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Revista Eletrônica de Educação

versão On-line ISSN 1982-7199

Rev. Elet. Educ. vol.13 no.2 São Carlos maio/ago 2019  Epub 01-Jan-2020

https://doi.org/10.14244/198271993352 

Dossiê Educação, Cultura e Subjetividade

Vagando na noite: encontros entre filosofia, educaзгo e mъsica, ao “som” de Derrida e Debussy

Roaming in the night: meetings between philosophy, education and music, to the “sound” of Derrida and Debussy

Andréia Marin I  

Marcos Câmara de Castro II  

IPesquisadora Colaboradora do Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo e Professora Associada da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. E-mail: paisagensonoras@gmail.com - Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto-SP/Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Uberaba-MG, Brasil

IIProfessor do Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo. E-mail: mcamara@usp.br - Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto-SP, Brasil


Resumo

A presente escrita foi elaborada a partir de especulações sobre possíveis encontros entre filosofia, educação e música. Nas margens da música, onde a filosofia busca alguma penetração, o tema de uma suposta recusa à assimilação se anuncia, exigindo a retomada de questões como a permanência de uma zona de indeterminação não alcançada pelo esforço representacional. Essa opacidade incontornável do fenômeno musical desloca-o para uma dimensão noturna, destino comum a tudo que escapa aos interesses totalizantes de uma linguagem comprometida com a objetivação e nomeação das coisas e dos que, a partir dela própria, se convencionou chamar de outros. O noturno na filosofia e na música é objeto de reflexões de Derrida e de outros pensadores, a partir das quais é possível vislumbrar uma ampliação do mundo, justamente onde se evidencia o caráter meramente formal dos limites entre o que é dito e não dito, entre o que é humano ou não. O texto aqui apresentado inclui algumas dessas reflexões filosóficas, cotejadas com criações musicais que insinuam esse caráter noturno, como as de Debussy. Adicionalmente, são destacadas possíveis consequências do enfraquecimento da política representacional para processos de subjetivação e relações de alteridade, abrindo espaço para um pensamento sobre educação não comprometido com a centralidade do humano.

Palavras-chave: Noturno; Música; Filosofia; Subjetivação

Abstract

The present writing was elaborated from speculations about possible encounters between philosophy, education and music. On the margins of music, where philosophy seeks some penetration, the theme of a supposed refusal to assimilation is announced, demanding the resumption of questions such as the permanence of a zone of indetermination not reached by the representational effort. This unavoidable opacity of the musical phenomenon moves it to a nocturnal dimension, a common destiny to everything that escapes the totalizing interests of a language committed to the objectification and nomination of things and of those conventionally called other. The nocturnal in philosophy and in music is object of reflections of Derrida and other thinkers, from which it is possible to glimpse a widening of the world, just where it is evident the merely formal character of the limits between what is said and unsaid, between what is human and what’s not. The text presented here includes some of these philosophical reflections, compared to musical creations that insinuate this nocturnal character, like those of Debussy. Additionally, possible consequences of the weakening of representational politics to subjectivation processes and alterity relations are highlighted, opening space for a thought about an education not compromised with the centrality of the human.

Key-words: Nocturne; Music; Philosophy; Subjectivation

Na noite A. Marin 

Ponto de partida

O início dessa escrita se dá em meio a incertezas. Em uma atração incontida pelo “negro núcleo da noite”, não profanado por vizinhanças humanas (THOREAU, 2007, p.55). Há um risco desde o ponto de partida: o de falar sobre aquilo que solicita o silêncio; de constituir uma artesania de palavras onde elas não são postas a serviço da obstinação pelo esclarecimento, mas dão visibilidade a um encadeamento de indeterminações, ainda quando movimentadas por um esforço de significação. Não poderia ser de outra forma mediante o desafio de colocar em encontro a ousadia transgressora da sonoridade de Debussy e a voz desestruturante de Derrida.

Há um contágio prévio a essa tentativa de escrita: uma experimentação na dimensão do noturno que desestabiliza, inevitavelmente, as forças de um ser que pensa e fala e que se relaciona com o mundo no ritmo da determinação. Na opacidade da noite muitas deformações se anunciam, dando à escuta um espectro vital que faz calar e que foge ao pensamento reflexivo. Traspassa-nos antes que tenhamos chances de mirá-lo e estabilizá-lo em uma forma reconhecível e sistematizável. Assim, isso que nos cala já provocou um movimento em nós, que não guarda qualquer compromisso ou estreiteza com o comportamento teórico. Subjetivamo-nos em ambiências onde corriqueiramente não somos motivados a frequentar... E de lá, desse lugar estranho e fascinante, vemos nosso pequeno mundo esmorecer em seus limites e se ampliar. Então, reconhecemos a potência de uma experiência poética penetrante e contra a qual nenhuma resistência é possível, senão na forma de uma negação.

Ponto de partida e estrutura dessa escrita: experiências subsequentes a uma penetração da noite; um escape na linguagem reflexionante; o silenciamento na escuta da sonoridade noturna. Permito-me enfrentar o paradoxo que a própria escrita representa e tecer o texto nesse sequenciamento. Ao final, relações entre filosofia, música e educação, encaminhadas pela ideia de um possível descentramento humano.

Na noite...

Um humano segue mudo por um caminho arbitrário. Mudo e atento. Sozinho e sereno. Em uma noite escura, por onde se aventura tendo saído de sua casa silenciosa... “Saí sem ser notada, já minha casa estando sossegada” (Noite escura, JOÃO DA CRUZ, 2002, p.438). Medos, fantasmas e solidões povoam o caminho, análoga e habilidosamente descrito por Handke (2006). Ele os vê: o caminho e o humano, por vezes inquieto, mas sempre mudo, avançando com energia pela estepe, caminhando o mais possível em linha reta, tendo já alterado seu rumo e sendo-lhe impossível voltar, ainda que encontrasse barreiras intransponíveis. Também parece ouvir os rumores da noite, solidário com o humano imerso em noturnos segredos povoados por suas invisíveis criaturas.

De lá está chamando as criaturas, Que nela se saciam às Escuras Porque é de noite Aquela viva fonte que desejo Neste pão de vida já a vejo Mesmo de noite. (Cantar da alma, JOÃO DA CRUZ, 2002, p.44)

Handke toma de João da Cruz a atmosfera noturna do poema místico, para narrar a trajetória errante do caminhante no texto Numa noite escura saí da minha casa silenciosa. A noite, no poema, manifesta a condição mundana, os sacrifícios necessários à finalidade única da grande iluminação. Na noite secreta, a amante (alma) faz a experiência da obscuridade dos sentidos. Às escuras, se conduz para o encontro com o amado (Deus), reconhecendo, paradoxalmente, o caráter positivo da noite: transição necessária e pedagógica para a luz. Na narrativa de Handke, “Numa noite escura...”, por outro lado, nada se revela, finalizando-se a trajetória em silêncio e solidão. A noite parece perdurar em indeterminação e não ditos, ao modo bachelardiano: “a noite é da noite”, uma substância, uma “matéria noturna” (BACHELARD, 1997, p.105), povoadora da imaginação simbólica.

Recordamo-nos, nesse contexto, da experiência noturna de Thoreau (2007, p.73), que regressava a casa muito tarde, numa noite escura e pesada no bosque, em que seus pés sentiam o caminho que seus olhos não podiam ver. Mergulhava, assim, em uma atmosfera onírica, distraído durante todo o percurso ouvindo a noite, da qual despertava apenas por ter que erguer a mão para levantar o trinco da porta ao chegar. Nesse momento, não era capaz de recordar um passo que fosse de sua caminhada, como se o seu próprio corpo pudesse ter achado o caminho de casa.

Dessas imagens, importa destacar a positivação da noite, quando ela é encaminhamento para a iluminação - o destino místico -, mas também quando é provocadora de um espaço de silêncio e solidão, de uma atmosfera de indeterminações provocadoras e de emanações pré-humanas.

Andamos também, sem rumo, na noite, um pouco e cada vez mais só. A atmosfera noturna está toda materializada. Há uma ligeira névoa e, ainda que não houvesse, a sensação de ocultamento de algo que não pode se dar como presença nítida e assimilável, talvez se mantivesse pela simples invisibilidade que a noite sugere. Admitimos pressentir presenças estranhas, móveis, ainda que contaminadas pela opacidade noturna.

O mundo, assim, nos parece amplo demais e incerto nosso destino na sua imensidão. Refugiamo-nos na casa... Enclausuramo-nos no branco quase absoluto entre as quatro paredes. Pensamos aí me inspirar a fim de estabilizar a experiência indeterminante. Mas a noite continua... Porque não se trata de apenas uma noite... Mas de uma noite na noite...

Organizamos nosso lugar sonoro... Solicitamos Erik Satie... E a calma se anuncia, os afetos todos direcionados para a escuta do que se dá contidamente à escuta: com Gymnopédie No.1. Permanece um fundo de obscuridade... Gnossienne No.1: tudo novamente é tensionado, os graves nos arrastando para a dimensão noturna de onde cada nota protagonizada pelas mãos ao piano desenha um movimento da matéria fluida dos seres da noite.

Tentamos imediatamente transformar essas forças contagiantes no motivo da produção linguageira... Mas há uma reação à nossa intenção, que nos faz desejar permanecer ali, movimentando-nos à deriva, minimizando-nos no compartilhamento dessa atmosfera poiética.

E permanecemos, agora, ao som de Debussy... Nocturnes.

Ouvimos as nuances harmônicas e constituímos a imagem das mãos, movimentadas por não sei qual força... Um tom grave, ora sutil, ora evidente, nos arrasta ainda mais para a noite... Não são mãos que a tecem ali... As provocações melódicas estão todas materializadas por elas, prontas até para algum tipo de análise, mas é a vida da noite que agora captura as imagens que constituímos e que nos faz ver-ouvir-sentir-imaginar em uma única reação...

Não temos tempo para articular estas palavras enquanto somos assim invadidos... Elas são, necessariamente, póstumas... A significação das palavras constitui a linguagem da morte. Elas só podem escapar desse destino finalista se ganham o mesmo status da reverberação sonora, plenamente contaminada pelos vitalismos da noite. E, por mais que façamos o esforço de nos reconduzir a essa experiência, ouvindo o que se deu inicialmente à escuta, a necessidade da palavra nos afasta disso que exige um abandono sem reservas, um estar lá, onde essa vivacidade penetra nossa pele, nossos sentidos, nossa imaginação, nossa vontade, nosso ocultamento solidário com os outros...

Tentamos nos inspirar, somando aos sons a visibilidade das inúmeras partituras, dispostas de forma a nos cercarem por qualquer ângulo no minúsculo e claro ambiente... E tudo que queríamos era decifrá-las de imediato, penetrar um universo que permanece para nós como um mundo imenso, inalcançável, ao qual tentamos subtrair segredos constringindo-o no nosso, minúsculo, insuficiente e impotente, mundo...

Mas permanece a noite que não quer ser assimilada... E ouvimos a voz sutil de Derrida que vai se anunciando entre as notas desafiadoras de Debussy, em sussurro: não vê? É a noite dentro da noite da noite...

Um escape, ao “som” de Derrida

Le monde est profond, plus que le jour ne l’imagine.

(DERRIDA, 2003, p.123)

A dimensão noturna tem uma amplitude enriquecida por composições imaginárias, tecidas na reação às indeterminações que nela se insinuam. É o destino, por vezes, das características associadas à animalidade, dos hibridismos, dos disformes, dos não significáveis. A inacessibilidade que permanece incontornável para a consciência, diante das coisas, dos outros, força o descentramento do humano e desnaturaliza sua linguagem representativa, alimentando essa dimensão noturna, extramundana.

O noturno é também o lugar dos supostos limites que separam o que está acessível ao humano e o que permanece resistente à sua assimilação. Não à toa, toda alteridade radical se instala nessa atmosfera de estranhamentos e inconstâncias. É na medida em que o outro escapa à assimilação que pode ser colocado para além do limite de uma plena humanidade, como ocorre com os nomeados selvagens, julgados como possuidores de uma alma inconstante, não domada pelas investidas da razão. Esse problema da compressão de uma diversidade de singularidades inexprimíveis em um termo, um nome e um conceito, é uma tônica no pensamento derridiano, surgindo sempre que ele discute algo que está sendo submetido a um esforço antropocêntrico, como é o caso da sua reflexão sobre o não-humano e a animalidade, onde a palavra alvo do esforço desconstrutivo é “animal”. Tal palavra faz parecer que se alcançou uma totalização a partir da junção de inúmeras e desconhecidas formas viventes em um nome e um conceito (DERRIDA, 2011, pp. 62, 87). Há aí uma consequente exclusão que só pode ser resultante de um exercício centralizador da consciência humana.

Há uma tradição no pensamento ocidental, persistente no espaço contemporâneo, de se associar a atividade da razão (filosofia) à luz, ao espírito apolíneo, e a poesia e as artes à escuridão, às tendências dionisíacas. Essa distinção, inclusive, justifica assertivas nietzscheanas sobre a origem noturna da música. Nas margens da música identificamos essa zona limítrofe e obscura, onde os intentos de um pensamento sistêmico objetivam lançar luz sobre recorrentes, mas inesgotáveis, questões como o que é, o que caracteriza, quem pode definir o fenômeno musical.

Nas margens da música, onde o pensamento, então, se instala, sempre se anunciou uma inacessibilidade, a ponto de uma tentativa frustrada de contorná-la ter justificado uma metafísica do fenômeno musical, como aquela defendida por Schopenhauer (1980). A obscuridade que marca essa margem provocou uma análise que, ou bem apartava a música e a deslocava para uma dimensão superior e inacessível, ou bem mantinha-a perto, sob inquietante observação, com o fim último de fazê-la falar à razão.

Derrida detalha, por diferentes vieses, a questão da ilegitimidade de qualquer filosofia que se dê a tarefa de totalizar as indeterminações em um conceito unívoco de música. Quando fala diretamente do fenômeno musical, como no texto Gramatologia (1973), ou no comentário do texto La musica en respect, de Marie-Louise Mallet (2002), ou ainda quando dissemina em várias das suas obras o problema do esgotamento da música na dimensão do sentido, analogamente ao da linguagem, discute o reconhecimento da música como um “para a escuta”, em uma postura não imperativa, de respeito. É assim que a obscuridade da música reclama uma hospitalidade, uma aceitação e não um enfrentamento analítico, o que caracteriza a condição descrita por Derrida em Cette nuit dans La nuit de La nuit... .

No início do texto Cette nuit dans la nuit de La nuit..., Derrida já configura uma associação relevante e recorrente entre música e noite. Cada um pode se fazer a questão sobre a essência da música, mas, se não a faz prevendo a obscuridade noturna, não faz mais que uma ficção.

Quelqu’un pose cette question “Qu’est-ce que la musique?” Quelqu’un adresse cette question. Dans la nuit. La donne à entendre dans la nuit. Sans contexte visible. Sur un ton dont on ne pourrait pas décider s’il est innocent ou insolent, bien qu’on puisse percevoir qu’un certain la est donné avec un accent un peu plus marqué: “Qu’est-ce quec’est que ça, la musique?” (DERRIDA, 2003, p.112)

A marca (marqué, o sotaque) já é sugestivo de um discurso carregado de pretensão e arrogância de dar uma definição, algo universalizável e consensual sobre alguma coisa como a essência da música. Há, reforça o autor, uma ingenuidade arrogante na proposição de que uma única palavra - “música” - corresponda inequivocamente a um conceito que regula todos os usos consequentes.

La musique serait-elle la nuit du philosophe? La musique ne donne rien à voir, ne dit rien, ne se laisse pas immobiliser, “objet rebele” peut-être avant tout parce qu’elle ne se laisse pas contituer en ob-jet. La musique se dérobe à la “prise” du concept, elle ne se laisse pas “arraisonner”. Elle serai bien, pour la philosophie, un obstacle secret, nocturne, à son déploiement dans la lumièr… (MALLET, 2002, p.11, grifos da autora).

Para Derrida (2003, p.126-127), Mallet, autora de La musique en respect, texto do qual Cette nuit dans La nuit de La nuit... é comentário, conseguiu formular o mais belo prelúdio de uma aposta que não oporia mais dia e noite, filosofia e música, mas decifraria uma outra história nos interstícios e entrelaçamentos entre possibilidades de pensamentos, filosóficos e musicais. Existiria, independente do gênero, das formas, dos instrumentos, das técnicas, das tradições, a tendência a uma condição em que pensamento e música seriam perfeitamente compartilháveis. Os pensamentos filosóficos do século XX seriam co-determinados, no que dizem e no que não dizem, por novas possibilidades de invenção musical. Nessa condição, já não perguntaríamos mais “o que é” a música ou a filosofia, mas reconheceríamos que há, no lugar da essência, apenas processos modalizados que, em diferentes contextos, respondem ao interesse de identificar a mesma coisa: “et il y aurait du musical dans Le philosophique ou réciproquement” (DERRIDA, 2003, p.127).

Para Derrida, o termo “noturno” atribuído à noite não denota apenas uma caracterização de grau da figura da noite, mas uma outra noite na noite, uma dimensão não prevista, não assimilável, não dizível. Ele aparece em uma gama de variações musicais, conforme destaca Derrida (2003, p.121): o noturno como oposição litúrgica às manhãs; o sereno crepuscular para instrumentos de sopro e as notas melancólicas nas obras para piano. Tais notas melancólicas e serenas parecem fazer emergir da noite uma espécie de luto essencial que se dá à escuta na obra.

A sugestão da noite, da atmosfera noturna, foi recorrentemente reconhecida quando se pretendeu falar de certo caráter inefável da música. Esse foi um tema detalhadamente tratado por Jankélévitch, especialmente na obra La musique et l’ineffable (1983), comentada por Oliveira (2015a, b, c). A particularidade da música de não contar, como as outras artes, com a dimensão visível da percepção, demanda uma aproximação sem imagem. Essa percepção se dá na forma de um ser tomado pelo campo sonoro sem os recursos mais habitualmente utilizados com o sentido da visão, a saber, o foco, a perspectiva, a profundidade, um modo de percorrer com o olhar a coisa que se dá à visibilidade, a constituição da imagem à qual se associa uma linguagem que tende à clareza e ao esgotamento do sentido. A percepção visual seria, assim, diurna. Na percepção da noite, a visão é secundária e à escuta já se atribui um caráter privativo que não permitiria elucidações. A invisibilidade na noite solicita outras formas de presentificação, como um dar-se à escuta, que carrega sempre um grau de indeterminação. Não por menos, Nietzsche sugeriu o ouvido como “o órgão do medo” e a música como a “arte da noite e da penumbra”.

O ouvido, o órgão do medo, pôde desenvolver-se como se desenvolveu apenas na noite e na penumbra das cavernas e bosques sombrios, consoante o modo de viver da época do medo, isto é, a mais longa época da humanidade. No claro, o ouvido não é tão necessário. Daí o caráter da música, uma arte da noite e da penumbra (NIETZSCHE, 2004, p.171).

OLIVEIRA (2015b, p.167) discute a representação da noite que aparece associada a atributos privativos, indicando que a possibilidade de uma arte noturna se vincula à superação da identidade noite-vazio. Destaca, para tanto, a fecundidade do ambiente noturno para expressões artísticas do barroco e do romantismo, além de sua materialização no gênero composicional “nocturne” para piano, criado por John Field (1782-1837) e consagrado por Chopin (1810-1849). Ao longo de sua exposição, Oliveira (2015b) destaca que justamente as características da música supostas inicialmente como predicações negativas - indefinição, invisibilidade, indeterminação, vazio -, apontam para as condições de fecundidade e produção da arte musical. A ideia de uma negatividade inicial se fundava na perspectiva de que a noite impedia a representação, dada a invisibilidade de um fenômeno oscilante entre realidade temporal (período noturno) e espacial (atmosfera noturna). A superação da ideia de vazio noturno, justificada na dominância do sentido da visão, abre espaço para uma noite que “oferece a sua riqueza para aquele que se distancia do modelo artístico visual e mimético sobre os quais os impedimentos iniciais se acentuam e, de algum modo, se fundam” (OLIVEIRA, 2015b, p.171).

Essa fecundidade da noite parece ter relações com o contorno das intenções de significação imediata, nas quais objetos sonoros são empregados em estruturas já comprometidas com uma temática. Nesse sentido, repetem-se na música as pretensões contidas em uma linguagem consagrada à comunicação de sentidos.

La musique, s’il y ena, et si elle arrive dans le texte, le mien ou d’autres, s’il y em a, la musique, d’abord je l’écoute. C’estl’expérience même de l’appropriation impossible. La plus joyeuse et la plus tragique. (DERRIDA, 1992, p.409).

Os signos da linguagem enfrentam os mesmos desafios que a música, diante da obstinação da consciência que busca o sentido a qualquer custo para comunicá-lo na forma de uma representação. Esse é mesmo um efeito redutor próprio do comportamento teórico. Em A voz e o fenômeno, Derrida (1994a, p.111) destaca que a eficiência e a forma dos signos, não prometendo nenhum conhecimento, “só podem ser consideradas como não-sentido (Unsinn) se não se definiu previamente, segundo o gesto filosófico mais tradicional, o sentido geral a partir da verdade como objetividade”. Sem esse gesto, seria necessário considerar como não-sentido “toda linguagem poética que transgredisse as leis dessa gramática do conhecimento”. Há na música, como forma de significação não discursiva, “recursos de sentido que não fazem sinal para um objeto possível”.

No texto The spatial arts, Derrida (1994b, p.21) coloca a música como um objeto de desejo, mas de um desejo proibido que fica paralisado diante do seu objeto. Os elementos não discursivos da música (tom, variação de timbre e ressonância da voz) impedem um esgotamento da música na dimensão do sentido.

Isso que permanece para além da dimensão discursiva, é referido por Derrida no texto Ce qui reste à force de musique... (1987), como resto inassimilável, entendido não somente como uma dimensão não discursiva, mas como algo que impede a apropriação em um regime de sentido. Trata-se, segundo Derrida (1987, p.103), de um resto sem substância, sem forma ou conteúdo, que não se pode, portanto, nomear. Do fato de não se poder determinar e nomear, no entanto, não resulta a possibilidade de sua suspensão. Inversamente, significa a necessidade de admitir uma existência na qual a consciência não pode ter total penetração. A força da música está, exatamente, naquilo que escapa à condição da presença, em uma sonoridade ressonante que resiste à contenção discursiva. É nesse sentido que Durán (2015, p.50) destaca a assertiva de Marie-Luise Mallet:

La música llega, y no hace más que llegar. Es del orden del ‘acontecimiento’, es decir, de lo único, de lo imprevisible, un surgimiento sin posibilidad de ver lo venir. Es la recién llegada y la transeúnte. Ella exige un trabajo de duelo a cada instante: hacer su duelo del presente, de las imágenes, de las palabras (MALLET apud DURÁN, 2015, p.50, tradução do autor).

A música rompe a presença no momento em que, entre a emissão do som e a recepção, há um lapso temporal que faz subsumir na ressonância o sentido. Durán (2015, p.54) comenta essa dificuldade a partir da análise que Derrida faz da polifonia, que cria uma impossibilidade de remissão imediata do sentido ao si mesmo de onde a sonoridade partiu. A dimensão temporal tem uma importância inquestionável nessa condição subversiva de uma música que é sempre passagem, uma dinâmica de acontecimentos, um passante que incessantemente se oculta.

Escutar a música tentando ouvir o verbo, o logos iluminador de sentido, é aceitar não ouvir mais nada, uma vez que se deixa escapar o tom, o tremor, a vibração e a ressonância da voz. É por meio dessas nuances da sonoridade que a música comunica algo para além do sentido dado à consciência. Essa seria a surdez do “pequeno animal intelectual” (termos resgatados por Derrida de P.Valéry), surdez a qual Mallet se opõe para escutar o animal... Uma angustiada escuta, na noite, do que não é mais da ordem do visível, em uma invisibilidade radical (DERRIDA, 2003, p.115). Tal escuta poderia ser dita, mas, certamente, em um dizer irredutível a “tudo dito”.

Para Derrida, a música secreta suas próprias defesas autoimunes. Implementa, dentro da obra, dos procedimentos de idealização e identificação, fatalmente objetivantes, os espaços que lhe permitem ser o que é, para ser ouvida. A noite da música reflete esse espaçamento (DERRIDA, 2003, p.126). Tudo parece apontar para uma exterioridade e uma anterioridade da música em relação a qualquer percepção ou ato humanos.

Cabrera (2013, p.30) trata da ideia de desubjetivação na música: o som exige a sensação por excelência, não aderindo ao objeto que o produz, sempre se tornando um estranho a si mesmo. Nesse sentido, o som força uma desobjetivação, a qual corresponderá uma desubjetivação. Esse deslocamento da consciência da centralidade da relação humano-mundo tem uma importância significativa como rupturas dos fundamentos do pensamento moderno, onde o sujeito jamais pôde se deteriorar.

Recaptura, ao som de Debussy

Há algo da anterioridade da música em relação à linguagem representacional nas insinuações sonoras de Debussy. Suas composições revelam a sugestão de indefinições, ainda que a natureza pareça eclodir nas imagens e movimentos que as materializam. Tudo parece se passar como se nem bem a composição impusesse uma estrutura racional rígida ao movimento da matéria sonora, nem bem o compositor deixasse tal matéria acontecer sem o recurso da imaginação. As dissonâncias e os cromatismos parecem garantir essa duplicidade fluidez-forma, humano e pré-humano.

Os temas estão presentes nas composições, mas não dados de forma direta e comprometida com significações, contornando esse direcionamento à representação com uma sensação constante de improviso. Nesse sentido, como nos lembra Lamur, foge do modelo austro-germânico de composição, focado na construção de algo como uma narrativa. Esse caráter não diretivo é garantido ainda pelo foco em movimentos e imagens insinuantes da atmosfera do sonho, permitindo o contorno de uma intencionalidade da composição “voltada para as emoções” ou para a “criação de referências mentais subjetivas” (LAMUR, 2010, p.30)

Incertezas quanto às tonalidades, inversões e efeitos harmônicos inusitados, superação do sistema diatônico, composição diferencial de timbres são características que recriam a atmosfera noturna e o contorno do sentido em suas obras. É a partir desses elementos que, por exemplo, nuvens, ninfas e movimentos da noite podem invadir o Prélude à L’Après-midi d’un Faune. Lamur (2010, p.45) destaca ainda os efeitos de uma atmosfera etérea, dada pela intercalação de trechos tonais e atonais, e de uma atmosfera misteriosa e onírica, dada pelo arranjo com instrumentos de sopro e pela polifonia caracterizada por uma diversidade de vozes com linhas melódicas distintas e importantes simultaneamente.

Para Debussy, el bosque exhala certo misterio y su profundidad exuberante entusiasma la imaginación; el anochecer provoca un estado de contemplación y quietude. Él está más preocupado musicalmente por evocar a su gusto las tierras irreales, la gente de certidumbres y quimeras, que afana ocultamente por crearla poesía misteriosa de las noches, los miles de cuchicheos anónimos de las hojas acariciadas por los rayos de la luna” (BULANCEA, 2007, p.2).

Essa contaminação da obra pelo mundo nada tem a ver com um esforço de representação. Ao contrário, a linguagem que se forma nas suas composições se materializa no espaço ampliado de uma sonoridade não enclausurada em efeitos temáticos. Tal como uma linguagem constituída a partir do reconhecimento da teia de ligações entre palavras, não ancorada em um significado e manifesta em uma escrita, que tem a mesma natureza de significante que a voz, a sonoridade em Debussy se compõe de um arranjo de sons desconectados de um significado temático. Nesse sentido, da mesma forma que a escrita e a fala, que não remetem a uma consciência anterior à linguagem, a sonoridade se dá não em função de um sujeito que lhe incutiu significações, mas em uma dinâmica de tessitura não dirigida à comunicação do sentido.

Algumas marcas composicionais de Debussy podem ser destacadas visando a melhor compreensão desse aspecto de sua obra. O apoio de Guigue (2011) é importante nesse sentido. Ao comentar a consideração consensual de que Debussy seja o fundador de uma nova estética musical na qual a sonoridade se torna a dimensão da sua escrita, Guigue destaca que o compositor “inverte o modelo dualista” em que a sonoridade intervinha como suporte de um discurso elaborado. A sonoridade em sua música não é mais “a vestimenta de uma linguagem”, mas “o próprio campo de suas mutações, onde se definem novas relações, desierarquizadas” (GUIGUE, 2011, p.26). Nesse sentido, abre caminho para uma “música dos sons”. Isso significa, de certa forma, que a sua ocupação com a sonoridade é anterior à sua preocupação com as notas, com a escrita da harmonia e da melodia.

Guigue reforça, com relação à dinâmica composicional, o que havia apresentado no texto Une Étude “pour les Sonorités Opposées” (1997): o objeto sonoro se define não por seus elementos internos, isoladamente, mas por “particularidades diferenciais que mantém com o ambiente, pelas suas propriedades dinâmicas, sua capacidade de carregar o devir da obra” (GUIGUE, 2011, p.49). Essas propriedades dinâmicas dão a tônica das sonoridades que caracterizam as obras de Debussy. O autor cita, nesse sentido, uma caracterização da concepção debussista sugerida por Stockhausen: uma forma-movimento, onde os processos temporais de mudança e sua velocidade são determinantes, fugindo da centralidade da significação do objeto sonoro (GUIGUE, 2011, p.32). A seleção de notas, denominada por Guigue de cromas, remete a um nível primário marcado por dados abstratos, não correspondente a uma realidade sonora. A disposição dos cromas e a intensidade a eles associada é que constitui a sonoridade. A ausência de modos constantes de estruturação dessa dinâmica sonora em Debussy confere o caráter de descontinuidade de sua obra, o que aponta, inevitavelmente, para um intencional contorno da significação imediata do objeto sonoro.

Silenciamento, no que se dá à escuta

Há uma tendência na contemporaneidade de carrear para dentro das obras musicais, objetos sonoros originários da natureza ou da tecnologia. Se considerarmos que a música é um fenômeno humano, teríamos que perguntar qual o estatuto dessas sonoridades que penetram a obra. Certamente diremos que o humano captura essas sonoridades e as usa como puros objetos na composição. No entanto, poderíamos, de outro ponto de vista, considerar que o compositor é apenas o meio pelo qual a sonoridade vem à obra, dando-se à escuta. Em qualquer um dos casos, o originário dessas sonoridades não estaria no humano, embora sejam imprescindíveis a percepção e o ato para ajustá-las a uma expressão, não necessariamente coincidente com o original. Como falar dessa penetração do som na obra evitando a ideia da mimeses e a redução na representação que, em primeira instância, já invertem a lógica, colocando o humano como centro e origem do fenômeno musical?

Se, por outro lado, considerarmos que a música é um fenômeno extensível à dimensão não-humana, ainda outras perguntas se apresentam. Como, do lugar de uma humanidade, se poderá dimensioná-la? Como dar à escuta (num análogo ao tornar visível) aquilo que não é humano, se isso pressupõe a obra, a invenção, ou o filtro das mãos humanas? Como isso que aparece (vem à escuta) pode ser dimensionado como um “próprio da música” e não um artefato humano?

Y a-t-il de la musique dans ce qu’on appelle tardivement la nature, et plus originairement la physis, avant cette chose d’instituition ou de société (thésis, nomos, tékhné) qu’on appelle une oeuvre composée ou d’une tradition ou d’um genre ou d’um code? (DERRIDA, 2003, p.113).

The fact that whale and human music have so much in common even though our evolutionary paths have not intersected for 60 million years, suggests that music may predate humans that rather than being the inventors of music, we are latecomers to the musical scene (GRAY et al., 2001, p.53).

A pergunta pelo “o que é” a música é recorrentemente colocada, bem como a busca por respostas ou por uma essência da música, antes mesmo que se tenha feito a distinção entre o som considerado musical, um para ser ouvido, e o que é chamado obra. É na esteira dessa provocação que Derrida se perguntará se haveria música no que se convencionou chamar de natureza. O fato é que, quando falamos sobre música, imediatamente nos referimos à obra musical, encaminhando-nos, sem contorno, para aquilo que a música pode ser na dimensão humana. Mas, nessa dinâmica da representação, onde restariam as sonoridades originárias? Segundo Derrida, assumimos que o som bruto ou “la sonorité émanant de choses non vivantes, telles que levent, lamer, le stremblements de terre, et même la pure matérialité technique de machines abandonnées à elles seules, non guidées pas desvivants, tout cela ne relèvepas de la musique” (DERRIDA, 2003, p.113). É nesse sentido que Derrida (2003, p.14) formula três questões sobre a música: se a música pode ser produzida por um não vivente, por exemplo, por aparatos técnicos/máquinas; se a música é um “próprio do homem” ou pode ser produzida por outros viventes; se existe música sem obra.

Muitas especulações podem advir das questões assim colocadas por Derrida, em especial da segunda, que tem tomado a atenção de pesquisadores em diferentes áreas de conhecimento, desde os antropólogos que investigam a relação humano-animal em diferentes comunidades humanas, até os biólogos que tentam estudar as bases anatomofisiológicas e comportamentais de diferentes espécies animais, com o intuito de evidenciar as dimensões de composição e recepção das sonoridades que pudessem ser consideradas como musicais.

Derrida (2003, p.117) recupera o pensamento hegeliano para destacar uma escuta não teórica do animal. Hegel reconhece que o animal pode, mesmo se não tem uma voz falada, gritar e cantar. Derrida aponta no texto de Mallet a consideração de que um esplendor verbal camufle o texto primitivo, o texto assustador do homem natural.

Anthony Seeger (1977, p.54), ao investigar os índios Suyá, menciona que nestas tribos as canções seriam ensinadas diretamente pelos animais, cujos nomes aparecem citados nas letras das músicas: “Isto se explica pelo fato de se acreditar que toda música é aprendida com os animais, cuja linguagem os cantores-compositores têm um dom especial para ouvir e entender”.

Rodrigues (2008), em um texto que discute uma abordagem comparativa da fisiologia das estruturas morfológicas e comportamentais associadas à música, destaca que estruturas semelhantes presentes em diferentes espécies resultam não só uma competência para a linguagem como para a música. Cita a ideia de Pinker (1998, p.534), segundo a qual a música seria uma confecção rara, artesanalmente construída para agradar os pontos sensíveis de pelo menos seis de nossas faculdades mentais, entre as quais, a fala e a percepção do ambiente. Segundo Rodrigues (2008, p. 15), a música tem estreitas e importantes relações com o funcionamento de diversos circuitos neurais: “estes não foram selecionados por vantagens adaptativas trazidas pela música, mas permitem, em última instância, sua criação e percepção”. Nesse sentido, destaca que a capacidade de discriminação de timbres tem a ver com a percepção ambiental e que o reconhecimento de sons complexos é importante também para diferenciar singulares vocalizações de animais na natureza, além da própria comunicação entre indivíduos. A partir dessas considerações sobre origem e extensão do fenômeno musical, encaminha: “se de fato a música tem envolvimento com tantos circuitos neurais, essa propriedade não pode ser uma exclusividade apenas da espécie humana, mas deve estar presente no cérebro de outros animais também” (RODRIGUES, 2008, p.15).

Dessa forma, o reconhecimento de algum grau de inacessibilidade da natureza do fenômeno musical provoca um problema também suscitado no pensamento derridiano: estar nas margens, pressentindo um limite, é imergir em outras indeterminações. Nessas zonas limítrofes somos levados a admitir que o que chamamos os “próprios do humano”, como a linguagem, faz referência a uma condição singular - a sua linguagem - e não a um universal. Já não é mais apropriado falar da linguagem como aquilo que define a condição humana por exclusão dos outros viventes, uma vez que eles dão testemunho de outras singularizações linguageiras. Em outros termos, a indeterminação nas margens da música é análoga àquela das margens do não-humano. Música e animalidade, portanto, estariam, para o humano, como que permeadas pelas mesmas dificuldades, mediante o esforço de determinação. Coincidentemente, são lançadas, historicamente, nos mesmos recantos de obscuridade, povoando o imaginário da dimensão noturna, dos riscos e da invisibilidade na noite.

Subjetivações, no silêncio da noite

Suspendemos os artifícios que compõem a paisagem sonora do pequeno ambiente. A música, no entanto, continua. Uma complexa sonoridade ora ecoa como o vento nas árvores, ora como a polifonia de diferentes linguagens não-humanas. Vez por outra, a densidade dessas composições minimiza e julgamos, com nosso curto alcance auditivo, testemunhar o silêncio. Mas pressintimos: é um silêncio povoado por inquietantes invisibilidades.

Permitimo-nos avançar, em um movimento imaginário, por entre ambiências longínquas... Encontramos em savanas e matas densas o animal que confabula... O animal fofoqueiro... ele se insinua nos medindo, e solicitando nosso falatório, com o intuito de encontrar a medida de nossas forças. Não olha a resistência do nossos rostos, recusando-se a ser assimilado, mas atenta para nossos lábios para ver se sai daí o princípio das nossas denúncias... Espera nosso manifesto de cooperação...

Falamos, pensamos e nomeamos... Dar nomes é mesmo uma prática comum aos viventes autonomeados humanos... O esforço sistemático revelou-se um método aparentemente eficaz na distinção que forjamos entre “nós” e a diversidade de seres sintetizada no termo “outros”.

O animal humano dominou, ao longo do desenvolvimento de sua espécie, vastas extensões territoriais, dada sua capacidade cognitiva e suas habilidades sociais. A revolução cognitiva possibilitou uma linguagem inaugural que sustentou uma forma de sociabilidade que é a principal justificativa de sua sobrevivência. O diferencial dessa condição cognitiva, segundo Harari (2015, p.32), está: na capacidade de transmitir maiores quantidades de informações sobre o ambiente, principalmente sobre as relações sociais; em uma possibilidade de comunicar não apenas informações sobre coisas existentes, mas sobre conteúdos imaginários, utilizando-se de narrativas ficcionais que garantiram uma adesão a crenças comuns que sustentam comportamentos sociais de cooperação. A competência em “convencer milhões de pessoas a acreditarem em histórias sobre deuses, nações ou empresas”, dá ao H. sapiens poder imenso, porque “possibilita que milhões de estranhos cooperem para objetivos em comum”.

O animal que imagina, conta histórias e convence é o que determina a existência de si e dos outros conforme recursos linguísticos que lhe asseguram distinção e supremacia. Para além de suas ficções, movem-se forças que escapam à assimilação. Lá, encontramos o mundo antepredicativo e a dimensão pré-humana. Vagam neles os estranhos que se movimentam ainda não imobilizados pelas suas representações. Vez em quando, são trazidos à visibilidade a partir de um encontro oportunizado pelo compartilhamento, pela aproximação poética, uma visibilidade, contudo, fluida, quase fantasmagórica, assegurada pela atmosfera da noite. Somos capazes de pressenti-los, de escutá-los, na suspensão de nosso falatório.

Hesitamos... Evitamos a provocação do animal fofoqueiro e desviamos o olhar para o fundo noturno da paisagem, nas brechas entre as árvores mergulhadas em silêncio e névoa...

De lá, nos olham, vagamente, Derrida e um híbrido sem nome, cantante. O primeiro silencia também, colocando-se à escuta. O segundo emite um som disforme, inconstante, ora com agudos penetrantes, ora em uma desaceleração que faz sua voz reverberar como fundo para outras vozes que chegam de múltiplas invisibilidades. E, nos parece, podemos estar enganados... Os sons talvez também venham de mãos que bailam sobre um teclado distante. Algo de pré-humano penetrando sorrateiramente as mãos, humanas, calando seus falatórios e dando-se como inusitado, provocação, no mundo...

Tentamos permanecer, assim, na postura que Mallet (2002) chama de respeito; o respeito de um pensamento que provoca, na medida do possível, a própria suspensão, para escutar a noite. O pensamento só pode encontrar seus laços, seus espaços de compartilhamento, com a música, se é capaz de prever a própria suspensão e constituir, com o noturno da música, o silêncio onde a ressonância encontre brechas para se dar à escuta.

Algo, depois desse devaneio, ocorre aos supostos humanos que somos. Algo como a experiência do “animal que, logo, sou” (DERRIDA, 2011, p.15)... Não é estranho que o tema da música que embala movimentos de subjetivação seja também o que desperta o compartilhamento com o não-humano... Subjetivar-se na ampliação de um mundo não contido na linguagem estruturante conduz, inevitavelmente, ao descentramento do humano. A escuta das sonoridades pré-humanas, incluindo aquelas dadas à escuta pelo esforço do compositor, força um deslocamento da consciência objetivante.

Entre filosofia, música e educação

Sintetizemos, com Derrida. A noite é irredutível a toda objetivação, não podendo ser dada, totalizada, em qualquer visibilidade. Mesmo se a noite se insinua como uma visibilidade da música, ela mesma guarda uma ameaça fascinante porque permanece sendo uma inesgotável fonte de invisibilidade. A experiência da noite é a experiência de uma invisibilidade que não promete a captura de um objeto espacializável. A noite nunca é uma experiência anterior da noite identificável em algo objetivado, sendo, portanto, a noite da noite. Por fim, a noite ainda permite a pressuposição de uma figura ao fundo, somente existente em uma negatividade, uma terceira invisibilidade, uma noite na noite da noite, uma noite no fundo sem fundo da noite [“cette nuit au fond sans fond de La nuit”] (DERRIDA, 2003, p. 121). Essa noite já não é a música, mas uma dobra suplementar que carrega todo desafio para ouvi-la. A escuta é mais primitiva, mais arcaica que a música. Trata-se de uma escuta producente compartilhada por humanos e não humanos.

Em outro extremo, pedagogias se orientam para algum tipo de iluminação e busca visibilidades. Lida com representações e nomes, omitindo-se quanto ao órgão do medo. É permissiva quanto a uma dessensibilização dos sentidos. Compromete-se com o esforço de determinação da existência e julga controlar experiências derivantes e qualquer insinuação de desumanidade.

Derivar na noite dentro da noite da noite... Ampliar experiências de subjetivação, para além da linguagem estruturante, representacional. Desafios de uma educação estética não reduzida a justificações... Nada da mera fruição da arte, do conhecimento do capital cultural das obras, do fetiche da performatividade do gênio, da análise elucidativa da impressão das cores ou de elementos sonoros desconectados da sonoridade... Algo como uma escuta sensível potencializando o órgão do medo, positivando as experiências perceptivas sem correspondência direta com o comportamento teórico. A partir dela, a aposta em uma descentralização do humano cognoscente que abre espaço para potências criativas não subsumidas no esforço de representação, para corpos movimentados por uma performatividade que subverte a linguagem direta e a nomeação, para relações de alteridade não hierarquizantes.

Uma provocação, entre música e filosofia: silenciar o falatório, colocar-se à escuta... Minimizar-se.

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Recebido: 17 de Março de 2019; Aceito: 30 de Abril de 2019

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