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Revista Eletrônica de Educação

versão On-line ISSN 1982-7199

Rev. Elet. Educ. vol.13 no.2 São Carlos maio/ago 2019  Epub 01-Jan-2020

https://doi.org/10.14244/198271992396 

Demanda Contínua - Artigos

Leitura, escrita e literatura: análise multidisciplinar da inserção na cultura

Reading, writing and literature: multidisciplinary analysis of the insertion into culture

José Paulo Gatti I  

IDoutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde também participa do grupo de Estudos e Pesquisa Teoria Crítica e Educação. E-mail: jpgatti47@gmail.com - Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos-SP, Brasil


Resumo

O presente artigo procura encadear algumas ideias defendidas por pensadores das áreas da linguística, da filosofia, e da literatura, no que se refere ao processo social de individuação - integração dos sujeitos à cultura -, considerando as contradições desse processo dentro do modelo social contemporâneo, que, em grande medida, impede o ser humano de expressar sua singularidade e estabelecer uma identidade pessoal, a qual parece estar sempre em mutação. O trabalho consiste em uma pesquisa bibliográfica que conjuga os distintos referenciais teóricos, discutindo a temática em questão, de modo a estabelecer um diálogo entre diferentes áreas do saber e suscitar novas perspectivas para a ação educativa. A leitura do mundo antecede outras leituras e compreende um entendimento sobre a realidade e o outro, enquanto que a escrita, mais do que o domínio de uma técnica, corresponde à expressão do sujeito em comunicação com a realidade ao seu redor. Leitura e escrita integram o processo de inserção do sujeito na cultura, um processo complexo que se encontra prejudicado pela estruturação de conformações sociais autônomas, reguladas não mais pelos indivíduos em interação, mas por dependências do sistema social. A precariedade da vida, nesse sentido, revela-se de muitas maneiras e a literatura, reconhecendo tal fenômeno, articula meios de expressá-lo. Uma educação de cunho político, pautada na formação de consciências críticas, capazes de perceber as contradições do sistema vigente, propõe-se a romper os condicionamentos da existência. Tal dinâmica encontra, na literatura engajada, uma aliada para despertar as consciências através do fluxo de uma linguagem controversa, ambígua e não estandardizada.

Palavras-chave: Filosofia; Linguagem; Literatura; Integração à cultura

Abstract

This article seeks to put together some of the ideas defended by thinkers in the fields of linguistics, philosophy and literature, regarding the social process of individuation - the integration of subjects to culture -, considering the contradictions of this process within the contemporary social model, which, to a large extent, prevents the human being from expressing his uniqueness and establishing a personal identity, which seems to be constantly changing. The work consists of a bibliographical research that combines the different theoretical references, discussing the theme in question, in order to establish a dialogue among different areas of knowledge and to raise new perspectives for educational action. The reading of the world precedes other readings and comprises an understanding of reality and the other, while writing, rather than the domain of a technique, corresponds to the expression of the subject in communication with the reality around him. Reading and writing integrate the process of insertion of the subject into culture, a complex process that is hampered by the structuring of autonomous social conformations, regulated no longer by individuals in interaction, but by dependencies of the social system. The precariousness of life, in this sense, is revealed in many ways and literature, recognizing this phenomenon, articulates means of expressing it. An education of a political nature, based on the formation of critical consciences, capable of perceiving the contradictions of the current system, proposes to break the conditioning of existence. Such dynamics finds in the engaged literature an ally to awaken consciousness through the flow of a controversial, ambiguous, and non-standardized language.

Keywords: Philosophy; Language; Literature; Integration into culture

Resumen

El presente artículo busca encadenar algunas ideas defendidas por pensadores de las áreas de la lingüística, de la filosofía, y de la literatura, en lo que se refiere al proceso social de individuación-integración de las personas en la cultura-, considerando las contradicciones de ese proceso dentro del modelo social contemporáneo, que, en gran medida, impide al ser humano expresar su singularidad y establecer una identidad personal, que parece estar siempre en mutación. El trabajo consiste en una investigación bibliográfica que conjuga los distintos referenciales teóricos, discutiendo la temática en cuestión, de modo a establecer un diálogo entre diferentes áreas del saber y suscitar nuevas perspectivas para la acción educativa. La lectura del mundo antecede a otras lecturas y comprende un entendimiento sobre la realidad y el otro, mientras que la escritura, más que el dominio de una técnica, corresponde a la expresión del sujeto en comunicación con la realidad a su alrededor. La lectura y escritura integran el proceso de inserción del sujeto en la cultura, un proceso complejo que se ve perjudicado por la estructuración de conformaciones sociales autónomas, reguladas no más por los individuos en interacción, sino por dependencias del sistema social. La precariedad de la vida, en ese sentido, se revela de muchas maneras y la literatura, reconociendo tal fenómeno, articula medios de expresarlo. Una educación de cuño político, pautada en la formación de conciencias críticas, capaces de percibir las contradicciones del sistema vigente, se propone romper los condicionamientos de la existencia. Tal dinámica encuentra, en la literatura comprometida, una aliada para despertar las conciencias a través del flujo de un lenguaje controvertido, ambiguo y no estandardizado.

Palabras clave: Filosofía; Lengua; Literatura; Integración a la cultura

Introdução

Inserir-se em uma sociedade, assimilar os códigos de uma comunidade específica, reconhecer-se parte de uma família é processo formativo que principia no nascimento e, em grande parte, está vinculado ao desenvolvimento da linguagem. Com efeito, a linguagem constitui a pessoa - não apenas a integra ao universo cultural, mas lhe confere uma identidade propriamente humana, porquanto capacita a interagir a partir dos mesmos referenciais e valores compartilhados.

O processo de integração à cultura é uma dinâmica de múltiplas configurações, pois, se o sujeito incorpora elementos de seu meio social, também acaba transfigurando esse meio, a partir do entendimento particular que tem da realidade e de sua interação com ela.

Nesse sentido, será possível ler o mundo de outro modo? Dizer uma palavra, a própria palavra e reescrever a realidade de outra forma, de uma forma mais igualitária, mais humana e solidária?

No momento em que as instituições sociais vão, como um todo, se ajustando ao modelo empresarial, marcado pelas regulações econômicas do mercado global, torna-se imperioso problematizar a inserção nessa sociedade. Com efeito, o florescimento e predominância de uma racionalidade técnica e instrumental tem configurado uma nova cultura, na qual emerge uma vida danificada, limitada às atividades de produção e consumo, estabelecendo uma existência cada vez mais dependente e subserviente ao sistema.

Este texto é fruto de uma pesquisa bibliográfica que articula conhecimentos de distintas áreas procurando discutir criticamente o processo social de integração dos sujeitos a uma cultura cuja dinâmica regressiva impermeabiliza o pensamento, tornando-os atentos apenas aos esquemas prefixados.

Tomamos a leitura e a escrita como ponto de partida dessa reflexão, pois representam o primeiro esforço de interação social mais ampla, após a aquisição da linguagem, momento em que a palavra adquire sua conotação política mais densa. Depois, avançamos para a área da filosofia, discutindo esse processo de constituição dos sujeitos na sociedade contemporânea, e finalmente, para a literatura, percorrendo um itinerário significativo e procurando analisar o potencial formativo desse gênero específico.

Os autores analisados, a partir de suas distintas áreas, refletem sobre essa realidade. Ao aproximá-los, uns dos outros, em diálogo, nosso objetivo é suscitar novas perspectivas de abordagem desse fenômeno, de maneira que outras ações formativas sejam suscitadas e a educação do ser humano consiga resgatar a dialética própria da existência.

1. Leitura e escrita na constituição do sujeito

Para o psicólogo russo Lev Vigotski (1896-1934), desde o instante em que nasce, o indivíduo inicia uma aprendizagem que vai garantir sua sobrevivência. Num primeiro momento, a relação da criança com a mãe e o ambiente estimula diretamente o desenvolvimento de suas funções psicológicas elementares, iniciando o processo de internalização e adaptação ao meio. Em estágios iniciais dessa aprendizagem, as operações se realizam de forma direta, como reação do organismo a determinadas situações. Aos poucos, porém, passam a acontecer com a mediação de um estímulo de segunda ordem, o signo, até que a criança incorpora a linguagem (VIGOTSKI, 2007).

Assim, entre a criança e o mundo sempre há uma mediação, uma possibilidade de interação e de nova aprendizagem. Primeiro, na relação com o adulto, depois, com a palavra; primeiro, nas relações intersubjetivas, depois, intrasubjetivamente, quando o que foi incorporado permite à criança guiar-se por si mesma (VIGOTSKI, 2007). Sob tal perspectiva, o processo de formação humana toma nuances bastante específicas, uma vez que se circunscreve no plano da intersubjetividade, enraizado num contexto sociocultural, mediado pela fala. Para Vigotski (2007, p.11),

O momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual, que dá origem às formas puramente humanas de inteligência prática e abstrata, acontece quando a fala e a atividade prática, então duas linhas completamente independentes de desenvolvimento, convergem.

Sendo as interações humanas responsáveis pela aprendizagem e desenvolvimento e a linguagem um instrumento desse processo, é possível também concluir que a dialogicidade é sua característica essencial. Isso implica dizer que as relações que se estabelecem entre aquele que fala, aquilo que fala e aquele que escuta (ou lê) são interações comunicativas. O linguista russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) é um dos que por primeiro defendeu essa perspectiva acerca da linguagem. Segundo ele,

A interação verbal constitui a realidade fundamental da língua. [...]. A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes (BAKHTIN, 2004, p.124 - grifos do autor).

Ou seja, a língua é uma realidade viva, em contínuo movimento e transformação; é uma realidade humana e, sendo viva e figurando na esfera do humano, é também, por outro lado, uma dimensão constitutiva do ser humano, permitindo a ele entrar em contato com os outros, criar relações e fundar a própria consciência. Segundo o autor,

Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar (BAKHTIN, 2004, p.108)

Desse modo, quando alguém entra no circuito da comunicação e começa a se relacionar com os outros em várias aproximações, de múltiplas formas, ele pergunta, responde, ouve explicações, argumenta, em suma, circula por diferentes representações da linguagem. Ao adentrar no circuito social comunicativo, das interações humanas, os sujeitos desencadeiam o processo de formação da própria consciência. São as interações dialógicas que despertam a consciência dos sujeitos; em tais interações é que se aprende a ser, se constitui como ser humano, a partir das relações com os outros humanos, seus conceitos e valores, o que representa também a incorporação desses aspectos culturais.

Por outro lado, nessa situação interlocutiva, ele não só integra esse cenário para ser afetado e constituído na interação com os outros - com suas percepções, valores e falas -, mas também afeta e transforma o cenário a partir de suas próprias vivências e experiências, a forma peculiar com a qual apreendeu e assimilou o meio, e passa a transmitir em sua própria fala e modo de ser.

Assim, a situação interlocutiva antecede o sujeito, que entra nela sendo afetado e assimilando novos valores e expressões. Entretanto, por ser sujeito e possuir ele próprio uma fala, assume um posicionamento, com o qual também afeta o meio, transformando e recriando a situação interlocutiva.

No curso desse processo, o momento da instrução escolar representa uma etapa peculiar do crescimento, pois se trata de uma mediação social e cultural que abre um amplo horizonte de novas aprendizagens, capazes de movimentar o desenvolvimento. De maneira sucinta, é a etapa que descortina o âmbito da vida pública, distinguindo-a da esfera privada; que estabelece o contato com outras formas de conhecimento, especialmente o filosófico e científico; e que melhor exercita a prática do diálogo argumentativo para dar as razões das próprias crenças e valores.

A escolarização costuma inserir o indivíduo em um universo novo, espaço da polis, em que diferentes sujeitos, com valores e costumes já não tão comuns passam a interagir, em que diferentes comportamentos e variedades expressivas são aproximadas, ora encadeando novas articulações, ora rupturas e conflitos. A esfera pública se revela - em diferentes intensidades - espaço da diversidade, de um mundo que já não é tão acolhedor.

Quando surgiu na antiguidade, a polis era o espaço da liberdade, em que a individualidade, antes restrita à esfera da família e da vida privada, podia confrontar-se e expandir-se de diferentes formas, na busca do bem comum. A família era o espaço das obrigações, das tarefas e regras impostas pela tradição, mas a polis era o lugar de possibilidades novas, de outra vida, política. Na atualidade, a vida social ainda demanda um esforço de construção coletiva, mas ela está agora inserida no mercado, que regula a divisão do trabalho, as relações produtivas e o consumo.

A instrução escolar realiza também a passagem de uma percepção da realidade marcada pelo senso comum, pela autoridade e tradição, para uma problematização de conteúdos e contato com o conhecimento científico, centrado na verificação e comprovação de hipóteses. Uma nova linguagem, oriunda da leitura e da escrita, de textos selecionados, de argumentos lógicos, suscita o diálogo e a interação dos sujeitos sob novas bases, pois carrega novos valores e referenciais que são apreendidos e compartilhados.

Aquele que aprende a ler consegue muito mais do que discriminar as letras, transformando marcas em sons; ele percebe uma relação íntima entre o texto lido e a coisa que foi dita. E aquele que aprende a escrever, alcança mais do que cifrar palavras; ele consegue dar forma ao pensamento, expressar experiências e interesses que podem ser compreendidos por outros. Contudo, na nova sociedade de mercado, a racionalidade que comanda as interações, não é eminentemente comunicativa e dialógica, em busca de entendimento. Antes, é uma racionalidade instrumental, marcada pela sistematização e controle, produzindo uma linguagem instrumental que visa essencialmente à classificação dos eventos, padronização das condutas, resolução técnica dos problemas.

Jürgen Habermas (1929- ), filósofo contemporâneo da Escola de Frankfurt, afirma que é preciso compreender bem o novo contexto. O conceito de sociedade, por exemplo, precisa conjugar duas realidades distintas: o mundo da vida e o sistema (HABERMAS, 2012). Segundo ele, a racionalidade instrumental de que falamos não representa a totalidade de expressão da razão humana. Ela coexiste com e predomina sobre outro tipo de racionalidade, comunicativa, voltada ao entendimento pela via do consenso, capaz de considerar a subjetividade dos falantes em interação. Habermas (2012) acredita que o atual processo de integração dos sujeitos à sociedade articula ambas as dimensões explicitadas: ao lado de situações desencadeadas por sujeitos que agem deliberadamente, há situações em que os sujeitos são conduzidos pelo sistema, que os integra segundo esquemas funcionais e valores estabelecidos. Na verdade, a dinâmica da racionalidade instrumental tenta, cada vez mais, subjugar o mundo da vida, sistematizá-lo e controlá-lo.

A linguagem ocupa lugar privilegiado nesse processo. É a principal forma de interação, responsável pela comunicação e, nesse sentido, pela integração do sujeito à cultura, de modo que tudo fica mais grave quando essa cultura não humaniza, antes restringe os horizontes da vida.

Portanto, no processo formativo ideal, o desenvolvimento da leitura e a possibilidade de escrever e de interpretar os signos é uma experiência profundamente transformadora, pois permite ao ser humano ultrapassar suas percepções mais imediatas, imergindo na corrente da linguagem humana e emergindo como sujeito de sua própria fala. Não é só um processo de decodificação, mas, também, um processo interativo, através do qual assimila, interpreta e atua a partir do encontro com outras vozes. Quanto maior o contato com a multiplicidade de vozes, maior será a possibilidade de interlocução. E disto depende a emancipação humana, entendida como a emergência de uma consciência apta a participar ativamente da roda do diálogo, capacidade essa que parece danificada na moderna sociedade de consumo.

2. O processo de individuação na sociedade contemporânea

Se para Habermas (2012) a sociedade contemporânea engendra uma racionalidade instrumental cada vez mais ativa e influente sobre a racionalidade dialógica, cabe revelar os mecanismos desse processo. Em princípio, é preciso considerar que, ao contrário da perspectiva comunicativa, essa razão instrumental parece combinar-se melhor com uma percepção monológica de linguagem.

Com efeito, desde a perspectiva monológica, a linguagem é uma realidade estanque, pronta e fechada, sem movimento nem alterações. Nela se enfatiza o código, de maneira que o domínio de certas estruturas linguísticas e riqueza de vocabulário são suficientes para que o sujeito possa expressar-se. Nesse sentido, o conhecimento adquirido por meio dessa linguagem consegue atender apenas aquele conjunto básico estruturado de situações padronizadas do cotidiano que são estabelecidas de antemão, para o qual o sujeito foi instrumentalizado a responder. Trata-se, portanto, de uma concepção que não prevê muitas das interações entre as pessoas, contradições da existência, situações conflitivas, interesses dissimulados, etc. Nela, a linguagem paira acima da cabeça dos falantes, que tomam as palavras e expressões adequadas e já fixadas de acordo com o momento, sem espaço para uma reflexão autônoma. E parece ser esse o horizonte formativo para as grandes massas na atualidade.

Theodor Adorno (1903-1969) estudou a dinâmica da integração dos sujeitos à sociedade e desenvolveu o conceito de bildung - termo que designa a cultura, propriamente dita - para indicar o processo da formação cultural. Para ele, essa formação envolve um duplo movimento: o de socialização - integração do sujeito ao convívio social -, e o de subjetivação - espiritualização da cultura pela apropriação e ressignificação de seus elementos com a afirmação de um eu distinto -, de maneira que é preciso considerar a existência de uma tensão permanente entre os dois movimentos na consolidação do sujeito e da cultura. Entretanto, a tese de Adorno (2010) é de que essa tensão foi desfeita pela instalação de uma hegemonia da acomodação, do primeiro movimento. Tal acento, rompendo a dialética, instaura uma dinâmica regressiva, e vem sendo reforçada desde os primórdios da época moderna, na esteira da fundação da economia capitalista. Ela vem estruturando a vida na sociedade industrial de modo que sua força e poder sobre os homens são percebidas como uma nova configuração mítica da realidade.

Adorno e Horkheimer (1985) desenvolveram essas ideias em Dialética do Esclarecimento, publicado em 1944, e criaram o conceito de indústria cultural para designar as consequências da produção capitalista na estrutura social. O conceito utiliza o termo indústria para indicar a produção sistemática e em larga escala de certa forma de existência; a vida humana conformada em um processo industrial que produz a cultura e a integração dos sujeitos; o despertar de uma consciência planejada no fluxo da linguagem técnica que domina essa nova realidade. Nesse sentido, a sociedade industrializada estabelece as condições da existência dos cidadãos, por meio da produção e do consumo, e estes não impõem qualquer resistência ao sistema, pois entendem que suas necessidades podem ser satisfeitas pela indústria cultural. Portanto, o processo formativo no qual foi rompida a tensão original entre inserção na cultura e consolidação de um sujeito distinto configura-se como um processo de semiformação cultural.

A reversão dessa condição, no entanto, não pode ser postulada através do simples resgate de uma educação para a singularidade dos sujeitos. Na atualidade, existe ampla carência de possibilidades sociais de individuação porque as possibilidades sociais mais reais, os processos de trabalho, já não exigem mais as propriedades especificamente individuais. Os sujeitos devem conformar-se a padrões técnicos pré-estabelecidos, determinados comportamentos socializados que possibilitam um melhor aproveitamento da força produtiva. “Atualmente a sociedade premia em geral uma não individuação, mas uma atitude colaboracionista” (ADORNO, 1995, p.153).

Outros pensadores analisam essa situação de forma diversa. Zygmunt Bauman (1925-2017) é um dos que esclarece diferentemente aspectos significativos dessa realidade. Ele afirma que a sociedade contemporânea conseguiu projetar na imaginação das massas a satisfação de seus desejos e necessidades por meio do consumo de bens produzidos por ela. Dessa forma, mesmo sem poder, muitas vezes, acessar tais bens, as massas populares já não têm força ou interesse de se libertar dessa situação. Ao desejar um bem, o indivíduo acaba por defender a realidade que pode lhe proporcionar tal bem (BAUMAN, 2001). Partindo dessa observação, o autor acredita que a falta de motivação para enfrentar as contradições do sistema, o aparente equilíbrio, passa pela oferta incessante de produtos - muito além de qualquer imaginação - e, paradoxalmente, pela ampliação da capacidade de ação - entendida como o acesso a tais produtos.

Assim, para ele, o que não falta ao indivíduo, na atualidade, é liberdade para conquistar o que deseja. “As instituições sociais estão mais que dispostas a deixar à iniciativa individual o cuidado com as definições e identidades, e os princípios universais contra os quais se rebelar estão em falta” (BAUMAN, 2001, p.30). Isso acontece porque o que está em curso é uma modernidade líquida, distinta da modernidade dos tempos dos primeiros teóricos da escola de Frankfurt. Nada é perene agora, a não ser apenas o processo de contínua modernização.

O autor apresenta duas características principais dessa novidade: o colapso gradual e rápido declínio da antiga ilusão de progresso, de perfeição a ser alcançada, e a desregulamentação e privatização das tarefas e dos deveres modernizantes - uma gradativa passagem para o plano individual das responsabilidades pela consolidação da sociedade justa (BAUMAN, 2001). O que definitivamente marca essa nova modernidade é a apresentação dos membros da sociedade como indivíduos. Nesse sentido, o processo de individuação, de inserção na cultura, passa a ser tarefa de cada um, que deve construir uma identidade capaz de ser reconhecida pelos demais sujeitos.

Bauman (2001) acredita que os seres humanos não mais nascem em suas identidades - como eram os estamentos nas sociedades pré-modernas - nem são instados a se autodeterminar em função dos tipos sociais de classe e modelos de conduta, emergentes nas sociedades modernas. Para ele, agora não existem mais classes pré-estabelecidas; “os lugares que podem ser postulados e perseguidos mostram-se frágeis e frequentemente desaparecem antes que o trabalho de ‘reacomodação’ seja completado” (BAUMAN, 2001, p.42). Nesse sentido, cada um está sempre em movimento, construindo a própria identidade sem nunca a completar. Na verdade, o indivíduo constrói sua identidade e alcança (ou não) autonomia segundo as escolhas que faz numa sociedade orientada por relações mercantis, sendo o único responsável por elas. Cada um enfrenta, na solidão de seu eu, os mesmos problemas que todos enfrentam, mas não existem receitas prontas para ninguém.

Em outras palavras, o indivíduo tem direito à autonomia, podendo fazer da vida o que quiser. Mas há um abismo entre a autonomia de direito e a autonomia de fato, e só o esforço individual não é capaz de superá-lo. “Transpor o abismo é a tarefa da Política com P maiúsculo”, afirma Bauman (2001, p.49). Ou seja: o resgate da autonomia de fato exige a retomada das discussões acerca da vida e das relações humanas, com seus problemas e conflitos; e da cidade, com os interesses da esfera privada e os da coletividade. Assim, a inserção ativa de um indivíduo plenamente autônomo na sociedade exige sua constituição prévia como cidadão: alguém capaz de buscar o próprio bem através do bem-estar coletivo. Ocorre que as sociedades industrializadas se auto administram por meio da racionalidade técnica instrumental, cujos recursos e meios regulam a política-vida dos sujeitos em sua pseudo-individualidade, sendo incapaz desse resgate.

A perspectiva de Bauman (2001), portanto, é de que a modernidade líquida tem promovido a constituição de pseudo-sujeitos em constante busca de afirmação e cada vez mais distantes da composição de uma autêntica individualidade - entendida como capacidade de realmente escolher com autonomia o caminho a seguir, em sintonia com os outros e em relações plenamente humanas.

A pressão do sistema sobre os indivíduos vai conduzindo o processo de inserção na cultura de tal forma que a individuação não depende mais de uma ênfase no movimento da adaptação: é possível deixar com cada um a constituição do próprio eu. O sujeito, enfim, pode ser reconhecido como alguém singular, já que, em grande medida, sua consciência está marcada pelos princípios da sociedade de consumo.

3. Um olhar pelo espelho da literatura

Até aqui analisamos a existência da linguagem como realidade viva, que se constitui nas interações dialógicas, mas que também desperta a consciência dos sujeitos ao penetrarem na corrente comunicativa que os antecede. Por outro lado, vimos como tal linguagem parece perder espaço na atual sociedade que se estrutura e autorregula segundo uma racionalidade técnica, instrumental, inserindo os indivíduos em sua dinâmica de produção e consumo. Resta saber se a absoluta contingência da esfera pessoal da existência humana pode superar as determinações das estruturas sociais estabelecidas. Para isso, iremos agora adentrar no universo da literatura.

A literatura é uma linguagem que também busca captar o processo humano de inserção na sociedade, os embates, frustrações e (im)possibilidades de integração. Ela perscruta a pluralidade das experiências humanas no mundo: pluralidade de vivências e de formas de expressão. O texto literário, nesse sentido, repercute uma roda de diálogo, articulando distintas perspectivas da realidade e múltiplas possibilidades de compreensão. A literatura, como um caleidoscópio gráfico, combina, na esfera compartilhada, a diversidade de variações representativas da íntima realidade humana, permitindo que se discutam tais vivências, além de ampliar o universo conceitual e possibilitar o encontro com novas experiências. A narrativa literária, encadeando fatos, situações, emoções e pensamentos, cria um enredo dentro do qual a vida dos personagens se ordena.

E é desde essa perspectiva que a indústria cultural estrutura as histórias que vende nos filmes, novelas e em certa literatura elaborada para distender o espírito humano. Em tramas montadas geralmente de forma maniqueísta, bem e mal, heróis e vilões, bandidos e mocinhos se enfrentam continuamente em um dualismo eterno e estéril, reforçando valores legitimados e promovendo uma catarse de antemão anunciada.

Entretanto, uma abordagem fenomenológica e existencial da realidade humana foi desenvolvida por Jean Paul Sartre (1905-1980), para quem existe um descompasso entre a leitura que o homem moderno faz da realidade e o lugar que lhe cabe nesse contexto. Para ele, uma sensação de estranheza emerge da experiência do homem moderno constatando a total contingência de tudo. Essa constatação leva à dissolução de seu mundo. O mundo deixa de ser o espaço feito especialmente para ele; as categorias filosóficas que lhe permitiram significar sua existência não conseguem mais fazê-lo, não há como viver com o acaso quando ele se torna evidente. O homem passa de uma experiência indireta do mundo, através de conceitos, de sentidos necessários, para uma experiência direta do mundo, através de imagens que revelam a contingência de tudo que existe.

Sartre apresenta tal realidade em seu romance A Náusea (2006). Nessa obra, o narrador-personagem, Antoine Roquentin, historiador encarregado de fazer a biografia do Marquês de Rollebon, mostra-se desde o início, incomodado com certa experiência que não é capaz de precisar, mas que o incomoda profundamente. Na verdade, o estranhamento do personagem de certa forma alcança também o leitor, que não é capaz de precisar tal inquietação. Roquentin é bombardeado pelas coisas que estão à sua volta com tal dureza e ferocidade que se vê atordoado. Ele sente algo difuso, que talvez seja uma pequena crise de loucura, talvez certo medo, não há como saber ao certo. Mas o mal-estar aumenta e ele se vê envolvido por uma náusea.

Os objetos não deveriam tocar, já que não vivem. Utilizamo-los, colocamo-los em seus lugares, vivemos no meio deles: são úteis e nada mais. E a mim eles tocam - é insuportável. Tenho medo de entrar em contato com eles exatamente como se fossem animais vivos. Agora vejo; lembro-me melhor do que senti outro dia, junto ao mar, quando segurava aquela pedra. Era uma espécie de enjoo adocicado. Como era desagradável! E isso vinha da pedra, tenho certeza, passava da pedra para as minhas mãos. Sim, é isso, é exatamente isso: uma espécie de náusea nas mãos (SARTRE, 2006, p.23).

Contemplando o próprio semblante refletido no espelho, segurando uma pedrinha entre os dedos, incomodado pela presença de objetos mais reais a cada instante, Roquentin percebe a materialidade da existência e sua absoluta contingência. Algo como uma iluminação desperta-o para o absurdo de uma existência totalmente desencantada e livre das significações que lhe dão os homens. Um episódio em especial, junto ao castanheiro do jardim público, marca esse desvelamento:

Estava então, ainda agora, no jardim público. A raiz do castanheiro se enfiava na terra bem por baixo do meu banco. Já não me lembrava de que era uma raiz. As palavras se haviam dissipado e com elas o significado das coisas, seus modos de emprego, os frágeis pontos de referência que os homens traçaram em sua superfície. [...]. Fiquei sem respiração. Nunca, antes desses últimos dias, tinha pressentido o que queria dizer “existir”... (SARTRE, 2006, p.160).

Através de uma narrativa fragmentada, repleta de lapsos, de perdas, de sensações difusas, de encontros comuns que alcançam significação própria graças a essa percepção aguçada, os nexos entre palavras e coisas vão se desfazendo, as justificativas tradicionais vão perdendo sentido, a vida tornando-se alheia a ela mesma, cada vez mais distinta dos conceitos, até que Roquentin, finalmente, perde contato com a própria identidade:

Agora, quando digo “eu”, isso me parece oco. Já não consigo muito bem me sentir, de tal modo estou esquecido. Tudo o que resta de real em mim é existência que se sente existir. Bocejo silenciosamente, demoradamente. Ninguém. Antoine Roquentin não existe para ninguém (SARTRE, 2006, p.210).

Diante dessa total perda de referências, a saída encontrada por Roquentin para restaurar alguma segurança em sua própria existência é a narrativa literária:

Eis o que pensei: para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, é preciso e basta que nos ponhamos a narrá-la. É isso que ilude as pessoas: um homem é sempre um narrador de histórias, vive rodeado por suas histórias e pelas histórias dos outros, vê tudo que lhe acontece através delas; e procura viver sua vida como se a narrasse.Quis que os momentos da minha vida tivessem uma sequência e uma ordem como os de uma vida que recordamos. O mesmo, ou quase, que tentar capturar o tempo (SARTRE, 2006, p. 56-57 - grifo do autor)

A partir dessa perspectiva, Sartre desenvolve a tese de que a obra de arte empresta aos objetos materiais do mundo uma significação, um sentido, uma necessidade. Rompe-se a contingência: a obra de arte encadeia, dá sentido, torna necessário aquilo que era em princípio pura liberdade. E isso acontece por conta de uma dimensão especificamente humana: a imaginação. Em outra obra, o autor apresenta essa ideia afirmando que seu texto tem por objetivo

(...) descrever a grande função “irrealizante” da consciência ou “imaginação” e seu correlativo noemático, o imaginário [...]. Falaremos, portanto, de consciência da imagem, de consciência perceptiva, etc. (SARTRE, 1996, p.13)

A perspectiva dele é de que a consciência do sujeito produz uma imagem, essa imagem torna-se o objeto de sua consciência. Mas a consciência, enquanto permanece inalterada, é apenas consciência do objeto e não consciência da imagem. Para tornar-se consciência da imagem, ela realiza um novo ato: refletir. A consciência, portanto, ao refletir sobre os objetos que cria, torna-se consciência da imagem, descreve seu conteúdo essencial, encadeando sentidos. Para ele, há toda uma vida imaginária que nasce desse processo da consciência.

O ato da imaginação [...] é um ato mágico. É um encantamento destinado a fazer aparecer o objeto no qual pensamos, a coisa que desejamos, de modo que dela possamos tomar posse. Nesse ato, há sempre algo imperioso e infantil, uma recusa de dar conta da distância, das dificuldades. Dessa forma, a criança, em seu leito, age sobre o mundo com ordens e preces. A essas ordens da consciência os objetos obedecem: aparecem (SARTRE, 1996, p.165)

A literatura é fruto dessa reflexão imagética, um modo de reconstituir os nexos da condição humana contingente, a narrativa de uma possível realidade existencial de sujeitos em suas mais diversas condições e intenções. Ela reproduz o movimento do sujeito em busca de sua essência e é capaz de criar necessidade onde antes havia somente liberdade, conferindo essência a uma existência totalmente gratuita. E essa dinâmica da literatura se constrói não apenas em função do conteúdo discursivo, mas também no nível da forma, da expressividade que se procura alcançar. De fato, a literatura tem sempre um aspecto experimental, que subverte os padrões em busca de novas possibilidades expressivas.

Com essa perspectiva, Sartre (2004) entende, então, que uma autêntica literatura deve estar sempre engajada, conferindo sentido não pela via da idealização infantil, mas, paradoxalmente, pelo uso da palavra que revela a contingência da existência, pela compreensão da realidade humana absolutamente livre, com suas complexidades e ambiguidades. A literatura engajada, transgredindo conteúdo e forma, reflete a consciência contingente, em permanente processo de constituição identitária.

O papel da linguagem nesse processo é fundamental. Para Sartre (2004, p.19), a linguagem

(...) é nossa carapaça e nossas antenas, protege-nos contra os outros e informa-nos a respeito deles, é um prolongamento dos nossos sentidos. Estamos na linguagem como em nosso corpo; nós a sentimos espontaneamente ultrapassando-a em direção a outros fins, tal como sentimos as nossas mãos e os nossos pés; percebemos a linguagem quando é o outro que a emprega, assim como percebemos os membros alheios. Existe a palavra vivida e a palavra encontrada. Mas nos dois casos isso se dá no curso de uma atividade, seja de mim sobre os outros, seja do outro sobre mim. A fala é um dado momento particular da ação e não se compreende fora dela.

Ele entende que a fala é ação, e a escrita, enquanto impressão da fala, é uma forma secundária de ação. As palavras da fala, o discurso, são designações das coisas do mundo, e através da fala o sujeito prolonga a ação de seus pés e mãos, alcança e intervém no mundo. Por conseguinte, “o prosador é um homem que escolheu determinado modo de ação secundária, que se poderia chamar de ação por desvendamento” (SARTRE, 2004, p.20). Ele desvenda a contingência das coisas, a ausência de necessidade, a desconexão de tudo, e fazendo-o, muda a percepção que o leitor tem da realidade, altera seu mundo. Tanto pela forma como pelo conteúdo, o escritor engendra a transgressão, a possibilidade de outra fala:

O escritor “engajado” sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar é mudar e que não se pode desvendar senão tencionando mudar. Ele abandonou o sonho impossível de fazer uma pintura imparcial da sociedade e da condição humana (SARTRE, 2004, p.20).

Assim, a possibilidade de integrar-se ao meio social e viver sua existência num mundo contingente, onde o próprio pensamento é invadido por imagens e pela revelação da ausência de necessidade, pode acontecer através de uma consciência imaginativa, na arte: ela possibilita a passagem de uma reflexão conceitual das coisas para uma consciência imaginativa sobre as coisas. A linguagem literária, por exemplo, alcança vincular de tal modo o sujeito com o mundo ao seu redor que produz imagens figurativas capazes de estabelecer um novo sentido àquilo que não tem forma conceitual. Para Sartre, “a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele” (SARTRE, 2004, p.21).

Utilizar a literatura engajada no contexto da educação, como ferramenta de construção de uma identidade crítica, no entanto, não se faz de forma automática. Na verdade, muito já foi dito acerca dessa instrumentalização da literatura. O crítico literário Antônio Candido (1918-2017), em um estudo sobre a importância da literatura na formação do homem, analisa sua força humanizadora, que consiste, sobretudo, em confirmar a humanidade do homem - um papel, portanto, diretamente vinculado ao estabelecimento de sua identidade. Pensando nisso, ele vê, primeiramente, uma função psicológica que responde à necessidade universal do ser humano em busca de ficção e fantasia, encontrando na obra literária a satisfação pela fruição do texto.

A Literatura propriamente dita é uma das modalidades que funcionam como resposta a essa necessidade universal, cujas formas mais humildes e espontâneas de satisfação talvez sejam coisas como a anedota, a adivinha, o trocadilho, o rifão. Em nível complexo surgem as narrativas populares, os cantos folclóricos, as lendas, os mitos. No nosso ciclo de civilização, tudo isso culminou de certo modo nas formas impressas, divulgadas pelo livro, o folheto, o jornal, a revista: poema, conto, romance, narrativa romanceada. (CANDIDO, 2002, p.80)

Considerando que esta busca muitas vezes representa uma tentativa de explicar e compreender a existência do homem no mundo, Cândido estabelece um elo entre a ficção literária e a realidade concreta. A literatura, operando a partir do devaneio que lhe abre o caminho da imaginação criativa, tem como ponto de partida a realidade sensível, o que confirma o laço entre a imaginação literária e a realidade concreta, e “serve para ilustrar em profundidade a função integradora e transformadora da criação literária com relação aos seus pontos de referência na realidade” (CANDIDO, 2002, p.82). E disso decorre a questão sobre a possibilidade de uma função formativa de tipo educacional na literatura. O autor entende que sim, mas compreende que

(...) a função educativa é muito mais complexa do que pressupõe um ponto de vista estritamente pedagógico. A própria ação que exerce nas camadas profundas afasta a noção convencional de uma atividade delimitada e dirigida segundo os requisitos das normas vigentes. A Literatura pode formar, mas não segundo a pedagogia oficial, que costuma vê-la ideologicamente como um veículo da tríade famosa - o Verdadeiro, o Bom, o Belo, definidos conforme os interesses dos grupos dominantes, para reforço da sua concepção de vida. Longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica (esta apoteose matreira do óbvio, novamente em grande voga), ela age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela - com altos e baixos, luzes e sombras. Daí as atitudes ambivalentes que suscita nos moralistas e nos educadores, ao mesmo tempo fascinados pela sua força humanizadora e temerosos de sua indiscriminada riqueza. (CANDIDO, 2002, p. 83, grifo do autor)

Assim, para o autor, a instrumentalização da literatura na educação, para que atue como manual de virtude e boa conduta, cria um objeto artificial incapaz de se acomodar totalmente. Ele conclui, sobre esta função educativa, que a literatura “não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver” (CANDIDO, 2002, p.85, grifo do autor).

Retomando a experiência literária proposta por Sartre (2006), Roquentin desconfia que algo está desajustado ao seu redor, como muitos também em nossos dias, diante de uma realidade tão sufocante e controladora. Mas a revelação da falsidade de um mundo forjado em sua mente só acontece ao encontrar-se embaixo do castanheiro. Ali, naquele momento, a materialidade das raízes enfiando-se na terra bem abaixo de seu banco lhe dá a exata dimensão de seus próprios pés sobre a terra em total gratuidade. Todos os discursos, todos os conceitos, as ideias sobre as coisas e como devem ser, tudo se torna duvidoso e incerto; perde o sentido de antes. O sentido só é recobrado quando se torna narrativa pessoal, isto é, quando ele mesmo se põe a encadear a própria existência, dando uma direção às suas atitudes. O mundo ao qual se ajustava esquematicamente já não mais o conduz, posto que agora deve dar razões pessoais a cada decisão tomada.

A partir dessa perspectiva, talvez seja pertinente cogitar a presença da literatura engajada, com sua especificidade reveladora das ambiguidades e contradições da existência, dentro de uma educação também adjetivada, ou seja, uma educação política, nos moldes propostos por Adorno (1995).

Segundo ele, a realidade de inúmeras instâncias sociais conduzindo a formação das pessoas demanda algum tipo de resistência por parte dos sujeitos que não queiram ficar inteiramente submetidos, e isso depende de uma educação eminentemente política. O autor afirma:

A única possibilidade que existe é tornar tudo isso consciente na educação; por exemplo, para voltar mais uma vez à adaptação, colocar no lugar da mera adaptação uma concessão transparente a si mesma onde isso é inevitável, e em qualquer hipótese confrontar a consciência desleixada. Hoje o indivíduo só sobrevive enquanto núcleo impulsionador da resistência (ADORNO, 1995, p.154).

Adorno (1995) acredita que a educação tem a tarefa de revelar os mecanismos da instrumentalização do pensamento, tornando transparente aquilo que é inevitável no processo de adaptação e confrontando criticamente o que seria simplesmente incorporado. Essa poderia ser uma forma de resistência, sempre questionando as próprias decisões e atitudes. Com efeito, a oposição aos processos massificados e à colonização dos espaços fundamentais - como é o da educação - tem especial relevância e define o caráter político do ato de educar. Por consequência, o desenvolvimento de um espírito crítico reflexivo que recupere as tensões inerentes à experiência dos homens no mundo torna-se urgente e é o princípio da educação que estamos buscando.

Nesse sentido, Adorno (1995) e Bauman (2001) estão de acordo, sugerindo uma educação para a cidadania. Tal educação, por sua vez, poderia ter na literatura engajada o referencial de uma linguagem que transgride as imposições da cultura administrada e revela a artificialidade e limites da racionalidade instrumental na condução da existência como um todo. Com efeito, se a literatura permite a passagem de uma reflexão puramente conceitual para uma imaginação criativa, ela pode aparelhar a consciência no desvelamento de uma realidade distinta, o que é eminentemente político. E se a fala é ação e a escrita uma ação secundária, a literatura tem, então, a força e o potencial de uma multidão de vozes ampliando as possibilidades de interlocução com diferentes e contraditórios horizontes existenciais.

4. Considerações finais

As ideias apresentadas pelos autores visitados tensionam diferentes aspectos da realidade, no sentido de desafiar discursos hegemônicos estandardizados e postular perspectivas teóricas alternativas. Esses pensadores entendem que é pela via da negatividade que se pode deslocar o espírito acomodado, a palavra padronizada, a univocidade conceitual.

Trata-se de uma negação que, na radicalidade do pensamento, sugere cogitar o que não é conceitual com conceitos, sem cair no conceito (ADORNO, 2009). Se isso é possível em alguma instância, como por exemplo, a da arte, a linguagem literária parece pretender tal meta. Desarticulando sentidos estabelecidos, criando ambiguidades, acentuando a ausência de propósitos universais, denunciando a artificialidade dos desígnios existentes, a literatura engajada desencadeia uma reflexão crítica da realidade.

A literatura, nesse sentido, torna-se uma linguagem capaz de desnudar a discrepância profunda, a situação paradoxal que envolve os indivíduos na modernidade liquefeita: de um lado, uma sociedade na qual os modelos estão sempre se transformando em consequência de novas perspectivas mercadológicas; de outro lado, sujeitos instáveis, volúveis, em busca da própria identidade, sempre incerta, cuja individualidade parece nunca se consolidar inteiramente; e, gerindo esse processo cultural, um sistema sócio-político-econômico totalizante, cuja ação produz condicionamentos para a reprodução social e o consumo permanente, além de atribuir exclusivamente aos indivíduos toda a responsabilidade pelas escolhas e decisões tomadas. Um modelo em constante transformação, mas que não abre mão de seus princípios fundamentais e que segue orientando a existência por meio da ciência e da tecnologia, suas linguagens favoritas.

A realidade contraditória, no entanto, parece bem ordenada na dinâmica reprodutiva da indústria cultural. Nela subsiste uma linguagem restauradora de nexos, querendo escamotear a dialética da existência, servindo aos interesses do mercado, defendendo uma pretensa neutralidade da sociedade vigente em relação às escolhas de cada um. Os produtos da indústria cultural repercutem essa linguagem, fazendo da vida um enredo, tecendo uma trama, encadeando o acaso. São histórias que têm o poder de estabelecer relações de sentido entre o que era pura gratuidade e querem apontar a direção a seguir.

Ciência e tecnologia, de certa forma, também compõem essa linguagem. Elas desmistificaram os espaços sagrados e as esferas de segurança existentes no passado, substituindo-as por produtos especialmente planejados para encadear sentidos e restabelecer um mínimo de direção, pela via do mercado. Sem dúvida, esse é o modelo da matrix, consciências marcadas com o selo impessoal das tecnologias que justificam o rejeito social, delineando uma margem de ação cada vez mais estreita e uma liberdade permanentemente guiada.

Configura-se, dessa forma, a dialética da existência. No embate das tensões, a tarefa educativa é reivindicada por polos opostos, mas dentro dela, a literatura engajada toma partido pelo desvelamento das contradições. Se, como dizia Bakhtin (2004), ingressando na corrente da comunicação verbal a consciência desperta e começa a operar, tal imersão, pela via da palavra dúbia, da ideia controversa, articulada no diálogo com os demais falantes, pode significar uma dinâmica formativa de cunho político, criando a resistência crítica diante dos condicionamentos do sistema produtivo e uma identidade solidária diante das necessidades da coletividade. Talvez essa seja a utopia da linguagem literária.

Ao politizar a palavra literária pondo às claras as contradições da existência e a absoluta falta de nexo da racionalidade hodierna, Sartre (2004) expressa o sentimento de quem recusa ceder à simples adaptação, pois encontra sua razão de ser rompendo os velhos condicionamentos sociais. Ele defende uma literatura que não estabelece a urdidura da vida e restaura nexos perdidos, mas que desperta a consciência no fluxo das palavras ambíguas, dos sentidos obscuros e transviados, da realidade com suas contradições e incoerências, absurdos e manipulações.

Desse modo, uma formação que promove a leitura e a escrita a partir de um conceito dinâmico de linguagem é aquela capaz de estabelecer o contato significativo entre o ser humano e a realidade que o constitui, aquela que suscita no ser humano a consciência da própria existência e de uma realidade ainda por ser contada. Tal formação se desenvolve na corrente dessa linguagem, na qual a literatura engajada é o fluxo que procura esclarecer a consciência predominantemente mercantil pela revelação de suas contradições e irracionalidades.

Referências

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Recebido: 18 de Agosto de 2017; Aceito: 29 de Novembro de 2018

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