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Revista Eletrônica de Educação

versão impressa ISSN 1982-7199

Rev. Elet. Educ. vol.13 no.3 São Carlos set./dez 2019  Epub 01-Set-2020

https://doi.org/10.14244/198271993544 

Dossiê Políticas de Educação superior e produção do conhecimento no Brasil: novos modos de regulação e tendências

Reflexões sobre a produção do conhecimento no campo acadêmico-científico: illusio e meritocracia

Reflections on the production of knowledge in the academic-scientific field: illusio and meritocracy

Reflexiones sobre la producción del conocimiento en el campo académico-científico: illusio y meritocracia

Maria Cristina da Silveira Galan FernandesI 
http://orcid.org/http://orcid.org/0000-0002-8415-9400

IUniversidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos-SP, Brasil - Professora associada do departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. E-mail: mcsgfernandes@gmail.com. Doutorado em Educação Escolar.


Resumo

Este artigo visa problematizar a produção do conhecimento no campo acadêmico-científico, no âmbito da nova universidade que se configura no século XXI, em que se privilegia a produção do conhecimento matéria-prima, voltado para os interesses do mercado. Trata-se de pesquisa bibliográfica, fundamentada em conceitos teóricos de Pierre Bour dieu, que auxiliam na compreensão das características do campo científico, marcado pelo par dialético conhecimento e interesse (illusio), evidenciando as particularidades da produção do conhecimento centrado no produtivismo e respaldado pela ideia de meritocracia, elemento estruturante do campo acadêmico-científico. Entende-se que todos os campos sociais passam por ressignificações, transformações ou mudanças de acordo com o contexto histórico em que estão inseridos e que, nesse sentido, no campo da pesquisa e da produção do conhecimento científico existem, para além do produtivismo e da luta concorrencial por prestígio e poder, atitudes, ações e práticas colaborativas entre os pesquisadores. Conclui-se que a compreensão das características intrínsecas e extrínsecas do campo científico, desvelando as relações de poder e dominação que engendram a produção do conhecimento, possa ampliar as possibilidades de constituição de um novo projeto de educação emancipatória para os seres humanos, contribuindo para a superação do atual habitus pro fissional produtivista e meritocrático que conforma a illusio de pesquisadores e estudantes no campo acadêmico.

Palavras-chave: Educação superior; Produção do conhecimento; Relações de poder; Meritocracia

Abstract

This article aims to discuss the production of knowledge in the academic-scientific field within the scope of the new university that exists in the XXI century in which the production of raw material knowledge is privileged, focused on the interests of the market. It is a bibliographical research, based on Pierre Bourdieu’s theoretical concepts, which help in the comprehension of the characteristics of the scientific field, marked by the dialectical pair knowledge and interest (illusio), highlighting the particularities of the production of knowledge centered on productivism and supported by the idea of meritocracy, structuring element of the academic-scientific field. It is understood that all social fields undergo resignifications, transformations or changes according to the historical context in which they are inserted and, in this regard, in the field of the research and the production of scientific knowledge there are, beyond the productivism, the competitive struggle for prestige and power, attitudes, actions and collaborative practices between the researchers. In conclusion, the understanding of the intrinsic and extrinsic characteristics of the scientific field, revealing the relations of power and domination that engender the production of knowledge, can expand the possibilities of constitution of a new emancipatory education project for human beings, contributing to the overcoming of the current productive and meritocratic professional habitus that conforms the illusio of researchers and students in the academic field.

Keywords: Higher education; Production of knowledge; Power relations; Meritocracy

Resumen

Este artículo tiene por objeto problematizar la producción del conocimiento en el campo académico-científico en el ámbito de la nueva universidad que se configura en el siglo XXI en que se privilegia la producción del conocimiento materia prima, orientado hacia los intereses del mercado. Se trata de una investigación bibliográfica, fundamentada en conceptos teóricos de Pierre Bourdieu, que auxilian en la comprensión de las características del campo científico, marcado por el par dialéctico conocimiento e interés (illusio), evidenciando las particularidades de la producción del conocimiento centrado en el productivismo y respaldado por la idea de meritocracia, elemento estructurante del campo académico-científico. Se entiende que todos los campos sociales pasan por resignificaciones, transformaciones o cambios de acuerdo con el contexto histórico en que están insertos y que, en ese sentido, en el campo de la investigación y de la producción del conocimiento científico existen, además del productivismo, de la lucha competitiva por prestigio y poder, actitudes, acciones y prácticas colaborativas entre los investigadores. Se concluye que la comprensión de las características intrínsecas y extrínsecas del campo científico, desvelando las relaciones de poder y dominación que engendran la producción del conocimiento, puedan ampliar las posibilidades de constitución de un nuevo proyecto de educación emancipatoria para los seres humanos, contribuyendo a la superación del actual habitus profesional productivista y meritocrático que conforma la illusio de investigadores y estudiantes en el campo académico.

Palabras clave: Educación superior; Producción del conocimiento; Relaciones de poder; Meritocracia

Introdução

Este artigo apresenta um recorte de pesquisa mais ampla que objetivou analisar a relação entre os processos de trabalho docente e a formação acadêmica de estudantes de uma universidade federal brasileira no âmbito do capitalismo flexível e da política educacional de expansão do ensino superior federal, na perspectiva de seus agentes (professores, estudantes e coordenador de curso) em uma Faculdade de Educação.

Com base na teoria sociológica de Bourdieu, buscou-se refletir de maneira mais específica sobre as estratégias de atuação de professores no campo acadêmico em relação às demandas externas da sociedade, expressas pelas políticas de ações afirmativas que definem novas regras para o ingresso na universidade, inserindo estudantes de classes populares no campo universitário. A pesquisa apresentou caráter qualitativo e foi realizada por meio de entrevistas semiestruturadas. Os dados obtidos foram categorizados com base na análise de conteúdo (BARDIN, 2008) e triangulados (TRIVIÑOS, 1987) com as demais informações bibliográficas e documentais. A teoria de Pierre Bourdieu foi utilizada na compreensão e interpretação dos resultados da pesquisa considerando-se os conceitos de campo, habitus, illusio (interesse), violência simbólica e capital (BOURDIEU, 2017, 2013, 2007, 1989).

No recorte proposto para este artigo, discute-se a produção do conhecimento no campo acadêmico-científico considerando-se a nova universidade que se configura no século XXI, quando se privilegia a produção do conhecimento matéria-prima e os interesses do mercado, ou seja, da elite financeira. A partir das contribuições teóricas de Bourdieu (2004), entende-se que o campo científico apresenta um caráter ideológico e cultural, sendo necessário compreender seus movimentos internos, os quais assinalam um esforço de manutenção evidenciado pelas trajetórias e habitus homogêneos dos agentes admitidos no campo, confrontados permanentemente com princípios meritocráticos. Assim, é importante considerar que os agentes que ingressam no campo universitário não precisam escolher. Esse é um dos motivos que fazem com que eles sejam os escolhidos e acessem uma espécie de casta dentro da casta. Nesse sentido, para Bourdieu, não são as tomadas de posição políticas que orientam as tomadas de posição sobre as questões universitárias ou acadêmicas, mas são as posições no campo universitário que orientam as tomadas de posição sobre a política em geral, e sobre as questões universitárias em particular.

Nessa mesma direção Catani (2013, p. 74) destaca o papel de protagonistas dos agentes educacionais que “[...] possuem a delegação para gerir e produzir políticas universitárias, isto é, uma modalidade de produção consagrada e legitimada.”.

Com base em tais afirmações, referentes à tese de Bourdieu (2004) sobre o sistema educacional apresentar relativa autonomia em relação às demandas do setor produtivo e social, considera-se importante refletir sobre as mudanças que vêm sendo observadas no âmbito da prática universitária, no âmbito da nova universidade, que se caracteriza pela produção do conhecimento matéria-prima (SILVA JÚNIOR, 2017). Estaria o campo educacional perdendo a autonomia para se autodefinir? Em caso positivo, é possível considerar, como indicam Oliveira e Catani (2011, p. 19), que tais alterações estejam relacionadas com a intensificação da própria natureza do campo, espaço em que se desenvolvem lutas cotidianas pela “distinção universitária, autoridade científica e poder acadêmico-científico”?

A partir de um estudo bibliográfico, investiga-se, portanto, as características do campo científico, marcado pelo par dialético conhecimento e interesse (illusio), evidenciando-se as particularidades da produção do conhecimento centrado no produtivismo e apoiado pela ideia de meritocracia, elemento estruturante do campo acadêmico-científico.

Pierre Bourdieu: contribuições para a compreensão do campo educacional

A obra de Bourdieu oferece diversas ferramentas ou conceitos para se pensar a realidade educacional. Em seus estudos, a educação é entendida como um campo social, permeado por contradições, embates e lutas pelo poder e posição social (BOURDIEU; PASSERON, 1975; BOURDIEU, 2017). De acordo com Lahire, (2017, p. 65) para Bourdieu, um “campo é um microcosmo incluído no macrocosmo constituído pelo espaço social global (nacional ou, mais raramente, internacional)”. Bourdieu entende, ainda, que: “Cada campo é definido por leis próprias que determinam a entrada, a permanência ou a saída dos atores sociais que incorporam, desde cedo, as estruturas objetivas relativas ao meio em que vivem” (BALDINO; DONENCIO, 2014, p. 265-266). Nas palavras de Bourdieu (2004, p. 20-21):

A noção de campo está aí para designar esse espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas leis próprias. Se, como o macrocosmo, ele é submetido a leis sociais, essas não são as mesmas. Se jamais escapa às imposições do macrocosmo, ele dispõe, com relação a este, de uma autonomia parcial mais ou menos acentuada. E uma das grandes questões que surgirão a propósito dos campos (ou dos subcampos) científicos será precisamente acerca do grau de autonomia que eles usufruem.

O campo científico, assim como qualquer outro campo (por exemplo, o artístico, jurídico ou religioso), se constitui como campo de forças e de lutas para manter ou modificar a si mesmo. O campo pode ser compreendido, a princípio, como mundo físico com as relações de força e de dominação. Mas, para Bourdieu (2004), o campo só existe a partir dos agentes e das relações objetivas estabelecidas entre os agentes pertencentes a determinado campo. Assim, a influência das relações possíveis de serem estabelecidas no campo universitário e seu espaço de atuação são condicionados a partir das estruturas das relações objetivas existentes entre professores, estudantes, gestores e agências financiadoras e indutoras da produção acadêmico-científica.

Em síntese, o campo acadêmico-científico é um espaço de luta e concorrência entre os agentes que o integram, estruturado em torno de desafios e de interesses específicos. E são as diferentes espécies de capital (cultural, econômico, simbólico e social), posições no campo e acúmulo de autoridade científica que permitem “jogar o jogo” e lutar pelo poder no interior do campo (BOURDIEU, 1989; CATANI, 2011; HEY, 2008, RAGOUET, 2017).

Ao considerar o campo como “[...] um jogo no qual as regras do jogo estão elas próprias postas em jogo”, definindo as disposições de acesso ao jogo, Bourdieu (2004, p. 29), entende que os diferentes atores sociais inseridos no campo delimitam suas posições de acordo com o capital que detêm. Nesse sentido, podem desenvolver estratégias de atuação para manter ou transformar a estrutura e a sua posição no campo, levando-se em consideração sua origem social e trajetória acadêmica.

Além de serem relativamente autônomos e possuírem regras próprias, os campos são, ao mesmo tempo, perpassados por influências externas, provenientes de outros campos como, por exemplo, as políticas de expansão da educação superior oriundas do campo político educacional que impactam o campo da educação e seus subcampos: universitário, científico, intelectual. Entretanto, uma das manifestações mais visíveis da autonomia do campo é sua capacidade de ‘refratar’ as pressões ou as demandas externas. Nas palavras de Bourdieu (2004, p. 21-22):

De fato, as pressões externas, sejam de que natureza forem, só se exercem por intermédio do campo e são mediatizadas pela lógica do campo. Uma das manifestações mais visíveis da autonomia relativa do campo é sua capacidade de refratar, retraduzindo sob uma forma específica as pressões ou demandas externas.

Outra ferramenta importante na teoria de Bourdieu é a noção de habitus que decorre da necessidade de superar as oposições clássicas da sociologia entre as teorias objetivista e subjetivista na análise das relações entre as instituições e os agentes sociais. De acordo com Wacquant (2017, p. 214):

[...] o habitus é uma noção mediadora que ajuda a romper com a dualidade de senso comum entre indivíduo e sociedade ao captar “a interiorização da exterioridade e a exteriorização da interioridade”, ou seja, o modo como a sociedade se torna depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou capacidades treinadas e propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados, que então as guiam nas suas respostas criativas aos constrangimentos e solicitações do seu meio social existente.

Sendo uma aptidão social, o habitus permite aos indivíduos, em uma situação específica, agir de acordo com o comportamento socialmente esperado, ou seja, “fazer corresponder suas estruturas subjetivas com as estruturas objetivas do mundo social”, de maneira pré-reflexiva, sem necessidade de refletir sobre a situação, dado que “já se interiorizou anteriormente a exterioridade do mundo social” (JOURDAIN; NAULIN, 2017, p. 52-53). Em decorrência de tal percepção sobre o habitus entende-se que o mesmo seja durável e dotado de inércia incorporada, mas não seja estático ou eterno e possa variar, segundo Bourdieu, através do tempo, do lugar e da distribuição de poder (WACQUANT, 2017).

Assim, para Bourdieu (1983), habitus pode ser compreendido como um conjugado de percepções, valores, costumes, esquemas de pensamentos incorporados pelo agente que lhe possibilitam interpretar o mundo social, orientando e regulando suas práticas sociais. E o conjunto dessas práticas constitui os campos, evidenciando-se, assim, a relação direta entre os conceitos na obra de Bourdieu. Conforme destacam Baldino e Donencio (2014, p. 266):

A posição ocupada pelos agentes no interior do campo determina uma disposição em função de sua trajetória, ou seja, o campo estrutura e reestrutura o habitus. Na perspectiva relacional, o campo também pode ser estruturado pela reestruturação do habitus. Isso significa que um depende do outro, numa relação campo-indivíduo-campo.

Com base em tal perspectiva relacional entende-se que cada campo, segundo Bourdieu, também envolve e aciona uma forma de interesse, ou seja, um investimento, uma illusio específica, que evidencia o reconhecimento subjacente de seus participantes no valor do que está posto em jogo. O conceito de illusio passa a ser adotado com mais frequência na obra de Bourdieu na década de 1990 e representa de forma mais rigorosa, o sentido que ele sempre atribuiu à noção de interesse, “um interesse socialmente constituído e que só existe em relação a determinado espaço social, no qual certas coisas são importantes e outras não” (BOURDIEU, 1989, p. 14 apud AGUIAR, 2017, p. 231). A illusio reforça, portanto, um sentido de crença, de envolvimento, de empenho em jogar o jogo. É uma forma de encantamento, decorrente de um reconhecimento imediato que orienta as estratégias dos agentes no campo. Como indica Aguiar (2017, p. 231):

O que a noção de illusio reflete, como interesse em um campo, é uma cumplicidade e o ajustamento entre as estruturas mentais dos sujeitos (seu habitus ou suas disposições) e as estruturas objetivas (os próprios campos, suas regularidades, os alvos em jogo, as disputas), manifestados numa tendência à ação, ao investimento, que nasce desse acordo.

A perspectiva relacional da teoria de Bourdieu (2008) considera também os capitais (social, econômico, cultural e simbólico) dos atores ou agentes em luta no campo. Para Bourdieu o ator “não é nem o indivíduo isolado, consciente, reflexivo, nem o sujeito determinado, mecanicamente submetido às condições objetivas em que ele age” (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 20). De acordo com Bourdieu, cada indivíduo é caracterizado por uma bagagem socialmente herdada. Essa bagagem inclui tanto componentes objetivos, externos ao indivíduo, quanto componentes subjetivos que podem auxiliar ou prejudicar sua atuação no campo. Fazem parte dos componentes externos o capital econômico, referente aos bens e serviços a que ele dá acesso, o capital social, entendido como o “conjunto de relacionamentos sociais influentes mantidos pela família”, além do capital cultural institucionalizado, constituído principalmente por títulos escolares. A herança transmitida pela família inclui, também, elementos que passam a fazer parte da própria subjetividade do indivíduo, sobretudo, o capital cultural na sua forma “incorporada” (o domínio da língua padrão; os gostos em relação ao vestuário, arte, culinária, etc.) (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 21). Todos esses capitais são passíveis de se tornarem capital simbólico na medida em que o mesmo se apoia na crença ou no reconhecimento. Conforme indica Bourdieu (2013), o capital simbólico funciona como um crédito, no sentido mais amplo do termo, ou seja, uma espécie de adiamento, de promissória que “os membros de um grupo atribuem somente àqueles que - em razão de sua posição, do trabalho que eles executam para mantê-lo - lhe fornecem o maior número de garantias” (MARTIN, 2017, p. 110).

Esse conjunto teórico desenvolvido por Bourdieu é fundamental em sua análise do sistema educacional francês, em que se desvela o processo de reprodução das relações de desigualdade social que ocorre nas escolas e universidades, particularmente, mediante a ação de seus agentes educacionais que contribuem para a transmissão dos valores herdados da classe dominante, por meio de seu poder simbólico (BOURDIEU, 1999, 2008). De acordo com o autor, as instituições escolares e universidades utilizam a ideologia do dom e a meritocracia como elementos fundamentais no processo de reprodução das desigualdades escolares e sociais na medida em que naturalizam e legitimam a ideia de que as aptidões ao êxito escolar/acadêmico sejam consideradas como disposições inatas, ocultando o caráter cultural de tais disposições que são adquiridas no âmbito social e familiar (JOURDAIN; NAULIN, 2017).

Com base em tal perspectiva teórica são apresentadas, a seguir, algumas reflexões sobre a produção do conhecimento no campo acadêmico-científico, contextualizada no âmbito da nova universidade do século XXI que se volta para a produção do conhecimento matéria-prima e para os interesses do mercado.

A produção do conhecimento matéria-prima na nova universidade do Século XXI

As exigências da reestruturação produtiva do capitalismo no século XX e as orientações de agências multilaterais de desenvolvimento (Nações Unidas, Banco Mundial, Banco Internacional de Desenvolvimento - BID), têm impactado as políticas educacionais e ocasionado profundas alterações na profissão docente que se concretizam em uma nova sociabilidade produtiva permeada por novas exigências, contradições e ambiguidades nos campos acadêmico, científico e universitário (AZEVEDO; OLIVEIRA, CATANI, 2016; MAUÉS, 2010; SGUISSARDI; SILVA JÚNIOR, 2009; PAZ, 2016).

O movimento de reestruturação produtiva é caracterizado por Harvey (2012) como uma mudança profunda no capitalismo, em que o regime de acumulação fordista é superado pelo regime de acumulação flexível, representando a superação de mais uma crise cíclica do capitalismo. Para o autor, a característica do novo regime é a flexibilidade, que pode ser comprovada ao se observar um conjunto de ações nos campos econômico, político e social, tal como a ênfase ao capital financeiro, à organização mais flexível do mundo do trabalho pelo toyotismo e aos valores individualistas, que cria uma nova sociabilidade. (PAZ, 2016, p. 22)

Esse processo envolveu uma ampla reforma do Estado no Brasil, que se alinhou às políticas neoliberais e às normativas das agendas internacionais, resultando na diminuição do intervencionismo estatal no mercado, redirecionando-o a uma intervenção a favor da iniciativa privada e da privatização de bens sociais (saúde e educação), e a perda de direitos trabalhistas (ANTUNES, 1999; HARVEY, 2012; PAZ, 2016).

De acordo com Ivo (2015, p. 130) tal reforma,

[...] reorienta as formas de mediação do conflito redistributivo entre ativos e trabalho e implica uma “virada” epistemológica que reforça paradigmas “solidaristas” e institucionais de integração das massas populares ao mercado, formas cooperativas entre setores públicos e privados, ou cooperação entre países, ou seja, promove arranjos de governança pactuados entre agências multilaterais, Estados nacionais, mercado e sociedade civil, em diversas escalas. No plano cognitivo, essas transformações redefinem problemáticas sociais, ou impõem reflexões críticas da agenda de pesquisa, especialmente orientada para observar os seus efeitos no âmbito da política, da estrutura social e do encaminhamento das questões sociais.

Nessa conjuntura econômica e política, o tempo entre a produção científica e sua possibilidade de conversão em processos, produtos e serviços diminui drasticamente (SILVA JÚNIOR, 2017). O conhecimento científico se torna essencial para a criação de novas tecnologias, o que resulta em intervenções e ampliação da pressão pela subordinação do campo educacional e científico ao campo econômico. Conforme assinalam Trein e Rodrigues (2011, p. 776), “o conhecimento científico sofre um empuxo à mercantilização, ou seja, a subsunção de seu valor de uso ao valor de troca”. O valor do conhecimento científico existe apenas na medida em que tem valor de troca, podendo ser convertido em outra mercadoria. E nesse contexto, a produção do conhecimento assume a forma do trabalho fabril. Os autores observam, em sua análise, que o atual Sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação estabelece re gras mercantis para a própria produção do conhecimento (TREIN; RODRIGUES, 2011, p. 778):

[...] a regra atual de concessão de financiamentos é a mesma utilizada para a concorrência pública da construção de estradas - o edital. Com efeito, para vencer a “concorrência”, os pesquisadores consorciados deverão demonstrar sua “capacidade técnica” de produção, por meio de indicadores claros e precisos, tais como o volume de sua produção anterior e a pre visão dos produtos resultantes da investigação [sic]. Para garantir a continuidade da produção científica, os consórcios de pesquisa estabelecerão uma disciplina interna rígida, de cumprimento de tempos e movimentos, segundo o cronograma preesta belecido e ratificado pela agência de fomento. Obviamente, caberá a cada equipe de pesquisa o desenvolvimento de parcela preestabelecida do trabalho científico: do pesquisador sênior ao bolsista de iniciação científica, passando pelos mestrandos e doutorandos, cada qual com sua tarefa, todos em ordem unida sob a supervisão do pesquisador-líder e todos vigiados pelos prazos das agências de fomento.

Com base em tais características fabris do trabalho docente e da produção científica, no contexto de acumulação capitalista flexível, entende-se que o sistema econômico e as ações de governo, com interesses políticos específicos, desempenham papel de dominação sobre o campo da educação superior que assume a formação de profissionais capazes de atuar e desenvolver atividades altamente qualificadas no mercado de trabalho, bem como gerar conhecimentos novos e inovações tecnológicas capazes de exercer competitividade nos diversos setores da economia (OLIVEIRA; CATANI, 2011). Assim, a reestruturação produtiva leva a uma alteração na compreensão da educação que passa a ser vista como mercadoria, e não mais como direito social o que a transforma em produto que maximiza os lucros do capitalismo.

Segundo Silva Júnior (2017), o novo tipo de conhecimento exigido pelo mercado e produzido pelas universidades é transferido na forma de inovações sociais e tecnológicas, sendo definido como conhecimento matéria-prima. De acordo com o autor (2017, p. 129):

O conhecimento matéria-prima voltado para a economia e para o mercado é uma parte dos resultados da ciência em seu novo paradigma. Trata-se de conhecimento pronto para ser transformado em produtos de alta tecnologia, novos processos de produção e serviços e está relacionado à possibilidade de lucros imediatos no âmbito econômico.

Cada vez mais atrelada à mundialização do capital, a universidade precisa desenvolver pesquisas que resultem em conhecimentos, produtos, inovações e patentes com maior valor econômico, a fim de que o investimento feito pelo Estado e pelo mercado tenha o retorno esperado, respondendo às regulamentações, às demandas e aos controles de qualidade externos aos agentes do próprio campo científico. Conforme destacam Oliveira e Catani (2011, p. 19):

De modo geral, mesmo sem intenção deliberada e explícita, dominantes e dominados no campo universitário poderão, cada vez mais, se submeter à lógica hegemônica da mundialização do capital, à chamada economia do conhecimento, à lógica e ao processo de reconfiguração da educação superior. O campo universitário vem, pois, sendo levado pelas políticas públicas de educação superior a subordinar-se a uma determinada lógica externa, perdendo paulatinamente a autonomia para se autodefinir, o que se dá em grande parte pela intensificação de sua própria natureza, como espaço de luta pela distinção universitária, autoridade científica e poder acadêmico-científico.

Nesse sentido, observa-se nas últimas décadas a intensificação do processo produtivista nas universidades por meio da pressão e cobrança pelo aumento no número de publicações, patentes, horas/aula e atividades administrativas atribuídas aos professores, bem como a redução do tempo para a realização de mestrados e doutorados. Tal produtivismo é considerado por Trein e Rodrigues (2011, p. 780) como “o resultado lógico-necessário da subsunção do valor de uso do conhecimento ao seu suposto valor de troca”. Para os autores:

[...] a hegemonia da ideologia do produtivismo - com todas as suas consequências - é um meio pelo qual se procura simultaneamente acelerar, baratear e controlar a produção de conhecimento-mercadoria, seja na forma de artefatos tecnológicos, patentes de produtos ou processos, ou mesmo de mercadoria-educação, isto é, de força de trabalho qualificada, segundo as demandas do capital. O produtivismo é fantasma-fetiche que assombra/seduz, com promessas e ameaças, a Academia. (TREIN; RODRIGUES, 2011, p. 780)

Nesse sentido, a docência passa a ser vista como uma forma aligeirada de transmissão de conhecimento, voltado para a entrada dos estudantes no mercado de trabalho. Nesse novo contexto estudantes e professores têm assumido tais práticas imediatistas e produtivistas, contribuindo para a reconfiguração do campo acadêmico-científico (AMADO; MANCEBO, 2003; OLIVEIRA, M., 2014, 2016; SGUISSARDI; SILVA JÚNIOR, 2009).

Entretanto, é importante ressaltar que apesar das alterações que vêm ocorrendo no campo científico para atender às necessidades de mercado, a universidade contém movimentos contrários e contraditórios à sociedade atual, o que significa que a universidade também produz a sociedade atual (AMADO; MANCEBO, 2003). Ou seja, como afirma Bourdieu, é preciso considerar com maior atenção o que ocorre no interior do campo científico, desvelando os interesses, estratégias e disputas em jogo.

Conhecimento e interesse (illusio) no campo acadêmico-científico

A produção da ciência, do conhecimento e da técnica nas universidades brasileiras, entendidas como forças produtivas, leva à reflexão sobre a centralidade, as características e as mudanças do trabalho docente e intelectual no campo acadêmico-científico. Torna-se pertinente, assim, compreender o funcionamento do campo acadêmico, buscando verificar se a produção do conhecimento centrado em processos produtivistas e permeado pela ideia de mérito tem reconfigurado, ou acentuado o interesse, a illusio já existente nos embates e estratégias dos agentes em suas disputas no campo.

Considerando-se a teoria relacional de Bourdieu é importante aprofundar a reflexão sobre a articulação entre os diferentes campos sociais, destacando-se, em particular, a atuação diferencial do campo estatal. Fundamentadas na obra de Bourdieu, Jourdain e Naulin (2017, p. 155) afirmam que a concentração de diferentes tipos de capitais (capital militar, econômico, cultural, etc.) possibilita ao Estado o poder sobre os outros campos, exercendo o monopólio da violência física e simbólica legítimas. Na medida em que possui o poder de imposição oficial da visão legítima do mundo social, isto lhe permite “impor seus princípios de (di-) visão do mundo pelo viés de instituições encarregadas de legitimá-los (expertise), de inculcá-los (escola) e de fazê-los aplicar (justiça)”. Graças aos recursos materiais e simbólicos que concentra, o Estado pode estabelecer as regras de funcionamento dos diferentes campos por meio de intervenções financeiras, com verbas públicas para investimentos no campo econômico, ou intervenções jurídicas (regulamentações) que contribuem para a definição das relações de força entre os detentores de capitais. Nesse sentido, conforme ainda destacam Jourdain e Naulin (2017, p. 156), o Estado é um metacampo, uma vez que integra em si os diferentes campos (educacional, cultural, econômico, etc.) e é integrado nos campos “quando define por eles as regras e os mecanismos de alocação dos recursos”.

Também apoiado em Bourdieu, Saes (2007) analisa alguns aspectos do campo científico, relacionando-o ao campo estatal que auxiliam na compreensão dessa relação. Para o autor, na sociedade capitalista, o Estado encontra sua legitimidade nos princípios de cidadania e competência, ou seja, na ideologia igualitária e meritocrática. Saes (2007) afirma que, com base em tais princípios ideológicos, todos os cidadãos podem concorrer a cargos no Estado, contanto que comprovem sua competência para o desempenho do trabalho administrativo. Esses princípios da cidadania e competência também são essenciais para a reprodução da sociedade capitalista:

Para que tal reprodução ocorra, é preciso que os princípios da cidadania e da competência se difundam pelo conjunto da sociedade, convencendo especialmente as classes trabalhadoras de que esses valores regem o funcionamento não apenas do Estado como também de outras instituições sociais (empresa, escola, etc.). Já para a burocracia educacional (Ministério da Educação, Secretarias da Educação, Coordenadorias [...] de Ensino, direção de escolas públicas), é essencial a difusão social da ideia de que a educação, na sociedade capitalista, está aberta a todos (princípio da cidadania). (SAES, 2007, p. 109)

Nesse sentido, Saes (2007) observa que a questão do mérito está profundamente entranhada nas atividades acadêmicas, evidenciada pelo princípio da competência. A ideologia da cidadania e da competência, presente no aparelho de Estado capitalista, nas escolas e universidades converte-se na “moldura ideológica que enquadra as práticas docentes” (SAES, 2007, p.110). Assim, as escolas e universidades devem transmitir aos estudantes “saberes intrinse camente legítimos, ministrados por professores intrinsecamente competentes e realizar, a partir dessa base, uma seleção intrinsecamente meritocrática” (DURU-BELLAT; ZANTEN, 1992, apud VALLE, 2013, p. 297).

A partir da compreensão dessa relação mais ampla entre os campos sociais, particularmente o campo estatal e o campo educacional, é possível detalhar algumas características endógenas do campo acadêmico-científico que resgatam sua autonomia relativa.

Considerando-se a utilização da metáfora do jogo na descrição do funcionamento do campo social, Bourdieu (2004), afirma que a autonomia de um campo se fundamenta na definição de uma aposta que lhe é particular. Os agentes que participam de um campo agem de acordo com a aposta desse campo e lutam pela aquisição ou conservação dos capitais específicos desse campo (JOURDAIN; NAULIN, 2017). A aposta do campo acadêmico-científico é o conhecimento e seu capital específico é a autoridade científica, respaldada pela ideia de meritocracia. Para que o jogo exista é necessário que os jogadores acreditem nele, acreditem no valor da aposta e tenham interesse (illusio) em jogar por essa aposta (JOURDAIN; NAULIN, 2017).

A interiorização da illusio específica de cada campo é possível pela aquisição de um habitus ajustado ao campo. E esse habitus permite, segundo as autoras, “interiorizar o conhecimento e o reconhecimento das apostas e das leis do campo” (JOURDAIN; NAULIN, 2017, p. 148). Em outras palavras, a construção e incorporação da racionalidade do campo acadêmico-científico ocorrem por meio de socializações sucessivas dos agentes sociais (professores, pesquisadores e estudantes). Para Montagner e Montagner (2016, p. 843), o processo simbólico de classificação, a “luta simbólica entre os agentes sociais por uma melhor classificação de suas habilidades e disposições” construídas durante sua trajetória escolar e universitária, visando um melhor posicionamento no campo “é um processo social, histórico e cotidiano”.

Nesse processo cotidiano a conformação da illusio e das disposições de habitus de professores-pesquisadores de graduação e pós-graduação têm alterado os fundamentos do trabalho docente. A formação do estudante como cidadão político tem cedido espaço para a formação de competências individuais e profissionalizantes, destacando-se a supervalorização de conceitos como o mérito e o produtivismo acadêmico, entendidos como estratégia de controle e adequação ao capitalismo (MANCEBO; MAUÉS; CHAVES, 2006; OLIVEIRA, M., 2014, 2016).

Entretanto é necessário considerar, conforme já assinalado, que o campo acadêmico-científico sempre se caracterizou por apresentar dinâmicas meritocráticas. A meritocracia no espaço universitário está ligada, principalmente, à autoridade científica, sendo institucionalizada, por exemplo, ao se outorgar títulos de doutor, que garantem a possibilidade de se produzir ciência (ROTHEN; SANTANA; BORGES, 2018). Porém, de acordo com os autores, o discurso do mérito se transforma em armadilha, quando conduz ao produtivismo, deixando de ser mérito desenvolver conhecimentos relevantes à sociedade, para se valorizar o número de textos publicados, os financiamentos e patentes obtidos. Conforme observam Trein e Rodrigues (2011, p. 783), na academia:

As pressões por maior produtividade, a concor rência por mais verbas, a diminuição dos tempos para maturação de resultados deixam, de ser uma decisão que afeta cada indivíduo em particular, com liberdade de ação, para constituir-se em mecanismos de constrangimento coletivo por meio de instrumentos aparentemente objetivos e neutros, como são os instrumentos de avaliação e ranqueamento.

Nesse sentido, fundamentados em Barbosa (1996), Rothen, Santana e Borges (2018) destacam, ainda, que a meritocracia se atrela intimamente a um ordenamento social de reconhecimento da capacidade e esforço pessoal, estando, a ideologia do mérito, relacionada à avaliação do desempenho e da produtividade, visando à escolha dos melhores.

A partir da identificação da questão do mérito no campo educacional, a crítica de Bourdieu e Passeron (1975) sobre os projetos meritocráticos é radical. Os autores relacionam a meritocracia a uma ideologia, na medida em que a hierarquia escolar reflete desigualdades sociais e não dons pessoais, tendendo a transformar as diferenças de classe em diferenças de inteligência, de dom. As escolas (e universidades) são apresentadas, assim, como instâncias de reprodução social.

A compreensão sobre a especificidade da produção do conhecimento nas universidades do século XXI associada à análise crítica de Bourdieu permite aprofundar outro aspecto de análise. Elemento constitutivo do campo acadêmico-científico, a produção do conhecimento se encontra em meio ao conflito de interesses entre capital e trabalho. Segundo Trein e Rodrigues (2011, p. 780) a subsunção do valor de uso social da produção científica, técnica e artística da universidade ao seu valor de troca mercantil se expressa em uma crescente insatisfação por parte de professores, pesquisadores e estudantes. “Ao lado de manifestações de resistência encontramos também a apatia ou a adesão ao processo em curso, sob argumentos que naturalizam as leis do mercado como o horizonte possível para a sociedade brasileira”.

Essa crítica e mal-estar detectado na academia por parte dos intelectuais é bastante pertinente, e pode ser aprofundada com a teoria bourdieusiana dos campos, em que se constata que as lutas e conflitos entre seus agentes são constantes. De forma que os enfrentamentos ou as crises de posição em torno da aposta do campo também são frequentes, como assinalam Jourdain e Naulin (2017, p. 150):

As tomadas de posição dos agentes na luta dependem da posição dos agentes no campo e de sua trajetória. É, efetivamente, em parte, a posição que determina a tomada de posição. A posição no campo define o ‘ponto de vista’ dos agentes sobre o campo, ponto de vista a partir do qual se forjam suas representações da luta e de suas apostas.

Estas tomadas de posição podem ser analisadas, ainda segundo Jourdain e Naulin (2017), como estratégias, conscientes ou não, voltadas para a conservação ou subversão de suas posições no espaço social. Os agentes que monopolizam o capital específico do campo tendem a lutar pela conservação ou elevação de sua posição, perpetuando o jogo que lhes é favorável. Sua posição dominante lhes permite definir regras do jogo que sejam relacionadas aos seus interesses. Já os novatos são indivíduos com menor volume de capital específico do campo e defendem estratégias de subversão. Assim,

Eles são considerados heréticos à medida que contestam o fundamento da hierarquia das posições no campo tentando mudar as regras do jogo ou a própria natureza da aposta do campo a fim de reavaliar seus capitais e, portanto, melhorar sua posição. (JOURDAIN; NAULIN, 2017, p. 150)

As tomadas de posição no campo acadêmico-científico, isto é, as estratégias de apoio ou crítica ao atual produtivismo acadêmico dependem, portanto, na teoria de Bourdieu, da posição do agente na estrutura de distribuição do capital específico. Professores, pesquisadores e estudantes incorporam a lógica específica do campo, assumindo atos instintivos e semiconscientes de comportamento visando a maximização do lucro de acordo com formas simbólicas correntes (GRENFELL, 2018).

Dessa forma, as reflexões apresentadas neste artigo buscaram pensar a experiência do campo acadêmico-científico atual, contribuindo para uma melhor compreensão de suas características endógenas e relações com o macrocosmo social. Compreender as características intrínsecas e extrínsecas do campo científico, desvelando as relações de poder e dominação que engendram a produção do conhecimento podem ampliar as possibilidades de constituição de um novo projeto de educação emancipatória para os seres humanos, contribuindo para a superação do atual habitus pro fissional produtivista e meritocrático que conforma a illusio de pesquisadores e estudantes no campo acadêmico.

Considerações finais

Um mal-estar assombra a Academia: o mal-estar provocado pelo fetiche do conhecimento-mercadoria e o seu canto de sereia − o produtivismo. (TREIN; RODRIGUES, 2011, p.769)

As recentes e aceleradas mudanças no cotidiano de professores, pesquisadores e estudantes - que vivenciam a intensificação do trabalho acadêmico, impactado pelo produtivismo -, provocam tanto um profundo desconforto como formas de questionamento nas universidades brasileiras. Seria o mal-estar que assombra a Academia, conforme assinalam Trein e Rodrigues (2011).

A problematização da produção do conhecimento nesse campo acadêmico-científico, centrado na produção do conhecimento matéria-prima e em interesses do mercado, a partir das contribuições da obra de Bourdieu, permitiram a compreensão das características endógenas do campo científico, marcado pelo par dialético conhecimento e interesse (illusio), evidenciando as particularidades da produção do conhecimento centrado no produtivismo e amparado pela ideia de meritocracia, elemento fundante do campo acadêmico-científico.

Considerando-se que todos os campos sociais passam por alterações históricas, resultado dos embates entre seus agentes por conservar ou subverter suas posições no campo da pesquisa e da produção do conhecimento científico, considera-se pertinente a discussão e proposição de novas formas de produção científica, voltadas para a emancipação humana em que o produtivismo acadêmico e o trabalho docente fabril sejam substituídos por ações e práticas colaborativas entre os pesquisadores, estabelecendo-se interesses emancipatórios e igualitários para o campo educacional. Resgata-se, assim, a ideia da universidade como espaço de formação humana, que almeja a constituição integral do ser humano, não se restringindo apenas a uma formação técnica e profissional. O campo acadêmico-científico deve ser considerado um espaço de liberdade teórica, em que se evidenciam diferentes posições acadêmicas e políticas. Essa liberdade estimula a discussão e o debate de temas, a experimentação e o teste de certezas e verdades (CATANI, 2008).

Nesse sentido, considera-se importante que o campo universitário possa exercer sua autonomia relativa, não ficando completamente submetido às demandas imediatamente econômicas. Como assinala Catani (2008), a universidade pode e deve dialogar com o mercado, mas é preciso entender que o processo de produção do conhecimento e a formação de pesquisadores pede uma temporalidade específica e crítica.

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Recebido: 27 de Junho de 2019; Aceito: 12 de Agosto de 2019

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