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Revista Eletrônica de Educação

versão On-line ISSN 1982-7199

Rev. Elet. Educ. vol.13 no.2 São Carlos maio/ago 2019  Epub 01-Jan-2020

https://doi.org/10.14244/198271992482 

Relatos de Experiência

Prática de escrita no processo formativo: a constituição de uma pesquisadora

Writing practice in the formative process: the constitution of a researcher

Liliane Silva de Antiqueira I  

Celiane Costa Machado II  

Cleiva Aguiar de Lima III  

1Doutora em Educação em Ciências pela Universidade Federal do Rio Grande, com pesquisa na área de formação de professores de Matemática. Investiga as temáticas de ensino de Matemática, formação de professores e linguagem escrita como artefato de aprendizagem. E-mail: lilianeantiqueira@furg.br - Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Carreiros-RS, Brasil

2Doutora em Matemática Aplicada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora associada da Universidade Federal do Rio Grande. Tem experiência na área de Educação e Matemática, com ênfase em Educação Matemática e Matemática Aplicada, atuando principalmente nos seguintes temas: formação de professores, ensino de matemática e modelagem matemática. E-mail: celianecmachado@yahoo.com.br - Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Carreiros-RS, Brasil

3Doutora em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande. Professora do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul - IFRS. Tem experiência na área de Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: educação ambiental, ensino de Biologia, formação de professores, educação profissional e educação de jovens e adultos. E-mail: cleiva.lima@riogrande.ifrs.edu.br - Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Carreiros-RS, Brasil


Resumo

O artigo tem como objetivo relatar uma experiência a partir de uma prática de escrita, denominada de relatoria, vivenciada na disciplina Educação Profissional: Desafios Contemporâneos do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências da Universidade Federal do Rio Grande - FURG, Brasil. Argumenta-se sobre a constituição da pesquisadora em formação num ambiente de muito diálogo, de leitura e análise crítica de textos, articulado com diversas produções escritas e discussões coletivas. Para compreender essa experiência narrada, utilizam-se teóricos que apontam a importância da escrita na constituição do sujeito em formação. A proposta da disciplina envolveu a escrita de três textos individuais a partir da análise crítica de três artigos, um texto coletivo relacionado a um artigo sobre Educação Profissional, bem como a leitura e análise crítica coletiva de pelo menos um texto de um colega, seguindo critérios quanto à forma e ao conteúdo, totalizando em cinco produções realizadas. Decorre desta experiência, a constatação de que ser pesquisador é estar em busca de informações acerca de um problema, um assunto, uma inquietação, além da necessidade de se posicionar por escrito e refletir criticamente sobre os temas abordados. Foi uma prática coletiva que demandou constantes diálogos estabelecidos com autores, com colegas e com a professora, incluindo o aprendizado de como analisar um artigo minuciosamente, desde a investigação sobre quem é o autor, sua formação, até aspectos estruturais do texto. As atividades foram assumidas como algo prazeroso, muito além de avaliações ou obrigações, servindo de inspiração para reflexões, outras leituras e produções textuais.

Palavras-chave: Pesquisador; Escrita; Formação

Abstract

This work has as its goal presenting an experience from a writing practice called rapporteur, experienced through the subject entitled Professional Education: Contemporary Challenges of the Post-Graduation Program in Science Education in the Federal University of Rio Grande - FURG (Brazil). It deals with the constitution of a researcher in an environment full of dialogue, reading and critical analysis of texts, articulated with many writings and group discussions. In order to comprehend this experience, theoretical contributions are used; their ideas go towards the importance of writing when it comes to the constitution of the ongoing formation of the person. The subject proposal was based on the writing of three individual texts based on the critical analysis of three articles, on a group text related to an article about professional education, as well as on the reading and critical analysis of at least one text from a colleague, according to criteria related to form and content, totaling five writings. From this experience, it can be said that being a researcher is searching for information regarding a problem, a topic, a concern, besides the necessity of expressing oneself through writing and reflecting critically about the discussed topics. It was a group practice that required constant dialogues established with the authors, the colleagues and the teacher, adding the learning about how to analyze an article meticulously, from the investigation about who is the author, their formation, to structural aspects of the text. The activities were considered as something very pleasurable, beyond evaluations or obligations, used as inspiration for reflections, other readings and writings.

Keywords: Researcher; Writing; Formation

Introdução

O artigo tem como objetivo relatar uma experiência vivida pela primeira autora sobre a importância da comunicação escrita na sua constituição de pesquisadora. Para isso, surgiu a necessidade de fazer uma reflexão do acontecido, entendendo que a arte de contar torna-se cada vez mais rara porque ela parte, fundamentalmente, da transmissão de uma experiência no sentido pleno (BENJAMIN, 1994), indo além do descrever e relatar.

O sentido pleno a que se refere Benjamin é revelado nesse artigo a partir da experiência, na condição de aluna, de uma prática de produção textual na disciplina Educação Profissional: Desafios Contemporâneos do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências (PPGEC) da Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Foi uma disciplina que mobilizou escritas, leituras, diálogos, a leveza dos encontros, muitos sentimentos e aprendizagens.

Para compreender essa experiência narrada são utilizados interlocutores como: Benjamin (1994), no qual se buscou inspiração sobre a importância de narrar os fatos vivenciados; Larrosa (2001) que permitiu enxergar os textos da disciplina como um presente e um convite ao ensinar e aprender; Demo (2001) que contribuiu com os múltiplos horizontes de uma pesquisa; Marques (2011) para entender que o escrever é o princípio fundamental da pesquisa, além de Bruner (1991), Clandinin e Connelly (2000), Prado e Soligo (2007) e Nacarato e Lopes (2013) que apontam para a importância da escrita na constituição do sujeito em formação.

Nessa trama de interlocuções, Marques (2011, p. 21) relaciona aprendizagem, escrita e pesquisa, ao afirmar que são “processos intercorrentes e intercomplementares”. Fica evidenciado, então, que escrever é uma abertura de novos horizontes e construção de novos saberes, isso porque, os saberes de cada interlocutor associados aos saberes de quem escreve, se fundem e se configuram em outros saberes. Além disso, compreende-se que “a pesquisa seja vista como forma de aprendizagem, conduzidas ambas pela escrita enquanto configuração concreta das tramas conceituais” (MARQUES, 2011, p. 21).

Para reforçar a existência dessa relação, percebe-se que a escrita permite ao sujeito se conhecer melhor, tanto pessoal quanto profissionalmente, tanto no contexto de aluna de pós-graduação quanto de pesquisadora. A razão disso é que o registro favorece a reflexão sobre o que se faz e se pensa, a sistematização dos saberes produzidos, o desenvolvimento da capacidade de escrever. Além de ser uma plataforma de lançamento para múltiplas possibilidades de aprender (PRADO; SOLIGO, 2007).

Aliado a isso, ao constituir-se pesquisador, tem-se a oportunidade de aventurar-se na linguagem escrita. Mas não somente, pois a leitura também está intrínseca a este processo. Larrosa (2001, p. 142) acredita que “ler é trazer o dito à proximidade do que fica por dizer, trazer o pensado à proximidade do que fica por pensar, trazer o respondido à proximidade do que fica por perguntar”, e também buscar aquilo que não está dito no texto. Pesquisar exige leituras de outros interlocutores e do próprio escritor, autor. Ao encontro disso, Marques (2011, p. 27) afirma que “do texto escrito, cada leitor prazerosamente poderá fazer as leituras que quiser, as suas leituras, outras tanto das do escrevente, quanto das dos demais leitores”.

Em decorrência dessas reflexões, compreende-se que o aprendizado, a escrita, a pesquisa e a leitura são movimentos necessários na constituição do sujeito em formação e que o pesquisar é um processo de muita escuta, diálogo, sentimento e comunicação. Assim, nesse relato de experiência são feitas algumas reflexões sobre o ser pesquisadora: um processo em construção e, posteriormente, é discutida a importância da comunicação escrita na constituição do sujeito pesquisador. Para contar a experiência vivida, a prática da relatoria é descrita pela primeira autora, como sendo um espaço para a escrita no ambiente educacional da Pós-Graduação e as aprendizagens decorrentes dessa experiência. Encerra-se com as considerações finais.

Ser pesquisadora: um processo em construção

Ao assumir essa escrita, compreende-se que ser pesquisador é um processo em construção, isso porque somos seres inacabados e inconclusos (FREIRE, 1996), ou seja, busca-se o constante aprendizado. Segundo o dicionário Houaiss (2004), construção é a ação de reunir diferentes elementos, formando um todo. Então, que elementos fazem parte desse processo de se constituir pesquisador? Em resposta, são destacadas as relações estabelecidas nos espaços do ambiente universitário, no contato com professores e professoras, colegas, além das oportunidades que a universidade possibilita, como a participação em eventos, seminários, palestras, congressos e disciplinas.

Nessa caminhada formativa, esses são alguns dos elementos presentes, os quais fazem compreender o conhecimento científico como uma atividade reflexiva e uma constante busca por respostas às inquietações presentes nesse caminhar, que se faz também no coletivo. No espaço multidimensional onde ocorre a formação do pesquisador, a pesquisa se faz presente em todos os momentos e, para ampliar a discussão, dialoga-se com Demo para a compreensão sobre o que é pesquisa.

Em termos cotidianos, pesquisa não é ato isolado, intermitente, especial, mas atitude processual de investigação diante do desconhecido e dos limites que a natureza e a sociedade nos impõem. [...] Pesquisa é processo que deve aparecer em todo trajeto educativo, como princípio educativo que é, na base de qualquer proposta emancipatória (DEMO, 2001, p. 3).

Diante disso, compreende-se que pesquisar é um processo atravessado por questões afetivas, sociais, profissionais, pessoais e de muito compromisso e envolvimento com os sujeitos que compõem o contexto investigado. Emergem desse cenário todas as desacomodações, dúvidas, insatisfações, motivações e, principalmente, questionamentos, pois todo pesquisador em fase inicial tem mais perguntas do que respostas e, por esta razão, o prazer de quem pesquisa, está na atitude de perguntar e, a partir dela, em buscar novos conhecimentos.

Nessa caminhada, o pesquisador se depara com os múltiplos horizontes da pesquisa (DEMO, 2001). Dentre eles destacam-se basicamente três preocupações: a teórica, a metodológica e a prática. Com base nisso, a Tabela 1 apresenta alguns fragmentos acerca dessas multiplicidades.

Tabela 1 Múltiplos horizontes da pesquisa 

Horizontes estratégicos da pesquisa (DEMO, 2001)
Pesquisa teórica Parte inevitável de qualquer projeto de capacitação da realidade. Todo dado empírico não fala por si, mas pela “boca” de uma teoria que se fosse evidente em si, produziria a mesma análise sempre. A realidade que se quer captar é a mesma para todos, mas para captar é preciso concepção teórica dela. O bom teórico é, sobretudo, aquele que sabe bem perguntar. Quem dispõe de boa teoria, diante do dado, sabe interpretar ou, pelo menos, sabe propor pistas de interpretação possível (p. 5-6).
Pesquisa metodológica Método é instrumento, caminho, procedimento e, por isso, nunca vem antes da concepção da realidade. A despreocupação metodológica coincide com baixo nível acadêmico, pois passa ao largo da discussão sobre modos de explicar, substituindo-a por expectativas ingênuas de evidências prévias. A distinção entre ciência e outros saberes está no método, sobretudo. Enquanto estes são taxados de senso comum, a ciência é assumida como conhecimento metódico, testado e, se possível, verdadeiro (p.6-7).
Pesquisa prática Teoria e prática detêm a mesma relevância científica e constituem um todo só, uma não substitui a outra e cada qual tem sua lógica. Ao contrário da tendência teórica típica que “ensaca” a realidade na teoria, pesquisa prática busca o movimento contrário: colocar realidade na teoria, obrigando a teoria a se adequar e nisto, a se rever, mudar e mesmo se superar (p. 8-9).

Fonte: Dados organizados com base em DEMO (2001).

Além desses horizontes, considera-se pertinente o movimento dialógico estabelecido no espaço formativo da disciplina, a partir da qual é narrada essa experiência, aproximando, desta forma, o pesquisar e o dialogar. Sob este viés, entende-se o diálogo como uma fala contrária, entre atores que se encontram e se defrontam (DEMO, 2001). O mesmo autor acrescenta que “quem pesquisa tem o que comunicar. Quem não pesquisa apenas reproduz ou apenas escuta. Quem pesquisa é capaz de produzir instrumentos e procedimentos de comunicação. Quem não pesquisa assiste a comunicação dos outros” (DEMO, 2001, p. 13).

Assim se constitui o pesquisador, em múltiplos caminhos e em diferentes espaços, nos quais aprende a teorizar, a dialogar e a comunicar, num processo de idas, vindas, descobertas e questionamentos permanentes. Atrelado a isso e partindo do pressuposto que a escrita deve fazer parte da vida do pesquisador, questiona-se: qual a importância da comunicação escrita na formação do aluno e pesquisador em nível de pós-graduação? Aspecto a ser desenvolvido a seguir.

A comunicação escrita na constituição do sujeito pesquisador

A pós-graduação, enquanto espaço de criação científica, é também espaço de comunicação. Assim, uma das formas mais utilizadas para se comunicar, sem dúvida, é por meio da escrita. Escrevemos para transformar o que sabemos e não para transmitir o já sabido. Se algo nos anima a escrever é a possibilidade de que esse ato de escritura, essa experiência em palavras, nos permita libertar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos para ser outra coisa, diferentes do que vimos sendo (LARROSA, 2015).

Além disso, reitera-se que escrever é o princípio da pesquisa (MARQUES, 2011) e, por isso, muito necessária a todos envolvidos no processo de pesquisar, de ensinar e de aprender. Mas, por que escrever é considerado o princípio da pesquisa? No sentido de que:

[...] é o escrever que a desenvolve, conduz, disciplina e faz fecunda a pesquisa. É no ato de escrever por onde se inicia e conduz o pesquisar. No contexto da universidade a pesquisa se faz coextensiva a todos os âmbitos e se organiza em linhas programático-institucionais. Escrever é preciso, pesquisar sempre, reconstruir de contínuo nossas aprendizagens (MARQUES, 2011, p. 12).

Nessa aventura da produção textual, alguns autores apontam a importância da escrita na constituição do sujeito em formação (BRUNER, 1991; CLANDININ; CONNELLY, 2000; PRADO; SOLIGO, 2007; NACARATO; LOPES, 2013) e, por esta razão, destaca-se algumas práticas de escrita presentes na literatura, principalmente na última década como: narrativas, relatórios, diários de aula, notas de campo, textos reflexivos, portfólios, memórias (auto)biográficas, cartas e entrevistas. Para maiores detalhes, buscar em Cunha (1997) e Santos (2008).

Tais práticas são consideradas estratégias de formação e de reflexão tanto na pesquisa quanto no ensino. Há um entrelaçamento entre o escrever, o sujeito - seja professor, pesquisador, professor-pesquisador, pesquisador em formação - e o ato de refletir. Então, se pensa para escrever ou escreve-se para pensar? Na busca desse entendimento, “escrever se faz assim forma de vida consciente, reflexiva, aberta sempre a novas aprendizagens. [...] Escrevia-se o que antes se pensara. Agora entendo o contrário: escrever para pensar, uma outra forma de conversar” (MARQUES, 2011, p. 12).

Nesse diálogo, Perissé (2011) contribui para a compreensão ao afirmar que:

Estude um assunto e as palavras virão a seguir. Ler e pensar já é começar a escrever no invisível, no imprevisível, no futurível. Já é lidar com as palavras que apontam e definem realidades que vejo e quero que meus leitores vejam e sintam. [...] Escrevemos aquilo que pensamos/sentimos e do modo como sentimos/pensamos (PERISSÉ, 2011, p. 79).

Desse modo aconteceu a escrita na disciplina Educação Profissional: Desafios Contemporâneos, num processo de analisar a escrita de um autor, a partir de artigos, capítulos de livros e outros documentos. Mais do que isso, pôde-se aprender que o ato de escrever está intrínseco a alguns princípios necessários a todo pesquisador em formação (PERISSÉ, 2011). O primeiro deles é que escrever é trabalhar e viver, trabalhar a experiência, a interioridade, as leituras e interpretações. Primeiro ler, viver a leitura, pensar, ler a realidade, e depois escrever. O segundo princípio trata da técnica pessoal como um estilo pessoal, preciso dar à luz o que se é, e a partir disso, criar as próprias regras para escrever, pensar, trazer à tona, em palavras, a personalidade de cada sujeito.

Escrever com paixão é mais um dos princípios citados por Perissé (2011, p. 68) “é imprescindível apaixonar-se pelo trabalho com as palavras. [...] Escrever e viver são trabalhos que se entrecruzam. Escreviver. Vivescrever”. Ao encontro disso, está a odisséia do rascunho, ou seja, “reler, selecionar, corrigir, reorganizar. Com que ideia, citação, metáfora ou imagem vou começar meu texto? Não haverá aqui uma possibilidade de desenvolver outros raciocínios? Que livro consultar para enriquecer a argumentação?” (PERISSÉ, 2011, p. 73).

Além desses princípios, Perissé (2011) menciona também a importância de escrever por amor, por necessidade, ter intimidade com a linguagem e, por fim, ter a convicção como fonte de inspiração para a escrita. Na busca de ampliar essa discussão, são acrescentadas duas características presentes na disciplina: o compromisso e a leveza, as quais tornaram os encontros prazerosos e, ao mesmo tempo, serviram de inspiração para as leituras e escritas propostas.

Imersa nesse diálogo teórico, entende-se que pesquisar e escrever se constitui numa relação direta, na medida em que escrever é o princípio da pesquisa (MARQUES, 2011). Imbuída nesse processo e na prática de escrita da disciplina, diversas leituras foram propostas de forma a direcionar a escrita e a pesquisa. Sobre isso, Marques afirma que:

[...] importa escrever para buscar o que ler; importa ler para reescrever o que se escreveu e o que se leu. Antes o escrever, depois o ler para o reescrever. Isso é procurar; é aprender: atos em que o homem se recria de contínuo, sem se repetir. Isso é pesquisar (MARQUES, 2011, p. 92).

Diante desse cenário de muitas leituras e escritas, os participantes da disciplina foram alunos de doutorado, mestrado e na condição de aluno especial, portanto, estudantes de diferentes níveis de formação, em diferentes níveis de pesquisa, cada um com um estilo pessoal de escrever. Perissé (2011, p. 18) esclarece que “nosso exercício profissional determina boa parte de nosso estilo, de nosso vocabulário, de nossas metáforas. Por isso, dependendo da profissão engenheiro, professor, médico e outras, escrevemos de modos diferentes”.

Desde o rascunho da escrita até o ponto final, existem hábitos profissionais impressos na escrita. Ainda, o autor afirma que “nossa profissão confunde-se com nosso ser. E nosso ser manifesta-se em nosso escrever, em nossas palavras” (PERISSÉ, 2011, p. 18). Acrescenta-se que esse aspecto foi observado nos textos lidos da disciplina, uma vez que sempre se buscava conhecer um pouco mais sobre o autor.

Constituindo-me1pesquisadora: a escrita por meio da prática da relatoria

Concordo com Benjamin (1994, p. 201) quando afirma que “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros”. É baseado nisso que inicio um processo de pensar a escrita como uma prática que contribui para a minha formação enquanto pesquisadora em nível de pós-graduação, na experiência vivenciada na disciplina Educação Profissional: Desafios Contemporâneos. Essa disciplina foi ofertada em 2014 e um dos objetivos foi promover uma discussão coletiva envolvendo temas e autores relacionados à Educação Profissional.

Diversas leituras e escritas me fizeram compreender que aprender a ler é aprender a escrever. Aprender lendo e aprender escrevendo. Porque através da leitura, a escritura libera um espaço para além do escrito, um espaço para escrever (LARROSA, 2001). Utilizo estas frases para exprimir que a disciplina foi desenvolvida tendo como base a leitura e a escrita de relatorias2 . Esse foi o nome atribuído a prática de escrita que consistia em analisar criticamente artigos, previamente disponibilizados pela professora, considerando os questionamentos:

- Quais questões são feitas pelo(s) autor(es) e efetivamente respondidas?

- Quais os principais aspectos tratados no texto? Destacar um excerto do texto com um comentário a respeito.

- Há vínculos do texto lido com os autores/temas que utilizas como referência para tua pesquisa de mestrado ou doutorado? Quais? Outros aspectos a destacar?

- Tua opinião, com justificativa, sobre o texto como recomendação a futuros estudantes (NR - Não Recomendo, devemos desistir dele. RR - Recomendo com Restrições. Quais restrições? RS - Recomendo Sem Restrições. RF - Recomendo Fortemente).

- Dados do(s) autor(es) do artigo e referência completa.

Todos os encontros da disciplina aconteceram num clima de conversa, muito aprendizado e constante diálogo. A ideia de conversa abordada por Larrosa enfatiza o fato de se conversar com o outro, não para concluir ou terminar a conversa, mas para pensar de maneira mais precisa, sensível e elaborada. Em uma conversa, não existe a última palavra ou um acordo final, mas, sim, dúvidas, interrogações, questionamentos. Como diz o autor, “[...] uma conversa é algo no que se entra e, ao entrar nela, transitamos entre o sabível e não sabível. [...] nela, pode-se ir aonde não havia sido previsto [...], pode-se chegar a dizer o que não se sabia dizer” (LARROSA, 2003, p. 212). Conversar, dialogar, assim, é sempre também pesquisar, no sentido específico de produzir conhecimento do outro para si, e de si para o outro (DEMO, 2001).

Sendo assim, resgato do primeiro dia de aula, a construção do contrato didático entre professora e alunos e, desse modo, foram combinados os procedimentos de como transcorreriam as aulas seguintes. Elencado a isso, a proposta da disciplina contemplou o exercício de reflexão crítica a partir das leituras de textos pertencentes ao Plano de Ensino e a textos apresentados pelos estudantes em uma atividade intitulada Ampliando o diálogo com a Educação Profissional. Nesse momento me apoio em Larrosa e me refiro a tais textos como um convite à lição. O autor define esse termo como “uma leitura e, ao mesmo tempo, uma convocação à leitura, uma chamada à leitura. [...]. Está explicitamente implicado ou envolvido num ensinar e num aprender” (LARROSA, 2001, p. 139).

A dinâmica da disciplina deu-se pela escrita de três relatorias individuais a partir da análise crítica de três artigos, uma relatoria coletiva de um artigo escolhido sobre Educação Profissional e a leitura e análise crítica coletiva de pelo menos uma relatoria de um colega, seguindo critérios, elaborados pelos alunos, quanto à forma e ao conteúdo, totalizando em cinco relatorias realizadas. Cabe destacar que, em cada aula, as discussões eram mediadas pelos alunos que haviam feito a relatoria referente ao texto do dia. Isso vai ao encontro de Marques (2011, p. 15) ao dizer que escrever é “iniciar uma conversa com interlocutores invisíveis [...]. Depois é espichar conversas e novos interlocutores surgem, entram na roda, puxam outros assuntos”.

E ainda, nesse processo de compreensão da proposta da disciplina, destaco a importância do relacionamento entre alunos e professora e a forma com que esses laços foram efetivados. Todas as atividades foram encaradas por mim como algo prazeroso, muito além de avaliações ou obrigações. O professor - aquele que dá o texto a ler, aquele que dá o texto como um dom, nesse gesto de abrir o livro e de convocar à leitura - é o que remete o texto. O professor seleciona um texto para a lição e, ao abri-lo, o remete. Como um presente, como uma carta (LARROSA, 2001).

Envolvida por esse presente, todas as tarefas se tornaram um desafio que, após um tempo de amadurecimento, pude me entregar à experiência da leitura, escrita e ‘conversas’ com os teóricos propostos, pois na posição de aluna pesquisadora desejava aprender muito. Sem perceber ia me identificando com a disciplina e logo me aventurei na primeira relatoria. Desse modo, aos poucos, fui me preparando para a escrita do que acreditava ser uma análise crítica e, após seis semanas de aula, havia produzido as três relatorias individuais. A escolha dos textos para as produções foi de acordo com a aproximação com o tema abordado nos artigos.

Em meio a muitas dúvidas, fui aprendendo a ‘examinar’ um artigo minuciosamente, desde a investigação sobre quem é o autor, sua formação, até aspectos estruturais do texto. E, por isso, passei a compreender a importância de um espaço na formação que possibilite ter esse olhar crítico, podendo assim, assumir uma postura de pesquisadora, com um posicionamento diante daquilo que se lê.

Trata-se de pensar a leitura e a escrita como algo que nos forma (ou nos de-forma e nos trans-forma), como algo que nos constitui ou nos põe em questão naquilo que somos (LARROSA, 2015). E assim, mais uma lição estava sendo posta, desta vez, para ser feita juntamente com um colega da disciplina e com o objetivo de ampliar o diálogo sobre a temática estudada. Foi um grande exercício, desde a escolha do texto sobre Educação Profissional até a apresentação na Roda da sala de aula, perpassando por processos de leitura, conversas, escrita e análise crítica coletiva. Essa fase teve novos sentimentos e muitos questionamentos também, alguns deles era se eu teria as mesmas compreensões que minha colega.

E o olhar crítico? Com relação a este aspecto, me senti a vontade para expor o que pensava, pois é nesse movimento formativo, que vamos refletindo e nos constituindo como pesquisadores, com os outros. Nesse vivenciar a disciplina, fui desafiada a aprender mais, a me deslocar em outras áreas do saber, como sendo aquela atividade que me derruba e que me tomba (LARROSA, 2015).

Com a continuidade da disciplina e aprofundamento das leituras realizadas percebi que ser pesquisador é sempre estar em busca de informações acerca de um problema, um assunto, uma inquietação. Portanto, a análise crítica de um texto, a partir do exercício da leitura e escrita, torna-se uma poderosa ferramenta, pois demanda do pesquisador muitas reflexões e compromisso com o que se está desenvolvendo. Foram momentos de muito diálogo nos quais, muitas vezes, tive a necessidade de me colocar no lugar do autor para compreender o contexto que o gerou e que o levou a determinado posicionamento.

Diante disso, as leituras passaram a ser mais atentas e detalhadas. Aprendi a discordar em alguns momentos e concordar em outros, a mediar discussões, encontrar objetivos, elaborar questionamentos. Todo esse olhar crítico foi se constituindo a partir da escrita das relatorias. Nesse sentido, concordo com Larrosa, pois:

No ler a lição, não se buscam respostas. O que se busca é a pergunta à qual os textos respondem. Ou melhor, a pergunta que os textos abrigam no seu interior. [...]. Por isso, a única resposta que se pode buscar na leitura é a responsabilidade pela pergunta. [...]. Por isso, a leitura não resolve a questão, mas a reabre, a re-põe e a re-ativa. [...]. Na leitura da lição não se busca o que o texto sabe, mas o que o texto pensa. Ou seja, o que o texto leva a pensar. Por isso, depois da leitura, o importante não é que nós saibamos do texto, o que nós pensamos do texto, mas o que - com o texto, ou contra o texto ou a partir do texto - nós sejamos capazes de pensar (LARROSA, 2001, p. 142).

Considerando as tarefas realizadas, não diria que esse processo formativo teve uma última etapa, pois o aprendizado de cada lição permanece. Então, a próxima tarefa consistiu em uma análise coletiva de pelo menos uma relatoria de um colega. Mais um desafio com certeza, pois tive o privilégio de estar em companhia de colegas e ver o que eles pensaram a respeito de um tema.

Essa e outras atividades da disciplina me possibilitaram “en-fi-ar-se no texto, fazer com que o texto teça, tecer novos fios, escrever de novo ou de novo: escrever” (LARROSA, 2001, p. 146), tudo isso a partir das leituras e escritas realizadas constantemente. Além de possibilitar meu posicionamento e reflexão crítica sobre os temas abordados, foi um processo coletivo, pois nunca estive sozinha, sempre em diálogos estabelecidos com autores, colegas e professora.

Considerações finais

Diante da experiência narrada, acredita-se que cursar a disciplina e, em especial, fazer o exercício da produção textual das relatorias, contribuiu tanto para a primeira autora, quanto para os demais alunos, professores e pesquisadores se tornarem protagonistas de sua prática e mais reflexivos por meio da leitura crítica dos textos, do desafio coletivo de analisar as relatorias dos colegas. Isso porque, como foi afirmado anteriormente, o pesquisador se constrói enquanto dialoga e escreve.

Nesse sentido, a proposta da disciplina Educação Profissional: Desafios Contemporâneos foi vivenciada assumindo o princípio de que escrever puxa leituras que puxam o reescrever (MARQUES, 2011). Isso ficou evidente nas atividades propostas, uma vez que cada texto lido impulsionou a buscar outros autores e, consequentemente, diversas outras leituras e escritas foram realizadas.

Além da experiência coletiva, a proposta da disciplina possibilitou a análise de aspectos metodológicos, teóricos e práticos nos textos lidos e, isso contribuiu nas inquietações relacionadas à pesquisa dos alunos, pois foi possível conhecer outros contextos, outras reflexões e ter outros olhares sobre os temas debatidos na disciplina. O sujeito aprende com o outro e ter um espaço que possibilite ampliar essa relação é extremamente enriquecedor na constituição do pesquisador.

Referências

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1Assumo a primeira pessoa, pois relato minha experiência na disciplina ministrada pela terceira autora deste artigo, em diálogo constante com minha orientadora da pesquisa de doutorado, segunda autora deste artigo. Para Larrosa (2015, p. 70) escrever na primeira pessoa significa “escrever a partir de si mesmo, [...] expor-se no que se diz e no que se pensa. Abandonar a segurança de qualquer posição enunciativa para se expor na insegurança das próprias palavras, na incerteza dos próprios pensamentos”

2Nome adaptado do Prof. Dr. Arion de C. Kurtz dos Santos.

Recebido: 20 de Outubro de 2017; Aceito: 25 de Outubro de 2018

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