores em formação e gêneros textuais, e se apesar disso, há espaço para provocar ou desencadear situações comunicativas que suscitem enunciados através das práticas de leitura vigentes e cotidianas, e de que maneira a língua passa a integrar a vida através de enunciados concretos (que a realizam); e como igualmente através destes enunciados a vida pode entrar na língua (BAKHTIN, 2006, p.16-17), o que converge à perspectiva de dialogismo, em que poderá haver circulação de vozes e de discursos. Ressaltando que o conceito de diálogo não é tão somente o da troca verbal face a face.

Com relação às práticas de leitura propostas por esse material, tomamos como exemplo duas orientações gerais de um mesmo ano, para observar quais as orientações acerca dos procedimentos em classe para este trabalho. A descrição dos conteúdos de leitura, oralidade e escrita em língua portuguesa para 5ª série/ 6º ano, no 1º bimestre está assim descrita:

Conteúdo de leitura, escrita e oralidade.

Leitura, produção e escuta de textos narrativos em diferentes situações de comunicação

• Interpretação de texto literário e não literário

• Fruição

• Situacionalidade

• Coerência

• Coesão

• A importância do enunciado

• Produção de síntese

• Produção de ilustração

Roda de leitura oral

Roda de conversa (SÃO PAULO, 2012, p.46)

Pode-se observar que no 1º caso, há um lugar específico para o aspecto oral da leitura no item Roda de leitura oral, que pode ser compreendido como a leitura coletiva ou colaborativa em voz alta, ou somente pela leitura em voz alta, pelo professor, uma vez que na sequência também aparece o item Roda de Conversa.

E no 3º bimestre, quando há a proposta de realização de projeto artístico:

Conteúdo de leitura, escrita e oralidade.

Leitura, escrita e escuta intertextual e interdiscursiva de tipologias e gêneros narrativos articulados por projeto artístico

• Interpretação de textos literário e não literário

• Inferência

• Fruição

• Situacionalidade

• Leitura dramática

• Leitura em voz alta

• Coerência

• Coesão

• Informatividade

• Leitura oral: ritmo, entonação, respiração, qualidade da voz, elocução e pausa

• Etapas de elaboração e revisão da escrita

• Paragrafação. (SÃO PAULO, 2012, p.50)

No 3º bimestre, isto se acentua, pois há ênfase na oralidade com os itens: leitura dramática, leitura em voz alta e leitura oral: ritmo, entonação, respiração, qualidade da voz, elocução e pausa). Percebe-se de maneira geral, que não há uma explicitação para a prática de leitura silenciosa (autônoma) neste documento, ficando esta prática subjacente ou implícita no item: interpretação de textos literários e não literários ou inferência, aparentemente divergente do que se orienta nos PCNs em que esta prática de leitura aparece especificada.

Considerações finais

Ler é tomar conhecimento do texto gráfico e a compreensão do texto pelo leitor não pode ser encarada como um processo tranquilo. A mudança do estado de escuta de textos para o de leitura e produção de textos é perpassada por condicionamentos que tornam este processo de apropriação conturbado. A escola, embora não possa ser a única responsável pela cultura do escrito, já que a ausência de contato com os recursos gráficos vem das práticas de leitura no contexto família e social desde os primeiros anos de vida, é talvez ainda um dos únicos espaços de leitura para muitos estudantes.

Buscar autonomia de leitura supõe, portanto, um processo de interação dialógico, o que exige também um exercício de mediação para a atitude leitora, ou seja, o estudante precisaria tanto se familiarizar com a imagem do adulto que lê silenciosamente, como haveria necessidade de um espaço, em sala de aula, para a autonomia, com mais liberdade de expressão e de ação de leitura, sem que necessariamente a voz do professor fosse a primeira a se interpor entre os dois, ou seja, nos anos finais do ensino fundamental, o ato de ler individualmente, com os olhos, e em silêncio, exige um contato mais direto do leitor com o texto.

As dificuldades do trabalho com a formação de leitores em ambiente escolar, por meio das práticas de leitura cotidianas, especificamente ligadas ao ensino de língua portuguesa, refletem os impasses entre os estudos acerca do ato de ler e da leitura, e a apropriação destes pelos profissionais da educação, advindas muitas vezes de uma falta de formação nos cursos de licenciatura, bem como, pela não compreensão, tensões, ou imposições resultantes da disseminação ou circulação dos documentos oficiais para o ensino de língua e de leitura.

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Recebido: 09 de Julho de 2017; Aceito: 22 de Maio de 2018

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