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Revista Eletrônica de Educação

versão impressa ISSN 1982-7199

Rev. Elet. Educ. vol.13 no.3 São Carlos set./dez 2019  Epub 01-Set-2020

https://doi.org/10.14244/198271993533 

Dossiê Políticas de Educação superior e produção do conhecimento no Brasil: novos modos de regulação e tendências

Produção de ciência e tecnologia e o trabalho do professor empreendedor

Production of science and technology and the work of entrepreneurship teacher

José Renato Bez de GregórioI 

Deise ManceboII 
http://orcid.org/http://orcid.org/0000-0001-8312-4495

IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro-RJ, Brasil - Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana/UERJ, Mestre em Educação/UFF e Economista/UFF. E-mail: renatobezz@gmail.com

IIUniversidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro-RJ, Brasil - Professora Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana. Coordenadora da Rede Universitas/BrDoutora em História e Filosofia da Educação, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: deise.mancebo@gmail.com


Resumo

O artigo analisa o trabalho do “professor empreendedor” e a produção de ciência e tecnologia nas instituições de educação superior públicas brasileiras, nos marcos da contrarreforma da educação superior impulsionada a partir de 1995. Para tal, faz uso da literatura pertinente e de extensa análise documental. Inicia com uma discussão sobre o conjunto de políticas governamentais, implementadas a partir de 1995, que sustentaram as reformas neoliberais do Estado brasileiro, servindo como base para a aplicação da contrarreforma neoliberal da educação superior e para as alterações ocorridas no mundo do trabalho, que reconfiguraram o trabalho docente, dando vazão, dentre outros aspectos, ao empreendedorismo. Em seguimento, analisa a produção de ciência e tecnologia no Brasil, com destaque para a produção de inovações tecnológicas e as parcerias entre Estado, universidade e iniciativa privada; aborda a “privatização interna” da universidade pública, a mercantilização da produção do conhecimento e a participação efetiva de professores-empreendedores nesse processo, amparados por um conjunto de leis, normas e artifícios jurídicos. Nas considerações finais, retoma alguns aspectos da cultura empreendedora e da inserção do habitus da produção privada nas universidades, cuja “moralidade utilitária” destrói relações solidárias e valores caros à educação, como o compartilhamento e universalização do conhecimento socialmente útil.

Palavras-chave: Produção do conhecimento; Trabalho docente,Empreendedorismo

Abstract

The article analyzes the work of the "entrepreneurial teacher" and the production of science and technology in Brazilian public higher education institutions within the framework of higher education counter-reform, promoted since 1995. To this end, it makes use of relevant literature and extensive documentary analysis. It begins with a discussion of the set of governmental policies implemented since 1995 that underpinned the neoliberal reforms of Brazilian State, serving as a basis for the application of the neoliberal counter-reform of higher education and for the changes in the world of work that have reconfigured the teaching work, giving vent, among other aspects, to entrepreneurship. Following, it analyzes the production of science and technology in Brazil, with emphasis on the technological innovations and partnerships between State, university and private initiative; addresses the "internal privatization" of the public university, the commodification of knowledge production and the effective participation of teachers-entrepreneurs in this process, supported by a set of laws, norms and legal devices. In the final considerations, it takes up some aspects of the entrepreneurial culture and the insertion of the habitus of private production in universities, whose "utilitarian morality" destroys solidary relations and expensive values ​​to education, such as the sharing and universalization of socially useful knowledge.

Keywords: Knowledge production; Teaching work; Entrepreneurship

Introdução

O presente texto tem como objetivo analisar o trabalho docente do “professor empreendedor” e a produção de ciência e tecnologia nas instituições de educação superior públicas, nos marcos da contrarreforma da educação superior impulsionada a partir de 19951.

Partimos da premissa de que a produção de inovações tecnológicas de ponta, que desperta o interesse dos grandes grupos empresariais internacionais, é prerrogativa de um seleto e pequeno grupo de instituições de pesquisa brasileiras, diferenciadas e de excelência. Os exemplos citados na literatura são sempre os mesmos: Laboratório Nacional de Luz Sincroton (LNLS), Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias (EMBRAPA), Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ/USP), Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE/UFRJ), e sempre envolvendo setores nos quais o Brasil percebe algum tipo de vantagem comparativa em sua inserção subalterna na divisão internacional do trabalho, como o agronegócio, a produção de petróleo e gás e o extrativismo mineral. Agrega-se a essas IES, a participação de mais algumas poucas universidades que atuam na adaptação de tecnologias produzidas fora do país e no desenvolvimento de pesquisas que lidam com “tecnologias sujas”, que os países do capitalismo central refutam de seu território.

Partimos do pressuposto de que a maioria das pequenas e médias universidades públicas brasileiras acaba por aderir a essa lógica empresarial de maneira diferente da propalada pelo discurso oficial, servindo à produção de inovações que atendem apenas às franjas do capitalismo, ou seja, inovações “por performance” ou “por sustentação”. Essas universidades pequenas e médias acabam for forjar um professor/pesquisador empreendedor isolado da pesquisa de base e envolto numa lógica empresarial tacanha e desvinculada de todo o sentido social e constitucional das IES.

Para o desenvolvimento do texto, realizaremos, primeiramente, uma breve análise do conjunto de políticas governamentais implementadas a partir de 1995 (no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso/FHC), que sustentaram as reformas neoliberais do Estado brasileiro, desencadeadas pelo Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE) e que foram aprofundadas nos governos seguintes (dos presidentes Lula da Silva e Dilma Rousseff), servindo como base para a aplicação da contrarreforma neoliberal da educação superior, de novas ênfases surgidas na produção de ciência e tecnologia e de alterações no mundo do trabalho, que reconfiguraram o trabalho docente, dando vazão, dentre outros aspectos, ao empreendedorismo.

Na segunda parte do texto discutiremos a produção de ciência e tecnologia no Brasil, com destaque para a produção de inovações tecnológicas e as parcerias entre Estado e iniciativa privada. Em seguimento, abordaremos a “privatização interna” da universidade pública, a mercantilização da produção do conhecimento, com a participação efetiva de professores amparados por um conjunto de leis, normas e artifícios jurídicos, que culminam com a Lei nº 13.243/2016, denominada Marco Legal de Ciência e Tecnologia.

1 - Contrarreforma do estado brasileiro, reconfiguração do trabalho docente e empreendedorismo

Para compreendermos o trabalho dos professores/pesquisadores entusiastas do empreendedorismo e a disseminação da cultura empreendedora no interior das instituições de ensino superior, no que Slaughter e Leslie (1999) chamam de “capitalismo acadêmico”, faz-se necessário analisar aspectos mais gerais do capitalismo contemporâneo, rechaçando qualquer caráter demiurgo das ações efetivamente implantadas no Brasil dos anos 1990, mas que seguem dando o tom até o presente.

Tanto a conhecida “Reforma Administrativa do Estado Brasileiro”, alavancada por Bresser Pereira nos governos de FHC (1995-2002), quanto as políticas públicas direcionadas ao fomento do empreendedorismo e da lógica empresarial no ensino superior público, posteriormente, adotadas pelos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016), são estratégias importantes para o capital em sua engrenagem movida à expropriação e exploração do trabalho humano. Em outros termos, os professores-empreendedores passam a ser intelectuais necessários para a difusão dessa concepção de mundo e trazem junto a si alguns importantes instrumentos de obtenção de consenso e inexorabilidade dessa realidade.

No início dos anos 1990, o Brasil experimentou o trator neoliberal que já avassalava os Estados Unidos (EUA) e a Inglaterra há mais de uma década. Após anos de prosperidade econômica e massiva participação do Estado na economia, o mercado surge para retomar seu protagonismo. Os ganhos exorbitantes auferidos pelo capital financeiro exigiam maior liberdade de movimentos para sua crescente reprodução, apoiando-se na propagação de políticas econômicas cada vez mais desreguladoras e privatizantes, materializadas no Consenso de Washington. A lógica neoliberal impõe-se, com a abertura dos mercados financeiros e do comércio internacional, a atração de investimentos estrangeiros diretos (IED), a liberalização do câmbio e a redução do tamanho do Estado. Essas foram regras adotadas pelos Estados, conduzindo ao enxugamento dos gastos públicos, privatização de tudo que fosse possível e diminuição do valor da força de trabalho, com o fito de aumentar a produtividade do capital.

O neoliberalismo é apresentado como remédio amargo para conter a crise estrutural do sistema, provocada pelo esgotamento do modelo fordista, com o Estado desempenhando papel mais decisivo na reprodução do capital financeiro, não só como legislador, mas como parceiro direto através da punção do fundo público, expropriação de direitos sociais e barateamento do preço da força de trabalho. Adicionalmente, o neoliberalismo surge tendo como pano de fundo o endeusamento do mercado e do individualismo como articuladores fundamentais das relações sociais, relegando a segundo plano as práticas coletivas, que passam a restringir-se às coincidências casuais entre objetivos individuais.

As concepções mentais do mundo foram reformuladas, na medida do possível, com o recurso aos princípios neoliberais da liberdade individual, necessariamente incorporados no livre mercado e no livre comércio. Isso exigiu a regressão do Estado de bem-estar social e o sucateamento progressivo do quadro regulatório [anterior] (HARVEY, 2012, p. 110).

Deve-se destacar que o capitalismo contemporâneo de predominância financeira reconfigura de maneira categórica o papel do Estado na sua relação com a educação, estabelecendo novas demandas à educação como um todo, e também de maneira específica às universidades. A mercantilização do conhecimento é uma das consequências desse processo, atingindo em cheio aspectos culturais das instituições de ensino superior, sobretudo públicas, estreitando os laços entre estas e a financeirização da economia.

As parcerias público-privadas (PPP´s), por exemplo, passam a incidir diretamente sobre alguns serviços prestados pelas instituições educacionais. As universidades públicas são mantidas no âmbito estatal, mas vão sendo progressivamente transfiguradas. Movimentos como “Todos Pela Educação” e “Amigos da Escola”, encobrem a participação efetiva de instituições como a Fundação Ayrton Senna, o Instituto Alfa & Beto, o Grupo Positivo, a Fundação Lehmann, a Fundação Bradesco, o Itaú Social, entre outras, que passam a atuar dentro das escolas e das universidades. Destaque-se que o papel dos intelectuais orgânicos do capital no interior dessas instituições públicas é preponderante para o êxito dessas ações e da naturalização de uma mentalidade empreendedora e privatista.

Adicionalmente, a reconfiguração do papel do Estado e a necessidade de uma contrarreforma do Estado brasileiro impostas pelo avanço do capitalismo de predominância financeira atingem em cheio o mundo do trabalho e a classe trabalhadora.

O padrão capitalista de acumulação flexível, tendo como esteio o toyotismo, afeta sobremaneira a estrutura do processo de trabalho. Formas de trabalho precarizado e desregulamentado somadas à criação de “falsas cooperativas” de trabalhadores e ao empreendedorismo colaboram para a redução do proletariado industrial tradicional do modelo taylorista-fordista. No novo modelo (toyotista), o trabalho ganha ares de maior participação do trabalhador, inclusive com ênfase no uso de termos como parceria, envolvimento, colaboração, metas e competência. Todavia, o discurso é só uma aparência, para uma realidade bem distinta, que em muitas circunstâncias remete a uma “captura” da subjetividade pelo capital.

A subjetividade do trabalhador permanece estranhada em relação ao que produz e para quem produz. Apesar da aparência atual de maior liberdade para os trabalhadores nos processos de trabalho, “as personificações do trabalho devem se converter ainda mais em personificações do capital” (ANTUNES, 1999, p. 130). Aquele trabalhador que não se enquadrar em características específicas como “vontade, disposição e desejo”, será substituído por outro que demonstre tal perfil.

O esforço para diversificar e ampliar as formas de extração do sobretrabalho tem orgânicas relações com as mudanças científico-tecnológicas. Na realidade, no capitalismo contemporâneo, há uma imbricação entre ciência e trabalho, de modo que o trabalho vivo, em conjunção com a ciência e tecnologia formam uma “complexa e contraditória unidade” para dar as condições de reprodução ampliada do capital (ANTUNES, 1999, 2008).

São tempos de desemprego estrutural, de trabalhadores e trabalhado ras empregáveis no curto prazo, através das (novas) e precárias formas de con trato, quando subcontratação, terceirização, informalidade e demais formas de precarização, emergem com a hegemonia do capitalismo de predominância financeira.

O culto ao individualismo e à meritocracia, a consequente despolitização e a desconstrução dos ambientes coletivos de classe levam “inevitavelmente ao recolhimento ao espaço privado”. A avaliação individualizada de desempenho disseminada em seus diversos métodos é responsável pela cultura de competição permanente entre pares. E quanto mais se alcança patamares hierarquicamente mais altos, mais se opera à lógica da concorrência entre colegas. “A desconfiança substitui a confiança; o isolacionismo, o cada-um-por-si, a solidão, a desolação instalam-se” (LANCMAN; SZNELWAR, 2004, p. 20-21).

Todos esses aspectos, em conjunto, concorrem para o incremento do empreendedorismo, que prega a gestão da força de trabalho pelo próprio trabalhador. Este deve gerir sua única propriedade, sob padrões empresariais, flexíveis, moldando-se e submetendo-se ao mercado mesmo em condições extremamente adversas. Deve-se registrar, contudo, que o empreendedor se posiciona, a princípio, como explorador de sua própria força de trabalho, depois, pode elevar-se a explorador da força de trabalho de outros indivíduos ou abre caminho para que outros exerçam tal exploração. Assim, esta nova forma de trabalhar, congrega os mais diferentes graus de precarização, incluindo desde os trabalhadores efetivamente contratados até os mais informalizados e voluntários (FONTES, 2010, p. 293).

Segundo Castro (2013):

A expressão empreendedor - com a conotação mais próxima à atualmente conhecida - foi utilizada pela primeira vez em 1725, como um derivativo do termo francês entrepreneur, pelo economista irlandês Richard Cantillon, para se referir às pessoas que realizavam a compra de matéria-prima, seu processamento e venda a terceiros, identificando, nessa dinâmica, uma oportunidade de negócios cujos riscos eram inteiramente assumidos pelo empreendedor. [...] Posteriormente, em 1814, o economista francês Jean-Baptiste Say utilizou a expressão para identificar o indivíduo que realiza a transferência de recursos econômicos de um setor de baixa produtividade para um de produtividade mais acentuada, enfatizando sua relevância para o bom funcionamento do sistema econômico como um todo (p. 61).

O sentido do empreendedorismo tal qual nós observamos na atualidade está baseado na obra de Schumpeter (1982), que apresenta o empreendedor como ator principal no desenvolvimento de novos produtos, métodos e mercados, no processo que designou como “destruição criadora”. Fato é que o trabalho do professor empreendedor incorpora cada vez mais essa lógica individualista no interior da universidade pública brasileira. Não é à toa que a lógica schumpeteriana ganha protagonismo nos cursos universitários vinculados à ciência e inovação, engenharias, administração e gestão. Em síntese, a teoria de Schumpeter assume contornos importantes na promoção da lógica individualista e empreendedora.

Indiscutivelmente, esse ideário apaga de suas considerações as determinações histórico-sociais e a luta de classes, além de condicionar o sucesso a um misto de habilidade e sorte, atribuídas à “capacidade de inovar” do empreendedor. Ele deve ser criativo e ter capacidade de se organizar, planejar e ser responsável, além de assumir riscos (embora calculados), controlar resultados e ter visão de futuro.

Para o empreendedor, a concepção subjacente de indivíduo é a de um ser que não espera as coisas acontecerem, pois é uma pessoa pró-ativa. Tem boas ideias e sabe como implementá-las de forma a alcançar seus objetivos de forma arrojada. Criar empresas e produtos novos, agregar valor e identificar negócios lucrativos são também características desejadas aos “empreendedores de sucesso”. E todos podem empreender, pois essa é uma “característica natural” do ser humano, basta ter vontade.

É comum encontrarmos em discursos que propalam a ideologia liberal empreendedora estímulos à capacidade de liderança e ao trabalho em equipe, no entanto, cabe ressaltar que o fracasso é considerado uma responsabilidade individual - ele deve ser uma oportunidade para se aprender e ser melhor.

Outra corrente de autores, dentre os quais destacam-se Dolabela (2008) e Chiavenato (2008), entende que o empreendedor não é movido por parâmetros econômicos, mas por uma necessidade de uma nova sociabilidade, com novos desejos e novos valores.

Para Dolabela (2008):

Ser empreendedor não é somente uma questão de acúmulo de conhecimento, mas a introjeção de valores, atitudes, comportamentos, formas de percepção do mundo e de si mesmo voltados para atividades em que o risco, a capacidade de inovar, perseverar e conviver com a incerteza são elementos indispensáveis. [...] O empreendedor é alguém capaz de desenvolver uma visão, mas não só. Deve saber persuadir terceiros, sócios, colaboradores, investidores, convencê-los de que sua visão poderá levar todos a uma situação confortável no futuro. Além de energia e perseverança, uma grande dose de paixão é necessária para construir algo a partir do nada e continuar em frente, apesar dos obstáculos, das armadilhas e, muitas vezes, principalmente quando inicia, da solidão. O empreendedor é alguém que acredita que pode colocar a sorte em seu favor, por entender que ela é produto do trabalho duro (p.60-61).

Pelo exposto, compreende-se que para o empreendedorismo, o subemprego e a desigualdade não são problemas a serem pensados dentro de seu contexto histórico, político e econômico, pois o que faz a diferença é a “ação individual”. O empreendedor torna-se prisioneiro de seu pragmatismo e individualismo, partindo do princípio de que estas adversidades serão transpostas, através de sua capacitação para a competição. Baseada na “teoria do capital humano”, problemas como subemprego, informalidade e desigualdade passam a se tornar uma questão individual de preparação para o mercado.

No Brasil, ações contundentes de caráter impulsionador da “cultura empreendedora” começaram a ser orquestradas, mais sistematicamente, como políticas públicas, no governo FHC (1995-2002), através do Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio (MDIC) com o Programa Brasil Empreendedor, que tinha como horizonte o desenvolvimento das micro, pequenas e médias empresas, inserindo, de maneira formal, empreendedores à economia, bem como estimulando o surgimento de novos setores de negócios.

O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) deve ser apresentado como o “aparelho privado de hegemonia (APH)” mais ativo na divulgação e estímulo da lógica empreendedora. O SEBRAE é uma instituição privada, cuja gênese remonta ao ano de 1960. Passou por diversas mudanças, mas desde a promulgação do Decreto nº 99.570/1990, passa a se denominar SEBRAE e assume papel preponderante na difusão da lógica empreendedora e no apoio gerencial aos pequenos e médios empresários. Como instrumento difusor da ideologia empresarial do “Sistema S”, o SEBRAE é presença constante entre os parceiros das unidades promotoras do empreendedorismo em diversas universidades públicas.

Cabe citar, por fim, a regulamentação do Fórum Permanente das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (FP), já no governo de Dilma Rousseff, pelo Decreto nº 8.364/2014, com status de instância consultiva governamental federal. Com o Fórum, estabelece-se o elo que faltava na participação direta da esfera privada (SEBRAE e Confederação Nacional da Indústria/CNI) e o Estado restrito na implantação de políticas públicas direcionadas ao empreendedorismo.

É desse emaranhado de relações entre intelectuais orgânicos, aparelhos privados de hegemonia (SEBRAE) e Estado restrito que emergem políticas públicas capazes de criar um ambiente econômico e social favoráveis ao desenvolvimento de atividades empreendedoras e sustentáveis. Fato é que surgem, a cada dia, os ditos “empreendimentos sociais” a fim de concretizar o novo modelo de homem empreendedor como ser transformador e fundamental para a sociedade.

Nas universidades públicas, as agências de fomento à pesquisa como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) participam de maneira importante na disseminação da ideologia empreendedora. A CAPES, particularmente, em parceria com o SEBRAE, desenvolve diversas ações de estímulo à ideologia empreendedora, que atingem tanto docentes quanto alunos de pós-graduação, com o objetivo de buscar na academia ações que acelerem o acesso à inovação e aos ganhos de produtividade para as empresas.

Através dessa lógica empreendedora, impulsionada inclusive pelas agências de fomento à pesquisa, que perpassa os muros dos campi universitários, o trabalho de boa parte do professor/pesquisador das instituições públicas brasileiras de ensino superior também é bastante reconfigurado. As verbas públicas espontâneas para pesquisa são consideravelmente reduzidas e o trabalho docente e científico passa a ser ditado pela lógica de mercado. Abre-se espaço para um aumento do fluxo de recursos privados no orçamento, voltados para o custeio e para algumas pesquisas, atrelados principalmente ao papel das fundações de apoio privadas e à pressão pela participação dos pesquisadores em editais externos para autofinanciamento. Particularmente, as políticas públicas voltadas para a produção de inovações tecnológicas transformam, profundamente, o trabalho do professor/pesquisador, tornando-o um empreendedor, “[que] procura, envolvido e crente na positividade de sua prática, vender serviços e produtos ao capital privado” (SACRAMENTO, 2015, p 297).

Adicionalmente, esta dinâmica promove novas hierarquias na carreira, que Lima (2011) classifica como “distinção entre pares”. O primeiro grupo que Lima (2011, p. 7) enumera é o do “professor auleiro” ou ainda “professor de macacão”. Para a autora, nesta categoria encontram-se também os professores substitutos, com vínculo empregatício precário, temporário e estritamente vinculados ao ensino de graduação. Além destes, embora em situação empregatícia estável e com salários superiores em virtude da dedicação exclusiva, encontram-se os professores recém-ingressos na universidade, geralmente, jovens doutores, muitos lotados nos campi do interior, sem acesso à extensão e muito menos à pesquisa e pós-graduação.

O segundo tipo encontrado por Lima (2011, p. 8) é o professor pesquisador, que se desdobra para conseguir honrar suas atividades no interior da instituição, cumprindo carga horária em dedicação exclusiva, atendendo à graduação, à pós-graduação, à pesquisa e à extensão. Geralmente, procuram complementar seus salários através de bolsas de pesquisa através das agências de fomentos e, em muitas ocasiões, acabam por adoecer na exaustiva tentativa de atender aos critérios de avaliação institucional.

Consideramos que existam ainda mais duas outras categorizações no meio docente das universidades federais. Uma seria o que chamamos de “professor de grife”, que em sua maioria não tem dedicação exclusiva, exercendo outras atividades profissionais, e que se utilizam da universidade como complemento salarial ou como elemento de reputação para suas atividades externas. São comuns na área de saúde, além de engenheiros, administradores, economistas, juízes, promotores, procuradores, entre outros. Sua ocupação externa é a principal e nela exibem uma qualificação a mais: a “qualidade” de serem professores universitários.

Por fim, o quarto tipo é o objeto central desse texto: o professor empreendedor. Para que as universidades pudessem estabelecer parcerias com empresas privadas, era fundamental que alguns professores assumissem um ethos empreendedor, e isso não se deu de maneira espontânea, como exporemos na próxima seção deste texto. Apesar de serem predominantemente ligados às unidades de ciências exatas e da saúde, os professores empreendedores aparecem também nas ciências humanas e sociais, participam massivamente nos editais de fomento e assumem importante papel na captação de recursos que implicam na sobrevivência de alguns programas de pesquisa.

Sacramento (2015, p. 197) entende que o objetivo amplamente difundido pelas políticas públicas de estímulo à inovação e ao empreendedorismo é vincular institucionalmente o trabalho dos professores/pesquisadores das universidades com os complexos industriais financeiros para obtenção de novos produtos e serviços, cujos objetivos são aumentar a apropriação da mais-valia e da taxa de lucro. Entretanto reforça que tal política de inovação é muito mais simbólica do que efetiva, embora existam alguns casos de sucesso para a perspectiva do empreendedorismo.

Registre-se, por fim, que a tipologia aqui apresentada não é algo engessado e inflexível, pois os variados tipos, por vezes se entrelaçam, resultando num profissional multifacetado e preparado para se desdobrar em diversas frentes.

2 - Universidade, produção de ciência e tecnologia e empreendedorismo

É praticamente consenso, no âmbito da literatura crítica, que o capitalismo contemporâneo forjou-se predominantemente financeiro e rentista (CHESNAIS, 1996), e que o poder de decisão está agora centrado nas instituições financeiras, cujos principais atores são os bancos, os fundos de pensão, os fundos de investimentos e as seguradoras.

A pressão desses atores pela extração de lucros cada vez maiores e de maneira mais rápida, força as empresas a alterarem seus processos de trabalho, aumentando a exploração da força de trabalho e exigindo maior produtividade através do uso intenso de novas tecnologias, dentre outros aspectos. A aceleração do ciclo do capital é a regra, e ela impulsiona a diminuição do gap entre o desenvolvimento de ciência e a produção de inovações, buscando a diminuição temporal entre a produção de conhecimento e a sua apropriação pública e privada.

O acesso ao conhecimento científico e técnico sempre teve importância na luta competitiva intercapitalista, porém as informações precisas e atualizadas são atualmente uma mercadoria muitíssimo valorizada. O acesso à informação, bem como o seu controle, aliados a uma forte capacidade de análise instantânea de dados tornaram-se essenciais. O conhecimento da última técnica implica a possibilidade de alcançar uma importante vantagem competitiva. O saber passa a ser uma mercadoria-chave, a ser produzido e vendido a quem pagar mais e, para fazer jus a essa dinâmica, o papel da universidade ganha importância cada vez maior.

Mancebo, Silva Junior e Schugurensky (2016, p. 11-12) consideram que...

O desenvolvimento, combinado e desigual, do capitalismo em escala mundial e de predominância financeira também introduziu a mercantilização na produção e na disseminação do conhecimento. Sem dúvida, este foi o campo da educação superior mais afetado, pelas mudanças econômicas, tendo curso na Europa, América Latina e no país que teve precedência nesse processo: os Estados Unidos da América.

Algumas universidades convertem-se (interna e externamente) numa espécie de “empresa com fins lucrativos” que têm em seus horizontes a maximização de recursos captados externamente e passam a compor a lógica competitiva das empresas. Comportamentos economicamente motivados são materializados através de iniciativas que valorizem o maior “ativo” de seus recursos humanos: o capital humano.

O trabalho de uma parte dos professores/pesquisadores é alterado dentro dessa lógica empresarial, pelo menos para aqueles que passam a dedicar parte de sua jornada de trabalho à busca de clientes e recursos no mercado, ampliando o nexo entre as universidades e as empresas.

Nos EUA, a busca por novas fontes de recursos ultrapassa o escopo das bugigangas personalizadas e das consultorias pontuais para alcançar núcleos de pesquisa que fomentam a produção de conhecimento, o registro de patentes, a flexibilização de currículos, lastreados por políticas públicas que produzem o arcabouço jurídico necessário para moldar as universidades públicas a essa dinâmica.

Os pesquisadores que têm como horizonte a pesquisa pura desvinculada da ciência induzida para o mercado dão lugar a um novo profissional, que acredita que a maneira mais clara de mostrar a utilidade de seu trabalho de pesquisa é vinculando-a com a iniciativa privada. Rhoades e Slaughter (2004, p. 40), em uma estilização caricata do perfil do professor/pesquisador norte-americano, afirmam que o “chefe acadêmico clássico, esfarrapado, enrugado, que veste casaco esportivo folgado e de blusa aberta no pescoço” dá lugar ao professor-empreendedor “impecavelmente vestido, que porta no bolso uma enorme lista de empresas com as quais sua unidade estabelece convênios”.

Algumas universidades públicas brasileiras assumem contornos semelhantes às norte-americanas, exibindo padrões que privilegiam

[...] inovação, comercialização, empreendedorismo e criação de valor econômico para as comunidades que se inserem, procurando maximizar a pesquisa, ideias e talentos, promover habilidades empreendedoras e o valor pedagógico do empreendedorismo (LIMA, 2015, p. 22).

Mancebo, Silva Junior e Schugurensky (2016, p. 12) ressaltam que no Brasil, esse movimento de mercantilização da produção do conhecimento não é universal entre as instituições de educação superior (IES). Esse fenômeno só ocorre nas instituições onde pesquisa e pós-graduação encontram-se plenamente consolidadas. É no interior dessas universidades “diferenciadas”, que emergem as inovações tecnológicas, classificadas por Silva Junior como “conhecimento matéria prima”, ou seja, o conhecimento com potencialidades para ser transformado em produto, processo ou serviço; ou com a capacidade de auferir lucros imediatos. É através da pós-graduação que algumas universidades públicas brasileiras desenvolvem a pesquisa aplicada voltada para a inovação, assumindo papel central nas modificações culturais da universidade e das diversas dimensões institucionais.

Mesmo que essa seja a realidade de um pequeno número de IES brasileiras, um forte aparato legal já foi desenvolvido há algum tempo. Ainda no mandato de FHC (1995-2002), a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB) - Lei nº 9.394/1996 - ampliava a vinculação do sistema educacional brasileiro ao sistema produtivo, incorporando uma formação voltada para o mercado de trabalho. A partir de então, ganha importância a educação profissional, lastreada nos cursos sequenciais, tecnológicos e nos mestrados profissionais. Apoiada nos preceitos bancomundialistas, a educação superior emergia terciária, ou seja, flexibilizada em seus aspectos institucionais, dissociando o ensino dos demais apoios do tripé constitucional (pesquisa e extensão). Além disso, no artigo 53 da LDB, o legislador já previa o recebimento por parte das universidades de “cooperação financeira resultante de convênios com instituições públicas ou privadas” (OLIVEIRA; FERREIRA; MORAES, 2015, p. 134).

Em seguimento, a Lei nº 10.973/2004, conhecida como Lei de Inovação Tecnológica, que versa sobre o estabelecimento de parcerias entre universidades públicas e empresas, é aprovada. Ela estabelece medidas para incentivar a inovação e a pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, baseada nas parcerias público privadas, incrementando a participação do capital privado no direcionamento da pesquisa desenvolvida no interior do espaço público das IES. Essa relação acaba por minar a autonomia de algumas (muitas) pesquisas e o compromisso com o desenvolvimento de uma educação emancipatória e baseada nos ideais de liberdade na formação humana.

[...] a inovação deixaria de ser um aspecto pontual e aleatório na produção de [ciência e tecnologia] C&T, para se tornar o carro-chefe, a raisond´être, dos investimentos do país nesse setor e das políticas públicas para as demais áreas. O que se propunha era uma estratégia centrada no papel do conhecimento gerado por diferentes atores, alicerçada na aproximação cada vez maior entre os empresários e a universidade brasileira, para a constituição de um sistema nacional de [ciência, tecnologia e inovação] CT&I (OLIVEIRA; FERREIRA; MORAES, 2015, p. 138).

Outra regulação importante nesse campo foi o Decreto nº 5.205/2004, que regulamenta as parcerias entre as universidades federais e as fundações de direito privado. Segundo Sguissardi (2009),

[...] isso não significaria que a universidade passaria a ser governada por atores extrauniversitários, mas sua prática cotidiana (suas funções, prioridades e organização interna, suas atividades, estruturas de prêmios e penas, etc.) estaria cada vez mais subsumida pela lógica do mercado e do Estado (p. 156).

Essas fundações ditas de apoio iniciaram, mesmo que de forma desregulamentada, um processo de “privatização por dentro” ou “semiprivatização” (SGUISSARDI, 2009) das instituições federais de educação superior (IFES), caracterizado por estreitas relações com empresas privadas através de venda de projetos, criação de empresas juniores e de incubadoras de empresas e realização de cursos pagos (MBA’s e mestrados profissionais) entre outros. O caráter público das universidades federais é perigosamente posto em xeque, desvirtuando a atividade fim das IFES, que é o tripé ensino-pesquisa-extensão, passando as instituições a atenderem à lógica do mercado, em detrimento da produção do saber e do desenvolvimento científico.

Boa parte da captação de recursos privados passou a se dar através da prestação de serviços de consultoria por parte das IFES para as empresas privadas, utilizando o espaço físico público (laboratórios, salas e bibliotecas) e recursos humanos pagos com dinheiro público (docentes e técnico-administrativos). O interesse privado passaria a direcionar o caminho das pesquisas e dos projetos de algumas universidades públicas brasileiras, que enveredaram por esse caminho. As incubadoras de empresas surgiram em profusão, e empresários passam a se valer do espaço público e dos recursos humanos também públicos, para desenvolver projetos e novas tecnologias a fim de multiplicarem seus lucros sem riscos e sem investimentos maiores. Um grande número de cursos pagos passa a surgir nesta mesma época, baseados nesta possibilidade aparente de trazer recursos para a universidade pública.

A tendência a aprofundar o vínculo do conhecimento produzido nas universidades com o sistema produtivo também é explícita na análise do IV Plano Nacional de Pós-graduação (PNPG - 2005-2010) e do V Plano Nacional de Pós-graduação (PNPG - 2011-2020). Sinteticamente, esses documentos propõem uma flexibilização do modelo de pós-graduação, de modo a também atender aos setores não acadêmicos, sugerindo a formação de técnicos e pesquisadores especializados para atuar nas empresas públicas e privadas. Conforme Mancebo, Silva Junior e Schugurensky (2016):

Em especial, o último PNPG é mais incisivo na convocação da universidade e de sua estrutura acadêmico-científica, técnica e pedagógica a contribuir na inserção do Brasil num sistema econômico mundial e competitivo por mercados, estimula, ainda, a diminuição temporal entre a produção de conhecimento e a sua apropriação (pública ou privada). Pretende fazer do conhecimento e da tecnologia uma poderosa ferramenta do desenvolvimento econômico e social e neste quadro a parceria entre a universidade, o Estado e as empresas dará lugar ao chamado modelo da tríplice hélice (p. 14).

Outro aspecto a ser apreciado com atenção são os financiamentos de pesquisas através das agências de fomento (Fundações de Apoio à Pesquisa/FAP´s, CAPES e CNPq), atualmente direcionados através de editais. A pesquisa de livre demanda é posta de lado, cedendo espaço à concorrência, aos financiamentos através de editais que contemplam apenas determinadas áreas do conhecimento e determinadas linhas de pesquisa.

[...] políticas de financiamento “induzido” para determinadas áreas e temáticas (vide os fundos setoriais e outras modalidades de editais dirigidos para especialidades do conhecimento) têm resultado em um extremo direcionamento da pesquisa científica e tecnológica para aqueles objetos “financiáveis”, resultando indiretamente em perda de autonomia dos pesquisadores universitários na escolha de suas prioridades de investigação, que deveriam ser definidas conforme critérios acadêmicos e sociais (MATTOS, 2009, p. 173).

Em 2013, o governo federal cria a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (EMBRAPII), sob a forma de uma organização social (OS), sem fins lucrativos, através do Decreto s/nº de 02/09/2013, com contrato de gestão assinado junto ao então Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTI), tendo o Ministério da Educação (MEC) como instituição interveniente. A EMBRAPII tem por meta estimular a estratégia inovadora das empresas brasileiras e ampliar a efetividade das políticas de apoio à inovação por meio da interlocução duradoura entre a iniciativa privada e o setor público, particularmente, as instituições de pesquisa científica e tecnológica.

Em fevereiro de 2015, o Congresso Nacional aprova a Emenda Constitucional nº 85 (EC nº 85), que alterou diversos artigos da Constituição, abrindo caminho para que instituições públicas de pesquisa desenvolvam parcerias com empresas privadas, estabelecendo que o Estado estimulará a formação e o fortalecimento da inovação nas empresas, bem como nos demais entes, públicos ou privados e permitindo que empresas privadas se utilizem de forma compartilhada de recursos humanos especializados e capacidade física instalada, para executar projetos de pesquisa, de desenvolvimento científico e tecnológico e de inovação, mediante contrapartida financeira ou não financeira assumida pelo ente beneficiário. Na prática, isto significa ceder, arrendar, emprestar ou alugar espaços e recursos públicos ao capital privado.

Ao mesmo tempo em que a alteração constitucional se materializava, adentra a Câmara dos Deputados um Projeto de Lei de criação do Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação, que foi sancionado pela presidente Dilma Rousseff em janeiro de 2016, como Lei nº 13.243/2016. Este projeto aprofunda ainda mais o caminho de privatização da ciência e tecnologia públicas, estabelecendo um caráter de legitimidade e legalidade na transferência de recursos, estrutura, propriedade intelectual e pessoal das instituições públicas e de seus servidores para as empresas privadas.

A promiscuidade das relações público-privadas, ao adentrar de forma institucional o ambiente de produção do conhecimento, fortalece a mercantilização da educação superior pública brasileira. Em médio prazo, isso poderá representar a transferência massiva de recursos humanos, técnicos, financeiros e materiais para as mãos de empresas e organizações sociais com pouco ou nenhum compromisso com a formação e a produção de ciência e tecnologia que atendam às funções sociais (e, ainda, constitucionais) de uma universidade ou centro de pesquisa. Os docentes passam a ser intermediários na captação de recursos públicos e privados e na prestação de serviços. O professor assume legalmente o papel de empreendedor, aumentando a competitividade entre pares, aguçando as já conturbadas relações intrainstitucionais. A própria propriedade intelectual dos docentes/pesquisadores passa a ser seriamente ameaçada através da perda da liberdade de publicação de estudos e pesquisas que tenham algum interesse social. A dedicação exclusiva torna-se relativa, visto que o docente poderá exercer inúmeras outras atividades remuneradas simultaneamente às suas atribuições do cargo público.

Um aspecto que deve ser destacado nesse contexto é o fato de que os baixos salários recebidos pelos docentes potencializam essa colaboração (e cooptação) dos docentes com projetos privados, com o objetivo de receberem complementação salarial através de bolsas. A coerção econômica é um poderoso elemento para recrutar docentes para o empreendedorismo. A lógica da complementação salarial rompe a unidade da carreira do magistério superior, trazendo consequências para a tríade constitucional do ensino, pesquisa e extensão. A exacerbação dessa dinâmica transforma cada professor numa unidade empreendedora, passível de ser mensurada e avaliada por critérios meramente empresariais. Aos que não conseguem se inserir nessa engrenagem resta a pecha de improdutivos. Aos que resistem conscientemente a essa lógica, resta muitas vezes a marginalização e a penalização salarial, apresentadas como resultado de “suas próprias escolhas”.

Por fim, cabe o registro de que os efeitos do empreendedorismo sobre a produção do conhecimento são nefastos, pois:

A inserção do habitus da produção privada, com suas sensibilidades comerciais e sua ‘moralidade utilitária’, nas práticas educativas, destrói relações solidárias e valores caros à educação, como o compartilhamento e universalização do conhecimento. A ética profissional esvai-se e torna-se obsoleta num processo de cumprimento de metas, produtivismo acadêmico, melhoria do desempenho, competição e maximização do orçamento (MANCEBO, 2014, p. 98).

Considerações finais

Ciência e capital apresentam uma relação contraditória, pois a princípio, a ciência representa a emancipação da humanidade. A produção do conhecimento é a ponta mais nobre da ontologia do trabalho, pois é o que nos poderia favorecer a ir muito além de nossas necessidades imediatas, levando a classe trabalhadora à emancipação e à liberdade, com a possibilidade de que as novas tecnologias pudessem contribuir para a diminuição do tempo de trabalho socialmente necessário. A contradição surge quando o capital se utiliza da própria ciência para colocar em nosso cotidiano suas hierarquias a fim de garantir sua reprodução ampliada através do barateamento da força de trabalho.

No Brasil, o papel da universidade pública como produtora dessas “liberdades potenciais” é travado desde o início, quando consideramos que nossa educação superior se estabelece numa sociedade extremamente desigual, machista, racista, patrimonialista e violenta. O ensino superior no Brasil não aparece como meio de socialização e produção de conhecimento socialmente útil. A resistência precisou ser construída diuturnamente por dentro das próprias instituições. Com muitas dificuldades, através de mobilizações, lutas e greves, conseguimos garantir, na Constituição Federal de 1988, a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão e a gratuidade nas instituições públicas.

Quando a reforma do Estado brasileiro, com todas suas causas e condicionalidades, começa a ser implementada ainda no governo FHC, estrangula a universidade pública em seu orçamento e em sua capacidade de reposição de quadros, além de arrochar salários dos docentes e técnicos, bem como impedir o professor/pesquisador de exercer suas atividades em plenitude.

A saída oferecida aos professores/pesquisadores das IES passava pela privatização por dentro das instituições. A partir de 20042, as fundações de apoio privado se expandem no interior das instituições, desequilibrando a isonomia dos salários dos docentes e alimentando uma lógica individualista e competitiva entre os pares. Esse processo de privatização interna via fundações veio acompanhado de uma expansão dos cursos de pós-graduação de maneira diferenciada, produzindo alguns poucos centros de excelência acadêmica (GREGÓRIO, 2017).

O processo de expansão, que a universidade pública experimenta nos governos do PT, não altera essa lógica privatista e a farta regulamentação que apresentamos ao longo do texto o atesta.

A relação da universidade com o setor produtivo apesar de remeter ao século XIX, observa um incremento nunca antes visto em meados do século XX. No Brasil, a produção de ciência e tecnologia ganha importância durante o período ditatorial entre as décadas de 1960 e 1970, com a ampliação dos programas de pós-graduação. Apesar de historicamente datado nos EUA e considerado ultrapassado por muitos, o argumento da hélice tripla3 é bastante invocado e se reinventa no início do século XXI, assumindo novos elementos além da relação universidade-empresa-governo, como o setor financeiro e o mercado. São essas mudanças que vão introduzir na academia novas maneiras de se produzir ciência e tecnologia que vão rapidamente se expandir quase pela totalidade dos países. Termos derivados do inglês e utilizados na indústria e na gestão de negócios, como start ups, incubadoras, parques tecnológicos e clusters, vão invadir as IES, produzindo efeitos que serão sentidos em algumas grandes universidades públicas brasileiras. Nas demais, instituições pequenas e médias, apesar desse novo tipo de “universidade empreendedora” e da produção do conhecimento também dominar o discurso, na prática não se materializa em resultados, muito em face das próprias políticas públicas balizadas na hierarquização dos centros de pesquisa e na criação de poucos centros de excelência.

Precisamos considerar também especificidades do empresariado brasileiro, sua forte dependência (e aliança) à burguesia internacional e que conta com um baixo custo da força de trabalho. Adicionalmente, o alto grau de oligopolização, achata a demanda das empresas residentes a investir em pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias. O que observamos é a aquisição de tecnologias desenvolvidas nos países centrais do capital, cabendo às empresas locais, no máximo, a adaptação dessas à realidade brasileira (MANCEBO, 2014, p. 98).

Uma frase dita pelo professor Renato Santos de Souza em artigo publicado em 2014 sob o título “A Doença da Normalidade na Universidade” define bem as alterações que assolam o trabalho dos professores/pesquisadores na universidade pública brasileira.

Somos todos “normóticos” em um sistema acadêmico de formação de pesquisadores e de produção de conhecimentos que está doente, e nossa “normose acadêmica” tem feito naufragar o pensamento criativo e a iniciativa para o novo em nossas universidades. (SOUZA, 2014, s.p.).

A cultura da universidade empreendedora que solapa as instituições de pesquisa mundo afora não poupa ninguém, irradiando-se através de um conjunto de normas, leis, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir, que são admitidos e aprovados por consenso ou por maioria em uma determinada sociedade e que provocam sofrimento, doença e até mesmo a morte, a chamada “normose acadêmica”.

Souza (2014) sentencia que a atual “normose acadêmica” se deve à “meritocracia produtivista implantada nas universidades, cujos instrumentos, no Brasil, para garantir a disciplina a esta doentia normalidade são os sistemas de avaliação de pesquisadores e programas de pós-graduação, capitaneados principalmente pela CAPES e CNPq”, ao que acrescentamos outro fator etiológico: a introjeção a fórceps de uma cultura empresarial e empreendedora que afasta docentes e alunos do objetivo milenar da instituição universitária. Estes sistemas têm transformado, nas últimas décadas, docentes e alunos em “burocráticos produtores de artigos”, e “empresários da academia” afastando-os do nobre objetivo da ciência com a sociedade, obstruindo a criatividade, a iniciativa, o senso crítico e a inovação em sentido puro.

Apesar desse cenário devastador para as práticas públicas nas universidades brasileiras, não devemos esmorecer ou permanecer otimistas. Apesar da perseguição aos grupos marxistas e a quaisquer outros que se atrevam a se levantar contra essa lógica hegemônica ditada pelo capital, nós estamos aqui, dentro da universidade pública, travando lutas diárias nas instâncias que ainda nos restam pela socialização de um conhecimento comprometido com a melhoria das condições de vida da sociedade.

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1 Parte substantiva do texto baseia-se na tese A produção de ciência e tecnologia nas IFES e o trabalho do “professor empreendedor” na Universidade Federal Fluminense, de José Renato Bez de Gregorio, defendida no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2017.

2Referência ao Decreto nº 5.205 de 2004, que regulamenta as parcerias entre as universidades federais e as fundações de direito privado.

3Referência à noção desenvolvida na Universidade de Stanford na Califórnia, que determina que as três pás da hélice (do Triângulo de Sábato) - Estado-Universidade-Empresa - devem funcionar em harmonia. Sábato e Botana (1975, p. 146), autores que primeiramente desenvolvem a ideia, defendem que a produção de inovações tecnológicas, principalmente nos países do capitalismo periférico, é um processo político que constitui “o resultado da ação múltipla e coordenada de três elementos: o governo, a estrutura produtiva e a infraestrutura científico-tecnológica”.

Recebido: 24 de Junho de 2019; Aceito: 12 de Agosto de 2019

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