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Revista Eletrônica de Educação

versão On-line ISSN 1982-7199

Rev. Elet. Educ. vol.13 no.2 São Carlos maio/ago 2019  Epub 01-Jan-2020

https://doi.org/10.14244/198271993355 

Dossiê Educação, Cultura e Subjetividade

A pedagogização do sexo da criança: do corpo ao dispositivo da infância

The pedagogization of sex and children: from the body to the childhood device

Andrea Braga Moruzzi I  

IProfessora Adjunta, Departamento de Teorias e Prática Pedagógicas, Universidade Federal de São Carlos. E-mail: deab.moruzzi@gmail.com - Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos-SP, Brasil


Resumo

O que é a pedagogização? O que é a infância? E o que é o dispositivo? Este artigo se deriva de uma pesquisa de doutorado que entrelaça estes três conceitos a partir de uma analítica foucaultiana. O ponto de partida é a noção de que o século XVIII investe de maneira específica no corpo da criança, produzindo uma série de práticas que se inscrevem em um processo de pedagogização de seu sexo. Esta pedagogização, por sua vez, ocorre primeiramente por meio de um silenciamento e de uma negação da existência da sexualidade da criança, mas que em momento seguinte desencadeia uma explosão de práticas que irão, por outro lado, exaltar, explicar, incitar, “liberar”, tratar, curar etc., todas as suas manifestações em torno de seu corpo. Há uma hipótese que atravessa esse debate que entende que é a partir do momento em que a criança se torna um dos grupos estratégicos do dispositivo da sexualidade, tal como pressupõe Foucault, um conjunto heterogêneo de regimes de verdades e práticas é também produzido sobre esta criança, de maneira tal, que se desenha para ela um modo específico de viver a infância. Dessa maneira, a infância vai se constituindo, tal como a sexualidade, como um dispositivo histórico do poder. De forma correspondente às características do dispositivo, o artigo desenha as práticas que emolduraram a infância moderna, tais como: as Práticas pedagógicas, as Práticas divisórias e identitárias de gênero e de sexualidade e as Práticas médicas. Observa-se, nessas práticas, as linhas de visibilidade e de enunciação, as de força e as de subjetivação, todas convergindo de maneira a esquadrinhar o corpo da criança e a configurar para ela um modo de viver, de se portar, de se vestir, de habitar, de brincar, de se expressar. Um movimento que é preciso e micropolítico: das práticas de disciplinamento do corpo ao dispositivo da infância.

Palavras-chave: Infância; Sexualidade; Dispositivo; Pedagogização

Abstract

What is pedagogization? What is childhood? And, what is the device? This article is based on a doctorate research which links these three concepts from a Foucaultian analysis. The starting point is the notion that the 18th century invested specifically in the body of the child, producing a series of practices which register into a pedagogization process of their sexuality. This process first occurs through silencing and denial of the existence of a child´s sexuality, but at the following moment, it will trigger off an explosion of practices which will exalt, explain, incite, “liberate”, treat, cure, etc, all the manifestations around their body. There is a hypothesis which crosses this debate that understands that from the moment the child becomes one of the strategic groups of the sexuality device, as assumed by Foucault, a heterogeneous set of regimes of truths and practices is also produced on this child, in such way that a specific manner of living the childhood is shown to them. This way, childhood constitutes itself, as well as sexuality, as a historical power device. By corresponding to the characteristics of the device, the article shows the practices which framed the modern childhood, such as: Pedagogical Practices, Divisive Practices and gender and sexuality identity Practices, and Medical Practices. Through such practices, it is possible to observe the visibility and enunciation lines, as well as the strength and subjectivation ones, converging to frame the body of the child and to configure them as a way of living, behaving, playing, and expressing themselves. A movement which is precise and micropolitical: from the practices of body discipline to the childhood device.

Keywords: Childhood; Sexuality; Device; Pedagogization.

Introdução

Este artigo se deriva de uma pesquisa de doutorado1 que procurou problematizar e analisar a maneira pela qual a infância foi produzida na modernidade como uma categoria específica. Trata-se de uma infância esquadrinhada no interior de um regime de verdade que a denomina majoritariamente como frágil, indefesa, indivíduo a ser educado, corrigido e protegido. A proposta que desenhou esta investigação foi a de encontrar, a partir de uma inspiração genealógica, as práticas que produziram estes regimes de verdade e analisar a maneira pela qual estas se convergem na produção de um sentido, de uma forma, de um dispositivo, o qual compreende-se ser a infância. Observa-se que um conjunto de práticas produz esta infância quando a enuncia e a visibiliza de uma certa maneira, respaldadas e sustentadas pelas forças e relações de poder que existem em diferentes dimensões e que subjetivam as crianças de modo específico na direção de emoldurar suas experiências a partir de uma forma, a qual chamou-se de infância.

A analítica desta investigação se respalda em Michel Foucault. Para o autor existe uma pedagogização do sexo das crianças, consolidada a partir do século XVIII, a qual pode ser compreendida como um resultado de um processo específico de investimento no corpo, e dentre tantos corpos, investiu-se particularmente no corpo da criança. As reformas morais e religiosas dos séculos XVI e XVII foram pontos de virada no que diz respeito à moralização do corpo da criança a partir de ações que mobilizaram os sentimentos de vergonha e de pudor sobre seus gestos afetivos ou sexuais. O conhecido autor Philippe Ariès (1981) revela, a partir de suas análises iconográficas, que o corpo da criança, neste mesmo período histórico, passa a ser coberto e vestido. A nudez só se torna possível quando representada nas imagens sacras, associadas à figura pura e angelical do menino Jesus ou de anjos. Essas análises realizadas por Ariès (1981) sugeriram a interpretação de que a gênese da ideia de uma criança inocente, pura, angelical, naturalmente boa, pode ser observada nas relações de moralização de seu corpo, sob efeito das reformas religiosas e morais deste período histórico. Ao mesmo tempo em que surge esta noção, denominada pelo autor como o primeiro sentimento da infância, emerge também um sentimento oposto a este, que é ideia de que crianças são naturalmente imorais, devido à relação muito próxima que possuem com o seu corpo e seus instintos; a esse segundo sentimento de infância foi dado o nome de exasperação, e este teria sido responsável pelas ações que vieram a ser mobilizadas para educar, corrigir e moralizar as crianças, configurando para elas todo um novo modo de viver e de se relacionar com seu corpo e com sua sexualidade.

A questão que está sendo discutida aqui carrega a ideia de que há um ponto de convergência entre a pedagogização do sexo da criança2 e a produção da infância moderna ocidental, pois é na medida em que se tem um investimento específico sobre o corpo da criança como um dos grupos estratégicos do dispositivo da sexualidade, que se produz também uma maneira específica de pensar a infância. O século XVIII se caracteriza na visão destes dois autores, Michel Foucault e Ariès, como um momento específico em que emerge uma explosão discursiva sobre a sexualidade e sobre a infância, na medida em que se reconhece sua especificidade e se produz a partir de então uma série de investimentos para se dizer algo sobre esta singularidade, ou seja, seu modo de compreender o mundo a sua volta, seus pensamentos, suas “fases” de desenvolvimento, seu desenvolvimento cognitivo, físico, motor e afetivo, suas formas de aprender, etc. Mas há um movimento fluído e contínuo nessas significações, pois são os discursos sobre as crianças e sua sexualidade que produzem a própria ideia de infância, ao mesmo tempo em que, a ideia de existência da infância estimula também uma explosão discursiva sobre essa existência singular.

Na produção destes sentidos o que está em evidência, é então, o corpo, e entre tantos outros corpos, o corpo da criança. Este é primeiramente, objeto de divertimento, de paparicação e de distração do adulto. A partir do século XVI ele se torna objeto de vergonha, de pudor, um corpo que precisa ser coberto, moralizado, educado e vigiado, controlado, nos mínimos detalhes. Nasce, segundo Foucault, uma técnica de poder específica sobre o corpo, a disciplina. A disciplina, diz Foucault, “[...] é a anatomia política do detalhe” (FOUCAULT, 1987, p. 120). A escola e os colégios, a partir do século XVII, já passam a adotar essa política de modo que, pouco a pouco, o espaço e o ensino, antes ministrados em lugares abertos, muitas vezes, sem paredes e sem bancos escolares, como registra Ariès (1981), vão dando lugar a uma estrutura enfileirada de cadeiras, mesas, e mais especificamente, de crianças organizadas segundo suas “capacidades” e/ou suas “dificuldades” em relação ao ensino.

A pedagogia moderna se insere nesta política à medida que esquadrinha os métodos de ensino, organiza o tempo e o espaço da forma mais produtiva e útil, e faz isso, a partir de certa definição de infância, de certa classificação da criança no tempo, na cultura, na natureza, na natureza do ensino e da aprendizagem. A pedagogia moderna é, portanto, uma espécie de efeito entre o esquadrinhamento do método e do esquadrinhamento do corpo e da criança.

Esta nova abordagem para a pedagogia é também decorrente de uma demanda emergente em relação à escolarização. A escola restrita e destinada a poucos membros do clérigo vai se expandindo, incorporando populações da nobreza, dos burgos e do campo. A escola vai deixando de ser uma instituição menor para se tornar uma das instituições de maior responsabilidade pelo desenvolvimento social e pelo “progresso”. A criança entra, por assim dizer, em outra dimensão social a partir de sua localização em uma massa desorganizada que passa a configurar a formação dos grandes centros urbanos. A criança passa a ser inserida, a partir do século XVIII, no interior de um dos problemas marcantes desse século, o problema da “população” (FOUCAULT, 2005).

De maneira bastante resumida, pode-se compreender que os séculos XVI e XVII tiveram maior influência das instituições e práticas religiosas sobre o corpo da criança. No século XVII e ainda o XVIII a maior influência foi das instituições e práticas pedagógicas (entre elas, as religiosas), que tinham por objetivo educar as crianças e protegê-las do espaço mundano. O século XVIII mantém a influência das práticas pedagógicas, e também não exclui as influências morais e religiosas, mas incorpora a elas ainda outras, que correspondem às práticas médicas. Nesse sentido, as crianças entram em uma espécie de arsenal de “cura” e de medicalização de seu corpo. A disciplina, ora vinculada ao esquadrinhamento do espaço e do tempo, a fim de tornar os corpos “úteis” e “dóceis”, possibilita também o esquadrinhamento da população, e dentro dela, das crianças, em uma rigorosa concepção de assepsia e de higienização social.

As práticas médicas se dão em nome de uma proteção e de uma defesa da sociedade. Suas ações, seus pressupostos, suas práticas se dão a partir dessa justificativa. As crianças, nesse contexto, são compreendidas, ora como seres indefesos, “em perigo”, e ora como seres “perigosos”. As práticas médicas vão agir nesse momento a partir de ações que retiram as crianças das ruas, as inserem em instituições fechadas específicas e dentro delas as educam com base nos preceitos higienistas e eugenistas. O que está em jogo é um novo esquadrinhamento da criança e de seu corpo, que se dá por meio da disciplina, mas, sobretudo, por meio de uma nova atmosfera produzida sobre a criança, de um novo regime de verdade e de novas práticas que objetivavam tornar visível certo modo de ser criança, certo modo de viver a infância e colocar a população (dentro dela, as crianças) em certo padrão de normalidade.

No interior deste padrão de normalidade destaca-se a centralidade dada na família, na configuração de um regime de verdade sobre a sexualidade dos casais, que produz certo tipo de família, a qual Foucault (2001) chama de “canguru”. Ao mesmo tempo, a emergência dessa família ocorre em função da própria centralidade dada à criança, a partir do século XVIII. Foucault (2001) compreende, na verdade, que essa concepção de família só existe e tem por condição a existência de certo tipo de infância. É a preocupação com o corpo da criança, e mais especificamente, com a masturbação e com a sexualidade que se desenvolve na infância que faz com que se eliminem todos os intermediários na educação das crianças, para centralizá-la no seio da família, sob responsabilidade do casal heterossexual. Ao mesmo tempo, o corpo e a sexualidade se tornam um instrumento importante de condicionamento da população, à medida que as taxas de natalidade, de procriação, de mortalidade, de doenças sexualmente transmissíveis, etc., são variáveis dessa população que precisa ser esquadrinhada.

A sexualidade é, portanto, um dos instrumentos mais eficazes de controle, sendo denominada como um “dispositivo histórico do poder” (FOUCAULT, 1977) produzido e fabricado no interior de um conjunto heterogêneo de práticas discursivas, de leis, de medidas administrativas, de pressupostos científicos, religiosos, filosóficos, etc. Tal dispositivo atua sobre o corpo da criança configurando toda uma pedagogização do seu sexo, que ocorre a partir de diferentes práticas inscritas em seu corpo, de maneira a produzir, no passar dos séculos, modos específicos de se relacionar com o corpo e com a sexualidade, e ao mesmo tempo, modos específicos de organizar, de habitar, de viver, para todas as crianças. A pedagogização do sexo das crianças é, portanto, um processo que vai do corpo à configuração de certa normalização para as crianças, isto é, à configuração de uma forma-infância.

Por que esse investimento tão preciso sobre o corpo da criança e sobre a produção de uma infância? Compreende-se que, por ser um dos grupos estratégicos do dispositivo da sexualidade, as crianças entram, também, em uma rede complexa de saberes e poderes. Autores como Narodowski (1993), Corazza (2000, 2002, 2011, entre outros) e Bujes (2000a, 2000b, 2002, 2008, entre outros) localizam, de diferentes maneiras, o modo pelo qual as crianças estão inseridas nessas redes. Compreendem que a infância é uma fabricação, uma invenção da modernidade, cujas funções estratégicas são variadas. Se a infância é uma invenção, uma fabricação da modernidade, produzida no interior dessa rede complexa de poderes e saberes que constituem diferentes práticas, entre elas as pedagógicas e as médicas, e ainda, se essa invenção possui algumas funções estratégicas, compreende-se que a infância, tal como a sexualidade, é também um dispositivo histórico do poder.

As discussões formuladas no presente estudo vão em direção de elucidar a infância a partir deste conceito, o dispositivo, empreendido por Foucault (1977) para pensar inicialmente a sexualidade, e posteriormente rediscutido por Agamben (2005), Deleuze (1999) e Veyne (2009). Neste artigo, será enfatizado um recorte desta investigação, de modo a elucidar prioritariamente uma analítica sobre o modo operante das práticas que produziram essa infância moderna e ocidental, dentre as quais destacam-se: As práticas pedagógicas e disciplinares do corpo, as práticas divisórias e identitárias de gênero e sexualidade, e as práticas médicas.

Algumas ideias sobre o dispositivo e os percursos metodológicos

Foucault define que a sexualidade é um dispositivo histórico do poder que se constitui por meio de um conjunto heterogêneo de práticas, de leis, de medidas, de discursos que mesmo sendo dispersos, produzem uma rede de significados. Para Agamben (2005) “O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos” (AGAMBEN, 2005, p. 9) e essa comporta, ao mesmo tempo, práticas e mecanismos que podem ser linguísticos ou não linguísticos, com o intuito de fazer frente a uma urgência, possuindo, portanto, uma função estratégica, e a partir desta ação, obter efeitos. Assim define Agamben:

[...] chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é em um certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e - porque não - a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata - provavelmente sem dar-se conta das consequências que se seguiriam - teve a inconsciência de se deixar capturar (AGAMBEN, 2005, P. 13).

Foucault (2008) revela pelo menos três características fundamentais do dispositivo: a heterogeneidade; a sustentação pelas relações de força, isto é, sua relação direta com o poder; a existência, sempre, de uma função estratégica, que procura responder a uma urgência. O dispositivo possui também uma gênese, isto é, se o dispositivo tem uma função estratégica, o que implica em certa manipulação das relações de força e em uma intervenção organizada sobre elas, existe sempre uma configuração de saber, um regime de verdade, que sustenta e orienta essa manipulação (MORUZZI, 2017, p. 289). Trata-se de pensar a relação intrínseca entre saber e poder, pois o poder nasce de uma configuração do saber, que igualmente condiciona o poder. Foucault (2008, p. 246) vai então concluir que o dispositivo é isto: “(...) estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles”.

Para Veyne (2009) o conceito de dispositivo se correlaciona o conceito de discurso uma vez que para Foucault o discurso é “quadro formal” por meio do qual conhecemos os objetos. Só alcançamos uma “coisa em si” por meio das ideias que se construíram dela em cada época e o discurso é exatamente a “formulação última” dessa ideia. A “coisa em si” encontra-se “assoreada” em seu discurso de modo que não é possível separar estes elementos. Entretanto, os discursos estão emaranhados em uma série de elementos dispostos ao seu redor: as leis, as normas, as instituições, e os saberes, as palavras e os costumes, os ditos e os não ditos; nesse sentido, segundo Veyne (2009, p. 16), mais vale falar em “práticas discursivas” do que em discursos, ou ainda, mais vale falar em “dispositivo” (MORUZZI, 2017, p. 289).

Foucault está inserido em um movimento que procurou construir uma história sociológica das verdades, em continuidade à Genealogia da Moral de Nietzsche. Interessava para o autor problematizar como é que determinados fatos entraram em uma rede de poderes e saberes tornando-se mais verdades do que outros fatos; essa rede, esse emaranhado de saberes e poderes é o dispositivo e o método para se localizar esses dispositivos é o genealógico.

Quando diferentes saberes, práticas, discursos, leis, medidas administrativas, instituições, pressupostos religiosos, filosóficos, etc., se empenham no sentido de produzir uma verdade sobre determinado fato, há a formação de um dispositivo (MORUZZI, 2017, p.289). Mas é preciso ressaltar que a noção de dispositivo de Foucault não inscreve o indivíduo num determinismo aos regimes de verdades e práticas, ao contrário, a potência deste conceito está ligada à forma pela qual Foucault entende o poder; onde há poder, há também resistência, desse modo:

O dispositivo é menos o determinismo que nos produz que o obstáculo contra o qual reagem ou não reagem o nosso pensamento e a nossa liberdade. Estas ativam-se contra ele porque o dispositivo é ele próprio ativo; é um ‘instrumento que tem a sua eficácia, os seus resultados, que produz algo na sociedade, que está destinado a ter um efeito’. Não se limita a informar o objeto de conhecimento: age sobre os indivíduos e a sociedade; ora, quem diz ação, diz reação. (VEYNE, 2009, p. 102).

Para Deleuze (1999) Foucault desenvolve em seus trabalhos uma análise genealógica de diferentes dispositivos concretos. O autor compreende que o dispositivo não delimita um sistema homogêneo, tal como a noção de sujeito, de linguagem e de objeto, mas que traça linhas e direções que podem a todo o momento serem rompidas, fragmentadas, invertidas. As características indicadas a respeito deste conceito são: a presença de linhas de visibilidade e de enunciação, que são, respectivamente, máquinas de “fazer ver” e de “fazer falar”. As linhas de visibilidade e de enunciação são, por sua vez, sustentadas pelas linhas de força, que atravessam todos os dispositivos, mas nunca de forma homogênea. Essas linhas podem ser fraturadas pelas “linhas de fuga”, produzidas pelas “linhas de subjetivação”, que são segundo Deleuze (1999) a dimensão do “si próprio” (MORUZZI, 2017, p. 291).

A pesquisa ora apresentada procurou investir na ideia de que, a infância é um dispositivo histórico do poder, tal como a sexualidade, uma vez que é possível observar um regime de verdade, uma formação discursiva, ou melhor dizendo, um conjunto de práticas que enunciam, visibilizam, produzem, inventam uma infância na modernidade ocidental. Indo ao encontro da perspectiva foucaultiana, é possível compreender que todo dispositivo possui uma gênese e uma função estratégica. Ao conceituar a infância como um dispositivo, a proposta desta pesquisa não foi a de encontrar uma origem desta infância, mas, realizar uma genealogia de modo a compreender quais foram as condições de emergência desta infância, pois:

A genealogia permite o questionamento e a percepção dos efeitos centralizadores de poder que vinculam os discursos científicos formulados em nossa sociedade e que fazem determinados saberes serem considerados e outros não, estabelecendo uma escala hierárquica e classificatória. Nesse sentido, a genealogia permite compreender porque em uma sociedade se considera um saber sobre o outro. Analisa-se assim, as condições de emergência de determinado saber em uma dada sociedade (MORUZZI; ABRAMOWICZ, 2010, p. 175).

A partir deste investimento genealógico e da ideia de que a infância é um dispositivo do poder, tomou-se emprestado também as características do dispositivo traçadas por Deleuze (1999). Apresenta-se a ideia de que as linhas de enunciação e de visibilidade são mais enfáticas no interior das práticas médicas, as linhas de força e de poder estão mais veementes no interior das práticas pedagógicas e as linhas de fuga e de subjetivação são mais mobilizadas pelas práticas divisórias e identitárias de gênero e sexualidade.

Práticas Pedagógicas e Disciplinamento do corpo das crianças

A partir de Ariès (1981) observa-se que as transformações relativas às representações sociais em torno das crianças produziram mudanças estruturais nas instituições escolares e nas práticas pedagógicas destinadas a elas. Isso ocorre à medida que as instituições escolares vão se configurando a partir dos novos saberes que se firmavam em relação às crianças, saberes estes que diziam algo sobre as suas formas de aprender, de se comportar, de agir, e, sobretudo, se coadunavam com os regimes de verdade que compreendiam as crianças como seres, ora inocentes, ora imorais, de maneira tal que a escola se inclina nas ações de uma educação protetora, e ao mesmo tempo, corretiva da criança. Subjacente a essas novas representações está, como vimos, toda uma nova representação sobre o corpo da criança de maneira que é possível compreender que a história das instituições é também uma história da disciplina do corpo (FOUCAULT, 1987). As práticas pedagógicas que se consolidaram no interior das instituições escolares se alicerçaram em inúmeras técnicas e mecanismos de poder. As práticas pedagógicas, portanto, sustentaram e sustentam a infância como dispositivo a partir das relações de força a elas inerentes.

O que está em jogo, segundo Foucault (1987), a partir do século XVIII é o controle da sociedade sobre os indivíduos, e este controle, por sua vez, “(...) não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo (...). O corpo é uma realidade biopolítica” (FOUCAULT, 2008, p. 80). O corpo como objeto de investimento não é a grande novidade das práticas do século XVIII. Em diferentes momentos históricos e sociais é possível observar que o corpo sempre estivera em evidência, sob regimes muito apertados de poderes, que sempre lhe impunham proibições, limites e obrigações. O corpo sempre foi ao longo dos séculos, objeto de diferentes mecanismos, ora de suplício e ostentação, ora de punição, ora de disciplina e de vigilância. O que de fato é novidade a partir do século XVIII é o modo pormenorizado pelo qual ocorrem os investimentos no corpo. Há, segundo Foucault (1987), em primeiro lugar, uma mudança na escala desse controle, pois não se trata de cuidar do “corpo em massa”, ou como afirma o autor (1987, p. 118) de pensá-lo como uma “unidade indissociável”. Ao contrário, o século XVIII é o século do “detalhe”, e a escala desse detalhe atinge os mínimos movimentos, os mínimos gestos e atitudes, exercendo sobre o corpo uma coerção sem folga. Em segundo lugar, há uma inflexão em relação ao objeto, pois o controle não se dá exclusivamente sobre os elementos significativos do comportamento ou da linguagem do corpo, mas sobre a dinâmica destes elementos, sobre a eficácia e a organização interna deles. Por isso Foucault (1987) compreende que há um investimento maior sobre as forças que estruturam essa dinâmica. Um terceiro e último aspecto inovador em relação ao investimento do corpo no século XVIII é o da modalidade: há um investimento contínuo, ininterrupto, que controla constantemente os processos de cada atividade, mais do que aos resultados, esquadrinhando de forma minuciosa o tempo, o espaço e o movimento dos corpos. Esses novos elementos do século XVIII permitem compreender que este período inaugura o que Foucault (1987), chama de sociedade disciplinar. A disciplina, explica Foucault (1987) consiste no método pelo qual essa sociedade controla minuciosamente as operações do corpo, sujeitando suas forças a uma relação de docilidade e utilidade própria do capitalismo (FOUCAULT, 1987, p. 118). O momento crucial da história das disciplinas corresponde ao momento histórico em que nasce “uma arte do corpo humano”. O que a disciplina visa de fato é “[...] a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente” (FOUCAULT, 1987, p. 119). O trabalho controlado sobre o corpo, a manipulação calculada de suas operações, de seus gestos, de seus comportamentos, etc., permite compreender que o corpo humano entra em uma espécie de “maquinaria” de esquadrinhamento, sustentada por diferentes linhas de força.

Uma multiplicidade de processos, de origens e localizações diferentes e dispersas, que ora se repetem, se imitam, se convergem e ora se distinguem em termos do objeto de aplicação, foram aos poucos constituindo uma “fachada de um método geral” (FOUCAULT, 1987, p. 119) para a “anatomia” dessa maquinaria. Ela esteve presente, de longa data, nos primeiros colégios e escolas primárias, nos espaços hospitalares e instituições militares. A disciplina imposta no interior destas instituições foi, paulatinamente, se constituindo em uma “anatomia política do detalhe”. Esta, por sua vez, tem sua gênese associada às meticulosidades da educação cristã. Dito de outra forma, a prerrogativa do detalhe é uma prática já há muito tempo promovida pela teologia e ascetismo. Foucault (1987, p. 120) irá explicar essa gênese da seguinte maneira: “(...) todo detalhe é importante, pois aos olhos de Deus nenhuma imensidão é maior que um detalhe, e nada há de tão pequeno que não seja querido por uma dessas vontades singulares”.

O processo de disciplinamento do corpo, ou essa anatomia política do detalhe sobre o corpo apresenta segundo Foucault (1987) alguns elementos característicos que podem ser observados em diferentes processos de disciplinamento. Existe, por exemplo, uma distribuição espacial dos corpos. Essa distribuição pode ser realizada via encarceramento, especificando um local espacial para determinado grupo de pessoas, por exemplo, as escolas para as crianças, os hospitais para os doentes, os manicômios para os “loucos” - ou pode ser realizada mesmo sem a exigência de uma cerca física.

A distribuição dos corpos sem a cerca trabalha o espaço de maneira muito mais “flexível” e “fina”. Há um “quadriculamento” do espaço mesmo quando as divisões não são visíveis fisicamente. O importante dessa distribuição espacial dos corpos é evitar as distribuições por grupos, decompor todas as implantações coletivas, analisar e dissipar todas as pluralidades confusas, maciças e fugidias (FOUCAULT, 1987, p. 123). Foucault (1987) irá dizer que o espaço disciplinar é dividido em parcelas que correspondem à quantidade de elementos e corpos presentes a serem divididos.

O que interessa nessa distribuição é anular todos os efeitos das formas indecisas, vigiar cada indivíduo de modo que não haja desaparecimentos descontrolados destes, ou seja, não pode existir no espaço disciplinar, uma circulação difusa de pessoas, de modo que a disciplina trabalha por meio de táticas que são “antidispersivas”, “antivadiagem” e “antiaglomeração” (FOUCAULT, 1987, p. 123). O espaço disciplinar é organizado de maneira que é possível estabelecer as presenças e as ausências dos corpos e dos elementos, é possível localizar onde e como encontrar estes corpos ou elementos e ainda, instaurar uma comunicação útil entre eles, podendo a cada instante vigiar, apreciar, sancionar, medir, qualificar. Quer dizer que, segundo Foucault (1987, p. 123), a distribuição disciplinar do espaço é um procedimento que permite conhecer, dominar e utilizar, em outras palavras, a disciplina organiza um “espaço analítico”; isso quer dizer pensar não somente a localização desses corpos, mas seu maior desempenho naquele espaço e naquele tempo de trabalho. Além disso, o indivíduo se configura e se define a partir da distância e da localização que estabelece com os outros indivíduos; são intercambiáveis e estabelecem uma unidade a partir da classificação que recebem no interior do conjunto de indivíduos. Um exemplo dado por Foucault são as classes escolares, que pouco a pouco foram se tornando cada vez mais homogêneas. Quando Foucault (1987, p. 126) faz esse debate evidencia a predominância da organização do espaço escolar por fileiras:

[...] filas de alunos na sala, nos corredores, nos pátios; colocação atribuída a cada um em relação a cada tarefa e cada prova; colocação que ele obtém de semana em semana, de mês em mês, de ano em ano; alinhamento das classes por idade umas depois das outras; sucessão de assuntos ensinados, das questões tratadas segundo uma ordem de dificuldade crescente (FOUCAULT, 1987, p. 126)

Quer dizer, o espaço escolar é organizado a partir de um conjunto de alinhamentos e que possuem um movimento perpétuo porque cada criança pode, ora ocupar um lugar destinado ao de maior desempenho, ou de “melhor” comportamento e, em momento seguinte pode ser alocado para o lugar do temido “fundão”.

O que está sendo efetivado neste momento é uma das grandes operações do processo de disciplinamento dos espaços e dos corpos: a organização dos “quadros vivos” que transformam a multidão desorganizada e difusa em uma multiplicidade organizada (FOUCAULT, 1987, p. 126). O quadro, diz Foucault, “(...) é ao mesmo tempo uma técnica de poder e um processo de saber. Trata-se de organizar o múltiplo, de se obter um instrumento para percorrê-lo e dominá-lo; trata-se de lhe impor uma ‘ordem’”. (FOUCAULT, 1987, p. 127).

Uma próxima operação empreendida pela disciplina é o controle da atividade exercida pelos corpos no interior desses quadros vivos. Existe nesse processo, por exemplo, uma marcação acirrada sobre o tempo: para cada hora, para cada minuto, para cada segundo, há uma atividade prescrita que vai ao longo do século XVIII tornando-se cada vez mais meticulosa. No controle desta hora está também embutida a prescrição do ato que deve ser empreendido em cada tempo pré-determinado. É a decomposição dos gestos e dos movimentos de maneira a ajustar o corpo aos imperativos temporais. Define-se, por assim dizer, a posição do corpo, dos membros, das articulações; define-se a direção, a amplitude e a duração de cada movimento do corpo, prescrevendo sempre o gesto seguinte a ser executado no tempo determinado. Para Foucault (1987, p. 129) o controle do tempo e do ato a ser exercido neste tempo é a forma minuciosa de penetração do poder sobre o corpo.

A escola, desde o século XVI e XVII foi se apropriando desse esquadrinhamento disciplinar e a intensificação da utilização do tempo foi se tornando cada vez mais meticulosa. Sua organização foi sendo feita de maneira que o ensino foi se centralizando cada vez mais na figura de um único mestre, as operações feitas pelas crianças foram se tornando cada vez mais divididas no tempo e sequenciadas por operações de maior dificuldade, ordenadas segundo cada grupo de alunos, de classes e de idades. A escola traz exemplos efetivos da organização disciplinar do tempo e da atividade do corpo controlado por diferentes instrumentos: os sinais de entrada, de saída, de recreio, os apitos que comandam o fim de uma atividade e o início de outra, etc. Enfim, o esquadrinhamento da escola corresponde ao processo de esquadrinhamento do corpo, no interior do espaço e do tempo inseridos na escola. Segmentarização do tempo, divisão das atividades por séries e graus de dificuldade, finalização de cada série com uma prova e o estabelecimento de novas sequências e de novas séries que o corpo deve ocupar no tempo destinado ao ensino na escola. “Esse é o tempo disciplinar que se impõe pouco a pouco à prática pedagógica [...]” (FOUCAULT, 1987, p. 135). Por isso Foucault compreende que a pedagogia que surge no século XVIII é uma pedagogia “analítica”.

A educação infantil atualmente é um dos espaços conquistados e de direito da criança. Um dos grandes debates que mobilizam as pesquisas deste campo é justamente em pensar a educação infantil sob uma lógica ou uma perspectiva diferente desta que foi solidamente construída para a escola. Se por um lado temos muitos aspectos positivos ao sermos inseridos nas políticas públicas de educação e sistemas nacionais de ensino, por outro, carregamos junto esse fardo histórico disciplinar que constitui a instituição escolar. São muitas forças internas e externas que se agregam ao espaço quando este se torna escolar - composições de rotinas rígidas, de currículos pré-estabelecidos sem aberturas para interações com as crianças, de horários fixos sem respeito ao ritmo das crianças, de produções de ocorrências e cadernetas de anotações que pouco ou nada retratam do trabalho realizado com as crianças ou de suas produções; etc.; há pouco da criança nesta escola e há muito de uma infância normalizada, pasteurizada, hegemônica. Há uma intensa pedagogização nas escolas de educação infantil, isto é, as práticas que se instauram nessa educação infantil escolar visam canalizar, adaptar e corrigir a partir de inúmeros dispositivos disciplinares que enrijecem as linhas de força que fazem das crianças sujeitos infantis. É nesta direção que as práticas pedagógicas também produzem o dispositivo da infância.

Práticas divisórias e identitárias de gênero e sexualidade

As práticas divisórias, explica Foucault (1995), são todas aquelas que, ao longo de diferentes momentos, estabeleceram critérios que podem separar um “eu” de um “outro”. Alguns exemplos são dados quando Foucault discute a constituição da infância, na psiquiatria, como instrumento de comparação e psicologização do comportamento adulto. Ou ainda, as discussões que o autor faz para demonstrar a produção do normal e do anormal, do doente e do são, do sujeito criminoso e do “bem comportado”, etc. Os modos de objetivação que se realizam a partir do dispositivo da sexualidade produzem diferentes práticas que vão, mais especificamente, esquadrinhar e regimentar a sexualidade dos casais, das crianças e que, por sua vez, criarão diferentes regimes de verdade para produzir uma sexualidade que acaba por dividir os indivíduos em “os perversos”, os desviantes, os anormais, ou os normais. Há uma correspondência intrínseca entre alguns fatores: primeiro é que, ao regimentar a sexualidade dos casais, produz-se todo um regime de verdade que coloca como imperativo uma sexualidade que é privada, que deve ser tratada como fator reprodutivo e que deve se realizar exclusivamente entre pessoas do sexo oposto. Dessa maneira, impõem-se o imperativo da heterossexualidade, ou como tem sido definida por alguns autores, da heteronormatividade (BUTLER, 2007; BUTLER, 2008; LOURO, 2007a; LOURO, 2007b; entre outros). Foucault irá dizer que esse imperativo, enuncia e visibiliza um tipo de família, que ele chama de “canguru”. É, segundo o autor, uma mobilização em torno da criança e, mais especificamente em torno de seu corpo e de sua sexualidade que irá mover e constituir esse tipo de família, que centraliza seu olhar, seus cuidados e sua vigilância em torno da criança. O fato é que, se o dispositivo da sexualidade aciona todos estes esquadrinhamentos, há um conjunto de forças e elementos acionados que produzem nos indivíduos certos tipos de sujeitos. É a partir desses elementos que compreende-se que existe uma produção do sujeito menina, do sujeito menino, do sujeito menino negro, do sujeito homossexual, isto é, que se divide os sujeitos em tantas categorias que são identitárias e que formulam percepções de um “eu” e de um “outro” a partir de uma categorização de seu corpo.

Quando Ariès (1981) aborda o sentimento de infância, associa a emergência deste sentimento ao sentimento de família. Tanto Ariès (1981), quanto Foucault (1977; 2001; entre outros) nos ajudam a compreender que a família nuclear é constituída a partir de uma centralidade dada à criança. Na verdade, o que ocorre de novidade neste período é que a família passa a ser formada a partir de uma nova relação com o sexo. Foucault (1977) irá dizer que a família que passa a se constituir como modelo no século XVIII é aquela que se forma a partir de outros sentimentos, diferentes dos exclusivamente contratuais do dispositivo da aliança. Esse novo sentimento é o amor e o dispositivo da sexualidade atua nos casais como forma de gerenciar esse amor. Ao se colocar a centralidade nas crianças e por consequência, acionar a família nuclear para cuidar, proteger e zelar pela vida destas crianças, produz-se ainda outro sentimento que diz respeito ao amor, no caso, das mães pelos seus filhos, ou como definem alguns autores, o amor materno (BADINTER, 1985).

O século XVIII é, no caso, responsável pela produção de outro imperativo ligado ao sentimento de infância, que é o de atribuir às mulheres um sentimento incondicional e instintivo pelos seus filhos. Badinter (1985) irá problematizar o sentimento de amor materno a partir da análise de diferentes práticas de abandono das crianças por suas mães durante toda a Idade Média e início da modernidade. Apesar de inúmeras críticas que são proferidas ao seu trabalho, Badinter (1985) traz alguns elementos importantes a respeito de toda uma explicação social para estes abandonos que tentam, por sua vez, preservar o sentimento de amor materno como algo inerente e natural da mulher.

A discussão feita por Badinter (1985) busca compreender quais são as condições de emergência desse amor e porque em determinado momento histórico ele se torna imprescindível, ou para usar a expressão de Foucault (1977), estratégico. O que se observa é que o percurso histórico no qual se pode localizar as representações sociais em torno das mulheres é muito próximo do percurso histórico das representações em torno das crianças. A explicação dada por Badinter (1985) é que tanto as mulheres, quanto as crianças possuem representações sociais marginais de modo que, quando a criança emerge colocando para a família a tarefa de zelar por sua vida, a mulher, tão “idiota” quanto a criança é acionada para cumprir este “papel” quase que de forma exclusiva em relação aos homens. Do ponto de vista Foucaultiano (1977) tanto as crianças, quanto as mulheres pertencem ao grupo estratégico de ação do dispositivo da sexualidade; a criança totalmente cerceada, controlada e “protegida” e a mulher redirecionada para ser a boa esposa, boa mãe, a ser um bom ventre e proteger a sua prole. A questão que está em jogo aqui é que se produz a partir destas práticas discursivas uma forma específica de ser menina, ou seja, um sujeito menina, e um sujeito mulher, condicionada às relações de poder que estão emaranhadas na rede destas relações. Assim como, se produz no interior dessas mesmas práticas formas específicas de ser menino, de ser homem, uma forma específica de masculinidade, e ainda, relacionando com questões raciais de cada contexto, época e cultura. No âmbito das discussões sobre as formas especificas de ser mulher, os debates de gênero procuram por longas décadas problematizar a maneira pela qual essas condições foram dadas às mulheres e naturalizadas ao sexo feminino.

É possível dizer que há uma virada epistemológica no debate teórico em meados da década de 1970, quando Michel Foucault publicou a História da Sexualidade, fazendo com que algumas feministas, revissem a proposta analítica inicialmente dada pelo sistema sexo/gênero, problematizando a existência de um corpo, de um sexo ou de uma sexualidade a priori. Foucault (1977) traz para essa problemática a noção de que a sexualidade é o dispositivo histórico, não a realidade subterrânea das práticas, dos desejos, dos corpos; a sexualidade é aquilo que circula, aquilo que se produz sobre o sexo, aquilo que se fala, e se incita; a sexualidade, é, portanto, uma invenção, uma produção cultural e histórica sobre o sexo.

No momento em que Foucault traz esta dimensão da sexualidade que a relaciona diretamente com sua compreensão a respeito do sujeito e do poder, boa parte das feministas da época está produzindo histórias de mulheres, no sentido de positivá-las a partir de uma conformação identitária do feminino, mas de forma desassexuada. Conforme indica Rago (1998) a problematização de Foucault em torno da noção de sujeito alerta para o fato de que não existe um sujeito deliberado, ausente e incipiente a toda conjuntura social, inabalável, intocável. Nesta perspectiva problematiza-se um sujeito natural que é o “ponto de partida” na constituição de sua identidade para pensar nele enquanto “ponto de chegada” (RAGO, 1998, p. 90). O sujeito, para Foucault, enquanto indivíduo assujeitado pelas redes e tramas de poder e de saber fez com que as feministas percebessem que as mulheres eram também produzidas, formadas, subjetivadas no interior desses saberes sobre o sexo. A noção em torno da sexualidade de Foucault faz com que se perceba que “o sexo participou indubitavelmente e de forma central na construção histórica de nossa identidade pessoal e coletiva (...)” (RAGO, 1998, p. 93) e:

Fundamentalmente, passamos a perceber que o universo feminino é muito diferente do masculino, não simplesmente por determinações biológicas, como propôs o século 19, mas, sobretudo por experiências históricas marcadas por valores, sistemas de pensamento, crenças e simbolizações diferenciadas também sexualmente (RAGO, 1998, p. 92).

O pensamento de Foucault, portanto, alerta para o fato de que mulheres, homens e crianças são formados enquanto sujeitos, isto é, subjetivados, no interior desses saberes e poderes. Foucault traz para a sexualidade uma dimensão que é cultural, tal como vinha sendo atribuído exclusivamente à categoria do gênero, conforme indica Louro (2007a, p. 210):

Tais indicações fazem-nos reafirmar, portanto, que, tal como ocorre com o gênero, haveria de se compreender a sexualidade como um constructo histórico, como sendo produzida na cultura, cambiante, carregada da possibilidade de instabilidade, multiplicidade e provisoriedade.

Segundo Carvalho (2011, p. 102), a partir desse período as feministas buscaram compreender o sexo como uma categoria totalmente inscrita na história e na cultura. Não há um momento em que a construção do corpo esteja ausente a estes elementos. Isto passa a significar que as formas e representações sociais dadas aos homens e as mulheres, atribuindo a eles diferenças e desigualdades, “determinam” as maneiras pelas quais o corpo é apreendido.

No interior das diferentes teorias que surgem sobre essa “construção social” do corpo, há posicionamentos não muito homogêneos. Isto porque os debates vão problematizar o quanto a história e a cultura determinam e constroem o corpo. Isto é, há diferentes posicionamentos dando maior ou menor proporção no valor dessa determinação do corpo.

Joan Scott (1995) e Butler (2008) são, por exemplo, algumas das teóricas que vão trazer apontamentos nesse sentido. Compreendem, de forma geral, que algumas análises sobre o gênero têm uma explicação única e universal sobre a dominação masculina e colocam essa dominação como eterna de modo, inclusive, a essencializá-la. Carvalho (2011, p. 103) afirma que essas perspectivas “(...) assumindo a construção social do gênero, enfatizam de tal maneira as constâncias e permanências que se aproximam do essencialismo”.

Para Butler “O paradoxo da subjetivação (assujetissement) reside precisamente, no fato de que o sujeito que resistiria a essas normas é, ele próprio, possibilitado, quando não produzido, por essas normas” (BUTLER, 2007, p. 170). O fato é que, mesmo no interior do que se suponha haver apenas “determinações” sociais, há processos de resistência e por isso, as linhas de subjetivação produzem também as linhas de fuga que são características centrais de um dispositivo.

No presente estudo foi possível levantar e analisar um conjunto de pesquisas que denunciam configurações identitárias de gênero e sexualidade, mobilizando um olhar sobre as limitações desta perspectiva (RIBEIRO, 2003; CRUZ; CARVALHO, 2006; ANJOS, 2007; VIANNA; FINCO, 2009) outras que problematizam e embaralham as identidades de gênero (MACHADO, 2005), outras que procuram correlacionar gênero à outras clivagens, como raça, questões de classe ou religião (CARVALHO, 2004; SOUZA, 2006), e outras pesquisas ainda que problematizam os estereótipos e padrões sexuais e outros padrões normativos ligados ao gênero, como o padrão de masculinidade, feminilidade, etc. (FELIPE, 2006; RIBEIRO, 2007; CÉSAR; DUARTE, 2009). Essas pesquisas revelam, essencialmente, um conjunto de práticas que atuam por meio do dispositivo da sexualidade, produzindo nos indivíduos, jovens e crianças, certa maneira de ser sujeito a partir de uma compreensão binária de mundo. São práticas, portanto, que atuam nos processos de subjetivação das crianças, tornando-as sujeitos infantis, isto é, produzindo uma “forma-infância” para todas as crianças.

Práticas médicas ou Em defesa da Sociedade

Compreende-se, tal como Deleuze (1999) que as linhas de visibilidade são as que tornam visíveis determinada criança ou determinada infância. As linhas de enunciação são aquelas que colocam as crianças ou infância na ordem ou no domínio da linguagem, ou de determinadas práticas discursivas. As linhas de visibilidade e enunciação não correspondem ao mesmo domínio ou ao mesmo tipo de formação, como ressalta Deleuze (1988), entretanto, nas discussões que apresentaremos neste estudo, elas estão associadas às práticas médicas. Essa proximidade entre as linhas de visibilidade e de enunciação (não uma proximidade conceitual, mas temporal, e de convergência em relação a certo tipo de gênese) pode ser compreendida porque, por exemplo, “no começo do século XIX, as massas e populações se tornam visíveis, vêm à luz, ao mesmo tempo em que os enunciados médicos conquistam novos enunciados” (DELEUZE, 1988, p. 42). Observa-se que as práticas médicas tornam visíveis as crianças pobres e negras, para enunciar a criança branca, higienizada e eugênica, entre outras formas, pela visibilidade da criança “robusta”. Na mesma direção, tornam visíveis as crianças a partir de um investimento em sua periculosidade, isto é, as crianças se tornam visíveis devido ao perigo que representam socialmente; este, por sua vez, está associado, nas práticas médicas, a dois fatores fundamentais: as crianças são perigosas porque são vulneráveis à masturbação, princípio de toda enfermidade adulta, e porque são frágeis fisicamente e moralmente, de modo a representarem um perigo para a saúde física e moral de todo corpo social. As práticas médicas agem, tanto pelas tecnologias disciplinares, quanto pelas tecnologias regulamentadoras, investindo, respectivamente, no corpo individual da criança e no conjunto de crianças, na massa populacional, isto é, na infância. Uma função estratégica dessas práticas é o fato de que elas se dão em nome da proteção ou da defesa da sociedade. Agregada a esta função estratégica está todo um conjunto de micro estratégias, como por exemplo, a constituição da família como instituição intermediária entre o Estado e as práticas médicas.

Foucault (2008) nos ajuda a compreender os aspectos fundantes das práticas médicas. Para o autor, a medicina moderna socializou um primeiro objeto de intervenção, o corpo, enquanto força de trabalho e de produção. Essa socialização é constituída por três etapas da medicina, denominadas: medicina de Estado, medicina urbana e medicina da força de trabalho. A medicina de Estado ou “polícia médica” foi o primeiro movimento de modernização da medicina e se constituiu em um importante fenômeno de normalização do campo, tanto das práticas médicas, quanto dos próprios médicos, por meio de um rigoroso controle por parte do Estado, dos cursos, programas de ensino e formação médica. A medicina urbana ocorre a partir da segunda metade do século XVIII, quando se inicia o desenvolvimento das grandes cidades, uma crescente urbanização e industrialização. Esse novo cenário demandou, do ponto de vista econômico, uma unificação das relações comerciais, e do ponto de vista político, uma unificação do sistema jurídico e legislativo com o intuito de “esquadrinhar” a população urbana (2008, p. 86). O principal motivo para tal esquadrinhamento foi o de apaziguamento das revoltas populares que ocorriam devido à expansão de uma população pobre, com fome e sem condições básicas de sobrevivência, aglomerada nos grandes centros urbanos. O sentimento que surge junto com a formação das cidades é o que Foucault chama de “medo urbano” (2008, p. 87) e certa “inquietude política sanitária” (idem, ibidem). Em casos de epidemias, Foucault menciona a reivindicação feita pela burguesia para protegê-la por meio de um plano de emergência, que consistia na imobilização da população em suas casas para facilitar a vigilância e o controle dos indivíduos doentes.

A medicina urbana possui a função de analisar a população, em especial, partindo dos amontoamentos humanos, dos lugares de confusão e de perigo, de controlar e estabelecer uma boa circulação de ar e de água. Segundo Foucault (2008, p. 93) é possível afirmar que a medicina urbana passou a analisar os efeitos do meio para a saúde do organismo. A noção de salubridade surge nesse contexto. “Salubridade é a base material e social capaz de assegurar a melhor saúde possível dos indivíduos”. A noção de higiene pública advém da noção de salubridade. Atentando para as etapas de desenvolvimento da medicina moderna Foucault compreende que, num primeiro momento, a medicina analisou o meio (medicina de Estado), depois passou a analisar os efeitos do meio sobre o organismo (medicina urbana) e por fim, analisou o próprio organismo ocasionando o desenvolvimento da terceira etapa, a medicina da força de trabalho ou dos pobres e operários.

A medicina dos pobres é mais evidente no segundo terço do século XIX e desenvolveu, em especial, a noção de que o pobre era um indivíduo “perigoso”. O que faz o pobre do século XVIII não ser perigoso, ao contrário do pobre do século XIX, advém das seguintes razões: (1) de ordem política: os pobres passam a ter força política após a Revolução Francesa e promoverem uma série de reivindicações e revoltas; (2) de ordem organizacional: enquanto os pobres exerciam algumas funções subalternas necessárias para a manutenção das funções fundamentais da cidade, como limpeza, serviço de postagem, movimentação dos entulhos, etc., ou seja, enquanto pertenciam à “paisagem urbana”, não representavam perigo; (3) de ordem epidêmica: eles eram responsáveis, segundo a burguesia, pela proliferação das doenças de modo que o mundo dos ricos e dos pobres foi, a partir daí, separados nas grandes cidades, criando as periferias (FOUCAULT, 2008, p. 94).

A medicina dos pobres incide na população de forma ambígua. Por um lado, passa a existir um sistema de leis (leis dos pobres) que garante a assistência à saúde da população pobre, beneficiando-a; por outro lado, essa assistência é feita por meio do controle médico e sua real intenção é proteger a população burguesa. Esse tipo de intervenção e controle médico foi se expandindo e tornando-se cada vez mais autoritário.

Uma correlação pode ser feita em relação à história da criança: a preocupação com a criança se dá pela preocupação com a população de crianças pobres que vagavam nas ruas das cidades. Um movimento muito semelhante ao registrado por Foucault (2008) pode ser percebido em relação às crianças. Elas são retiradas das ruas, porque são consideradas indivíduos perigosos, pois poderiam “contagiar” a sociedade com suas doenças físicas e morais. Produz-se em relação a elas um sentimento de medo e de pânico, sendo que são esses sentimentos que motivam uma varredura moral e higiênica com ênfase nas ações sobre as crianças pobres.

Os asilos e as instituições voltadas para crianças passam a ser geridos por esses princípios. Em suma, podemos perceber que o higienismo produz uma série de saberes em relação às crianças, em especial, das crianças pobres, assim como faz a medicina dos pobres. E o intuito desta medicina era, igualmente em relação às crianças, proteger os não pobres. É possível ver como essa configuração se deu em toda história da infância em autores como Gondra (2000), Danzelot (1980), Gouvêa e Jinzenji (2006), Gouvêa (2008), Freitas (2009), Del Priore (1999).

Outra ação específica da medicina foi produzir uma infância que pudesse servir de base para criação de referências para a psiquiatria, um dos campos de ação da medicina. Na produção deste saber, a infância foi denominada a fase inicial do comportamento humano, uma fase pueril e em desenvolvimento. A questão posta por Foucault é que, a partir do momento que se define a infância como “fase” de desenvolvimento e do comportamento inseridas nas descrições acima, entende-se que, o indivíduo adulto doente ou posteriormente anormal é aquele que possui comportamentos e atitudes similares ao de uma criança. Nesse sentido, Foucault compreende que a infância é a “condição histórica de desenvolvimento” da criança, bem como sua “forma geral de comportamento” (2001, p. 386). Mais do que isso, Foucault ressalta que:

(...) é pela infância que a psiquiatria veio a se apropriar do adulto, e da totalidade. A infância foi o princípio da generalização da psiquiatria; a infância foi na psiquiatria como em outros domínios, a armadilha de pegar adultos (FOUCAULT, 2001, p. 387).

Esta discussão permite compreender que a criança não foi simplesmente incluída em um tipo de saber que já existia, mas que foi, por assim dizer, a condição de existência deste saber, médico e psiquiátrico. A infância foi estabelecida como forma geral de comportamento e de desenvolvimento de forma a permitir, a partir daí, uma série de comparações de produções sobre o comportamento e desenvolvimento humano.

As formas de enunciar e visibilizar a criança a partir do século XVIII se insere também em um novo domínio do poder. As tecnologias do corpo, que configuram a sociedade disciplinar e as práticas pedagógicas, centravam-se na disciplina do corpo individual, o poder centrado no corpo, o qual Foucault chamou de biopoder; a medicina moderna faz emergir as tecnologias não mais centradas nos indivíduos, mas na espécie, no conjunto da população, no conjunto de crianças (na infância) na espécie humana, movendo um tipo específico de poder o qual Foucault chamou de biopolítica. As práticas médicas atuaram concomitantemente no corpo-indivíduo e no corpo-espécie. Não se trataram somente de um disciplinamento do corpo, mas de um governamento da população. Exemplo dessa abordagem são as pesquisas que falam sobre os ideais sanitários e eugenistas que estiveram presentes na constituição da infância no início do século XX (no caso do contexto brasileiro). Esses ideais visavam disciplinar um corpo, mas também se pautavam em um suposto melhoramento da espécie a partir de uma educação que seria passada de geração em geração. Estudos como o de Rocha (2003), Marques (2003), Boto (2001), Fernandes (2000b), Schueler (2000), Gouvêa e Jinzenji (2006), são alguns que trazem exemplos destas perspectivas regeneracionistas que compuseram história da infância e, portanto, a produção da infância moderna.

Considerações finais

O presente trabalho resultou de uma pesquisa de doutorado que procurou localizar, apresentar e discutir o modo pelo qual a noção de infância moderna foi construída. Os aportes teóricos desta investigação foram pelo menos dois: um corresponde aos estudos iniciados por Philippe Ariès a respeito da construção social da infância e, outro, correspondente ao aporte analítico elaborado por meio de Michel Foucault.

Este estudo procurou apontar que o dispositivo multifacetado da sexualidade inseriu-se, também, no corpo das crianças, produzindo sobre elas um novo olhar, uma nova visibilidade até então inexistente, que fez com que novamente, uma produção incessante de saberes e práticas se instalasse sobre elas, convergindo-as em certo modo de se portar, de se vestir, de se expressar, de pensar, de calar, de se mover, de parar, etc., enfim, convergindo as crianças em uma forma específica de viver a infância. O dispositivo da sexualidade é, portanto, o mote para a produção da infância moderna, e a infância se torna, também, um dispositivo histórico do poder.

O conceito de dispositivo é apresentado de forma a reunir suas noções conceituais e suas características centrais a partir de alguns autores como Agamben (2005), Veyne (2009) e Deleuze (1999). Para mobilizar um olhar sobre a infância como dispositivo acionou-se especialmente as disposições feitas por Deleuze (1999) para o qual o dispositivo é composto por linhas de visibilidade e de enunciação, que correspondem às formas pelas quais determinados objetos se tornam visíveis e por meio de quais enunciados. Estas linhas funcionam segundo Deleuze, como máquinas de “fazer ver” e “fazer falar” e são também sustentadas por diferentes “linhas de força” que produzem também certos efeitos nos indivíduos, que Deleuze (1999) chama de linhas de subjetivação e de linhas de fuga, pois não há um efeito mecânico e passivo dos indivíduos aos dispositivos, da mesma forma que não há um sujeito a priori, mas sim produzido no interior desses diferentes mecanismos. Este estudo procurou entender que forma-infância ou que sujeito infantil se produz a partir do dispositivo da infância acionado na modernidade e analisou-se o modo operante de três práticas específicas que se articulam às características do dispositivo, tais como: as práticas pedagógicas, as práticas que são identitárias de gênero e de sexualidade e as práticas médicas.

As práticas “pedagógicas” e disciplinares do corpo correspondem mais especificamente àquelas inseridas nos contextos escolares ou àquelas que são produzidas a fim de direcioná-los e orientá-los; entende-se por pedagógicas ou por pedagogização todas as ações que tentam de alguma forma direcionar, corrigir, canalizar ou anular os comportamentos, os gestos, as maneiras de agir e pensar dos indivíduos. Observou-se que a história da criança e da infância tem uma correspondência com a forma pela qual as instituições escolares foram organizadas ao longo de diferentes períodos. Ariès (1981) irá demonstrar, por exemplo, que as escolas e colégios existentes até o século XV funcionavam como abrigos para uma população pobre e que pouco a pouco foram se tornando instituições cuja tarefa era ensinar. Nos séculos XVI e XVII, as escolas já eram consideradas instituições de ensino, entretanto, o ensino aqui ministrado tinha uma função muito específica que era a de afastar os jovens e as crianças dos assuntos “mundanos”, no caso, dos assuntos relacionados aos prazeres do corpo e da carne. A tarefa de ensinar fez com que as escolas e colégios adotassem uma estrutura cada vez mais rígida e disciplinar. A disciplina corresponde, no caso, a uma “anatomia política do detalhe” que opera sobre o corpo das crianças a partir de diferentes instrumentos, tais como: a distribuições dos indivíduos no espaço e no tempo, de forma a tornar o espaço cada vez mais visível e o tempo cada vez mais útil. O espaço é organizado a partir da composição de verdadeiros quadros vivos e o tempo é regimentado a fim de estabelecer o que e como cada corpo irá realizar em cada segundo, cada minuto, cada hora. A noção de esquadrinhamento de Foucault (1987) e de enquadramento de Ariès (1981) é oriunda desta composição. Observa-se por fim que, quanto mais se queria cobrir, moralizar, corrigir e canalizar as ações e o corpo da criança, mais rigorosa foi se tornando a disciplina nas escolas. Nesta direção, a história das instituições escolares tem uma relação direta com as representações sociais em torno da criança e, da mesma forma, a história das instituições escolares é também uma história do corpo e, entre tantos, do corpo da criança.

As práticas que são divisórias e identitárias de gênero e de sexualidade se inscrevem nos corpos dos indivíduos funcionando como modos de objetivação; e são, no caso, pelos modos de objetivação que os indivíduos são subjetivados e se transformam em sujeitos. Essas práticas configuram identidades binárias e produzem sujeitos meninos, sujeitos meninas, sujeitos homossexuais, sujeitos negros, entre outros. Tomamos como referência o fato de que: “A formação do sujeito exige uma identificação com o fantasma normativo do sexo” (BUTLER, 2007, p. 156). Os processos divisórios e identitários do corpo passam também por diferentes representações em torno da categoria gênero. Observa-se que os estudos feitos por Foucault em torno da sexualidade trazem algumas novas perspectivas também para o conceito de gênero. Além disso, há uma correspondência entre as representações sociais em torno das crianças e as representações sociais em torno das mulheres de modo que o dispositivo da infância se configura a partir de ainda outro dispositivo, o da maternidade.

A despeito das práticas médicas destacamos, por exemplo, os modos de objetivação que elevaram a infância ao estatuto de ciência. A medicina e mais especificamente a psiquiatria produziram a infância a fim de estabelecer um comportamento normal para o adulto. Estabeleceram com a masturbação uma espécie de efeito somático sobre o qual todas as enfermidades adultas poderiam ser explicadas por meio da masturbação infantil. A medicina e a psiquiatria utilizaram de técnicas disciplinares para manipular, controlar e especialmente higienizar e “curar” os corpos. Mas essa manipulação não se efetivou exclusivamente nos corpos individuais, mas, sobretudo, no conjunto da população, no “corpo-espécie” como diz Foucault, de modo a esquadrinhar e regimentar também todos os fenômenos oriundos dessa nova demanda que foi a população. Por meio do estudo das práticas médicas observou-se que o esquadrinhamento da população tornou visível e enunciou como referência determinados modos de se comportar, de se vestir, de se alimentar, de cuidar do corpo, de habitar, de se relacionar e ter parceiros sexuais, etc. Os pressupostos higienistas, aliados aos eugenistas tornaram visíveis determinado corpo infantil, que era enunciado por meio da criança robusta que era majoritariamente apresentada por meio da criança branca ou como destacaram alguns autores, pela criança eugênica. Essas práticas tornaram visíveis também determinadas formas de se relacionar com as crianças pobres e as medidas tomadas para retirá-las das ruas, agrupá-las em certos estabelecimentos, torná-las “limpas”, higienizadas e na medida do possível culturalmente brancas.

A invenção da infância como critério de comparação e produção do comportamento normal e, sobretudo, “perverso”, as ações sobre as crianças pobres, o recolhimento delas das ruas, seu enclausuramento, assepsia, higienização e educação, e, por outro lado, a visibilidade de uma criança branca, higienizada e eugênica, bem como, por fim, a ação sobre os casais e visibilidade da família nuclear e do papel da mulher sobre a criança, fez com que as práticas médicas fossem postas como ações em nome da proteção e da defesa da sociedade. Esta seria, pois, a função estratégica maior que compôs para as crianças toda uma forma de ser e ter uma infância.

Por fim, entende-se que as práticas pedagógicas e disciplinares do corpo, as práticas divisórias e identitárias de gênero e de sexualidade e as práticas médicas, são ações que tiveram como elemento pulsante a sexualidade e o corpo da criança e mobilizaram um amplo percurso de pedagogização de seu sexo. A pedagogização do sexo da criança é, portanto, um movimento que começa pelo corpo e produz um modo de ser e ter, produz um regime de verdade específico, uma forma-infância para todas as crianças, isto é, um dispositivo da infância.

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1MORUZZI, Andrea Braga. A pedagogização do sexo das crianças – do corpo ao dispositivo da infância. Tese defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCar, São Carlos, 2012.

2Expressão utilizada por Michel Foucault (1977).

Recebido: 17 de Março de 2019; Aceito: 30 de Abril de 2019

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