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Revista Eletrônica de Educação

versão On-line ISSN 1982-7199

Rev. Elet. Educ. vol.13 no.2 São Carlos maio/ago 2019  Epub 01-Jan-2020

https://doi.org/10.14244/198271993350 

Dossiê Educação, Cultura e Subjetividade

A formação da subjetividade na Idade Mídia

The formation of subjectivity in the Media Age

Antônio A. S. Zuin I  

Luiz Roberto Gomes II  

IProfessor Titular do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos. E-mail: dazu@ufscar.br - Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos-SP, Brasil

IIProfessor Associado do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos. E-mail: luizroberto.gomes@gmail.com - Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos-SP, Brasil


Resumo

Na atual sociedade do espetáculo, as telas estão presentes em todas as esferas dos espaços público e privado, de tal maneira que se torna possível caracterizar a sociedade hodierna como a da Idade Mídia. Esta onipresença das telas em todas as relações sociais determina transformações inéditas tanto na dimensão objetiva, quanto na subjetiva. Não por acaso, já é possível identificar sinais de comportamento de vício em relação aos estímulos audiovisuais continuamente produzidos e consumidos por meio dos gadgets eletrônicos, com destaque para a presença ubíqua dos aparelhos celulares. Seguindo esta linha de raciocínio torna-se cada vez mais comum o recrudescimento da ansiedade, caso alguém se separe de seu celular, por exemplo. Diante de tal contexto, os autores deste artigo têm, como principal objetivo, refletir criticamente sobre as metamorfoses na dimensão subjetiva presentes na chamada Idade Mídia. Para tanto, serão apresentadas considerações sobre as transformações no conceito de indústria cultural na era da revolução microeletrônica, bem como a análise das modificações na subjetividade decorrentes da reconfiguração das esferas pública e privada em tempos de hegemonia das tecnologias digitais.

Palavras-chave: Subjetividade; Idade Mídia; Indústria Cultural; Revolução Microeletrônica.

Abstract

In today’s society of the spectacle, the screens are present in all spheres of public and private spaces, in such a way that it becomes possible to characterize the current society as the Media Age. This omnipresence of screens in all social relations determines unprecedented transformations in both the objective and the subjective dimensions. It is no coincidence that it is possible to identify signs of addictive behaviour in relation to audio-visual stimuli continuously produced and consumed through electronic gadgets, with emphasis on the ubiquitous presence of mobile devices. Following this line of reasoning, it becomes increasingly common to intensify anxiety, if someone separates from their cell phone for example. Given this context, the main objective of this article is to reflect critically on the metamorphoses in the subjective dimension present in the so-called Media Age. In order to do so, we will present considerations about the transformations related to the concept of cultural industry in the era of the microelectronic revolution, as well as the analysis of the changes in subjectivity resulting from the reconfiguration of the public and private spheres in times of hegemony of digital technologies.

Keywords: Subjectivity; Media Age; Cultural Industry; Microelectronic Revolution

Introdução

Na sociedade atual, as telas estão presentes em todas as esferas dos espaços público e privado, de tal maneira que se torna possível caracterizá-la como a sociedade da Idade Mídia. Esta onipresença das telas em todas as relações sociais determina transformações inéditas, tanto na dimensão objetiva, quanto na subjetiva. Em relação à dimensão objetiva, torna-se cada vez mais notório o fato de que praticamente todos os sistemas produtivos necessitam estar continuamente vinculados entre si, por meio das conexões mediadas pelas telas dos computadores de todos os tipos de formatos.

Com efeito, a velocidade das trocas de informações online determina, na maior parte das ocasiões, se transações comerciais serão ou não concretizadas. Diante deste contexto, a indissociabilidade, anunciada entre as atividades de trabalho e as do denominado tempo livre nas últimas décadas do século XX, se consolida de forma inequívoca no capitalismo transnacional das primeiras décadas do século XXI.

Quando este amálgama social entre trabalho e tempo livre se transforma em propaganda, isto caracteriza o modo como tal prática se transforma em algo “naturalizado”, tal como no caso da propaganda de banco cujos clientes podem conversar, por meio de seus smartphones, com seus gerentes a qualquer horário do dia ou da noite, pois eles sempre estarão disponíveis para qualquer tipo de atendimento. Contudo, tal natureza se revela uma mediação historicamente engendrada justamente pela consubstanciação cada vez mais presente entre trabalho e tempo livre na sociedade capitalista hodierna.

Já as pessoas que, por meio do trabalho realizado em suas residências em seus computadores pessoais, prestam serviços terceirizados e caracterizados como on demand, são apartadas do usufruto de quaisquer direitos trabalhistas, tornando-se acessíveis, ou seja, dispostas ao atendimento em quaisquer dias e horários da semana. Na verdade, atualmente tais pessoas nem mais precisam estar em casa para que possam ser acessadas e atender as demandas de qualquer tipo de empresa. Pois basta ter em mãos seus computadores de bolso, ou seja, seus aparelhos celulares, para que se conectem com seus empregadores e realizem as atividades de seus respectivos trabalhos. Não importa se elas estão presentes em momentos de confraternização com suas respectivas famílias, ou mesmo se estão em algum tipo de atividade de lazer: elas precisam atender imediatamente as solicitações de seus patrões se quiserem sobreviver. De fato, a revolução proporcionada pela disseminação dos aparelhos celulares e suas telas onipresentes já demonstra sinas evidentes de transformações radicais nas relações de trabalho, bem como na própria esfera da subjetividade.

Não por acaso, já é possível identificar sinais de comportamento de vício em relação aos estímulos audiovisuais continuamente produzidos e consumidos por meio dos gadgets eletrônicos, com destaque para a presença ubíqua dos aparelhos celulares. Com efeito, o uso de tais aparelhos parece confirmar literalmente as palavras de Marshall Mcluhan (1969) sobre os meios de comunicação serem identificados como extensões do ser humano. Pois se alguém por acaso esquece seu celular em algum lugar e depois nota sua ausência é como se tivesse uma perna ou braço apartado de si.

Seguindo esta linha de raciocínio torna-se cada vez mais comum o recrudescimento da ansiedade, caso alguém se separe de seu celular, por exemplo. Diante de tal contexto, os autores deste artigo têm, como principal objetivo, refletir criticamente sobre as metamorfoses na dimensão subjetiva presentes na chamada Idade Mídia. Para tanto, serão apresentadas considerações sobre as transformações no conceito de indústria cultural na era da revolução microeletrônica, bem como a análise das modificações na subjetividade decorrentes da reconfiguração das esferas pública e privada em tempos de hegemonia das tecnologias digitais.

O determinismo digital na reconfiguração da esfera público-privada

Quando Jürgen Habermas defendeu sua tese de livre docência na Universidade de Marburgem 1961 na Alemanha, mais tarde publicado na forma de livro sob o título Strukturwandel der Öffentlichkeit - 1962 (Mudança Estrutural da Esfera Pública - 1984), muitas questões importantes já haviam sido apresentadas, por ocasião das mudanças econômicas, políticas e sociais ocorridas na Europa, mais acentuadamente a partir do século XVII, em virtude da configuração de uma nova esfera pública, de feição burguesa.

Cabe salientar que para Habermas, o tema da esfera pública sempre ocupou um lugar de destaque em suas reflexões teóricas, especialmente no campo da filosofia política, em que a formação da vontade democrática, quando fomentada pela via racional e crítica, assume um papel decisivo no processo de legitimação do poder político. A argumentação principal de Habermas (1984), sobre mudança estrutural da esfera pública burguesa, enfatiza a perda de força do aspecto racional-crítico que predominava nas discussões “públicas”, dos salões e dos cafés, a partir do deslocamento de tais discussões para os jornais, que embora tenham exercido um importante papel de publicização das ideias, estes não foram capazes de escapar do caráter propagandístico e ideológico adotado pela imprensa de massa, no sentido da Indústria Cultural (HORKHEIMER; ADORNO, 1985) e da Técnica e Ciência como Ideologia (HABERMAS, 1968). Esse aspecto da ideologização das informações, de produção de falsas consciências foi e continua sendo combatido pela tradição da Teoria Crítica da Sociedade1.

Poderíamos dizer, inclusive no contexto dos propósitos desse artigo, dedicado à reflexão sobre os aspectos que impactam a formação da subjetividade na idade mídia, que os conceitos de razão pública e razão privada que subsidiam o texto clássico de Kant (1985) “Resposta à Pergunta: O que é o Esclarecimento?” de 1783, são centrais na reflexão sobre o conceito de esfera pública formulado por Habermas. O autor esclarece que, nos debates ocorridos na Europa, no final do século XVII e XVIII, em lugares estratégicos da cidade, como os cafés, salões e clubes, ainda que formado por um público privado, a aptidão crítica para a discussão/argumentação racional prevalecia, com as questões de caráter público no centro do debate. Diria Kant (1985), essas pessoas estariam fazendo uso público de sua razão, independentemente de sua origem ou filiação.

Segundo os estudos mais recentes de Habermas, ainda hoje a esfera pública continua sendo o espaço público propício ao discurso racional e crítico, enquanto instância de legitimação do poder político. Entretanto, vários acontecimentos na sociedade civil, contrapostos ao mercado e ao estado, fizeram com que a ação política assumisse um novo sentido (HABERMAS 2003a, 2003b e 2005). Assim, a esfera pública passa a ser fundamentada por uma compreensão de ação política que pressupõe a distinção necessária entre os domínios administrativo e comunicativo que envolvem o sistema político como um todo, de modo que o poder administrativo só pode funcionar de maneira legítima se for alimentado constantemente pelos fluxos comunicativos contidos na esfera pública, nas associações e na esfera privada. Sabemos, no entanto, que a abertura do sistema político ao mundo da vida não ocorre de forma espontânea, devido às formas dominantes de resistência dos interesses institucionais corporativos, que acabam distorcendo todo o processo político.

No âmbito da exigência de legitimidade comunicativa das ações políticas administrativas, Habermas desenvolve, um pouco mais, na obra Direito e Democracia de 1992, os conceitos de esfera pública e sociedade civil, com o propósito de refletir sobre as formas de circulação de poder no âmbito da sociedade e, ainda, sobre os obstáculos que os fluxos comunicativos precisam enfrentar para transformar o poder comunicativo em poder administrativo.

A esfera pública, que não pode ser concebida como uma instituição, nem como sistema ou organização, pois não há uma estrutura normativa de atuação; é o espaço da opinião pública que funciona como “uma rede para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões, e nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em termos comunicacionais” (HABERMAS, 2003b, p. 92). Trata-se de um ambiente comunicativo orientado pelo entendimento, e que reproduz o mundo da vida na forma de uma grande “caixa de ressonância” das vontades e opiniões da sociedade civil.

A sociedade civil, por sua vez, é constituída pela trama não-estatal e não-econômica, ancorada nas estruturas de comunicação da esfera pública e nos componentes sociais do mundo da vida. Refere-se às associações, organizações e movimentos sociais, e com capacidade de influência sobre a esfera pública política (HABERMAS, 2003b, p. 99).

O que nos chama atenção é a ideia de rede que ganha um sentido próprio na forma como Habermas entenderia o conceito de esfera pública hoje. E nesse sentido em particular nós poderíamos refletir sobre duas questões que necessitam ser pensadas no contexto da Idade Mídia: 1) Qual a configuração de “rede” presente na Idade Mídia?; 2) Que tipo de legitimação política pode ser estabelecida a partir da forma de «imposição» da Idade Mídia?

Seguindo a argumentação de Habermas, para a primeira questão, seria interessante discernir que tipo de domínio (administrativo ou comunicativo) prevalece na estruturação das “redes digitais”. O dinheiro e o poder, como expressão da racionalidade estratégica, continuam sendo hegemônicos, e ainda exercem forte influência na vida das pessoas? Se a resposta for afirmativa, poderíamos dizer que as mídias digitais, são formas mais rápidas de circulação de ideologias que conformam o modo de vida das pessoas na lógica de uma eficiência antes impensada. Se a resposta for negativa, que tipos de resistência comunicativa, de novas formas de organização social nós poderíamos observar hoje?

No que concerne à segunda questão, os processos de formação da opinião pública, no contexto da Idade Mídia, parecem ter um alcance cada vez mais rápido e eficaz, principalmente pela sofisticação dos mecanismos de publicização das informações veiculadas pela internet. Agora, qual a legitimação política de tais informações? Elas representam os interesses de quem? Habermas, ao revitalizar o conceito de esfera pública, no contexto da sociedade atual, o coloca como critério de legitimação das sociedades democráticas, que só tem valor efetivo pela força da opinião pública gerada nos espaços comunicativos e não burocratizados do mundo da vida. O que isso tudo significa, em termos de formação das subjetividades na Idade Mídia?

A questão que imediatamente colocamos é como definir essa fronteira entre o público e o privado hoje, com o determinismo das mídias digitais, que invadem o mundo da vida individual e coletivo? Qual seria a especificidade da esfera pública midiática? Qual o espaço de preservação da razão pública, tanto em termos subjetivos e sociais? Em termos formativos, como a escola e os espaços não escolares têm enfrentado essas mudanças?

Tais questões necessitam de uma reflexão ampla e contextualizada no nosso tempo, acompanhada das mudanças que decorrem no contexto do que estamos definindo como “Idade Mídia”, uma espécie de nova ontologia social, com forte impacto em nossas vidas. A esse respeito, em artigo recente, Martins (2010) sugere uma nova mudança estrutural, com a denominada “esfera pública midiática”:

Estamos presenciando uma nova mudança estrutural, com o avanço acelerado das tecnologias de informação, o uso crescente da internet, dos celulares e todos os outros meios atuais de comunicação e de informação, conectados entre si e prontos para absorver dados da cultura impressa acumulada (MARTINS, 2010, p. 138).

O alcance e efeito do mundo virtual e das redes sociais nos parecem avassaladores, não nos dá o direito de escolha de participar ou não dessa rede mundial virtual/real. Se por um lado, o acesso nos permite encontrar e alcançar lugares, pessoas e documentos inimagináveis há pouquíssimo tempo, por outro, somos invadidos diariamente, por pessoas, empresas, e setores da sociedade, que não temos sequer ideia de quem quer que seja. Só por esse aspecto, já fica difícil estabelecer uma fronteira clara entre o público e o privado. Como diria Horkheimer e Adorno (1985) na obra “Dialética do Esclarecimento”, é como se o público e o privado se amalgamassem e se tornassem uma coisa só. Um problema: tanto para a definição da esfera pública, como da esfera privada.

Com o advento da internet, novas formas de interação foram estabelecidas entre as pessoas e as organizações. Com as mídias digitais, o alcance globalizado das pessoas em qualquer parte do mundo é instantâneo. Vejam, esse recurso tecnológico fantástico, pode ser utilizado para o “bem” ou para o “mal”2. Como Adorno, no contexto da Indústria Cultural, observaria hoje, por exemplo, o alcance instantâneo e global dessas mídias? O que já podemos atestar é a quantidade absurda de mídias digitais que chegam todos os dias em nossas caixas de E-mails, contas de WhatsApp, e Facebook. Apesar de já haverem “esforços” em legislações que estabeleçam um marco regulatório de utilização da internet, ainda não há controle suficiente para aquilo que nos chega, como propaganda, como um simples bom dia, como uma linda canção, uma poesia, uma piada, um alerta ou uma Fake News, com força, inclusive, de decidir uma eleição.

O grande problema nos parece ser o impacto dessas questões na formação cultural, no cerceamento das possibilidades de uso da razão pública, ou no enfraquecimento da autonomia dos sujeitos e do sentido pleno da esfera pública, na forma como definiram Dardot e Laval (2017) em um dos seus livros mais recentes “Comum: Ensaio sobre a revolução no século XXI”. É exatamente no aspecto do controle e das possibilidades de formação da subjetividade autônoma, no contexto específico da Idade Mídia, que gostaríamos de discutir algumas questões emergentes para a área da educação. Para tanto, será necessário analisar as características da indústria cultural e as transformações da subjetividade na Idade Mídia.

A indústria cultural e as metamorfoses da subjetividade na Idade Mídia

Certamente, o grande momento de exposição do conceito: indústria cultural foi feito por Adorno e Horkheimer no capítulo: “A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas”, presente no livro: “Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos”. De lá para cá, este conceito se tornou tão conhecido e empregado por pesquisadores das mais variadas áreas de conhecimento, que talvez rivalize em popularidade com o conceito freudiano: Complexo de Édipo. Ironicamente, o próprio conceito se tornou, em certas ocasiões, engolfado pela lógica de padronização e massificação da indústria cultural, de tal modo que sua banalização arrefeceu o seu potencial crítico. E justamente tal potencial de crítica à ideologia de produção e massificação de seus produtos foi o que lhe conferiu legitimidade e originalidade inauditas. É por isso que se torna necessário relembrar a forma como os pensadores frankfurtianos elaboraram as características do engendramento, produção, disseminação e consumo dos chamados “produtos culturais” através da análise de um de seus principais produtos: o filme hollywoodiano. Anos após a elaboração do conceito: indústria cultural, Adorno retomou sua análise da seguinte forma:

Enquanto o processo de produção no setor central da indústria cultural - o filme - se aproxima de procedimentos técnicos através da avançada divisão do trabalho, da introdução de máquinas, e da separação dos trabalhadores dois meios de produção (...) conservam-se também formas de produção individual. Cada produto se apresenta como individual; a individualidade mesma contribui para o fortalecimento da ideologia, na medida em que se desperta a ilusão de que o que é coisificado e mediatizado é um refúgio de imediatismo e de vida (ADORNO, 1994a, p.94).

Em outras palavras: se na concepção de cada produto da indústria cultural, no caso aqui o filme hollywoodiano de 1940, já se projeta o modo como poderá se transformar num produto de consumo de massa, não menos importante é a maneira como tal massificação será, por assim dizer, dissimulada por meio da propaganda de que o filme de faroeste, por exemplo, atende totalmente as necessidades idiossincráticas de determinados consumidores. Assim, torna-se extremamente relevante a propagação da ilusão de que tais produtos são absolutamente diferenciados entre si, de tal forma que a frase: “Eu não gosto de filmes de faroeste, mas sim filmes de ficção científica” ilustra o triunfo da ideologia da personalização. Pois uma análise apenas um pouco mais atenta de ambos desvela o fato de que, apesar dos detalhes que os diferenciam - tais como carruagens e naves espaciais, os quais são inflacionados justamente para reforçar as aparentes diferenças - se igualam em relação às indefectíveis estruturas de conteúdo. Invariavelmente, tanto no filme de faroeste, quanto no de ficção científica, os good guys e os bad guys serão imediatamente identificados, sendo que os primeiros sofrerão todos os tipos de infortúnios que, evidentemente serão compensados por meio da punição dos últimos e, portanto, com o indefectível happy end.

Porém, tal padronização de comportamentos e ideias não pode ser tão visível ou, ao menos, necessita se transformar numa cifra que fomente não apenas a ilusão, como também o prazer derivado da sensação de que o atendimento aos desejos individuais prevalecerá sobre qualquer possível constatação de que as narrativas dos filmes de faroeste e de ficção científica não diferem entre si.

Seguindo esta linha de raciocínio, talvez o subtítulo do capítulo da indústria cultural seria ainda mais significativo caso a palavra engodo fosse substituída pelo termo: autoengodo, o que reforçaria ainda mais o raciocínio de Adorno de que os consumidores dos produtos da indústria cultural precisam contribuir efusivamente para a perpetuação da ideologia que os escraviza (ADORNO, 1994b). No seu íntimo, eles sabem que não há diferenças significativas entre estes filmes, por exemplo. Mas precisam se aferrar a uma, por assim dizer, aparência de diversidade, pois assim podem continuar a manter a ilusão de que possuem verdadeiramente um poder de escolha que legitima o seu fictício livre-arbítrio. Sendo assim, eles se esforçam compulsivamente para fazer com que seu autoengodo não seja reconhecido como tal cada vez que consomem algum produto da indústria cultural que promete, enfim, a realização plena da felicidade. Não é preciso esperar e se esforçar em algo para que quaisquer desejos possam ser realizados, pois a promessa de felicidade, que é imanente a toda obra de arte, é substituída pela indústria cultural que oferta às pessoas a realização imediata de quaisquer desejos, desde que seus produtos sejam continuamente consumidos.

Torna-se, portanto, imperativo fazer com que este consumo não cesse de acontecer, mesmo que a felicidade seja ilusoriamente usufruída. É neste contexto da indústria cultural que Adorno e Horkheimer definem o significado da palavra: personalidade:

As mais íntimas reações das pessoas estão tão completamente reificadas para elas próprias que a ideia de algo peculiar a elas só perdura na mais extrema abstração: personality significa para elas pouco mais do que possuir dentes deslumbrantemente brancos e estar livres do suor das axilas e das emoções. Eis o triunfo da publicidade na indústria cultural, a mimese compulsiva dos consumidores, pela qual se identificam às mercadorias culturais que eles, ao mesmo tempo, decifram muito bem (ADORNO; HORKHEIMER, 1986, p.156).

Adorno e Horkheimer escreveram estas linhas décadas antes do chamado clareamento dos dentes, cuja brancura reluzente de hoje confirma o quão opaca se tornou a personalidade finalmente reduzida à mera aparência. Identificar o momento mais adequado para a realização do desejo, de modo a refletir sobre as possíveis consequências dos próprios comportamentos em relação às outras pessoas; associar o passado com o presente, de tal maneira que diferentes alternativas de futuros poderiam ser projetadas; relacionar as informações entre si, de forma a fazer com que desta relação frutifiquem conceitos, são todas elas capacidades afeitas ao que os estudiosos do comportamento humano identificaram como elementos crucias da chamada personalidade. Exatamente a força destas capacidades é arrefecida, na medida em que o esforço humano empregado para que elas se desenvolvam é retirado de cena. Assim, abre-se o caminho para que a personalidade seja permutada pela imagem publicitada de alguém identificado como interventor por “possuir dentes deslumbrantemente brancos e estar livres do suor das axilas e das emoções” (ADORNO; HORKHEIMER, 1986, p.156)

Com efeito, há uma frase paradigmática, cunhada por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer no capítulo sobre a indústria cultural que, com o passar do tempo, se revelou tanto profética, quanto atual: “Quanto maior é a certeza de que se poderia viver sem toda esta indústria cultural, maior é a saturação e apatia que ela não pode deixar de produzir em seus consumidores (...). A publicidade é seu elixir da vida” (ADORNO; HORKHEIMER, 1986, p.156). Na atual sociedade da Idade Mídia, na qual ser significa ser midiática e eletronicamente percebido (TÜRCKE, 2010), cada vez mais a publicidade se metamorfoseia no elixir da vida e, portanto, da própria aparência de personalidade. Esta nova ontologia se fundamenta na necessidade de que as imagens e comentários sejam continuamente publicados, principalmente por meio das redes sociais, pois, caso contrário, há o risco de alguém se transformar numa não-existência viva na sociedade da revolução microeletrônica: “A tela, o grande recheio do tempo livre, penetrou profundamente, por meio do computador, no mundo do trabalho; a coordenação de processos inteiros de produção e administração perpassa por ela, de tal modo que se apresenta como o instrumento do ensino do futuro” (TÜRCKE, 2010, p.267).

Estas considerações de Christoph Türcke sobre a universalização das telas, em relação ao denominado tempo livre e ao mundo do trabalho, datam de 2002, ano de publicação do livro: “Sociedade excitada: filosofia da sensação” na Alemanha, sob o título: “Erregte Gesellshaft: Philosophie der Sensation” (TÜRCKE, 2002). É interessante enfatizar o fato de que Türcke elaborou tais considerações sobre onipresença das telas no momento em que os computadores de mesa e notebooks se espraiavam em todos os espaços das atividades do tempo livre e do trabalho. Mas há diferenças significativas em relação ao tempo no qual ocorre uma espécie de revolução no interior da própria revolução microeletrônica: o surgimento dos aparelhos celulares com tela touch e, principalmente, conexão wi-fi.

Por meio da propagação dos celulares, que se transformam em verdadeiros computadores de bolso, há um tipo inaudito de ruptura espaço-temporal, de modo que a compulsão de se emitir midiática e eletrônicamente se conserva transformada na chamada compulsão de conexão. Sendo assim, o prazer narcísico de se emitir midiática e eletronicamente, que já podia ser observado no tempo da disseminação dos computadores de mesa e dos notebooks, se conserva transformado na conexão contínua possibilitada pelo uso 24/7 (24 horas, sete dias da semana) que as pessoas fazem de seus celulares.

Em virtude da portabilidade e das mais variadas funções de tais computadores de bolso, não há mais limites em relação a tempos e espaços para a utilização de tais aparelhos. E mesmo que outrora a portabilidade do notebook proporcionasse mais acesso em relação aos computadores de mesa, não há como compará-la com a ofertada pelo uso dos celulares. Justamente esta revolução dos celulares está engendrando transformações radicais na formação da subjetividade na era da denominada Idade Mídia.

As rupturas entre as fronteiras das esferas pública e privada, engendradas pelo uso praticamente initerrupto dos aparalhos celulares, fazem com que se torne praticamente insuportável deixar de se conectar, nem que seja apenas por alguns instantes. Quando crianças e adolescentes são, por quaisquer motivos, separadas de seus celulares ou tablets geralmente esperneiam com todas as suas forças, fato este que denota sinais de síndrome de abstinência, como se fosse impossível se apartar do consumo contínuo das drogas audiovisuais; como se fosse cada vez mais intolerável ter que estar desconectado e, portanto, sozinho consigo mesmo.

Evidentemente, já há também sinais visíveis das metamorfoses da subjetividade, quando se trata das relações estabelecidas entre professores e alunos dentro e fora das escolas. Tornam-se cada vez mais comuns os contatos entre tais agentes educacionais, por meio do uso do WhatsApp e do Facebook (MAZER; MURPHY; SIMONDS, 2007; HEW, 2011), por exemplo, de tal modo que se comunicam continuamete, mesmo que tal comunicação seja feita aos finais de semana e em quaisquer horários do dia e da noite. Diante deste quadro há que se refletir sobre as inevitáveis mudanças que já se avizinham entre professores e alunos. Por exemplo, há que se pensar sobre os significados das práticas de avaliação dos professores sobre seus alunos, em tempos da Idade Mídia que possibilitam tal contato initerrupto entre ambos. Desta forma, caberiam as seguintes questões: 1) De que modo os professores poderiam avaliar os alunos que seriam seus “amigos” no Facebook?; 2) De que forma a própria autoridade do professor seria, por assim dizer, reconfigurada em tempos nos quais os alunos têm acesso ininterrupto sobre quaisquer informações que desejarem por meio do uso de seus computadores de bolso? Certamente, há benefícios notórios decorrentes da possibilidade de acesso a tais informações, as quais poderiam ser transformadas em conceitos através de novos contratos pedagógicos estabelecidos entre os corpos docente e discente. Mas este fato não dirime a necessidade de se refletir sobre as questões acima expostas, uma vez que as transformações da esfera da subjetividade são cada vez mais determinadas pela forma como as esferas pública e privada se consubstaciam nos tempos da denominadas Idade Mídia.

Conclusão

A idade mídia tem gerado uma série de mudanças no mundo da vida individual e coletiva, decorrentes, entre diversos fatores, do processo consubstanciação da esfera privada e pública, que se fundem em uma nova ontologia social, com capacidade de produção de um conjunto de desafios para a condição humana. Como tivemos oportunidade de demonstrar, são questões que impactam a formação da subjetividade e que precisam ser refletidas criticamente pela área de educação.

Para além dos vícios, da exposição incontrolada das imagens, dos altos níveis de ansiedade, do distanciamento virtual/real entre as pessoas que foram supostamente aproximadas pelas mídias digitais, da invasão de privacidade e outras patologias sociais recorrentes; existem aspectos “positivos” que poderiam ser trabalhados pela escola, no sentido de potencializar a discussão em torno da formação de uma consciência verdadeiramente crítica dos sujeitos, no sentido de Adorno (1995).

Uma esfera pública, em sentido pleno, não pode ser constituída em espaços em que imperam a coerção (HABERMAS, 1981) ou o controle midiático da indústria cultural (HORKHEIMER; ADORNO, 1985). Nesse aspecto, é sempre pertinente retomar a afirmação de Hannah Arendt (2017, p. 65) “O domínio público, enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia uns dos outros e, contudo, evita que caiamos uns sobre os outros, por assim dizer”. A impressão que temos, após as análises que tivemos oportunidade de desenvolver aqui nesse artigo, ainda não conclusivas, é que com o determinismo do mundo digital, estaria ocorrendo uma espécie de colonização digital da esfera pública, com um sério risco de implementação de sistemas autônomos incapazes de se comunicar, no sentido de Luhmann (1994), pois Adorno, já nos anos 1945, já havia previsto determinada situação, conforme descrito no aforismo 76 da mínima morália: “Os procedimentos mecânicos de reprodução desenvoveram-se independentemente do que deve ser reproduzido e adquiriram autonomia” (ADORNO, 1993, p. 103). Tudo isso significa, que diante das diversas formas de tutelas sistêmico-digitais, será que ainda teremos condições de fazer uso da razão pública, na forma como pensara Kant?

É tarefa da educação, potencializar as pesquisas e discussões sobre essa temática, no sentido de refletir sobre os impactos dessas mudanças na formação da subjetividade. Não se trata de uma visão pessimista, mas vigilante e crítica dos efeitos que tais transformações podem gerar no que existe de mais essencial na educação, a saber: a condição humana.

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1Sobre o conceito de teoria crítica e a especificidade da Escola de Frankfurt Cf. Horkheimer (1987) e Nobre (2004).

2Cf. As reflexões atuais sobre esse tema, desenvolvidas por pesquisadores brasileiros e estrangeiros, no livro CABOT, Mateu; LASTÓRIA, L. A. C. N.; ZUIN Antônio, A. S. (Coords.). Tecnologia, violência, memória: diagnósticos críticos de la cultura contemporánea. Barcelona: Anthropos; México: Universidad Autónoma Metropolitana - Iztapalana, 2018. 270p.

Recebido: 17 de Março de 2019; Aceito: 30 de Abril de 2019

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