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Revista Eletrônica de Educação

versão On-line ISSN 1982-7199

Rev. Elet. Educ. vol.13 no.2 São Carlos maio/ago 2019  Epub 01-Jan-2020

https://doi.org/10.14244/198271992673 

Demanda Contínua - Artigos

Fiandar com escritas de futuras pedagogas: alguns rastros das incendiadoras de caminhos

Weaving with writings by pedagogues to be: some trails from path burners

Fiandar con escrituras de futuras pedagogas: algunos rastros de las incenciadoras de caminos

Alice Copetti Dalmaso 1  

Marilda Oliveira de Oliveira 2  

1Professora Adjunta no Depto de Metodologia de Ensino-MEN, Universidade Federal de Santa Maria. Mestre e Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE-UFSM). Atua em cursos de Licenciaturas, desenvolvendo estudos na formação, ensino de ciências para crianças e suas imbricações com a cultura e com as filosofias da diferença. E-mail: alicedalmaso@gmail.com - Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria-RS, Brasil

2Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSM onde orienta dissertações e teses. Mestre em Antropologia Social e Doutora em História da Arte, ambos pela Universidad de Barcelona, Espanha. Atua em cursos de formação de professores a partir dos referenciais das filosofias da diferença. E-mail: marildaoliveira27@gmail.com - Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria-RS, Brasil


Resumo

Este artigo relata uma experiência de leitura e escrita realizada em atual percurso formativo acadêmico, nos espaços e tempos em que capturamos signos, afetos e pensamentos. O ensaio ‘O incendiador de caminhos’ (2011), do escritor moçambicano Mia Couto, foi manipulado num dos momentos de uma disciplina de ciências e educação, cuja ementa engloba epistemologias, metodologias e práticas pedagógicas na área das ciências naturais para crianças, num curso de Licenciatura em Pedagogia. Entretanto, o texto não viria falar sobre práticas pedagógicas e sim fazer pulsar um ‘quiçá’: quiçá se pudesse pensar em docência, em práticas pedagógicas ou em ciências - conjugadas com a vida - a partir do ensaio do autor. Um texto pode projetar uma potência, ativando modos de pensar-se, produzindo uma experiência de linguagem e de mundo. As futuras pedagogas nos mostraram as brechas que uma leitura pode fazer sobre uma docência em mim, no outro e em aberto. ‘O incendiador de caminhos’ se relaciona com a possibilidade de nos fabricarmos na trajetória de ocupar espaços, disciplinas e pensamentos enrijecidos da universidade. Queimam algumas certezas e fazem reivindicar, enquanto formadoras/es e formandos/as, a experiência de ler, pensar e escrever fagulhas de presente e futuro em educação.

Palavras-chave: Escrita; Leitura; Formação de professores; Mia Couto

Abstract

This article reports a reading and writing experience developed in a current academic formative process, in the spaces and times where we capture signs, affects and thoughts. The essay ‘O incendiador de caminhos’ (2011), by Mozambican writer Mia Couto, was manipulated during one of the moments of a science and education course, whose program involves epistemologies, methodologies and pedagogical practices in the field of natural sciences to children, in a Pedagogy Licensure course. However, the text would not discuss pedagogical practices but it would mobilize a ‘what if’ discourse: ‘what if’ I could think teaching, pedagogical practices or sciences - along with life - departing from the author’s essay. A text could projects a potency, activating ways of thinking, producing a language and world experience. The pedagogues to be have shown us the gaps that reading can produce upon teaching ‘in myself’, ‘in the other’ and ‘openly’. ‘O incendiador de caminhos’ relates to the possibility of fabricating ourselves in the trajectory of occupying rigid spaces, courses and thoughts at the university. They burn some certainties and claim, as teachers and teachers to be, the experience of reading, thinking and writing sparks of present and future in Education.

Keywords: Writing; Reading; Teacher training; Mia Couto

Resumen

Este artículo relata una experiencia de lectura y escritura realizada en actual percurso formativo académico, en espacios y tiempos donde capturamos signos, afectos y pensamientos. El ensayo ‘O incendiador de caminhos’ (2011), del escritor mozambicano Mia Couto, fue manipulado en uno de los momentos de la asignatura Ciencias y Educación, cuyo ementario incluye epistemologías, metodologías y prácticas pedagógicas en el área de las Ciencias Naturales para niños, en un curso de Profesorado. Sin embargo, el texto no hablaría sobre prácticas pedagógicas, sino de hacer pulsar un ‘quizá’: quizá se pueda pensar en enseñanza, en prácticas pedagógicas o en ciencias - conjugadas con la vida - desde el ensayo del autor. Un texto puede proyectar una potencia, activando modos de pensarse, produciendo una experiencia de lenguaje y de mundo. Las futuras pedagogas nos mostraron los vacíos que una lectura puede hacer sobre la enseñanza de uno mismo, del otro y en abierto. ‘O incendiador de caminhos’ se relaciona con la posibilidad de nos fabricarmos en la trayectoria de ocupar espacios, asignaturas y pensamientos rígidos de la universidad. Queman algunas certezas y hacen reclamar, como formadoras/es y formandos/as, la experiencia de leer, pensar y escribir chispas de presente y futuro en educación.

Palabras-clave: Escritura; Lectura; Formación de profesores; Mia Couto

Introdução: sobre nossa relação com a leitura e a escrita

Num dos ensaios que compõe o livro ‘E se Obama fosse africano’, o escritor e biólogo Mia Couto escreve que só nos tornamos ‘donos’ de um livro quando ele deixa de ser objeto, mercadoria: “o livro só cumpre o seu destino quando transitamos de leitores para produtores do texto, quando tomamos posse dele como seus coautores” (COUTO, 2011, p.102). Ou seja, para além do próprio autor que produz um texto, podemos aprender a inventar outros mundos com aquilo que lemos, a angariar novas configurações de si mesmo e a escrever outros mundos possíveis. Nessa coautoria de escrita-vida, embaralhamos a posição usual de escritor/a e leitor/a, produzimos sentidos com a superfície de um texto, aos lugares que ele nos lança, novos ou antigos.

Dalmaso (2017), em sua pesquisa de doutorado em educação, trabalhou com processos de escrileitura (CORAZZA, 2013) a partir de uma perspectiva das filosofias da diferença (DELEUZE, 1997, 2013; DELEUZE; GUATTARI, 1995, 1996, 1997), experimentando possibilidades de ler e escrever junto de diversos textos, produzindo uma complexa teia de pensamento-escrita. Uma pesquisa onde a pesquisadora se movimentava na tentativa de se dar permissão de ler como efetiva produtora de um texto. Permissão para, a partir do que lia, ouvia, percebia, sentia, pudesse escrever ao seu modo, mostrando como estava sendo afetada pelo mundo. Aprendendo a escrever por diversas instâncias e a contar na pesquisa de que maneira realizava uma tessitura de pontos de força, que disparavam escritas e novas buscas por leituras.

Aprendeu a escrever com a leitura de textos literários e filosóficos, ou enquanto observava uma criança de dois anos conversando com uma idosa. Escrevia enquanto seu corpo bordava, enquanto seus dedos iam bordando palavras aleatórias num tecido negro; escrevia enquanto observava uma mulher que passava todos os dias em frente à sua casa, ou com escritos de seu pai, com silêncios de pessoas, com imagens que a própria pesquisadora ia fotografando, pela vida e durante a pesquisa. Aprendeu a escrever com alguns personagens da literatura de Mia Couto, com um grupo de mulheres com as quais trabalhava, com espaços de fala coletiva da universidade, ou mesmo com os tempos de imobilidade no processo de pesquisa, onde e quando nada se passava, nada fazia sentir e sentido para ser dito e escrito. Foi dado um nome a esse processo de construção da pesquisa: Fiandografia.

A Fiandografia foi uma licença poética que se sustentou com a criação e conjugação do verbo Fiandar e certa brincadeira com suas variações: [Fiar]grafia, fiandografia, desejo de fiandar, escrever os fios, fios que escrevem. Das fiandeiras das aranhas, um verbo ainda não catalogado foi inventado, o Fiandar, derivado da palavra Fiandeiras. As Fiandeiras ou Fieiras são denominados os apêndices nos abdomens de alguns aracnídeos que produzem o que conhecemos por fios de seda, os quais formam as conhecidas teias.

Dependendo da espécie de aranha, os fios produzidos pelas glândulas são usados para formar estruturas e desenhos diferentes, o que varia também em função da finalidade da construção das suas teias: teias de captura, teias de cópula, teias de muda, de refúgio.

Esse encontro com aracnídeos, e o contágio com que seu modo de existência ia produzindo no agenciamento com o escrever a pesquisa, aconteceu, por sua vez, a partir de um encontro com um conto literário de Mia Couto, a Infinita Fiadeira.

A aranha, aquela aranha, era tão única: não parava de fazer teias! Fazia-as de todos os tamanhos e formas. Havia, contudo, um senão: ela fazia-as, mas não lhes dava utilidade. O bicho repaginava o mundo. Contudo, sempre inacabava as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela já amealhava uma porção de teias que só ganhavam senso no rebrilho das manhãs.

E dia e noite: dos seus palpos primavam obras, com belezas de cacimbo gotejando, rendas e rendilhados. Tudo sem fim nem finalidade. Todo o bom aracnídeo sabe que a teia cumpre as fatais funções: lençol de núpcias, armadilha de caçador. Todos sabem, menos a nossa aranhinha, em suas distraiçoeiras funções.

Para a mãe-aranha aquilo não passava de mau senso. Para quê tanto labor se depois não se dava a indevida aplicação? Mas a jovem aranhiça não fazia ouvidos. E alfaiatava, alfinetava, cegava os nós. Tecia e retecia o fio, entrelaçava e reentrelaçava mais e mais teia. Sem nunca fazer morada em nenhuma. Recusava a utilitária vocação da sua espécie.

- Não faço teias por instinto.

- Então, faz por quê?

- Faço por arte (COUTO, 2009, p.74-75).

Essa aranha dos escritos de Mia Couto, um animal ficcionado, tece por prazer de tecer, por arte, modo-existência de vida, realizando improdutivos afazeres, sem finalidade última em seu fazer e no produto-teia. Estes escritos do autor fizeram voltar, outrora, a escritos pessoais da pesquisadora, guardados virtualmente num blog, um pequeno conto nomeado Baú de bordados. Havia aí o enlace da potência entre o desejo de escrever, percebido nesse escrito antigo, e o bordar-fiar, aproximação do fazer da aranhiça, que fiava suas teias por prazer. A pesquisa, então, passou a fluir no encontro com essa passagem intuitiva. Ler-escrever-bordar (fiandar), compor verbos em ações que esgotavam uma “tarefa que trazia em si sua própria felicidade” (BARTHES, 1970, p.17).

Observar os movimentos e repousos, modos de existência de uma aranha, também foi preciso. O que pode um animal nos ensinar? Suas posturas, paralisias, tempos de feitio de teia, modo de unir fios, construindo e agenciando-se ao que se passa no mundo teia-aranha aliou-se aos modos de poder escrever, produzindo um texto que já não precisava ter um início-meio-e-fim. Fiandar, ler-escrever também era viver (e pesquisar), construindo e agenciando com o que se lê, com o que se vive, enquanto se vive. Ou seja, escritas de diferentes fontes e naturezas imiscuíram-se para tornar algo que permanecia no campo do porvir. Inventadas, perderam origem e pontos de chegada, importando mais o que elas disparavam (e seguem disparando), com o que se enroscam, o que fazem funcionar nas singularidades a serem produzidas.

Situamos esse lugar da pesquisa de doutoramento porque o Fiandar implica no movimento de nos colocarmos atentas para produzir novos nichos de pensamento, em qualquer espaço da universidade, e fora dela. No artigo ‘Para disparar leituras e escritas, para pensar na pesquisa e na docência: experimentando um espaço da pós-graduação em educação’ (DALMASO; GARLET; OLIVEIRA, 2016) encontramos o relato de uma experiência vivenciada no tempo-espaço da pós-graduação, utilizando alguns contos de Mia Couto para pensar a docência e a pesquisa. As autoras experimentaram materialidades literárias, e não um texto específico que falasse diretamente de docência ou de pesquisa em si, para um espaço de pós-graduação. Pensaram na literatura como possibilidade de “produzir vizinhanças com a docência e/ou a pesquisa, produzindo ‘entres’ nos quais poderiam inventar formas outras de dizer da docência e /ou da pesquisa” (DALMASO; GARLET; OLIVEIRA, 2016, p.956).

Em atual percurso, seguem procurando fiandar a partir e entre outros lugares, autores, pesquisas, pessoas, na teia infinita em que capturam signos, afetos e pensamentos. É desse lugar que estão e ocupam diariamente, a universidade, que desejam dar vazão a novos espaços e atualizações, fiandando por aberturas e produzindo novas teias de escrita-pensamento.

Das novas fiandografias com Mia Couto

‘Por que camponeses africanos convertem os capinzais em chamas?’ Mia Couto, em um de seus ensaios, escreve sobre a incumbência dada a ele para que, enquanto biólogo, falasse com os camponeses sobre os malefícios dos incêndios rurais. Para além e aquém de motivos e razões práticas dessas queimadas (agricultura de corte), o autor nos lança a outros lugares, raspando o senso comum sobre quem e/ou quê culpabilizar pela devastação da savana africana.

Na família rural de Moçambique, a divisão de tarefas sugere uma sociedade que faz pesar sobre a mulher a maior parte do trabalho. Os que adoram quantificar as relações sociais publicaram já gráficos e tabelas que demonstram profusamente que, enquanto o homem repousa, a mulher se ocupa o dia inteiro. Mas esse mesmo camponês faz outras coisas que escapam aos contabilistas sociais. Entre as ocupações invisíveis do homem rural sobressai a visitação. Esta atividade é central nas sociedades rurais de Moçambique. O homem passa meses do ano prestando visitas aos vizinhos e familiares distantes. As visitas parecem não ter um propósito prático e definido. Quando se pergunta a um desses visitantes qual a finalidade da sua viagem ele responde: “Só venho visitar”. Na realidade, prestar visitas é uma forma de prevenir conflitos e construir laços de harmonia que são vitais numa sociedade dispersa e sem mecanismos estatais que garantam estabilidade. Os visitadores gastam a maior parte do tempo em rituais de boas-vindas e de despedida. Abrir as portas de um sítio requer entendimentos com os antepassados que são os únicos verdadeiros “donos” de cada um dos lugares. Pois os homens visitadores percorrem a pé distâncias inacreditáveis. À medida que progridem, vão ateando fogo ao capim. A não ser que seja em pleno inverno, esse capim arde pouco. O fogo espalha-se e desfalece pelas imediações do atalho que os viajantes vão percorrendo. Esse incêndio tem serviços a vantagens diversas que se manifestam claramente no regresso: define um mapa de referência, afasta as cobras e os perigos de emboscadas, facilita o piso e torna o retorno mais fácil e seguro (COUTO, 2011, p.70-71).

Em seguida, acrescenta este fenômeno na perspectiva de ser biólogo, trabalhando com impactos ambientais, no intento de proteger ecossistemas e espaços produtivos.

Sendo um intruso nesta lógica, jamais aceitei a militância que me incumbiram no combate às queimadas: nunca fui capaz de dissuadir um desses incendiadores de caminhos. É bem verdade que não me move suficiente convicção. Mesmo que tivesse fortes crenças, nunca conseguiria desconvencer um desses camponeses. Porque eles são movidos por razões que não serão apenas práticas (COUTO, 2011, p.71).

O autor poetiza sobre a incumbência de sermos, em nossa meninice de espécie humana, caçadores. Daí a necessidade constante de partir, vaguear, vasculhar, de permanecermos sendo errantes e viajantes no tempo. Num devir-caçador, potente e latente em nós, reside certa efemeridade aos lugares e somente sobrevivemos enquanto espécie “porque fomos eternos errantes, caçadores de acasos, visitantes de lugares que estavam ainda por nascer” (COUTO, 2011, p.72). Caçar implicou a aprender a ler os sinais da paisagem, escutar ruídos e silêncios, gostar do medo e do susto, numa imbricação de exploração do ambiente e de também se permitir ser explorado por ele. A caça, nossa casa, “foi um mundo sem moradia” (IBIDEM).

Estes escritos de Mia Couto, um híbrido de vida real e poesia, sempre nos arrastaram para lugares de inquietude. Suscitavam desassossegos: enquanto formadoras, nos encontrávamos diversas vezes em sala de aula, diante da exclamação de perceber que um saber estritamente científico/acadêmico é limitado, e que esse saber não poderia ser ‘melhor’ que qualquer saber prático e vivido dentro de uma cultura específica. Por que não abrir brechas para ouvir e acolher outras texturas de mundos, àquilo que, antecipadamente, sempre foi negado dentro dos espaços acadêmicos (comumente rebaixado ao título de saber inútil à ciência e à academia)?

Este texto nasce dessa inquietude, e por isso convidamos novamente a escrita de Mia Couto a ser leitura num dos momentos de uma disciplina de ciências e educação, num curso de Licenciatura em Pedagogia. A Ementa da disciplina engloba epistemologias, metodologias e práticas pedagógicas na área das ciências naturais para crianças e jovens. Entretanto, o texto de Mia intitulado ‘O incendiador de caminhos’ não viria para falar sobre práticas pedagógicas, mas para fazer pulsar um ‘quiçá’: quiçá se possa pensar em docência, em práticas pedagógicas, e em ciências, a partir do ensaio de Mia Couto.

Foi, então, lançado às/aos estudantes as seguintes provocações: ‘O que os escritos de Mia Couto incitam a pensar sobre minha experiência educativa (como docente e/ou como estudante)?’ Como o texto pode ajudar a pensar sobre o Ensino de Ciências?’

Encaminhamos os/as estudantes a tentarem produzir uma escrita não responsiva, de não encontrar no texto algo que dissesse sobre docência e/ou formação. A tentativa era deixar livre o que emergisse dessa leitura, uma escrita que se permitisse fiandar por outros caminhos para, quem sabe, aproximar-se de uma perspectiva formativa. Não havia limites de linhas, tampouco uma moral a ser concluída.

Nossa leitura atenta, ao ler os escritos, seria então de acolhimento do que pudesse surgir nessa tentativa. O que mostramos na sequência desse artigo é a seleção de quatro fragmentos, permitidos de serem publicados pelas estudantes3. É com elas que passaremos a fiandar agora. Escrevemos agenciadas, fiandando contágios quando afetadas pelas suas escritas, vazando por territórios indiscerníveis.

Incendiadoras, caçadoras, errantes

As paralisias e o móvel. A vida, que se alinha por entre sedentarismos e nomadismos, no jogo do risco e da segurança, do controle e da permissão de acreditar no devir. No campo formativo, estamos mais a desaprender modos de ser, um tanto escolarizantes, e aprendermos a nascer de novo em vida, acessando novos lugares de ser gente no mundo.

O texto de Mia Couto me faz pensar enquanto estudante o caminho que venho percorrendo a maior parte da minha vida, de forma sedentária, e passiva, exilando minhas ideias, inquietudes, que me impossibilitaram muitas vezes de criar hipóteses, arriscar suposições, invencionar, criar ou mesmo questionar. Fui instruída a buscar abrigo e criar raízes, a ansiar por lugares seguros, quietos e limitados.

Fui impulsionada a celebrar a estática do pensamento, que naturalizada e infelizmente interiorizada, me paralisavam no movimento crítico e reflexivo. Me tornando apenas uma visitante no campo do conhecimento, cheio de ritos e regras para estocar conteúdos rasos e superficiais.

A ideia de poder abrir portas para novas significações era remota, possíveis resquícios da minha antiga natureza de exploradora cheia de desejo e necessidade de conhecer e do meu jeito ensinar, de caçar novas possibilidades de sentir e criar, que agora abafada, graças aos ditos verdadeiros donos do lugar, lugar do saber, que ignoram qualquer conhecimento prévio ou experiência pessoal, que outrora me movia para abrir novos caminhos e vasculhar o desconhecido. Assim, a ordem foi escolher o caminho mais fácil e sem perigos, fui induzida a tomar gosto pelo lugar seguro, o de ouvinte cordial. Por que sair da zona de conforto? Quais razões para arriscar?

O gosto pelo lugar desconhecido e a possibilidade de construir, imaginar, criar, supor, invencionar, recriar, transformar a mim, o outro e o espaço já não faziam mais tanto sentido assim. Me contentar em apenas colher parecia o certo a se fazer.

Hoje, porém, esse espírito de aventura, que por muito tempo havia adormecido embalado nas cadeiras “formativas” da escola, agora ousa despertar e projetar o desconhecido, me aproximando dele, me permitindo perceber que o mundo faz parte de nós, que não sou apenas coletora, mas também semeadora e antes de tudo caçadora, que tenho que me desacomodar, abrir estradas, desenhar paisagens e marcar presença sem medo de me perder (Fragmento de escrita da estudante A).

Podemos aprender com a vontade de conhecer outras lógicas e sensibilidades do mundo, que são outras linguagens, outros saberes, nem melhores nem piores que o científico, o correto, o ideal. Conseguimos enxergar nossos colegas e futuros/as estudantes a partir desse lugar, quando trabalharmos ciências ou qualquer outra área de conhecimento? Como desenvolver escuta para outros saberes da vida, que não somente aqueles que dizem as cartilhas, legislações curriculares e livros didáticos? Afinal, nosso “incendiador de caminhos deve ser visto num universo onde a estrada é um luxo e o transporte é uma raridade” (COUTO, 2011, p.74-75).

Uma das primeiras coisas que pensei ao ler este texto foi o quanto fui ensinada a julgar as coisas sem estar inserida no contexto onde elas acontecem, ensinada na própria escola básica. A falta de embasamento de certos professores ao tratarem de assuntos como o das queimadas, que se fala no texto, de uma maneira totalmente umbilical, que não percebia as realidades dos diversos contextos, como o citado no texto; e essas ações foram parte de minha história, me formaram durante todo o ensino fundamental e, em parte, no ensino médio também.

[...] concordando com o que o autor retrata em seu ensaio, creio que o ser humano precisa realmente se aventurar mais para entender o outro e sair de uma acomodação um tanto egoísta, quebrando aquelas mesmas barreiras citadas anteriormente. E que não conseguirá se desenvolver e melhorar o estado individual e, consequentemente, social se não viajar - viajar também literalmente, saindo de seu espaço físico e conhecendo outros, abre margem para a produção de conhecimento, inclusive científico/natural. Também se não descobrir mais e se não movimentar o seu espaço e as pessoas a sua volta através de suas descobertas: “Hoje viajamos para sermos escritos, para sermos palavras de um texto maior que é a nossa própria Vida” (Fragmento de escrita da estudante B).

Talvez viver em educação seja se expor a todo risco e ambiguidade, resignar-se a ouvir e ver outras verdades, desobedecendo a dominação dada pelo excesso de teorias prontas, técnica e racionalidade científica. Assistir as tentativas e os conflitos de viver nossas instâncias de vida, de fazer educação, de trabalhar com multiplicidades de culturas, linguagens, processos.

Quanto ao ‘homem visitador’, poderemos sê-lo, uma vez que ‘prestar visitas é uma forma de prevenir conflitos e produzir laços de harmonia que são vitais numa sociedade dispersa...’. Mas como educadores, é preciso ir além disso. Devemos deixar um pouco de nós e mesclar nosso interior com o que recebemos dos outros. É preciso manter o espirito crítico aliado à lealdade. Ao decidirmos como será nossa travessia e à medida que incendiamos nosso próprio caminho, tudo fica mais claro e mais seguro, afinal, isso é um pouco do que nós mesmos construímos, uma referência, que se manterá ali intacta desde que recorrentemente façamos uso de tais caminhos (Fragmento de escrita da estudante C).

Assegurarmos-nos também de quem somos, o que fazemos, com o que e como lançamos fagulhas aos/às outros/as durante nossas travessias. Nesse caminho, sermos capazes de desfrutar, às vezes, de caminhos solitários da vida-docência, e da “prodigiosa diversidade do real, da fecundidade e das harmonias da vida” (CHRÉTIEN, 1994, p.38).

[...] O incendiador de caminhos tinha uma razão para suas queimadas. O biólogo, ao ser instruído sobre as práticas do incendiador também tinha - ou ao menos era esperado que tivesse - mas de maneira distinta, uma vez que seu objetivo era outro. Sendo assim, é preciso que sejamos sensíveis aos preceitos de outrem. ‘É preciso ler sinais, escutar silêncios, dominar linguagens e partilhar códigos’. E agora voltamos ao início, onde partir é a regra. Partir dentro de si e principalmente, para além de si, porque afinal, todos podemos ser - e somos - incendiadores de caminhos (Fragmento de escrita da estudante D).

Uma formação que possa lançar sementes ao vento

Ao ler, o importante não é o que o texto diz, aquilo a que o texto se refere, e sim o que o texto nos diz, aquilo para onde o texto se dirige. Não se trata de revelar um saber sobre o texto, mas sim de fazer a experiência do texto. O importante não é do que fala o texto, mas para que fala, para onde fala, para que pessoa ou pessoas fala. Na leitura, o texto fala para nós, nos fala: fala para nossa escrita, para nossa conversação, para nosso pensamento, para nossa maneira de viver (LARROSA, 2014, p.142).

Para Larrosa um texto projeta um modo de vida, uma potência. Precisa ativar modos de pensar-se, produzindo uma experiência de linguagem e de mundo. Como desfrutamos das escritas das estudantes? Trata-se de um modo possível de traçar possibilidades de experimentar maneiras de pensar o ser professor/professora sem, entretanto, escrever unicamente sobre ser docente. Elas nos mostraram as possibilidades, as aberturas, brechas, que uma leitura pode trazer sobre uma docência possível, de uma docência em mim, no outro, e em aberto.

Pensamos com a proposta, no sentido da afirmação de Larrosa, em liberar um texto de não ser ele mesmo um organizador de novas morais, de que não se faça de um livro ou texto “uma leitura escolar, que não sejam lidos como um texto informativo, explicador, opinador ou doutrinador, que não seja privado, em suma de sua potência de vida” (LARROSA, 2014, p.132).

Podemos perceber futuras educadoras sensíveis entre o que se passava entre elas e o texto, acessando lugares poéticos, reminiscências atualizadas e algumas construções de futuro sobre suas angústias com a formação. As escritas das estudantes fizeram soprar potências de vida, fazendo fugir seu próprio lugar de estudante, do costumeiro lugar de portador/a de opinião e certezas. Fizeram fugir uma disciplina metodológica, num pequeno movimento de fazer a própria universidade variar seu lugar identitário e de uma leitura, quase sempre, escolar e escolarizada.

Não havia explicações para o ensaio lido de Mia Couto, porque não se trata de somente compreender o texto, mas de perceber o que o texto pode produzir em nós. Estávamos então, de certa forma, a “des-professorizar” (LARROSA, 2014, p.128) nosso lugar de docentes explicadores, colocando em jogo o que poderíamos trazer de fim último do texto. Tínhamos nossos enlaces pessoais com a escrita do autor, mas queríamos poder inventar de lançar sementes ao vento, alimentando a oportunidade que outras linguagens se produzissem, tendo apenas uma questão inicial como disparadora de sopros.

Fiandar, como modo de existir em amplos modos de ser e estar na universidade, faz parte disso. De escrever e pensar juntos e a partir do que os/as estudantes pensam, dizem, escrevem, para quem e o quê em nós seus escritos falam, evitando ao máximo o ímpeto do julgamento, despindo suas ideias do plano do ideal.

Trata-se de experimentar o risco de “desconhecer-se num processo contínuo de produção de si mesmo, em outros modos de se pensar e fazer uma docência que pesquisa e uma pesquisa que se ensina” (DALMASO; GARLET; OLIVEIRA, 2016, p.966). Trata-se, também, de uma docência futura, e dessa escrita que nos torna outra coisa enquanto escrevemos, que visita outros lugares ainda não criados como educador/a.

Somos, afinal, parecidos com esse visitador. A diferença é que, no nosso caso, não é paisagem, mas somos nós mesmos que ardemos. Consumimo-nos nesse momento em que, mesmo parados, partimos à procura do que não podemos ser. Estamos recriando o mundo, refazendo-o a jeito de um livro da nossa infância. Estamos brincando com o destino como o gato que faz de conta que o novelo é um rato (COUTO, 2011, p.75-76).

O incendiador de caminhos se relaciona com a possibilidade de nos fabricarmos na trajetória de estar ocupando espaços, disciplinas, lugares e pensamentos enrijecidos da universidade. Queimam algumas certezas e fazem reivindicar, enquanto formadoras e formandos/as, a experiência de ler, pensar e escrever fagulhas de presente e futuro.

Fiandar com as escritas das futuras pedagogas a partir dos escritos de Mia Couto nos levou a produzir este texto como linhas de errância ou como uma escrita-rastro pois, em diferentes momentos nos tomamos produzindo desvios, tramando redes ou aguardando em alguma curva apenas para tomar fôlego.

Assim, a aranha faz fios de seda, dos quais se pode dizer que foram projetados e permitiram a urdidura; a partir daí, e fazendo-se a teia, a aranha literalmente engole os fios precursores - não que ela os rebaixe ou desdenhe; a seda que sai de seu corpo lhe é muito preciosa e ela a recupera. Quando esse alinhavo prévio desaparecer, engolido, dele não resta nada, ou, antes, esses fios se tornaram os da teia tecida que existe e persiste (DELIGNY, 2015, p.13).

Podemos dizer o mesmo: fomos capturadas e engolidas pela rede traçada das incendiadoras de caminhos, pelas linhas de escrita produzidas por elas e assim produzimos estes fios de escrita que nos possibilitaram criar novas configurações de redes entre aquilo que escrevemos, lemos e aprendemos com a formação de professores.

Referências

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LARROSA, J. Tremores: escritos sobre experiência. 1a ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, 175p. [ Links ]

Notas

3Situamos os escritos como sendo das estudantes porque os 4 textos selecionados eram de estudantes mulheres, ainda que a turma fosse mista

Recebido: 06 de Março de 2018; Aceito: 17 de Dezembro de 2018

Professora Adjunta no Depto de Metodologia de Ensino-MEN, Universidade Federal de Santa Maria. Mestre e Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE-UFSM). Atua em cursos de Licenciaturas, desenvolvendo estudos na formação, ensino de ciências para crianças e suas imbricações com a cultura e com as filosofias da diferença. E-mail: alicedalmaso@gmail.co

Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSM onde orienta dissertações e teses. Mestre em Antropologia Social e Doutora em História da Arte, ambos pela Universidad de Barcelona, Espanha. Atua em cursos de formação de professores a partir dos referenciais das filosofias da diferença. E-mail: marildaoliveira27@gmail.com

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