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Revista Eletrônica de Educação

versão On-line ISSN 1982-7199

Rev. Elet. Educ. vol.13 no.2 São Carlos maio/ago 2019  Epub 01-Jan-2020

https://doi.org/10.14244/198271993353 

Dossiê Educação, Cultura e Subjetividade

A contradição que não se comunica

The contradiction that cannot be told

Ana Godinho I  

IProfessora e investigadora integrada do Instituto de Filosofia da Linguagem, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. E-mail: anagodinhogil@sapo.pt - Universidade Nova de Lisboa - Portugal


Resumo

Nunca se produziu tanto e tão aceleradamente informação e conhecimento. Produção que finalmente não se comunica, nem age, nem tem os efeitos positivos que se desejam de transferência para a sociedade. Hiperatividades, fascismos, patologias variadas, contradições e impasses entravam tamanho empreendimento. E a par dos avanços tecnológicos e científicos mais ousados uma barbárie inominável avança de forma avassaladora. Os perigos planetários que resultam desta produção que não se comunica e de que só amiúde nos tornamos conscientes não deixam de nos ameaçar todos os dias e bater com insistência à porta. Um contexto global tão ambíguo e perigoso faz-nos recuperar uma hipótese com mais de cinquenta anos. Proposta por Bateson com um alcance bastante vasto, o conceito de duplo impasse ou “double bind” ajuda-nos a pensar a relação entre educação, conhecimento e política.

Palavras-chave: Comunicação; Contradição; Duplo impasse; Populismo

Abstract

Information and knowledge have never been produced so rapidly. Production that in the end does not communicate, nor does it act, nor does it have the positive effects that are desired of transference to society. Hyperactivities, fascism, various pathologies, and contradictions, went into such an enterprise. And along with the most daring technological and scientific advances, an unmentionable barbarity is advancing in an overwhelming way. The planetary dangers that result from this production that is not communicated and which we often only slowly become aware of do not cease to threaten us every day and insistently knock on the door. An ambiguous and dangerous global context makes us recover a hypothesis that is more than fifty years old. Proposed by Bateson with a very wide reach the concept of “double bind” helps us to think the relationship between education knowledge and politics.

Keywords: Communication; Contradiction; Double bind; Populism

Escreverei aqui em direção ao ar e sem responder a nada pois sou livre. Eu - eu que existo. Existe uma volúpia em ser gente. Não sou mais silêncio. Sinto-me tão impotente ao viver - vida que resume todos os contrários díspares e desafinados numa única e feroz atitude: a raiva. Cheguei finalmente ao nada. E na minha satisfação de ter alcançado em mim o mínimo de existência, apenas a necessária respiração - então estou livre. Só me resta inventar. (Clarice Lispector, Um Sopro de Vida)

Como o duplo impasse1, enquanto mecanismo de condicionamento psíquico, se reveste do maior interesse, no impacto que tem sobre o discurso nacional populista de hoje, começaremos, ainda que, brevemente pela sua descrição. Esta noção foi proposta, como hipótese2, nos anos 1950, por Gregory Bateson juntamente com a Escola de Palo Alto. Teve na época, e tem atualmente, uma grande importância para investigadores de muitas áreas. Analisaremos, alguns aspectos do seu funcionamento a partir dos textos de Bateson.

Formalmente, no duplo impasse, trata-se de conduzir o interlocutor, num processo comunicativo, com argumentos, para que ele possa agir ou pensar de certa maneira que lhe será em seguida “cobrada”. É um argumento mistificador, em que a enunciação contradiz o enunciado. As ordens podem ser explícitas ou implícitas. A eficácia deste argumento sustenta-se ou supõe uma situação em que se jogam elementos afetivos (amor à família, à pátria, à nação) que se encarnam numa figura que tem autoridade (e que diz por exemplo: “provavelmente não gostas de mim, não estás de acordo, mas tens direito a criticar. Prova-me que não gostas de mim, a tua crítica tem de ser construtiva”).

O impasse é uma espécie de cola que liga duas coisas impossíveis de executar com uma terceira que interdita qualquer expressão desse nó. Se se tratasse somente de uma ordem e contraordem estaríamos diante de um dilema simples. Não é o caso. No duplo impasse as duas respostas são sancionadas, não se escapa à situação (“estes são maus, mas os outros também”), não se pode satisfazer uma sem violar a outra, não é pois surpreendente que, quando aplicado, surjam muitas perturbações, violência, doenças, etc. O duplo impasse é um mecanismo perverso, fabrica bloqueios artificiais que tornam o outro incapaz de exprimir a diferença. É amplamente utilizado por totalitarismos, populismos, nas relações e nas redes sociais e familiares porque, se o propósito é enfraquecer o outro, e consegue-o de forma eficaz, também, em certos casos, de exaltação, possui a capacidade de o deixar com uma sensação ilusória de vitalidade (as grandes multidões, eufóricas com o líder, assim o mostram). Tem, portanto, um poder autorregenerador que dá uma unidade à incoerência que imediatamente alastra e se alimenta através da negação do real que lhe resiste.

Os discursos podem ser inconsistentes, mas são intensamente sedutores, sugestivos e mobilizadores (apelam, por exemplo, a um retorno de um tempo passado, idealizado, em que cada um vivia sob a proteção segura da sua comunidade original, exacerbam teorias da conspiração que fazem entrar em choque elites nacionais, outros países, contra os mais fracos e oprimidos), qualquer um é apanhado em simultâneo nas suas malhas. Há uma simultaneidade do enunciado que se exprime, e do efeito que se produz, que liga instantaneamente a vítima do argumento ao seu autor. E se o veículo dessa comunicação é também instantâneo, o duplo impasse reforça-se replicando-se para milhões de pessoas, “gente simples”, o “povo”. Todo o espaço é ocupado pela relação direta que se tece entre o que fala e o auditório que se rende aos seus milagres, às suas ficções. “Coladas”, emocionalmente e sempre num determinado contexto, as forças em jogo combinam-se, simbioticamente, para anestesiar e esmagar toda a iniciativa autônoma. Todo o terreno, de antagonismos vários, se preparou previamente para que o duplo impasse aconteça. Bateson assinala os elementos indispensáveis para que tal situação ocorra:

Duas pessoas ou mais. (…) Uma experiência repetida. (…) Uma injunção negativa primária. (…) Uma injunção secundária, que contradiz a primeira a um nível mais abstracto, sendo, como ela, reforçada pela punição ou por certos signos que ameaçam a sobrevivência. (…) Uma injunção negativa terciária, que impede a vítima de escapar à situação. (…) Por fim, convém notar que não é necessário que estes elementos se encontrem completamente reunidos porque a ‘vítima’ aprendeu a perceber o seu universo sob a forma de duplo impasse. Neste estado, qualquer elemento do duplo impasse, ou quase, é suficiente para provocar pânico e raiva” (BATESON, 1980, p. 14).

Em 1969, Bateson expõe numa conferência apresentada na American Psychological Association, algumas dificuldades que a teoria do duplo impasse ajuda a ultrapassar. Dessa exposição destacamos a ideia (que não podemos desenvolver aqui) de que é possível mudar a percepção ou transformar a situação de duplo impasse - o que acontece quando os indivíduos adotam uma “dupla perspectiva” (“double take”).

A violência da formatação da vida afetiva, cognitiva e social instrumentaliza o conhecimento, o pensamento e todas as formas de expressão. Reduz e limita, hoje como nunca, as possibilidades de criação, que sempre se alimentaram de múltiplas fontes, colocando-as ao serviço da normalização mais estreita e pobre. Falamos muito particularmente da violência das contradições, dos impasses e paradoxos que se tornam patológicos, que deformam e destroem as relações humanas e têm consequências éticas, morais, ecológicas já conhecidas e outras ainda por determinar.

Nunca se produziu tanto e tão aceleradamente informação e conhecimento. Produção que se comunica em excesso ou não se comunica, sabendo também, ao mesmo tempo, que esse excesso torna irreparável e interdita a circulação da palavra, esvazia as imagens, enfraquece e bloqueia o pensamento. Nem todos os efeitos de transferência são positivos para a sociedade, conforme constatamos todos os dias. Hiperatividades em todos os domínios, fascismos, populismos diversos e sempre nascentes, entravam, bloqueiam, criam zonas de invisibilidade, que introduzem constantemente dúvidas, perturbações e incertezas acerca do mais básico e seguro (e dizem respeito à vida concreta dos povos, às relações humanas essenciais).

A par dos avanços tecnológicos e científicos, e de uma consciência cada vez maior de que não estamos, nem somos indivíduos isolados, uma barbárie inominável avança de forma cruel e injusta deixando-nos com a sensação de que estamos cada vez mais sós e vulneráveis. Os perigos planetários atuais, de que só amiúde nos tornamos verdadeiramente lúcidos, não deixam de ameaçar e bater com insistência todos os dias à porta. Como garantir, então, as condições de estabilidade que cada um de nós necessita para poder viver?

As contradições destruidoras desenvolvem-se imparáveis, de muitos modos. São forças que contagiam e minam todos os aspectos da vida, influenciam e apagam a possibilidade de se poder pensar nessa zona a que Deleuze chamou “zona de presença”, isto é, o espaço de pensamento criador.

A vida quotidiana é o território de alastramento preferido destas contradições3 e confusões, porque nela todas circulam rebatidas horizontalmente. Mas, outros domínios são afetados pelo poder desta doxa que se instala de forma mortífera e dominante. Poder que destitui o pensamento sem o qual ela própria não pode sobreviver e o impede de decidir e avançar livremente. Poder esse que apaga a função vital da imaginação. Para Deleuze, pensar é também decidir e afirmar a diferença num movimento são, que se afasta da opinião que nos enfraquece numa luta sem fim. O pensamento nasce de sentidos novos, de possibilidades salvaguardadas que se podem comunicar e nomear sem medo, sem intimação culpabilizante, exclusão ou desprezo. Em suma, sem a redução ao enunciado que diz: faça o que fizer, pense o que pensar é sempre mau.

Para salvaguardar a saúde é necessário abandonar sem complacências as falsas e miraculosas soluções que se nos oferecem frequentemente. Encontrar meios para expulsar o que não é favorável à vida, e nos deixa na angústia, implica passar para outro lugar de onde podemos extrair as forças que nos fazem chegar a boas conexões. Como diz Deleuze, trata-se de um problema político coletivo:

O problema […] é o de instaurar, encontrar ou reencontrar um máximo de conexões. (…). A questão não é a de opor sociedade e natureza, artificial e natural. Pouco importa os artifícios. Mas, de cada vez que uma relação física for traduzida em relações lógicas, um símbolo em imagens, um fluxo em segmentos, uma troca, decomposta em sujeitos e em objectos, uns pelos outros, deveremos dizer que o mundo está morto, e que a alma colectiva está, por sua vez, encerrada num eu, quer seja o do povo, quer seja o do déspota. (…) Não há regresso à natureza, só há um problema político da alma colectiva, as conexões de que uma sociedade é capaz, os fluxos que ela suporta, inventa, deixa ou faz passar (DELEUZE, 2000 pp. 69-70).

Mas antes de aí chegarmos importa caracterizar ou descrever certo tipo de situação “fake”, como é o caso das falsas conexões ou impasses na comunicação, com o objetivo de se reconhecer o poder de influência e avidez do controlo ditatorial das mensagens que de uma forma extrema condicionam e levam à paragem e estagnação da expressão.

Não poder pensar ou agir, não poder rejeitar ou aceitar (como fazemos desde sempre com coisas, objetos, pessoas ou acontecimentos), distinguir o verdadeiro do falso, faz-nos entrar num certo tipo de impasse, como no exemplo da injunção: “seja espontânea!” Como posso ser espontânea se tenho de me submeter a qualquer coisa que me impede de ser livre? Como exprimir o que me entrava? Dizem-me para fazer algo que segue numa direção contrária ao que está subentendido no ato de enunciação. Paraliso imediatamente, e não sei o que fazer. Qualquer coisa se perde irremediavelmente neste tipo de experiência, e fico muito mais susceptível a ser influenciada, entro facilmente num duplo impasse.

E, aí não há “passagem de vida”, só estados de queda, interrupção de processos, impedimentos, enfraquecimentos vitais, nós de submissão e obediência, medos muito estratificados. Quanto mais obedecemos a paradoxos deste tipo, que a realidade dominante nos impõe todos os dias, mais eles nos comandam e limitam, quer dizer, cairemos sem defesa no jugo de qualquer autoridade, de qualquer propaganda ou influência que se apresente. Aceitaremos, impotentes, de forma acrítica, sem perguntarmos: o que se passa?4 A menos que encontremos uma saída. Para tanto, perguntemos: o que é preciso compreender de nós próprios e do planeta que nos serve de única casa desde sempre?

Creio que, […] de cada vez que, relativamente a um mamífero, introduzimos uma confusão nas regras que dão um sentido às relações importantes que ele tece com os outros animais da sua espécie, provocamos uma dor e uma inadaptação que podem ser graves; por outro lado, se pudermos evitar esses aspectos patológicos, então a experiência tem a oportunidade de desembocar na criatividade (BATESON, 1980, p. 49).

Quando bloqueamos, sentimos uma “dor” e não podemos comunicar, nasce um medo e um vazio de morte5.

Como entender certos enunciados que têm justamente essa função bloqueadora, e que tornam “a vida tensa e o trabalho pesado”, que mudam as relações quotidianas entre as pessoas?

A forma como comunicamos é reveladora da complexidade das mensagens que trocamos, da sua estruturação e organização. O seu nível de abstração é cada vez maior, por isso, o risco de surgirem contradições ligadas a confusões e erros durante o processo de descodificação aumenta enormemente.

A confusão e as contradições revelam, em certa medida, a incapacidade individual e coletiva de aprender a discriminar lógica, semântica e pragmaticamente, as mensagens que recebemos. Ora, compreender e agir em conformidade com elas, racional ou emocionalmente, é uma estratégia que se vem tornando cada vez mais impossível. Quando se promove uma espécie de ambiguidade deste gênero e esta se instala nas práticas e na história concreta dos indivíduos, a retórica, o vocabulário e a linguagem, são poderosamente alterados. Forja-se outra percepção da realidade que, através de diretrizes, modos de fazer ou instruções, exclui tudo o que é diferente e minoritário. Uma realidade encenada para que o sujeito apareça como um herói ou messias - a única realidade.

Temos certamente opiniões sobre qualquer coisa que percebemos ou que nos afeta, de tal modo que somos capazes de criar e transmitir vastas doxologias. Mas, neste contexto, as incoerências do “herói” visam aniquilar a possibilidade de agir e compreender, esvaziam a civilização e a cultura, normalizam, instrumentalizam ou destroem tudo o que se lhe opõe. As ideias mirram, vendo-se agora reduzidas a uma amálgama de enunciados vazios. Enunciados estereotipados que propõem soluções que não permitem dúvidas. Procuram-se objetivos muito específicos, uma “melhor integração no mercado de trabalho”, “uma nação extraordinária”, “um progresso magnífico”.

Ligados à vida instantaneamente, o tempo todo, separados irremediavelmente duma outra vida, podemos dizer que ver sem ver, ouvir, mas não ouvir, sentir mas, não sentir, experimentar sem experimentar, são estados que devoram. Entramos num impasse, que põe em causa a “continuidade de existência“.

Postas ao serviço desta rede discursiva, as novas tecnologias reforçam-na promovendo uma amnésia ostensiva e exibicionista com efeitos imediatos na vida afetiva e relacional6. Os conhecimentos, os afetos, as leis, as ideias, são descartáveis, substituíveis, inconsistentes.

O funcionamento do duplo impasse ganha traços específicos, que podemos perceber quando este se põe ao serviço dos populismos autoritários atuais. Os polos contrários, em forma de impasse, mantêm-se (relativamente aos populismos da primeira metade do século XX, na Europa): establishment versus violência, ou políticos corruptos versus terrorismo. Duplo impasse significa: ou escolhes o establishment com os seus políticos venais - e não resolves os problemas de segurança de que o sistema estabelecido é responsável; ou escolhes a violência (das gangues, no Brasil; dos imigrantes criminosos, nos EUA e na Europa). Constantemente empolados, estes temas do discurso nacional-socialista tomam outras formas, adaptando-se aos acontecimentos (por exemplo, política (do establishment) de reconhecimento dos direitos das minorias, LGBTT versus práticas de sexualidades antinaturais, imorais que instauram o caos nas famílias e na sociedade, etc.).

Confrontados com cada uma das opções que levam ao impasse, o auditor-cidadão não cai na resignação ou na indiferença (que, politicamente, se traduz na abstenção): é-lhe, assim, imediatamente proposta uma terceira opção, uma saída - que consiste em aceitar a via-vontade do líder populista, outra via, anti-sistema e antiviolência (ou antiterrorismo), por cima dos partidos, criando um laço direto e entusiasmante entre o chefe (Trump, Erdogan, Bolsonaro, Le Pen, Órban) e o povo. Solução energeticamente excitante, tanto mais que se apela ao ódio, ao ressentimento e ao exercício da força para eliminar o bode-expiatório (que se construiu artificialmente): o PT e os “vermelhos” no Brasil, os imigrantes latino/árabes ou os media livres nos EUA (Trump, por exemplo, não consegue fabricar um bode-expiatório unificado) e os imigrantes árabes e africanos para os populismos europeus.

O grande trunfo do discurso e da prática política (nas manifestações, na propaganda, nas ações de rua) dos nacionais-populismos, que provoca a adesão rápida de milhões de pessoas, está no modo como parece acordar poderosamente a vida afetiva e relacional. Criam-se de imediato laços comunitários privilegiados entre os “nacionais” (americanos “first”), a verdade da vida é vivida genuinamente no quotidiano, através do laço messiânico que une todos ao líder, na promessa de uma transformação radical do indivíduo e da sociedade (o “novo homem” de Mussolini e de Hitler, subentendido nos discursos menos puros dos populistas de hoje), permitido mesmo “violências individuais impressionantes”, fazendo correções aos “desvios de conduta sexual”,

O populismo não impõe o duplo impasse somente para anestesiar ou atonizar a vítima, reduzindo-a a um farrapo. Fá-lo-á num breve momento inicial, para logo a fazer participar numa empresa grandiosa, enquanto agente ativo. Só que, na realidade, a nova ordem que inaugura, condiciona e empobrece a vida, gerando perspectivas paradoxais, esquizofrênicas7. Apela-se a comportamentos que inibem a possibilidade de criação e expansão do pensamento crítico, sabendo-se que o discurso expresso é exatamente o contrário. O discurso extremado tomou o poder, aumentou de escala, o seu sucesso parece não ter fim.

Se não denunciarmos esta doxa exclusiva, fabricada pela máquina populista, enquanto pensamento que melhor se molda a essa formatação da vida e que exprime o desejo de unificação e a vontade da maioria, se nos impregnarmo-nos dela até à saturação, chegaremos a situações em que nos confrontamos com “ordens” impossíveis de cumprir (a construção de um muro entre o México e os EUA, ou os apelos ao extermínio, ao incentivo ao ódio, ao conflito permanente). Chegaremos a um absurdo que não imaginávamos possível. Não esqueçamos que, hoje, fenômenos muito comuns locais podem provocar um contágio global nunca antes visto.

Uma coisa é certa, a lógica do fascismo não é imparável, as ações afirmativas que desatam “os nós do nosso entendimento” tornam possível mudanças na percepção e transformamos duplos impasses de cada vez que estes se procuram instalar- a “vida que resume todos os contrários díspares” não deixa de persistir.

Referências

BATESON, G. Vers une écologie de l’esprit. (Vol. 1 e 2), Paris: Seuil, 1980. [ Links ]

BATESON, G.; RUESCH, J. Communication et société. Paris: Seuil , 1988. [ Links ]

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. L’Anti-Œdipe. Paris: Minuit, 1972. [ Links ]

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille plateaux. Paris: Minuit , 1980. [ Links ]

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a Filosofia?. Lisboa: Presença, 1992. [ Links ]

DELEUZE, G. Crítica e clínica. Lisboa: Ed. Século XXI, 2000. [ Links ]

WATZLAWICK, P.; BEAVIN, J. H.; JACKSON, D. D. Pragmatics of human communication. A study of interactional patterns, pathologies and paradoxes. New York: W.W. Norton & Co, 1967. [ Links ]

WATZLAWICK, P.; WEAKLAND, J.; FISCH, R. Changements: paradoxes et psychothérapie. Paris: Seuil ,1975. [ Links ]

1 “Double bind” no original.

2Integrada na teoria da Comunicação, desenvolvida em 1956 pelo grupo de Palo-Alto na Califórnia (no Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade de Stanford), do qual faziam parte G. Bateson, Don. D. Jackson, J. Haley e H. Weakland. Bateson e o seu grupo souberam estabelecer uma associação inovadora entre o pensamento sistêmico, a cibernética e as Ciências Humanas. Este conceito muito contribuiu para essa associação e tem sido traduzido para o português por Duplo-Vínculo, Dupla-Ligação ou duplo impasse.

3Mas também de paradoxos, de ambiguidades, de ambivalências, de falácias, etc.

4O que se passou? Pergunta Deleuze frequentemente. O que se poderá passar? Perguntamos nós. A Alemanha nazi deve-nos servir de referência, apesar das diferenças. Aí, uma linha de fuga entrou num movimento fascista – “movimento perpétuo sem objecto nem propósito” e tornou-se movimento de destruição pura. Deixamos morrer os outros. E, por fim, surge a nossa própria morte. Quanto mais a guerra está perdida mais aceleramos – até ao famoso telegrama de Hitler. A análise de Paul Virilio, dizem-nos Deleuze e Guattari, “parece-nos profundamente justa quando ele define o fascismo não pela noção de Estado totalitário, mas pela de Estado suicidário. (…) ‘Desencadeamento de um processo material desconhecido, realmente sem limites e sem meta. (...) Uma vez desencadeado, seu mecanismo não pode desembocar na paz, pois a estratégia indireta instala efetivamente o poder dominante fora das categorias usuais do espaço e do tempo (...). É no horror da quotidianidade e do seu meio que Hitler encontrará finalmente seu mais seguro instrumento de governo, a legitimação de sua política e de sua estratégia militar, e isto até o fim, pois, longe de abater a natureza repulsiva de seu poder, as ruínas, os horrores, os crimes, o caos da guerra total normalmente só farão aumentar sua extensão. O telegrama 71 — Se a guerra está perdida, que pereça a nação — no qual Hitler decide somar seus esforços aos de seus inimigos para consumar a destruição de seu próprio povo, aniquilando os últimos recursos de seu habitat, reservas civis de toda natureza (água potável, carburantes, víveres, etc.) é o desfecho normal’ (DELEUZE, 1980, p. 283).

5A morte não é um processo, ela é estrangeira a todo o processo. É a paragem completa, o impasse total.

6Usar, por exemplo, o Youtube, para fornecer “orientações sobre como proceder diante de situações diversas”.

7Veja-se o que dizem Deleuze e Guattari no Anti-Édipo (1972): “Bateson chama double bind à emissão simultânea de dois tipos de mensagens que se contradizem entre si (por exemplo, o pai que diz ao filho: anda, critica-me, mas deixando perceber que qualquer crítica efetiva, ou pelo menos um certo gênero de crítica, seria muito mal recebida). Bateson pensa que esta é uma situação particularmente esquizofrenizante, e interpreta-a como um «non-sens» segundo a perspectiva da teoria dos tipos de Russell. Mas a nós parece-nos que o double bind, o duplo impasse, é uma situação corrente e edipianizante por excelência. E, arriscando-nos a formalizá-la, pensamos que ela remete para este outro tipo de non-sens russelliano: uma alternativa, uma disjunção exclusiva, é determinada por um dado princípio que constitui, no entanto, os seus dois termos ou sub-conjuntos e que, além disso, entra na alternativa (caso que é extremamente diferente quando a disjunção é inclusiva). Este é o segundo paralogismo da psicanálise. Numa palavra, o «double bind» não é mais do que o conjunto do Édipo. E é neste sentido que o Édipo deve ser apresentado como uma série, ou como oscilando entre dois pólos, que são a identificação neurótica e a interiorização dita normativa. Mas o Édipo, o impasse duplo, está em ambos os lados. E se aqui um esquizo se produz como entidade, é por ser o único meio de escapar a essa via dupla, onde a normatividade não oferece senão como saída a neurose, e onde a solução está tão entravada como o problema; refugiamo-nos, então, no corpo sem órgãos.”

Recebido: 17 de Março de 2019; Aceito: 30 de Abril de 2019

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