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Revista Eletrônica de Educação

versão impressa ISSN 1982-7199

Rev. Elet. Educ. vol.13 no.3 São Carlos set./dez 2019  Epub 01-Set-2020

https://doi.org/10.14244/198271993084 

Demanda Contínua - Artigos

Intensificação do trabalho docente e saúde: estudo com docentes da Universidade Federal de Goiás vinculados a programas de pós-graduação

Intensification of teaching and health work: a study with professors from the Federal University of Goiás linked to graduate programs

IUniversidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia-GO, Brasil - Professora na Universidade Federal de Goiás (UFG). Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre pelo Centro Universitário Franciscano (FAE) e doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) - Ribeirão Preto. E-mail: jo_freitas@yahoo.com.br

IIUniversidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto-SP, Brasil - Professora Associada da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia FFCLRP/USP. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina-UEL, mestrado e doutorado pela Universidade Estadual Paulista - UNESP, Livre Docente pela Universidade de São Paulo. E-mail: vnavarro@usp.br


Resumo

O presente artigo discute a relação entre intensificação do trabalho docente e a saúde de professores. Os dados obtidos baseiam-se em pesquisa que teve como objeto de estudo o trabalho docente de uma universidade pública vinculado a programas de pós-graduação. A pesquisa de caráter qualitativo foi fundamentada teórica e metodologicamente pelo materialismo histórico-dialético e utilizou como principal instrumento de coleta de dados a entrevista. Para tanto foram entrevistados 11 professores vinculados aos dois programas de pós-graduação mais bem avaliados da Universidade Federal de Goiás (UFG), no período de 2010 a 2012 pela Capes. Estes dois programas, a saber, PPGEO e PPGEcoEvol obtiveram o conceito seis na avaliação mencionada. A presente pesquisa justifica-se pela observação das profundas transformações ocorridas não apenas no ensino superior, mas também na pós-graduação brasileira, principalmente em momento posterior à Reforma do Estado da década de 1990. As novas exigências têm se aprimorado ao longo do tempo e têm culminado no aumento das cobranças avaliativas feitas pelas agências de fomento à pesquisa, as quais se desdobram em intensificação do trabalho. O relato dos docentes entrevistados sinalizou para uma série de sintomas físicos e psicológicos na totalidade dos professores, seja pela falta de descanso, pela sobrecarga de trabalho ou pela dificuldade em manejar as exigências do trabalho acadêmico e administrativo vinculado à pós-graduação.

Palavras-chave: Trabalho docente; Saúde docente; Intensificação do trabalho

Abstract

This article discusses the relationship between the intensification of teachers’ labour and health of professors. The data obtained are based on research that had for object the work of post-graduation programs professors in a public university. The qualitative research, theoretically and methodologically grounded by historical-dialectical materialism, used interviews as the main instrument of data collection. For that, were interviewed 11 professors from two post-graduation programs of the Federal University of Goiás (UFG), in the period from 2010 to 2012, namely PPGEO and PPGEcoEvol, the programs that achieved concept six in the CAPES evaluation. The present research is justified by the observation of the profound transformations that occurred not only in higher education, but also in Brazilian post-graduation, especially after the State Reform of the 1990s. The new requirements have improved over time and have culminated in the increase of the evaluation demands made by the agencies of promotion of research, which unfold in intensification of labour. The report of professors interviewed showed a series of physical and psychological symptoms in all professors, either due to lack of rest, work overload or difficulty in handling the demands of academic and administrative work linked to post-graduation studies.

Key words: Teachers’ labour; Health of professors; Intensification of labour

Introdução

O mundo do trabalho tem sido palco de uma série de intensas modificações, principalmente nas últimas três décadas, no que tange às condições e relações de trabalho. Esse contexto tem sido marcado pela exacerbação da, estruturalmente intrínseca, precarização do trabalho. Estas alterações atingem os trabalhadores de uma maneira geral - inclusos os trabalhadores e trabalhadoras da área da educação.

Especificamente no que diz respeito aos docentes do ensino superior público federal percebe-se um grande movimento de acirramento da precarização de suas condições e das relações de trabalho. Dentre as várias formas de ocorrência da precarização, o fenômeno da intensificação do trabalho docente manifesta-se com cada vez mais força.

A adoção de políticas de cunho neoliberal tem sido vista ao redor do globo, e também no Brasil, como uma das iniciativas intimamente relacionadas com a Reforma do Estado, período no qual uma série de modificações entra em curso e passa a determinar uma nova caracterização não apenas do ensino superior público, mas também da pós-graduação brasileira.

Em virtude disso, o produtivismo acadêmico tem sido sobremaneira discutido, principalmente em decorrência das exigências que têm sido feitas aos docentes vinculados a programas de pós-graduação e que tem, por consequência, seu trabalho avaliado primordialmente pelo número de produtos (artigos) publicados ao longo do período avaliativo.

Entre as exigências apresentadas por esta lógica, destaca-se o controle cada vez maior sobre a atividade docente, em especial daqueles vinculados a programas de pós-graduação. Exige-se, além da produção do conhecimento específico de uma determinada área - que acaba por ser medida em termos predominantemente quantitativos -, a realização de tarefas administrativas: elaboração de projetos, relatórios, prestações de contas, preenchimento de plataformas de dados, etc.

Toda esta ordem de sobreposição de funções e atribuições implica em um aumento da intensidade do trabalho durante a jornada, bem como na ampliação desta, pela invasão do tempo de não-trabalho, o que acaba por recair sobre as condições de saúde física e psíquica destes docentes.

Esta “nova” realidade de trabalho na qual professores e professoras estão inseridos está de acordo com as determinações mais amplas do sistema do capital, seja pela necessidade geral de aumento da produtividade para a continuidade de sua reprodução, seja pela forma atual da superexploração do trabalho para enfrentar seu momento de profunda crise.

No que diz respeito às consequências mais gerais sentidas pela classe trabalhadora, para além da realização de um trabalho já intrinsecamente alienado, observa-se um amplo processo de intensificação e de precarização do trabalho, o que por sua vez se desdobra em impactos e consequências em sua saúde.

Metodologia

Para se empreender a referida discussão, o contato com a realidade concreta se fez a partir da escolha de dois programas de pós-graduação da Universidade Federal de Goiás (UFG). Esta Universidade representa, tal qual uma série de outras instituições públicas brasileiras, o significativo crescimento da universidade nos últimos anos, compreendido não apenas pela expansão no número de universidades públicas federais, mas sobretudo, pelo crescimento da pós-graduação, lócus irradiador principal da produtividade acadêmica.

Buscou-se selecionar na UFG os programas que tivessem alcançado as notas mais altas na avaliação trienal em vigência da Capes à época da pesquisa - triênio 2010-2012. Foram eles i) o Programa de Pós-Graduação em Ecologia & Evolução - PPGEcoEvol e ii) o Programa de Pós-Graduação em Geografia - PPGEO, aos quais foram aferidos o conceito seis na avaliação.

A escolha pelos programas com as maiores notas justifica-se pela percepção de que, traçando um paralelo com um dos elementos centrais do método marxiano, aquilo que é mais desenvolvido fornece as chaves analíticas para o que é menos desenvolvido (MARX, 2011).

Desta monta, compreende-se que é nestes programas que se poderá encontrar, pelo nível de pressão por produtividade a que estão submetidos para cumprir os requisitos avaliativos, um elevado grau de intensificação do trabalho que poderá trazer profundos impactos à saúde destes docentes.

Para esta pesquisa, foram entrevistados onze (11) docentes, seis vinculados ao PPGEcoEvol e cinco ao PPGEO, com regime de trabalho em dedicação exclusiva (40h DE) e atividades vinculadas à docência e à pesquisa na pós-graduação, de ambos os sexos, credenciados nos programas de pós-graduação selecionados.

As entrevistas foram realizadas entre dezembro de 2016 e novembro de 2017, após prévia aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa na qual foi realizado o doutorado. Todas elas foram gravadas a partir da autorização dos entrevistados e posteriormente transcritas. Além disso, foi apresentado aos docentes o Termo de Consentimentos Livre e Esclarecido, com os detalhes da pesquisa, para assinatura.

Os entrevistados são identificados ao longo deste manuscrito pela nomenclatura ‘Entrevistado’ e um número, que sinaliza a ordem em que a entrevista aconteceu. Optou-se por não identificar a qual programa se vinculava cada um dos professores, por se compreender que para as referidas análises essa distinção não se fazia necessária.

Diante do panorama apresentado acima acerca das modificações observadas no trabalho docente, especialmente no que se refere àqueles vinculados a programas de pós-graduação, o artigo que aqui se apresenta tem como objetivo analisar as relações estabelecidas entre o processo de intensificação do trabalho destes professores e a saúde destes docentes nos dois programas de pós-graduação apresentados.

A nova conformação da pós-graduação no sistema de produção capitalista

O mundo do trabalho tem sido alvo de uma série de transformações bastante significativas. Tais modificações afetaram também o ensino superior e, mais especificamente, o âmbito da pós-graduação, tanto em parâmetros de avaliação/qualidade, quanto em suas exigências e sua expansão.

A articulação destes elementos impactou também não só na própria conformação do ensino superior e da pesquisa brasileira, mas, inclusive, nas características e especificidades do trabalho do docente (CARVALHO, 2008; GOMES, 2008; SGUISSARDI; SILVA JUNIOR, 2009).

O cenário destas transformações está intimamente imbricado com o contexto macrossocial e político marcado por mudanças que se deram tanto no aparato produtivo dos diferentes setores da economia, incluindo aí as formas de gerir e organizar o trabalho, quanto nas mudanças de ordem político-ideológica alinhadas ao receituário neoliberal.

Todos estes acontecimentos elencados são, mesmo em suas especificidades, profundamente interdependentes e fazem parte da dinâmica contraditória do modo de produção capitalista, conforme se demonstrará a seguir.

Não por acaso, o início do período mais drástico de transformações do trabalho docente, na graduação e na pós-graduação, coincide com a abertura da economia interna à concorrência internacional. Este período é também caracterizado pela adoção do ideário neoliberal que, na esfera político-ideológica, apregoa a diminuição do papel de intervenção do Estado (SGUISSARDI; SILVA JUNIOR, 2009).

Entretanto, vale destacar que esta demanda pela diminuição do papel interventivo do Estado restringe-se tão somente às esferas sociais. Frequentemente, a partir do deslocamento da regulação social para a esfera do mercado e da concorrência, o Estado é convocado a intervir quando há crises ou ameaças de prejuízo para os grandes capitais, em um processo que Faria (2009) nomeia de capitalismo totalmente flexível - “um ‘ponto de equilíbrio’ entre a economia de mercado e a ação reguladora e financiadora do Estado” (p. 36) - o que acaba por intensificar os conflitos existentes nas relações capital-trabalho (ANTUNES, 2009; MACIEL; PREVITALI, 2012; NAVARRO; NEIRY; LIMA, 2001).

Concomitantemente a este processo, presencia-se a mundialização do capital e a financeirização da economia, processos intimamente articulados e que acabam por representar a forma predominante de reprodução do sistema do capital na atualidade (ANTUNES et al., 2017; CHESNAIS, 1996) - ainda que o sistema do capital não possa jamais prescindir da esfera produtiva propriamente dita (ANTUNES, 2009; MARX, 2013).

Aqui se encontra, portanto, um dos elementos que subjazem à necessidade da reforma do Estado ocorrida no Brasil, na década de 1990. Adotar um novo receituário político-ideológico e novos ditames no âmbito da produção diz respeito às respostas encontradas pelo capital para o enfrentamento de sua crise estrutural - que assola os países de diferentes maneiras desde a década de 1970 (MÉSZÁROS, 2002).

No interior deste processo, o desenvolvimento tecnológico adquire importância destacada na medida em que é fundamental para que o país possa, a partir das demandas do neoliberalismo, inserir-se no quadro competitivo internacional.

Para tanto, as universidades, em especial por meio de seus programas de pós-graduação, são incluídas nesse movimento por desenvolvimento de tecnologia, em virtude do fato de ser o lugar privilegiado de produção científica nacional. Ou, nas palavras de Mancebo (2017, p. 113) “no Brasil, o lugar precípuo de produção de conhecimento e da decorrente centralidade da pesquisa é a pós-graduação”.

O crescimento da pós-graduação e a mudança de seu perfil, vivenciados especificamente nas últimas duas décadas, estão, pois, relacionados com esta demanda do Estado - principal indutor das pesquisas no Brasil - para que o país possa fazer frente ao aumento da competitividade internacional.

Na esteira desta onda de rearranjo das forças produtivas e do quadro competitivo internacional, e como materialização do ideário neoliberal, o Estado brasileiro passa por uma profunda reforma - que recai, inclusive, em uma de suas agências de fomento e avaliação da pós-graduação brasileira: a CAPES (SGUISSARDI; SILVA JUNIOR, 2009).

Tal reforma acontece, ainda na década de 1990, sob o discurso da eficiência e da responsabilidade social. O Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado (MARE) assume a tarefa de aplicar à administração pública o modelo gerencial de gestão (CHAVES; MENDES, 2009). Segundo representantes da reforma, a proposta se impõe como uma necessidade diante do modelo patrimonialista e burocrático que dominaria o modo de gerir o Estado brasileiro até então (SILVA JUNIOR; SGUISSARDI, 2001).

Desta feita, observa-se a inserção de valores que objetivam a racionalização do serviço público, tal qual ocorre nas organizações privadas, por meio dos modelos de gestão (DAL ROSSO, 2008). No ensino superior, a reforma está também associada ao discurso da qualidade - equacionada, nesse contexto, a partir da relação custo-benefício (LIMA et al., 2014).

O discurso de aumento da eficiência e da responsabilidade social, âmago ideológico da flexibilização neoliberal do Estado, dissimulava a prática de corte de gastos estatais - ressalte-se: em áreas sociais -, o que resultou num longo período de falta de investimento por parte do Estado também no âmbito da educação pública. A máxima ‘fazer mais com menos’ passou a ser adotada e, por meio de uma concepção de cunho gerencialista, difundiu-se a ideia de que era necessário que o serviço público fosse mais eficiente, mesmo com a falta de investimentos.

O longo período de falta de investimentos (especificamente durante a década de 1990) por parte do Governo Federal no ensino superior público, que implicou em um grande sucateamento das universidades públicas, e o amplo incentivo à oferta de vagas nas instituições privadas (nos mandatos de Fernando Henrique Cardoso), seguido de iniciativas (década de 2000) de ampliação do acesso sem os necessários investimentos para recuperação e ampliação das instituições federais de ensino e pela oferta em instituições privadas sob a insígnia de democratização do ensino e justiça social (mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva) (GOMES, 2008), longe de marcar uma ruptura, expressa, ainda que com certas diferenças, a continuidade de um modelo bastante claro de desenvolvimento.

O contexto dessa época apresenta então um duplo movimento, apenas aparentemente contraditório: ao mesmo tempo em que o Estado tenta se eximir das responsabilidades no financiamento da educação, há o aumento na rigidez do controle do ensino superior como um todo - bem como da pós-graduação.

Nesse processo, não é coincidência que no biênio 1996-1997 a avaliação dos programas de pós-graduação tenha sofrido drástica transformação, a partir da qual se modificaram os parâmetros e fundamentos a partir dos quais a avaliação era feita.

A quantificação da produção intelectual, ou seja, a mensuração predominantemente numérica de artigos, passa a contar mais fortemente como critério avaliativo, além de se aprofundar a articulação entre sistema de avaliação e sistema de fomento.

No âmbito do ensino superior público, em geral, este processo acabou por aprofundar o produtivismo, a intensificação e a precarização das condições de trabalho dos professores, principalmente daqueles vinculados aos programas de pós-graduação.

É o efeito paradoxal gerado pelas instituições de ensino: precarizar o trabalho para tentar cumprir metas e lucratividade que não lhe são mais possíveis. [...] No setor público, o Estado apresenta, a cada nova gestão, um incremento de estratégias gerenciais de avaliações de desempenho baseadas em metas de produção, aproximando-se das práticas liberais da iniciativa privada (CRUZ, 2011, p. 209).

Todo este longo período de ausência de investimento, acompanhado pela exacerbação de critérios de avaliação da pós-graduação brasileira, acabou por precarizar sobremaneira o trabalho nas universidades públicas e, consequentemente, também nos programas de pós-graduação, e as constantes pressões e cobranças pelo aumento da produtividade resultaram em uma grande intensificação do trabalho docente.

Tal quadro de precarização e de intensificação do trabalho “acarreta, invariavelmente, a acentuação dos efeitos perversos de desgaste físico e psicológico” (CRUZ, 2011, p. 208) o que, convém destacar, resulta em um potencial de prejuízo à saúde dos trabalhadores docentes, conforme se objetiva discutir neste artigo.

Intensificação do trabalho docente

No interior do modo de produção capitalista, a relação de transformação da natureza aparece como trabalho voltado para a produção de mercadorias, cuja finalidade é a troca. Neste processo, a relação de não pertencimento entre o ser humano que produz e o produto de seu trabalho (alienação) se desdobra em diversas formas particulares de ocorrência, que podem variar bastante entre si, a depender do momento histórico, político e econômico e da situação concreta da luta de classes (MARX, 2004).

Uma destas formas diz respeito ao fato de que o sistema precisa produzir necessariamente cada vez mais mercadorias com custos de produção cada vez menores. Isso se dá em virtude de seu inexorável processo de sua expansão, impulsionado pela sempre crescente necessidade de geração de mais-valor.

Dentre as formas de se atender a estas necessidades de crescimento ilimitadas está, por um lado, o acirramento da competição, seja ela intercapitalista, seja entre os próprios trabalhadores e trabalhadoras, e, de outro lado, as formas particulares de se elevar cada vez mais a produtividade reduzindo ao máximo os custos de produção.

Este último processo envolveu, historicamente, desde os primórdios do capitalismo, de um lado, o aumento da intensidade do trabalho, a utilização de novas ferramentas, máquinas, técnicas ou tecnologias, a redução de salários, o corte de direitos ou seja, fazer com que ele custe menos. Tomemos as palavras de Antunes (2018, p. 60)

Uma vez que os capitais buscam com frequência aumentar o mais-vallo (tanto o relativo, quanto o absoluto), a incessante ampliação da troca desigual entre o valor que o proletariado produz e o que ele recebe é uma tendência presente na própria lógica do capitalismo. Para tanto, são usados vários mecanismos, como a intensificação do trabalho, o prolongamento da jornada, a restrição e limitação aos direitos, os novos métodos de organização sociotécnica do trabalho, etc.

Daí se pode deduzir que o trabalho que se realiza sob o modo de produção capitalista traz consigo uma tendência intrínseca à intensificação e à precarização, pois, na medida em que visa à obtenção de lucro e reprodução do capital, precisa ser cada vez mais dividido e fragmentado, ter seus direitos e conquistas cada vez mais destruídos e, obviamente, produzir cada vez mais1.

Em síntese, temos que

(...) a precarização não é algo estático, mas um modo de ser intrínseco ao capitalismo [...]. Trata-se de uma tendência que nasce, conforme Marx demonstrou em O Capital, com a própria criação do trabalho assalariado no capitalismo (ANTUNES, 2018, p.59).

Se, deste modo, temos, então, que “é o processo de acumulação ilimitada de capital que comanda a sociedade, numa busca insaciável pelo lucro, pela produção do excedente, cada vez mais estimulada pela concorrência intercapitalista no plano mundial” (DRUCK, 2011, p. 41), por outro lado, na atualidade,

(...) as transformações trazidas pela ruptura com o padrão fordista geraram outro modo de trabalho e de vida pautado na flexibilização e na precarização do trabalho, como exigências do processo de financeirização da economia, que viabilizaram a mundialização do capital num grau nunca antes alcançado (DRUCK, 2011, p. 42).

A partir destes apontamentos, temos que o movimento da precarização segue, por assim dizer, o próprio movimento do conflito capital-trabalho, na medida em que, de um lado, o capital, inclusive por intermédio do Estado, tenciona a estrutura social para alcançar cada vez maior produtividade com menor custo de produção (para alimentar a insaciável reprodução do mais-valor (ou mais-valia)).

Tais aspectos constitutivos da precarização do trabalho materializam-se, na especificidade do trabalho do professor do ensino superior público de variadas formas, tais como a falta de material de trabalho e equipamentos, falta de sala de aulas, de laboratórios e de gabinetes de trabalho, sobrecarga de trabalho, competitividade, falta de reconhecimento, entre outros (FREITAS, 2013).

Na pós-graduação, a precarização do trabalho expressa-se, primordialmente, ainda que não exclusivamente, pela necessidade de criação de suas próprias condições de trabalho, por meio do “empreendedorismo”, do voluntarismo e da competição; pelo aumento da carga de trabalho e pela intensificação da jornada de trabalho, por meio da cobrança por produtividade, aumento da relação professor-aluno e diminuição do quadro de servidores de apoio técnico-administrativo (BOSI, 2007; SGUISSARDI; SILVA JUNIOR, 2009).

Pode-se, portanto, compreender que a intensificação do trabalho é uma tendência predominante no mundo do trabalho atualmente, atingindo, inclusive, os professores-pesquisadores dos programas de pós-graduação mais bem avaliados das universidades públicas federais.

Isto, pois, conforme afirmam Sguissardi e Silva Junior (2009, p. 166, grifo dos autores), o “tempo da economia determina o tempo da universidade”, ainda que revestido de especificidades, o trabalho docente encontra-se, como não poderia deixar de ser, imerso na mesma lógica que rege o modo de produção capitalista, o que implica que os docentes estão submetidos à precarização e à intensificação de seu trabalho como qualquer outra categoria de trabalhadores.

Quando se trata do trabalho de professores-pesquisadores, a intensificação pode trazer muitas especificidades, uma vez que a rotina dos programas de pós-graduação encontra um crescente de cobranças, determinadas justamente pelo tempo da esfera produtiva.

Assim, os prazos das pesquisas e das orientações, por exemplo, não seguem o tempo da produção do conhecimento ou do processo pedagógico-formativo, mas passam a ser controlados pela Capes e por outras agências de fomento, num movimento de adequação aos imperativos cada vez mais velozes do mercado.

Compreende-se que este processo, com suas crescentes exigências de produção e de produtividade, tem exacerbado o processo de intensificação do trabalho docente, em última instância imposto por exigências externas atreladas à iniciativa de autopromover condições de trabalho não garantidas por uma universidade sucateada ao longo das últimas décadas.

A intensificação do trabalho docente na UFG

Os dados obtidos por meio das entrevistas revelam como se organizam seus cotidianos de trabalho em relação à universidade como um todo e à pós-graduação.

A análise dos relatos dos docentes mostrou, inicialmente, no que concerne à distribuição de sua carga horária semanal de trabalho, salvo os casos isolados de um professor que diz ter atualmente 16 horas por semana em sala de aula e o de outra professora que disse ter assumido quatro disciplinas no semestre em que ingressou na universidade, que também somavam 16 horas, nenhum dos docentes possui elevado número de horas em sala de aula dando aulas na graduação e/ou na pós-graduação.

Todos os outros professores entrevistados comentam ter entre oito e doze horas de trabalho por semana em sala de aula, somando-se a graduação e a pós-graduação. Mais do que isso, os professores costumam ter certa estabilidade no que diz respeito às disciplinas ministradas ao longo do tempo, diminuindo potencialmente o tempo de preparação das mesmas.

Ainda que não haja uma efetiva sobrecarga em relação ao número de horas em sala de aula, os professores se posicionam de formas diferentes em relação às obrigações envolvendo a graduação. Enquanto um deles (Entrevistado 10) menciona o quanto esses momentos em sala de aula são importantes para se desligar das atividades administrativas, chegando a, mesmo tendo um substituto dando aulas em seu lugar, em virtude de ele ter assumido cargo administrativo em uma pró-reitoria, continuar dando aulas, outro problematiza as horas mínimas obrigatórias na graduação ao dizer que:

Eu acho importante dar aula na graduação, mas, por exemplo, nós temos uma regra de que todo mundo tem que dar oito horas de aula na graduação. O mínimo é oito horas e o máximo é de oito horas. Tem professor que não faz coisa nenhuma e tem gente que tem muita coisa. Eu tenho muitos projetos (Entrevistado 8).

A fala deste professor traz à tona a discussão acerca da atribuição de carga horária em sala de aula em relação ao número de projetos desenvolvidos. Há uma insinuação, por parte do professor entrevistado, de que a atribuição de carga horária deveria ser feita levando-se em consideração o envolvimento com projetos de pesquisa, o que acabaria destinar maior número de disciplinas àqueles que não fazem pesquisa.

Este processo, além de atribuir maior status a docentes pesquisadores, pode gerar uma espécie de divisão interna entre os docentes, com impactos não apenas nas condições de trabalho dos grupos distintos (professores pesquisadores e professores “auleiros”), pois a participação na pós-graduação permite condições muito maiores de financiamentos externos - públicos ou privados -, mas também na própria remuneração salarial dos docentes, pois com o novo plano de carreira, a participação na pós-graduação é condição para algumas etapas da progressão.

Isso denota não só que os professores veem a graduação como tendo importância, para dizer o mínimo, distinta, mas também como essa obrigação pode prejudicar a execução de projetos - que constituem grande fonte de financiamento para os programas de pós-graduação.

Deste modo, o tempo da universidade acaba por ser determinado externamente pelo tempo da pós-graduação, e esta, pelo tempo dos projetos/financiamentos, ou, numa palavra: pelo tempo da economia, conforme discutem Sguissardi e Silva Junior (2009).

Já no que se refere aos cargos administrativos, chamou atenção uma resposta recorrente dos professores a respeito do quanto as atividades administrativas tomam de seu tempo de trabalho, a ponto de um deles mencionar que o tripé da universidade já não é mais tripé, uma vez que as atividades administrativas ocupam um tempo prolongado da jornada de trabalho dos professores.

Embora as atividades administrativas estejam, de maneira geral, distribuídas entre os professores, destacam-se aqui relatos de professores que ocuparam ou ocupam o cargo de coordenação da pós-graduação, segundo os docentes, um cargo que potencialmente centraliza um número elevado de atividades.

Quando eu era coordenador, como eu te falei, tinha muito pepino pra resolver, o tempo todo, fim de semana, era o tempo todo [...] Quando eu era coordenador, me tomava muito tempo e era muito estressante. (Entrevistado 1).

Outros dois entrevistados afirmam que:

No outro semestre, tinha dias que eu ficava 16 a 17 horas de trabalho direto. Tinha dias que era menos, mas no geral eu ficava com o dia todo preenchido, manhã, tarde e parte da noite (Entrevistada 9).

Depois que eu comecei a coordenar o curso de pós.... [...] Na semana passada, por exemplo, eu trabalhei final de semana inteiro, os dias inteiros, manhã, tarde e noite e até umas 21h. À noite quando eu chego em casa, todos os dias eu abri o computador. Então, isso implica que eu trabalhei muito mais, considerando sábado e domingo da outra semana, eu trabalhei umas 60 horas (Entrevistado 11).

Isso pode ser encarado de pelo menos duas perspectivas diferentes, que trazem à tona a intensificação (e a precarização) do trabalho na universidade pública federal em sua relação com a pós-graduação.

Em primeiro lugar, discute-se o aumento das atribuições em virtude da assunção de projetos externos, que tanto geram mais trabalho quanto impõem um tempo diferente do tempo da construção do conhecimento.

Para se discutir a segunda perspectiva a partir da qual o trabalho docente se intensifica quando se trata das atividades administrativas, são trazidos outros relatos esclarecedores:

Quando eu acumulava o cargo de coordenador, eu trabalhava muito mais do que 40 horas [por semana]. No último ano a gente tinha um problema muito sério, que na verdade a gente ainda tem, com secretaria. [...] Então eu tinha que comprar passagem, marcar coisas. Não era meu trabalho, então isso tomava muito tempo (Entrevistado 1).

Nós estávamos com um problema de funcionários aqui. De todas as demandas, desde organização de disciplinas, prestação de contas, compra de passagens para bancas. Toda essa organização da pós eu estive envolvida no semestre passado (Entrevistada 9).

(...) eu peguei [a coordenação em] um período em que, assim que eu entrei, eu fiquei sem funcionário técnico administrativo, só tinha estagiário. Passados uns três meses um dos estagiários também saiu. Aí, nós contratamos um estagiário que não sabia exatamente nada. Eu tinha que aprender e ensinar para ele. [...]. Era eu que fazia memorando, declaração para aluno, imprimia prazo. Não tinha como escapar (Entrevistado 10).

Os docentes que assumiram cargo de coordenação da pós-graduação comentam as dificuldades advindas da falta de funcionários que os auxiliem nessas funções. Com isso, tem-se uma sobrecarga ainda maior em virtude da necessidade de executarem, além das atividades de caráter acadêmico, aquelas que são atribuição dos técnico-administrativos.

A diminuição no número de funcionários técnico-administrativos é uma realidade nas universidades públicas federais que vem se exacerbando ao longo das últimas décadas. Apesar de manter relação com o suposto discurso de racionalização do serviço público, ela traz, em realidade, a marca da precarização das condições de trabalho, que acabam por gerar uma grande intensificação do trabalho docente.

Apesar de tudo isso, não há consenso entre os professores entrevistados sobre as causas do problema. De acordo com um professor, o problema não é de falta de funcionários, mas sim de gestão.

Falta alguém para falar que você tem que executar o seu trabalho. Por que você não está executando o seu trabalho? Porque é muito trabalho? Não é muito trabalho. Então fica assim. Quando eu era coordenador [...] essa era uma fonte de estresse (Entrevistado 6).

A despeito deste relato controverso, Daúd (2015) apresenta alguns números no que se refere à alocação de funcionários técnico-administrativos nas universidades públicas federais.

A autora analisa os dados (obtidos no ano de 2013) referentes a 63 universidades públicas federais para discutir o dimensionamento da alocação de funcionários técnico-administrativos comparando a proporção de técnico-administrativos em relação a i) número de docentes, ii) número de alunos de graduação, iii) número de alunos de pós-graduação e iv) número de cursos de pós-graduação.

Em relação aos quatro critérios de comparação acima assinalados, a autora criou uma classificação com cinco níveis, a saber: muito alto, alto, médio, baixo e muito baixo. A UFG apresentou sempre classificada com nível baixo ou muito baixo.

De acordo com a autora, a UFG contava, em 2013, com 1.530 funcionários técnico-administrativos e 2.989 professores (DAÚD, 2015). Portanto:

Na relação entre o número de técnico-administrativos e docentes, a média nacional foi de 0,98, ou seja, praticamente um técnico para um professor. A UFG ficou entre as 23 instituições com classificação muito baixa, tendo apresentado uma média 0,51;

No que se refere ao número de alunos de graduação em relação ao de técnico-administrativos, a UFG esteve no nível baixo, no qual 15 universidades apresentaram uma relação de 12,31 a 15,95 alunos por técnico - com uma relação de 14 alunos por técnico;

Na mesma relação, comparando-se agora o número de alunos de pós-graduação em relação ao de técnicos, foi percebida uma média nacional de 1,27 técnico por pós-graduando. A UFG foi classificada com nível muito baixo, igualmente a outras 26 universidades, com média 0,5;

E, por fim, na comparação entre o número de técnico-administrativos em relação ao número de programas de pós-graduação, a UFG apresentou média de 25,93, em relação à média nacional que era de 37,63, também tendo sido classificada como muito baixo.

Os dados apresentados revelam que a UFG encontra-se com um baixo efetivo de técnicos em comparação com o todo das universidades públicas federais, o que reforça a ideia da falta de funcionários e da consequente incorporação de atividades administrativas relatadas pelos entrevistados.

A organização do trabalho docente diferencia-se da de outros trabalhadores em virtude do fato de ela ser potencialmente mais flexível do que a de outras categorias profissionais.

Essa flexibilidade por um lado permite situações como a do professor que menciona fazer atividades físicas todas as manhãs e chegar à universidade por volta das 10h30 (Entrevistado 10), ou então, como a da professora que faz fisioterapia também no período da manhã (Entrevistado 7), sem que haja prejuízos ou penalizações relacionados ao seu trabalho.

Ocorre que, ao mesmo tempo, essa flexibilidade de horário e a possibilidade de realizar grande parte de suas atividades fora do espaço da universidade, em partes pelo uso das tecnologias de base microeletrônica, tem o potencial de manter os docentes conectados ao seu trabalho permanentemente.

Entre os depoimentos, são recorrentes os relatos de que o trabalho adentra a casa, a vida privada, familiar, que se estende pela noite, pelas madrugadas antes de se iniciar a rotina diária, nos finais de semana e mesmo nas férias.

Eu chegava a trabalhar no final de semana nas minhas coisas, por exemplo, nos meus manuscritos, lendo o trabalho dos alunos, ou mesmo até tarde da noite. Eu costumo ficar até tarde aqui. Mas tem um lado meu isso. Eu chego aqui e fico até mais tarde, mas chego mais tarde também (Entrevistado 1).

Outra professora ainda afirma que:

Então, quando eu chego em casa já é tarde. [...] Comumente [eu trabalho em casa], sim, porque depois disso é o horário de planejar aula, de corrigir trabalho, ler monografia, trabalho de orientando. À noite e aos finais de semana. Eu leio mais aos finais de semana do que à noite. Porque à noite, por conta da dinâmica, tem vezes que não dá tempo. Aí eu uso final de semana e feriado para ler, férias também. [...] Esses dias [finais de semana] não estão incluídos na minha semana no sentido de abdicar de todas as outras coisas para estudar, mas eu sempre pego um período, uma manhã ou então eu levo trabalho para onde eu vou. Aquilo que é prático (Entrevistada 9).

É como se houvesse uma espécie de compressão da jornada de trabalho, mas sem alteração de sua duração. Não sendo esta compressão causada por nenhuma nova legislação trabalhista que refreie os impulsos do capital, é o acúmulo de trabalho que faz com que a jornada “normal” não seja de maneira nenhuma suficiente, engendrando um processo de sobre-intensificação do trabalho durante a jornada semanal.

Nos poucos casos em que o trabalho aos finais de semana foi substituído pelo descanso, repete-se o fato de que a iniciativa se deu posteriormente a algum problema de saúde ou familiar.

Geralmente eu trabalho entre 40 a 45 horas. Eu tento colocar um limite. Mesmo porque eu fiquei com pressão alta, fui diagnosticado com hipertensão. Foi super difícil de controlar, porque eu troquei umas quatro vezes de remédio e foi só um diurético que controlou. [...] Então, eu tive que dar um tempo, eu mesmo enxerguei isso e comecei a dar um breque (Entrevistado 2).

A partir das falas acima, pode-se perceber que um dos elementos que torna possível (embora não seja, de maneira nenhuma, a causa) a intensificação das atividades laborais no tempo de não trabalho são o aporte das tecnologias de base microeletrônica.

Há acordo com Sguissardi e Silva Junior (2009) no que diz respeito ao uso controverso desse tipo de tecnologia no trabalho, uma vez que são reconhecidas as suas vantagens e “seus méritos no campo do ensino, da pesquisa, da produção, divulgação e intercâmbio acadêmicos” (p. 178). Entretanto, o contexto e a forma na qual e pela qual se faz o uso dessas tecnologias tem culminado na invasão do tempo de não trabalho dos professores, aprofundando a intensificação do trabalho.

E não é só estando aqui. Eu posso acordar, às vezes, às cinco e meia da manhã e começar a responder e-mails para preparar o dia. Eu comecei com uma xícara de café ao lado respondendo e-mails. [...] O e-mail hoje para mim acabou se tornando uma desgraça. É uma doença, uma coisa que me causa aflição. Porque quando eu abro tá tudo pretinho em negrito. Todo dia de manhã eu tenho medo de abrir e-mail. [...] Quer dizer, é uma ferramenta fantástica, o e-mail é uma ferramenta fantástica, mas eles acabam violando a sua privacidade, porque você não tem mais horários de trabalho, por exemplo (Entrevistado 8).

Salta aos olhos a relação tensa que se estabelece a partir da linha tênue entre resistir à usurpação do tempo de não-trabalho e incorporar como suas as demandas produtivas (ou produtivistas) da lógica mercantil que rege a vida social (e individual).

Por fim, expõem-se aqui mais três facetas da intensificação do trabalho docente, sendo que a primeira delas se refere à necessidade de produzir as condições de trabalho como forma de minimizar a precarização do trabalho dentro da universidade.

Longe de refutar a existência de um trabalho precarizado, os depoimentos dos entrevistados e a observação de seus espaços de trabalho, muitas vezes em salas individuais, com computadores de última geração, impressoras individuais, entre outros, permitiram perceber justamente que as condições de trabalho não precárias têm sido garantidas primordialmente pelo financiamento externo à universidade, portanto, precariamente, conforme discutido acima.

É a partir de verbas que vêm de fora da universidade que laboratórios, com equipamentos de última geração, têm sido construídos. Entretanto, é de suma importância que se frise que tais investimentos não são feitos em toda a universidade pública, mas apenas nos lugares em que se produz o conhecimento com aplicação direta no mercado, ou, na síntese de Silva Junior (2017, p. 35), nos lugares em que se produz “o conhecimento na sua condição de matéria-prima”.

A segunda faceta da intensificação do trabalho está diretamente relacionada à avaliação da pós-graduação. Na medida em que o desenvolvimento da pós-graduação está atrelado à lógica do capital, ele precisa acompanhar não apenas o movimento (ilimitado) do próprio capital, como sua velocidade.

Nesse sentido, o processo de avaliação da pós-graduação se torna emblemático, pois não há um objetivo final a se alcançar e, justamente por isso, cada avaliação (com critérios sempre diferentes e por vezes ocultos) é muito mais acirrada que a anteriores, levando os programas, e dentro deles os docentes, a uma concorrência fratricida. A intensificação do trabalho se torna, portanto, a marca de uma pós-graduação mercantilizada, gerida de maneira heterônoma e atrelada aos interesses do capital.

A terceira faceta diz respeito aos efeitos que a intensificação trabalho docente, como forma particular do trabalho (alienado) inserido na lógica do modo de produção capitalista, pode ter na saúde de trabalhadores e trabalhadoras, uma vez que se concorda com Pina e Stotz (2014) na determinação social do processo saúde-doença dos trabalhadores.

O processo saúde-doença

O modo de produção capitalista estrutura-se a partir da relação tensa e contraditória entre capital e trabalho e esta relação dinâmica cria um movimento interno intrinsecamente conflituoso e contraditório entre seus dois polos constitutivos.

Este movimento se pauta na, ao mesmo tempo em que determina a apropriação incessante e necessariamente cada vez mais intensa, por parte dos detentores e detentoras dos meios de produção, daquilo que é produzido por trabalhadores e trabalhadoras e impulsiona, por sua vez, o próprio sistema do capital.

Os desenvolvimentos destes processos históricos culminam em novas conformações do trabalho, com impactos objetivos e subjetivos na totalidade dos seres humanos - ainda que de maneiras bastante distintas no que se refere a cada uma das classes.

Desta formulação desdobra-se a compreensão da relação mutuamente determinante entre o trabalho e o processo de saúde-doença de trabalhadores. Isto é, em sua historicidade, o processo de trabalho traz impactos à saúde dos seres humanos e a saúde, por sua vez, volta a incidir sobre o trabalho.

Desta forma, analisar o adoecimento de trabalhadoras e trabalhadores, em seu caráter histórico (LACAZ, 2007, p. 759), implica a

(...) análise da determinação social do processo saúde-doença, privilegiando o trabalho. [...] E, conforme a acepção marxista, aqui o trabalho é, ontologicamente, a ação do homem sobre a natureza para modificá-la e transformá-la e a si mesmo não sendo, portanto, externa ao homem. Tal ação vai ocorrer sobre o objeto de trabalho, mediante os instrumentos de trabalho, configurando o próprio trabalho e suas diferentes formas de organização, divisão, valorização, características de cada formação social e modo de produção, o que imprime um caráter histórico ao estudo das relações trabalho-saúde e, consequentemente, do adoecimento pelo trabalho.

Parte-se, pois, da premissa, tal qual Lacaz (2007), de que cada formação social trará relações com implicações e desdobramentos distintos nas relações estabelecidas entre trabalho e o processo saúde-doença.

Por conseguinte, acresce-se à historicidade do processo saúde-doença de trabalhadores e trabalhadoras o apontamento de Laurell (1982) de que a compreensão do caráter histórico e social do processo saúde-doença advém da observação do modo de adoecer e morrer dos grupos humanos em momentos históricos determinados.

Esta compreensão não é possível se se observar tão somente os casos clínicos isolados. Nesse sentido, Laurell discute a necessidade de se atentar para os perfis patológicos. Segundo a autora,

(...) para demonstrar o caráter social da doença é necessário, também, estudar o tipo, a frequência e a distribuição da moléstia nos diversos grupos sociais que constituem a sociedade. Existindo uma articulação entre o processo social e o processo de saúde e doença, este deve assumir características distintas conforme o modo diferencial com que cada um dos grupos se insere na produção e se relaciona com os grupos sociais restantes (LAURELL, 1982, p. 7).

Na mesma direção desta interpretação encontra-se Seligmann-Silva (2011, p. 34), para quem “os contextos de trabalho podem atuar como fonte de saúde ou de adoecimento tanto com respeito à saúde geral quanto à saúde mental”.

Seligmann-Silva nos oferece uma concepção acerca da saúde - a qual é adotada no presente trabalho. Para ela, “saúde [é compreendida] como um estado ideal em que as forças vitais predominem na harmonização da variabilidade biopsicossocial - própria dos processos psico-orgânicos humanos, imersos no percurso existencial e na vida social” (SELIGMANN-SILVA, 2011, p. 36).

O adoecimento, por sua vez, é compreendido como “um processo que se desenvolve em um continuum que é concebido como um eixo temporal ao longo do qual se estabelecem os confrontos entre forças vitais e forças desestabilizadoras [...], trata-se de um processo de interação continuada, que é o processo saúde-doença” (SELIGMANN-SILVA, 2011, p. 36).

Parte-se da ideia de que o trabalho, mais que influenciar, determina (mediadamente) a saúde dos seres humanos, pois, uma vez que o processo social de surgimento dos seres humanos se dá por intermédio da relação com a natureza mediada pelo trabalho, este último como categoria ontológica, é central não apenas na constituição das esferas econômica, política e social, mas também da psíquica.

O processo saúde-doença docente: intensificação do trabalho e saúde

A busca de recursos por meio de editais de instituições de fomento à pesquisa, bem como por meio de parcerias público-privadas são recorrentes nas falas dos docentes. Estas situações, uma vez que os professores têm seu trabalho avaliado/medido de maneira heterônoma e quantitativa pelas instituições de fomento, além de potencialmente induzirem o produtivismo acadêmico, constituem mais um elemento de sobrecarga do trabalho, conforme discutido no capítulo anterior, isso para não falar do incentivo à competição, ao empreendedorismo e ao voluntarismo entre os docentes (BOSI, 2007).

Para um dos professores entrevistados, entretanto, a discussão acerca do produtivismo acadêmico deveria ser relativizada. Em suas palavras:

E aí, criaram um mito: o produtivismo. Aliás, para mim... Claro né, tudo tem ideologia. E a gente... Todo mundo está criando uma maneira de... [...] Porque tudo tem uma ideologia por detrás e obviamente todos nós temos um modelo. Nós somos seres muito abstratos, nós trabalhamos com ideologia. Então, existe uma ideologia por detrás dessa discussão. Com aspectos positivos, mas também negativos (Entrevistado 8).

Esse mesmo professor menciona estar envolvido em cinco projetos com financiamento externo, um deles com financiamento de instituição dos Estados Unidos, que garantem a manutenção do laboratório que coordena.

Eu construí esse laboratório com dinheiro de projeto. Essa mesa veio de um projeto, esse ar condicionado veio de um projeto do CNPq. Esse computador é de outro projeto. O laboratório é mantido por projetos de pesquisa. Então, eu trabalho muito e eu geralmente saio lá pelas sete da noite (Entrevistado 8).

O exemplo deste professor é expressão da realidade do trabalho no Programa de Pós-graduação em Ecologia e Evolução2. Nele, a totalidade dos professores conta com financiamentos externos à universidade - seja via projetos financiados por instituições de fomento, universidades internacionais, empresas ou mesmo via bolsas produtividade do CNPq.

Vale ressaltar que entre os 25 professores credenciados no PPGEcoEvol, 14 possuem bolsa produtividade do CNPq, entre elas seis são de nível 1 e destas, três são de nível 1A - o restante de 11 professores possui outras modalidades de financiamento.

No caso do Programa de Pós-graduação em Geografia, embora nem todos os professores sejam contemplados com bolsas externas3, as entrevistas realizadas evidenciam que há também envolvimento, por parte de alguns docentes, com projetos que promoveram, por exemplo, a construção e manutenção de laboratórios de pesquisa, tal qual discutido acima.

Vale destacar que, de acordo com Sguissardi e Silva Junior (2009), esse tipo de bolsa (de produtividade) seria destinada para beneficiar “cerca de 10% do total dos docentes vinculados à pós-graduação e à pesquisa em cada área de conhecimento” (p. 183). Enquanto isso, no PPGEcoEvol mais de 50% (56%, para sermos exatos) dos professores são bolsistas produtividade do CNPq. Mas, como diz o professor, o produtivismo é “um mito”4.

Logo após mencionar o “mito” do produtivismo acadêmico, ao ser indagado sobre sua condição de saúde, o professor responde:

Eu decidi há dois anos atrás, eu estava com sintoma de estresse e de fadiga, estava em depressão. Quando tudo começa a ficar difícil é porque você está com algum problema (Entrevistado 8).

Embora relate o quanto trabalha e a sua dificuldade em estabelecer uma rotina de exercícios físicos e mesmo sequer de conseguir ter alguma atividade de lazer, o professor não relaciona sua condição de saúde com as condições nas quais seu trabalho é executado. É perceptível em sua fala a naturalização tanto da maneira como o seu trabalho está organizado, como do fato de ter apresentado sintomas de depressão nos últimos anos.

A esse respeito, outro relato também se torna bastante emblemático, desta vez de um jovem professor, bolsista produtividade nível 2, que ingressou na universidade há menos de dez anos, tendo quase que simultaneamente à sua posse sido credenciado no programa de pós-graduação. Apesar de já ter passado pelos cargos de vice-coordenador e de coordenador do programa de pós-graduação - este último por dois mandatos - e de ter desenvolvido ao longo desse período hipertensão, gastrite e arritmias, o professor também não relaciona os sintomas apresentados com o seu trabalho. Mais do que isso, há uma autorresponsabilização, por parte do professor, a respeito de sua saúde.

Agora, o quanto isso tá ligado ao trabalho... Eu sou muito sedentário. Não acho que o trabalho me obriga a ser sedentário. Acho que esse é um problema mais meu, não sei. [...] Mas eu também não sou uma pessoa muito de fazer esporte. Não posso dizer que é o trabalho em si. [...] Eu acho que a gente tem tempo livre, se for pensar na nossa carreira. A gente tem como usar o nosso tempo pra fazer alguma atividade pra cuidar da saúde. Eu acho que é mais culpa minha. [...] Enfim, acho que a minha saúde é problema meu mais...(Entrevistado 1)

Este mesmo processo de autorresponsabilização fica evidente nas palavras de outro docente.

E eu não sei se esse processo é tão cansativo para os outros colegas, mas para mim... Se a minha percepção está correta, eu acho que eu fui... Faltou para mim mais cuidado, para que eu fosse me equilibrando com as atividades. [...] E aí pode ter uma ordem emocional, de escolhas, de atender ou não a estas demandas e criar mecanismos para se proteger. Alguns fazem isso bem, outros se escondem demais. [...] E talvez algumas pessoas mergulhem muito nas suas atividades. [...] Acho que a questão é dosar isso, eu acho que eu não doso muito bem (Entrevistado 5).

A exacerbação do individualismo, em consonância com os preceitos e desdobramentos do neoliberalismo, conforme discutido por Seligmann-Silva (2011, p. 464), “facilitou tanto a precarização social quanto a do trabalho, indo concorrer, de maneira importante, também para a precarização da saúde”.

Nesse sentido, denota-se das falas acima o quanto os professores naturalizam e individualizam as questões que, em realidade, são coletivas, sociais. Ainda que suas consequências sejam sentidas pelos indivíduos singulares, trata-se de um fenômeno que se estrutura a partir da dimensão histórico-social do próprio trabalho.

O trabalho como potencial adoecedor

Em consonância com as formulações de Seligmann-Silva (2011), que aponta para o duplo caráter do trabalho: como potencial fonte de saúde e também de adoecimento, Lima e Lima-Filho (2009, p. 3) discutem o trabalho como sendo,

(...) de um lado, [...] um espaço de reafirmação da autoestima, de desenvolvimento de habilidades, de expressão das emoções, o que o torna um espaço de construção da história individual e de identidade social. De outro lado, o ambiente de trabalho pode produzir “enfermidades ocupacionais”, comprometendo a saúde física e mental do indivíduo.

Mas há um conjunto de docentes que relaciona seus sintomas e quadros de saúde, senão com seu trabalho, pelo menos com o estresse que dele advém:

O que eu tive de mais sério até agora foi uma dor de dente absurda que eu achava que meu dente estava quebrado e a dentista falou que não, que era só problema de apertar os dentes. Então, eu passei a ter esse problema que eles falam que... que é morder enquanto eu estou dormindo, que ela falou que é por causa de estresse.. (Entrevistado 4).

Outros dois docentes afirmam que:

No final do ano passado eu tive uma espécie de uma crise, não foi uma crise emocional, mas foi uma crise. Eu tive uma disfunção hormonal. Eu fiquei com muita dor de cabeça. Eu já tive labirintite, por exemplo. Mas em 2015 eu tive uma disfunção hormonal e eu fiquei até fevereiro de 2016 e a impressão que eu tenho é porque eu tava num ritmo muito, muito puxado. Eu tinha muita dor de cabeça, tinha enjoos, mal estar e uma debilidade até... até um pouco de cansaço exagerado. [...] A médica descobriu uma inflamação no meu corpo e isso foi o gatilho para a variação hormonal. Até fevereiro de 2016 eu estava bastante prostrado. Parece até que foi um alerta do corpo pelo cansaço físico, descuido com a saúde. (Entrevistado 5).

Há muito tempo atrás, em 2001, eu tive que tomar uns remédios tarja preta. Foi um momento muito mais estressante do que hoje, mas foi só uns 15 dias e eu fiquei durante um bom tempo fazendo análise com a psicóloga e tratamento com o psiquiatra também (Entrevistado 6).

Mesmo que com sintomas distintos, mais docentes percebem uma relação entre seus quadros de saúde e o “estresse”:

Enxaqueca já faz uns 10 anos. Essa época do ano me dá muito, por causa da estação da seca, está abafado, começa o semestre e eu estou mais estressada. [...] O neurologista fala que eu sou muito estressada e que isso acaba potencializando a ocorrência de enxaqueca. Ele fala que o meu jeito estressado, a minha rotina, a minha sobrecarga de trabalho acaba auxiliando essas crises de enxaqueca. Numa avaliação que ele fez ano passado, elas coincidem nesse período e também quando eu estou em muita sobrecarga de coisas e eu não paro (Entrevistada 7).

Eu sempre faço check up. Eu não tinha percebido [a hipertensão] até então, porque ela era assintomática. Num dos exames o cardiologista que me avisou. Comecei a fazer uso de medicação, tive que trocar. Tenho que fazer exercício físico. Comecei mas é complicado para caramba. Mas aí, controlou. Eu pensei que fosse o nervosismo, agitação, ansiedade. [...] [Esses sintomas apareceram] Depois que eu comecei a coordenar o curso de pós. Porque aumentou muito a quantidade de coisas a fazer (Entrevistado 11).

Em todos os casos acima listados há uma apreensão da relação entre os problemas de saúde e o trabalho realizado pelos docentes. Ocorre que, os professores chegam a perceber que seus problemas de saúde são ocasionados pelo trabalho, mas apenas que coincidem com algum momento específico de pico de estresse ou sobrecarga de trabalho, como início ou fim de semestre, o cargo administrativo ocupado, um determinado projeto que deve ser entregue com prazo exíguo. Nenhum dos docentes entrevistados chega a problematizar as suas condições de trabalho em si, nem sequer de maneira superficial. A apreensão que fazem os docentes pesquisadores acerca da relação entre trabalho e saúde é apenas circunstancial, ou meramente contingente5.

A questão da intensificação do trabalho vinculada às cobranças da pós-graduação e as metas e prazos impostos externamente pela Capes, ou outras agências de fomento, ou as exigências dos convênios com a iniciativa privada não são problematizadas pelos professores em momento algum.

Mas todo este processo, como mais uma vez mostram as falas, advém única e exclusivamente da motivação pessoal e individual em se fazer pesquisa, da satisfação em poder contribuir com o avanço científico do país - seja lá o que isso signifique -, ou da ‘meta pessoal’, ‘uma vaidade’ de ‘ter um selo ISO’ ou de ‘ostentar na sua porta uma nota 6’, não indo além disso.

O desdobramento imediato destas posturas é que também as derrotas, frustrações, ou, o que é muito pior, o rebaixamento de nota, são colocados no mesmo nível individual e os rumos que tem tomado a universidade pública brasileira não são praticamente questionados.

É evidente que você aprende a conviver com isso. O ruim é que quando você consegue se acostumar com um nível, você vai para o próximo. Que é a carreira. Você vai se tornando mais influente, mais decisivo, sua opinião passa a contar mais e com isso você passa a ser mais demandado (Entrevistado 5).

Assim, passado o início ou fim do semestre, já não mais se ocupando o cargo de coordenação, tendo sido finalizada a avaliação (e a próxima vai demorar mais quatro anos para ser finalizada), tendo se renovado a bolsa produtividade, ou tendo sido contemplado pelo edital de financiamento, tudo retorna à “normalidade”, pelo menos até que ela passe para ‘o próximo nível’.

O (não) cuidado com a saúde

Ao longo dos itens anteriores, a partir dos agravos à saúde relatados, foi possível mapear o adoecimento dos professores entrevistados. Não apenas os entrevistados mencionaram tratar suas questões relativas à saúde de maneira privada, mas em alguns casos, só buscaram tratamento quando apareceram problemas mais graves:

Por isso a gente acaba deixando a saúde em segundo plano. Até mesmo uma consulta médica, algo que você precisa. Você acaba cuidando só quando se transforma em algo mais grave (Entrevistado 5).

Para além dos problemas apresentados, permeou o relato dos professores e professoras as dificuldades em dormir um número mínimo de horas. Tal situação, além de ser gerada pelo quadro já discutido de sono entrecortado e da insônia, pode se dar quando o trabalho avança o período da noite ou quando a pessoa acorda antes de toda a família para trabalhar.

Eu costumo trabalhar no período de madrugada, das cinco às seis horas da manhã. Por uma questão de opção... De opção, não. É porque eu tenho que fazer café às seis para todo mundo ir para escola. Eu acordo antes da minha família. Organizo isso e venho para cá (Entrevistado 6).

Quando se trata da realização de atividades físicas, a postura é parecida. Muitos dos professores mencionam a importância das mesmas para tentar amenizar ou prevenir problemas de saúde, mas em seguida comentam reiteradas tentativas fracassadas de manter uma atividade qualquer, seja pela falta de tempo, ou pelo cansaço.

Eu faço pouca atividade física. Eu faço uma caminhada pela manhã ou no final do dia. Mas assim, tem dias que eu não consigo. Essa semana eu fiz uma vez. Não tem sido algo regular. Já tentei ingressar em alguma atividade mais sistemática, como musculação, corrida e eu não consigo manter esse ritmo. Acho que é em função da demanda aqui do trabalho (Entrevistado 5).

Outros professores relatam as mesmas limitações de tempo:

Eu comecei há uns dois meses a jogar vôlei, que eu jogava bem antes. Até o ano passado... No começo do ano eu comecei a fazer pilates, mas eu começo e paro. Nos últimos seis anos eu tenho feito isso. Comecei também a fazer dança também. Eu comecei e parei. Então, assim, vai e volta. Não são atividades frequentes (Entrevistada 9).

Eu sempre fiz, desde a graduação. Pratiquei artes marciais, agora estou uma decadência, ganhei peso. Eu queria voltar e pretendo, mas com o tipo de trabalho que a gente tem fica impossível (Entrevistado 11).

Reiteradas vezes, a rotina de trabalho aparece como elemento que justifica a impossibilidade de começar ou continuar uma atividade física regular - ainda que haja exceções. O mesmo ocorre no que se refere às atividades de lazer. O trabalho aos finais de semana, o cansaço, entre outras justificativas, surgem para a dificuldade em tirar algum tempo para si.

Quando chega o final de semana, eu sempre tenho alguma coisa de trabalho para acabar ou então eu estou tão cansado que o meu lazer acaba sendo ficar em casa dormindo. Isso é ruim (Entrevistado 8).

Mas, assim como há também relatos de professores que conseguem manter regularidade em atividades físicas, há aqueles que conseguem desfrutar de algum tempo de lazer e estar com a família.

Mas ocorre que, de modo geral, o que se percebe, é uma dificuldade generalizada em se ter sequer o tempo para a reposição e o restabelecimento da força de trabalho, seja de maneira imediata, no descanso diário, na realização de atividades físicas, seja de maneira mais ampla, como nas férias.

Das mais diversas formas, as falas dos docentes possibilitaram compreender suas condições de saúde e as relações que estas estabelecem com o trabalho. E mesmo quando houve tentativas de desvincular a saúde do trabalho, os processos de intensificação e sobrecarga de um trabalho se faziam novamente presentes.

De uma maneira geral, os adoecimentos permearam as falas de todos os docentes. Mas salta aos olhos o fosso que há entre os problemas apresentados e suas causas mais fundamentais. O porquê da sobrecarga de trabalho, em nenhuma de suas formas, não é problematizado, o perfil da organização do trabalho do professor-pesquisador não é questionado, não se discute os rumos assumidos pela universidade, muito menos se relacionam todos estes aspectos com as determinações mais profundas da lógica produtiva que mediadamente as engendra.

Considerações finais

As modificações ocorridas nas últimas décadas no mundo trabalho, principalmente no que se refere às condições e relações de trabalho, denotam a exacerbação do movimento precarização do trabalho - demonstrado aqui como parte inerente ao modo de produção capitalista.

O panorama apresentado ao longo deste artigo ressalta, na discussão da Reforma do Estado, a especificidade das modificações do trabalho docente das universidades públicas, principalmente no que diz respeito ao processo de intensificação do trabalho. Tendo este tema como elemento central, o presente artigo teve como objetivo analisar as relações estabelecidas entre o processo de intensificação do trabalho destes professores e a saúde destes docentes nos dois programas de pós-graduação apresentados.

De modo geral, os professores relataram diversos sintomas de adoecimento físico e mental, além de situações nas quais, embora não haja um quadro instalado de adoecimento, emerge alguma espécie de mal-estar, seja pela falta de descanso, por insônia ou pela dificuldade em manejar a sobrecarga de trabalho. Da mesma forma, a intensificação e/ou a sobrecarga de trabalho permeou as falas de todos os professores, mesmo que eles não percebessem.

As obrigações com a pós-graduação, na forma de atividades administrativas, orientações de pós-graduandos, preenchimento de relatórios, elaboração de pareceres, escrita e publicação de artigos, etc., competem com outras obrigações relativas ao trabalho na universidade, e, não raro, ocasionam uma compressão da rotina de trabalho e/ou uma extensão da jornada que acaba por transbordar para o espaço e tempo de não-trabalho dos professores.

A pesquisa empreendida possibilitou compreender que a intensificação do trabalho docente na pós-graduação segue uma tendência predominante no mundo do trabalho em geral, em consonância com a necessidade incessante de aumento da lucratividade por parte do modo de produção capitalista.

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1 O atual movimento de destruição de direitos trabalhistas, no Brasil e no mundo, é um exemplo disso, tal qual se observa na reforma trabalhista. A Lei nº 13.467/17 aprovada em julho de 2017 e que entrou em vigor em 11 deste mesmo ano, foi feita de forma açodada e trouxe mais de 200 alterações na CLT. A “reforma trabalhista” promovida pelo governo ilegítimo de Michel Temer que foi apresentada como “modernização trabalhista” estaria ancorada em três eixos: consolidar direitos, segurança jurídica e geração de empregos. Tal reforma que contempla todas as exigências do empresariado, na realidade, representa o desmonte do direito e da própria justiça do trabalho no país.

2Informação constante na Ficha de Avaliação do Programa (Biodiversidade), referente ao Programa de Pós-graduação em Ecologia e Evolução (CAPES, 2013a). A Ficha de Avaliação do Programa (Geografia) referente ao Programa de Pós-graduação em Geografia (CAPES, 2013b) não trouxe esta informação.

3Conforme dito acima, A Ficha de Avaliação do Programa (Geografia) referente ao Programa de Pós-graduação em Geografia (CAPES, 2013b) não traz informações sobre os financiamentos externos dos docentes.

4“A bolsa produtividade em seus diferentes níveis, que definem verdadeira escala de prestigio e poder no meio acadêmico-científico, tornou-se objeto de desejo e, portanto, de acirrada disputa, apesar de valores monetários relativamente baixos”. (SGUISSARDI; SILVA JUNIOR, 2009, p. 183)

5Esta noção de uma apreensão contingente tem inspiração na discussão formulada por Mészáros (2008) acerca da “consciência de classe contingente” e da “consciência de classe necessária”.

Recebido: 22 de Outubro de 2018; Aceito: 28 de Novembro de 2018

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