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Revista Eletrônica de Educação

versão impressa ISSN 1982-7199

Rev. Elet. Educ. vol.13 no.3 São Carlos set./dez 2019  Epub 01-Set-2020

https://doi.org/10.14244/198271992677 

Demanda Contínua - Artigos

A identidade social docente na formação inicial de professores de Ciências

The social identity of teachers in the initial training of teachers in Science

Bruno Tadashi TakahashiI 
http://orcid.org/0000-0002-2348-527X

Álvaro Lorencini JúniorII 
http://orcid.org/0000-0001-9365-2312

IUniversidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá-PR, Brasil Docente do Departamento de Biologia da Universidade Estadual de Maringá. E-mail: brunotadashi@gmail.com

IIUniversidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina-PR, Brasil - Docente do Departamento de Biologia Geral da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: lorencinijunior@gmail.com


Resumo

Este artigo analisa como o processo de socialização no estágio supervisionado ocorre e influencia na construção de uma identidade docente de professores em formação inicial. A fundamentação teórica da pesquisa está embasada na literatura da psicologia social, da identidade docente e da formação de professores de Ciências. A metodologia de pesquisa consistiu em entrevistas semiestruturadas com 10 acadêmicas de um curso de Ciências Biológicas e posterior tratamento dos dados segundo categorias recorrentes. Os resultados obtidos apontam que a socialização, nesse período da formação inicial de professores, produz representações da docência e o reconhecimento do pertencimento ao grupo social dos professores. O mapeamento dos aspectos identitários geram desafios e possibilidades para o campo de formação de professores e também indica que é possível trabalhar as pesquisas relacionadas à identidade como princípio formativo na docência.

Palavras-chave: Identidade; Profissionalismo; Estágio supervisionado

Abstract

This study examines how the socialization process in supervised training occurs and influences in construction of a teaching identity of teachers in initial formation. The theoretical basis of the research is based on the literature of social psychology, teacher identity and teacher education. The research methodology consisted of semi-structured interviews with 10 academic of Biological Sciences course and further processing of data according recurrent categories. The results suggest that socialization in the period of initial teacher education directly affects the reframing of teaching representation and recognition of belonging to the social group of teachers. The mapping of the subjective aspects that generate challenges and possibilities for the field of teacher training also indicates that it is possible to work the research related to identity as a formative principle in teaching.

Keywords: Identity; Professionalism; Supervised training

Introdução

O presente artigo tem como foco os referenciais teóricos de Deschamps e Moliner (2009) para a compreensão dos processos identitários na Psicologia Social e os referenciais de Pimenta (2012), que analisa a relação da identidade docente com o campo da formação de professores.

A identidade é um tema complexo e controverso, pois, nas últimas décadas, essa área de pesquisa teve diferentes enfoques, desde a relevância da individualidade do eu cognoscente até a importância conferida ao outro que compõe determinado contexto social. Assim, discorrer a respeito da identidade implica encontrar, na literatura, uma diversidade conceitual significativamente ampla e, em alguns casos, contrastante.

Uma das primeiras reflexões, no campo da pesquisa em identidade, foi a questão do “si mesmo”, que discute se a identidade remetia aos aspectos coletivos ou pessoais (DESCHAMPS; MOLINER, 2009). Esse questionamento suscitou a discussão se a identidade seria uma construção puramente pessoal sem interferência da sociedade ou se ela seria imposta pela sociedade.

Para resolver esse impasse, surgiram as definições de identidade social que relacionam a importância das pertenças sociais na demarcação do indivíduo e de identidade pessoal para a relevância do particular e do idiossincrático.

No conceito da identidade, temos, então, a oscilação entre dois polos: o psicológico e o sociológico. Observamos um ciclo no qual o indivíduo, por processos de criação, pode modificar a sociedade, e esta, por conformismo, cria regularidades nos indivíduos que a compõem (Figura 1):

Fonte: elaborado pelos autores.

Figura 1 Esquema da dualidade indivíduo e coletivo. 

Portanto, a identidade só existe como resultante dos processos de criação e de conformismo decorrentes das relações entre o indivíduo e a sociedade em um processo dialógico. Se não tivéssemos a criação, a sociedade moldaria todos os seus indivíduos como reflexo um do outro em um coletivo homogêneo. No outro extremo, se não houvesse o conformismo, todos os indivíduos seriam completamente diferentes por criação, o que não possibilitaria a emergência de regularidades nem o reconhecimento de coletividade. Assim, ambos os processos são importantes e necessários para a formação da identidade nos seus aspectos sociais (semelhança entre as pessoas de mesma pertença) e pessoais (reconhecimento de diferença em relação ao outro).

Nesse sentido, “A identidade, enquanto característica singular de um indivíduo que o distingue do outro, implica, paradoxalmente, uma dualidade: a identidade pessoal (ou a identidade para si) e a identidade para os outros” (SANTOS, 2005, p.123).

No processo identitário, há o reconhecimento de pertença a determinado grupo por semelhanças que passam a ser identificáveis, ou seja, surge o conceito de endogrupo ou grupo de pertença, no qual o indivíduo percebe traços em comum com o coletivo. Para Deschamps e Moliner (2009), as identidades sociais são partilhadas por indivíduos que ocupam posições sociais semelhantes, ou seja, de pertença comum.

Já o oposto ocorre quando o indivíduo, no processo identitário, passa a identificar diferenças por discriminação avaliativa. Quando não pertencemos a determinados grupos, identificamos diferenças com o nosso endogrupo; nesse sentido, temos o conceito de exogrupo, que se refere aos demais grupos com os quais não partilhamos semelhanças (DESCHAMPS; MOLINER, 2009).

Assim, na identidade social, haverá o reconhecimento de semelhanças com os indivíduos do grupo de pertença (nós-endogrupo), mas também diferenças em relação aos membros de outros grupos (eles-exogrupo) (DESCHAMPS; MOLINER, 2009).

No âmbito da formação de professores, para Pimenta (2012), a identidade está em constante transformação e não pode ser adquirida, por ser um processo de construção do sujeito historicamente situado. Segundo a autora:

A profissão de professor, como as demais, emerge em dado contexto e momento históricos, como resposta a necessidades que estão postas pelas sociedades, adquirindo estatuto de legalidade. Assim, algumas profissões deixaram de existir e outras surgiram nos tempos atuais. Outras adquirem tal poder legal, que se cristalizam a ponto de permanecerem com práticas altamente formalizadas e significado burocrático. Outras não chegam a desaparecer, mas se transformam, adquirindo novas características para responderem a novas demandas da sociedade. Este é o caso da profissão de professor (PIMENTA, 2012, p.19).

Atualmente, vem crescendo o número de pesquisas preocupadas com a compreensão da identidade docente. Tal identidade caracteriza-se como a construção da significação social da profissão, ou seja, pelo desenvolvimento de uma concepção a respeito da profissão a partir da vivência pessoal, condicionada a determinado contexto social. Segundo Pimenta e Lima (2004, p.66):

A construção e o fortalecimento da identidade e o desenvolvimento de convicções em relação à profissão estão ligados às condições de trabalho e ao reconhecimento e valoração conferida pela sociedade à categoria profissional. Dessa forma, os saberes, a identidade profissional e as práticas formativas presentes nos cursos de formação docente precisam incluir aspectos alusivos ao modo como a profissão é representada e explicada socialmente.

Essas mesmas autoras afirmam que a relação entre o estagiário e o professor da escola não é apenas para verificar as práticas docentes utilizadas nas aulas, mas, sim, para o desenvolvimento de um processo de conhecimento da profissão sob outra perspectiva, com a ressignificação das concepções sobre o ser e o fazer professor e o início da construção da identidade que estará em constante reformulação (PIMENTA; LIMA, 2004).

Igualmente, segundo Pimenta (2012, p.20):

Uma identidade profissional se constrói, pois, a partir da significação social da profissão; da revisão constante dos significados sociais da profissão; da revisão das tradições. Como, também, da reafirmação de práticas consagradas culturalmente e que permanecem significativas. Práticas que resistem a inovações, porque estão prenhes de saberes válidos às necessidades da realidade. Do confronto entre as teorias e práticas, da análise sistemática das práticas à luz das teorias existentes, da construção de novas teorias, constrói-se, também, pelo significado que cada professor, enquanto ator e autor confere à atividade docente no seu cotidiano a partir de seus valores, de seu modo de situar-se no mundo, de sua história de vida, de suas representações, de seus saberes, de suas angústias e anseios, do sentido que tem em sua vida o ser professor.

Como apontado pela autora no excerto anterior, a identidade profissional se constrói, além do reconhecimento da profissão pela sociedade e do próprio professor de si mesmo, pelos distanciamentos em relação aos objetos aos quais se referem, ou seja, as representações utilizadas para evocar tais elementos que são inapreensíveis em sua globalidade (PIMENTA, 2012; DESCHAMPS; MOLINER, 2009).

De acordo com Deschamps e Moliner (2009), o termo “representação” de emprego corrente no campo da psicologia remete ao significado da ação de tornar presente alguma coisa ausente ou de substituição do objeto evocado. Segundo esses mesmos autores, podemos distinguir diferentes categorias de representações:

(...) representações de si mesmo, produzidas por um indivíduo a propósito de si mesmo, depois representações intergrupo, partilhadas por um grupo e relativas ao próprio grupo ou a um outro grupo. Podemos ainda distinguir representações sociais, partilhadas por um grupo e relativas a um objeto de seu entorno, em seguida representações do social, partilhadas por um grupo e relativas às hierarquias sociais. Enfim, distinguiremos representações coletivas, partilhadas por uma sociedade num conjunto e relativas a aspectos bem gerais do mundo (DESCHAMPS; MOLINER, 2009, p.78).

Esses diferentes níveis de representações, descritos anteriormente, são articulados por Deschamps e Moliner (2009, p.98) com a definição de representações identitárias que “são constituídas de conhecimentos e crenças que os indivíduos têm a propósito deles mesmos e a propósito de certos grupos”. Para esses autores a dinâmica das representações identitárias (de si mesmo, do endogrupo e do exogrupo) possibilitam as diferenciações entre o intragrupo, o intergrupo e o exogrupo, como demonstrado na figura 2:

Figura 2 Imbricação dinâmica das representações identitárias. 

Nesse sentido, seriam essas comparações em conjunto com as interações sociais capazes de constituir e evoluir as representações identitárias (DESCHAMPS; MOLINER, 2009).

Assim, nos questionamos: como as discussões do campo da Psicologia Social podem contribuir para o entendimento da identidade docente? Como identificar e analisar a identidade docente em seu processo de construção?

Para isso, os referenciais teóricos apontados anteriormente nos embasaram para a formulação da seguinte questão de pesquisa: como o processo de socialização constrói uma identidade social docente na disciplina de Estágio Supervisionado para a Docência em Ciências?

Procedimentos metodológicos

Para responder a esses questionamentos, foram entrevistadas 10 acadêmicas (identificadas por nomes fictícios) da disciplina Estágio Supervisionado para a Docência em Ciências do terceiro ano de um curso de Ciências Biológicas de uma universidade pública do Estado do Paraná. As atividades do estágio foram realizadas em turmas do ensino fundamental de uma escola pública próxima à universidade. O estágio envolveu duas professoras da escola que receberam as acadêmicas em suas aulas de Ciências durante o período de abril a outubro de 2014.

No primeiro semestre, ocorreram as observações do ambiente escolar e das aulas das professoras que recepcionaram em suas turmas as acadêmicas da disciplina de estágio. Após esse período de ambientação e inserção no contexto escolar, as acadêmicas auxiliaram as professoras da escola em atividades práticas de laboratório. Já no segundo semestre, após o planejamento das atividades de intervenção, as estagiárias ministraram as aulas em duplas durante um período de aproximadamente 10 horas/aula em turmas do ensino fundamental.

Concomitantemente, foram realizadas, na disciplina, reflexões a respeito da profissão docente e das situações que ocorreram durante as atividades na escola.

Assim, ao final de todas as atividades do estágio, tanto da disciplina quanto da escola, as acadêmicas envolvidas na pesquisa foram arguidas por meio de uma entrevista semiestruturada.

Dessa entrevista, foram analisadas somente as seguintes perguntas: Qual a sua visão, antes e depois do estágio, a respeito de ser professora? Em quais momentos você se identificou como professora? As demais questões não foram analisadas neste artigo, pois não estavam relacionadas diretamente com a questão de pesquisa.

Assim, a partir dos pressupostos da pesquisa qualitativa (BOGDAN; BIKLEN, 1994), as falas das acadêmicas foram transcritas, categorizadas e descritas a seguir, com o objetivo de identificar os aspectos envolvidos na construção da identidade docente nesse período da formação inicial.

Resultados e discussões

Após as entrevistas, as falas foram transcritas e analisadas com os referenciais teóricos descritos no início deste artigo. Em relação às falas das acadêmicas, observamos inicialmente a existência de dois grupos bem definidos, a saber: professor e aluno.

A primeira regularidade identificada nos questionamentos, a respeito da identidade social docente, foi: 1. Reconhecimento de Pertença ao grupo professor (endogrupo), categoria na qual observamos três subcategorias: 1.1 Reconhecimento do Outro; 1.2 Valorização do Grupo de Pertença e 1.3 Satisfação Pessoal. Já o oposto foi observado em uma segunda categoria que denominamos: 2. Reconhecimento de Não Pertença ao grupo aluno (exogrupo), na qual se destacou a seguinte subcategoria: 2.1 Juízo de Valores. Tal categorização encontra-se ilustrada no esquema apresentado na figura 3:

Fonte: elaborado pelos autores

Figura 3 Esquema da categorização da identidade social docente 

1. Reconhecimento de pertença: Segundo Deschamps e Moliner (2009), o grupo ao qual o indivíduo pertence (endogrupo) serve de quadro de referência na constituição da sua identidade social. Tais autores afirmam:

Como as identidades sociais são partilhadas por aqueles que ocupam posições semelhantes, que têm pertenças comuns, é exatamente ao polo semelhança que é remetida a ideia de identidade social. No entanto, este sentimento de pertença e fenômenos de identificação não são possíveis, a não ser em relação a outros grupos ou categorias de não pertença (DESCHAMPS; MOLINER, 2009, p.23).

Já pelo sentido de diferenciação ou não pertença, temos o segundo grupo, apresentado na próxima sessão (b-Reconhecimento de não pertença).

Uma vez identificado o sentimento de pertença ao endogrupo professor, também observamos três outras subcategorias, que serão descritas e exemplificadas a seguir, com as falas das acadêmicas.

1.1. Reconhecimentos pelo outro (os alunos, pares da profissão, etc.): Na categoria do reconhecimento de pertença ao endogrupo professor, foi observada uma subcategoria mais recorrente nas falas dos entrevistados: o reconhecimento pelo outro. Nessa subcategoria, observamos que o reconhecimento pelo outro foi significativo na constituição da identidade social do professor em formação. Esse reconhecimento reafirma o sentimento de pertença ao grupo de professores. A questão do reconhecimento é nuclear no processo de construção identitária, pois:

O reconhecimento no trabalho é um dos temas mais instigantes da relação sujeito-trabalho, pois coloca em discussão a importância deste último no processo de construção da identidade pessoal, bem como a importância do outro e dos coletivos de trabalho no estabelecimento de julgamentos sobre o valor do sujeito e daquilo que ele faz quando trabalha (BENDASSOLLI, 2012, p.45).

Ao questionarmos as acadêmicas quando elas se identificaram como professoras, obtivemos as seguintes falas, que remetem à subcategoria 1.1:

Ana - “Nas explicações eu também me senti (professora). Um pouco mais quando eu respondia. Eu me senti mais professora”

Bia - “Teve. Principalmente quando me chamaram de professora pela primeira vez. Assim, quando eles perguntavam ‘não sei isso ou aquilo’. Eu pensei: nossa, sou uma professora agora, ai meu Deus!”

Flora - “Quando os alunos vinham me perguntar coisas [...]. Assim, como professora, a forma como eles confiam em você, no que você fala lá na frente. [...] Eles vão acreditar fielmente no que você falou, entendeu? É basicamente isso, a credibilidade que eles davam pra tudo que nós falávamos lá na frente. Eu achei muito legal.”

Cila - “[...] também teve momentos quando eles chamavam a gente de professoras. Eu achava bem bacana.”

Iris - “[...] os alunos me chamavam de professora e quando eles identificaram a gente, deu pra ver que eles gostaram da gente. Falaram que a gente era uma das melhores estagiárias. É bem legal quando os alunos reconhecem isso.”

Como afirmam Lima e Ciampa (2012), a concretização da identidade pressupõe o seu reconhecimento por outros indivíduos. Assim, tais falas foram recorrentes em praticamente todas as entrevistas. O reconhecimento pelo outro é consideravelmente relevante para a construção da identidade docente do professor em formação inicial, uma vez que reafirma os vínculos sociais formados nesse período de socialização da profissão.

1.2. Valorizações do grupo de pertença (professor-profissão): No reconhecimento de pertença ao grupo professor, identificamos uma segunda subcategoria, na qual as licenciandas passam a valorizar a profissão e os indivíduos que pertencem a esse grupo. Nesse sentido, além do reconhecimento da pertença por similaridade, observamos a valorização da profissão docente e, consequentemente, uma diferenciação com os demais grupos.

Deschamps e Moliner (2009) também afirmam que, no processo identitário, quando categorizamos grupos nos quais estamos inseridos, ocorre geralmente uma valorização dos mesmos:

No plano cognitivo, o efeito de contraste se manifesta por um exagero de diferenças entre categorias. Mas quando essas categorias agrupam pessoas e os indivíduos são os próprios membros desses grupos, constata-se que as diferenças sobre as quais se funda o contraste são avaliativas. Em outras palavras, a distinção de grupos diferentes vem geralmente acompanhada de uma valorização do endogrupo e de uma desvalorização do exogrupo (DESCHAMPS; MOLINER, 2009, p.35).

Identificamos as seguintes falas relacionadas à subcategoria valorização do grupo de pertença, quando questionamos como era a visão delas antes e depois do estágio, a respeito de ser professor:

Ana - “[...] antes eu achava que ser professora era algo chato, que dá dor de cabeça ser professor, é chato ficar com o aluno, é chato ficar respondendo perguntas, mas quando você está ali mudou bastante. Eu vi que não é uma coisa chata, é uma coisa trabalhosa, mas não é chato. Eu aprendi a dar mais valor aos meus professores, a valorizar. [...] Acho que agora eu vou aprender a valorizar mais os meus professores.”

Bia - “[...] eu não dava tanto valor à profissão. Agora eu dou mais valor porque senti na pele”.

Observamos que o processo de socialização na profissão, proporcionado pelo estágio supervisionado, possibilitou a valorização do grupo de pertença e a reformulação das representações de si mesmas (como professoras) e do endogrupo (professor) que as licenciandas tinham antes desse período do curso. Esse reconhecimento fortalece a valorização da profissão docente. Assim, é possível ao professor em formação inicial identificar e conferir importância à profissionalização da docência com a desconstrução de visões simplistas da profissão, pois concordamos com Carvalho e Gil-Pérez (2011) ao considerarem que devemos romper com a visão da docência que basta conhecer a matéria, aplicar aulas práticas seguir alguma perspectiva psicopedagógica ou ter “dom” para ser um bom professor.

Nesse contexto, podemos destacar que a partir dos referenciais teóricos da teoria das Representações Sociais, o Centro Internacional de Estudos em Representações Sociais e Subjetividade - Educação (CIERS-ed) da Fundação Carlos Chagas, vem desenvolvendo diversas pesquisas e reflexões a respeito da complexidade do trabalho, em relação às representações sociais e a profissionalização docente (SOUSA; NOVAES; VILLAS BÔAS, 2012).

1.3. Satisfação pessoal: Trata-se do reconhecimento de satisfação pessoal das acadêmicas no processo de identificação com o grupo de pertença. Nessa categoria, observamos a necessidade do indivíduo de avaliar positivamente a si próprio, como ilustram as seguintes falas obtidas do questionamento em relação à identificação com a profissão:

Ana - “[...] quando havia questionamentos, eu me sentia professora, me sentia lá tendo um conhecimento [...]”

Bia - “Acho que foi em uma aula prática quando nós perguntávamos algo para os alunos e eles respondiam. Eu via que o que estávamos fazendo estava dando certo. Nós estávamos colhendo os frutos que tínhamos plantado. Foi uma sensação muito boa, me senti uma professora eficiente naquele momento.”

Carmem - “[...] me senti professora o tempo todo nos momentos da regência das da oficina eu me senti professora, até porque eu estava ali para fazer o meu melhor, eu não estava ali só para cumprir o que tinha que ser feito e ir embora. Quando você pega alguma coisa para fazer, tem que ser da melhor forma possível, não só para nós, mas para quem está sendo influenciado por isso. Até nas aulas práticas que nós vivemos antes, eu gostei muito, me sentir professora”.

Flora - “Me senti professora o tempo todo, parecia que eu fazia aquilo lá há mil anos. Eu gostei muito, eu me identifiquei como professora porque professor tem que saber aquilo que ele quer passar. Ele tem que passar o que ele sabe e o que deixei de passar foi porque eu não sabia, mesmo porque, tudo que eu sabia eu passei pra eles”.

Como afirmam Deschamps e Moliner (2009), no processo identitário, é comum o indivíduo dar ao outro uma imagem favorável de si mesmo e reafirmar sua conformidade às normas do conjunto social, ao mesmo tempo em que se percebe como distinto em relação ao coletivo, autônomo e único. Assim, mesmo se enquadrando nas normas do conjunto social por conformidade e reconhecendo-se como parte integrante do coletivo, o indivíduo também passa a se diferenciar dos demais por valorização das suas especificidades e do seu processo criativo.

2. Reconhecimento de não pertença: Esse segundo processo refere-se às características que os indivíduos passam a utilizar na diferenciação do grupo de pertença (professor) em relação ao grupo de não pertença (aluno), ou seja, o professor em formação passa a identificar especificidades em sua identidade que entram em conflito com valores que tinha enquanto aluno. Segundo Deschamps e Moliner (2009, p.23), “(...) quanto mais identificação com um grupo houvesse, tanto mais diferenciação haveria desse grupo com outros grupos e percepção de uma diferença”.

Nesse processo de transição e diferenciação, observamos que a inserção no meio social da profissão docente com suas normas e valores, até então desconhecidos pelas acadêmicas, proporciona o fortalecimento da identidade docente no endogrupo (professores) e o distanciamento com o exogrupo (alunos). Tal diferenciação foi evidenciada na mudança dos juízos de valores, como demonstrado a seguir.

2.1. Juízo de valores: Essa subcategoria é caracterizada pela diferenciação e oposição entre os grupos professor e aluno. As licenciandas passam a perceber valores próprios do grupo de pertença (professor) e que são diferentes de outros grupos (aluno) aos quais elas passam a não pertencer mais.

De acordo com Deschamps e Moliner (2009), a questão discutida na categoria anterior, identidade positiva de si, desencadeia, como consequência, a valorização do grupo de pertença e a percepção avaliativa (geralmente discriminatória) dos grupos de não pertença.

Essa percepção avaliativa passa a distanciar as licenciandas do exogrupo aluno pela (re)formulação de valores e de normas pertencentes à profissão docente. Observamos essa categoria a partir das seguintes falas:

Bia - “Por exemplo, em relação à prova, eu era assim quando pequena. Eu acho que meus professores queriam me matar, porque você vai lá, explica uma coisa, eles não entendem, você vai explicar de novo e fala que vai cair na prova. Aí eles erram. Você vai à recuperação, explica de novo, aí na prova de recuperação eles erram de novo. Meu Deus! Eu penso, eu era assim quando pequena! Também tem a questão de colar. Quando nós formos aplicar a prova pra eles, a gente viu bastante gente tentando colar. Eu pensava enquanto aluna, nossa, jamais o professor vai conseguir ver isso, mas lá na frente dá pra ver tudo. Você acha que não, mas consegue ver tudo.”

Carmem - “Quando nós estamos na posição de aluno, a gente acha que é fácil, é só você saber o conteúdo, chegar lá e explicar. [...] não é assim, a gente vê que tem muito mais coisa por trás disso. Existe todo um planejamento, toda uma preparação. Você tem que perceber a individualidade de cada um e você tem que ver que não é uma forma única que você vai conseguir atingir todos os alunos. [...] quando o professor explica alguma coisa e pergunta se há alguma dúvida e fica aquele silêncio na sala, hoje, eu sei que o professor fica sem saber se a gente tem alguma dúvida ou não. [...] hoje é mais fácil de enxergar tanto na posição de professor para enxergar o aluno e na posição de aluno você enxergar o professor. Isso foi bem importante.”

Flora - “Eu pensei, nossa tenho que ser professora mesmo. Eu acho que foi outro momento, também quando eu estava preparando a prova. Você pensa como professora, não se coloca mais como aluno. Basicamente, toda hora que eu estava fazendo alguma coisa do estágio eu me sentia professora. Quando você passar pra frente da sala de aula, você vê que não tem dessa de facilitar. Não existe isso. Você está ali pra dar o conteúdo. A pessoa tem que entender aquilo, mas não adianta, você voltou pra ser aluno, você pensa como aluno. Você volta tudo de novo, parece até que você tem duas personalidades.”

Observamos, nessas falas das acadêmicas, o processo de socialização, que não se restringe à visão de observadoras, ou seja, como alunas na relação unidirecional aluno-professor, na qual são criadas representações identitárias da profissão docente. Nesse momento da formação, inicia-se a transição e a (re)significação para a docência, ou seja, como professoras inseridas no contexto social da profissão. Consideramos que as representações construídas de si, do endogrupo (professor) e do exogrupo (alunos) constituintes da representação identitária definida por Deschamps e Moliner (2009) evidenciaram as diferenciações intergrupo (professor-aluno) e a valorização do endogrupo nesse processo de transição. Assim, esse importante e complexo momento da identidade docente demarca a transição de aluno para professor, na qual o indivíduo começa a compreender a docência a partir de uma nova posição social; em outras palavras, como parte integrante do processo de socialização profissional.

Admitimos que esse relevante e complexo momento de transição de aluno para professor demarca a gênese da identidade docente das participantes da pesquisa, no qual o indivíduo começa a compreender a docência a partir do posicionamento social dos professores; em outras palavras, como parte integrante do endogrupo (professores) em processo de socialização profissional e distanciando-se do exogrupo (aluno).

De acordo com Deschamps e Moliner (2009, p.145), “do ponto de vista da psicologia social, a pertença mais ou menos marcante a um endogrupo e a diferenciação entre este endogrupo e um exogrupo vão exercer um papel essencial no sentimento de identidade”. Para esses autores, a determinação do grupo de pertença do indivíduo irá definir a identidade em questão. Nesse contexto, compreendemos como gênese da identidade docente o momento em que os indivíduos estão inseridos no grupo de pertença dos professores. Assim, admitimos que, nessa investigação, a identidade docente passa a fazer sentido, para as acadêmicas entrevistadas, a partir do momento que são inseridas (mesmo que momentaneamente no estágio supervisionado) no endogrupo dos professores. Entretanto, não deixamos de levar em conta, o extenso período de observação como alunos, pois “as pesquisas vêm mostrando que os professores entram no programa de formação com crenças pessoais acerca do ensino, com imagens de bom professor, imagem de si mesmos como professores, e a memória de si mesmos como alunos” (MARCELO, 2009, p.117), sendo que esses elementos não fizeram parte do foco principal desta investigação.

Analisando outras pesquisas, observamos que Galindo (2004) ao investigar 44 professores de escolas públicas e particulares de Recife identificou valores positivos no autorreconhecimento de seu endogrupo.

Já na pesquisa de Martins, Abdalla e Martins (2012) ao utilizarem os pressupostos teóricos de Claude Dubar, Serge Moscovici e Pierre Bourdieu identificaram em 20 estudantes de Licenciaturas (Pedagogia, Letras, Ciências Biológicas, Matemática, Filosofia, e História), influências da formação inicial, das condições de trabalho, das normas e valores inerentes à profissão e das representações sociais na constituição da identidade docente dos participantes da pesquisa.

No caso da pesquisa de Alves-Mazzotti (2007) que utilizou a teoria das representações sociais para compreender a identidade docente de 283 professores, da 1ª a 4ª e da 5ª a 8ª série, observou indícios que a desvalorização afeta mais profundamente o primeiro grupo enquanto que para o segundo ocorre o oposto. Porém, a autora identificou que para ambos os grupos existe a representação social de uma imagem pública depreciada da profissão.

Desse modo, ao exemplificarmos anteriormente com algumas pesquisas que mesmo apresentando outras perspectivas de análise e referenciais teóricos distintos tais resultados também consideraram a identidade docente um profícuo campo de pesquisa que pode auxiliar na compreensão da formação de professores, pois concordamos que “O desafio, então, posto aos cursos de formação inicial é o de colaborar no processo de passagem, dos alunos de seu ver o professor como aluno ao seu ver-se como professor. Isto é, de construir a sua identidade de professor” (PIMENTA, 2012, p. 21-22).

Considerações finais

Após analisarmos as entrevistas a partir dos referenciais teóricos, identificamos diversos fatores que influenciam a identidade docente. Os reconhecimentos de pertença ao endogrupo (professor) e a não pertença ao exogrupo (aluno) surgem a partir da socialização inicial na profissão durante o estágio supervisionado. Essa socialização favorece a significação das representações identitárias da docência. Apesar do extenso contato com inúmeros professores em nossa história de vida, pertencemos ao grupo social dos alunos que socializam percepções características da docência por ocuparem uma posição social distinta a dos professores. Porém, no processo de formação inicial, temos uma mudança do grupo de pertencimento. Nesse período, temos o afastamento do acadêmico do grupo “aluno” para a aproximação do grupo “professor”; em outras palavras, a partir da socialização inicial da docência no contexto profissional, passamos a identificar semelhanças com os indivíduos do grupo de pertença (endogrupo), os professores, e diferenças com o grupo de não pertença (exogrupo), os alunos. Resultando, assim, em diferenciações intergrupos como afirmam Deschamps e Moliner (2009).

Esse período justifica a ressignificação da representação a respeito da docência das acadêmicas que entrevistamos, pois o estágio supervisionado proporcionou uma nova perspectiva do ser professor ao apresentar o contexto profissional e a socialização com os pares de profissão.

Temos, como consequência, um ponto crucial que demarca a transição de aluno para professor, em que o indivíduo não vê mais a profissão externamente como aluno, mas internamente como pertencente ao grupo social de professores.

Como Pimenta (2012), consideramos o estágio supervisionado um período no qual o indivíduo, como agente da prática de ensino, vivencia, a rigor, os desafios, as dúvidas, as responsabilidades, as reflexões, os acertos e erros de ser e de estar na profissão docente, como identificado nas falas das acadêmicas participantes da pesquisa. Tal disciplina, além de inserir o acadêmico no contexto da profissão docente e proporcionar a identificação das semelhanças com o novo grupo de pertencimento, precisa ser planejada para propiciar a reflexão crítica das representações identitárias, relacionando-as tanto com os saberes teóricos quanto com a vivência das situações de socialização com os pares de profissão.

Nesse contexto, a presente pesquisa ao utilizar do aporte teórico das representações identitárias de Deschamps e Moliner (2009), que distingue as diferentes representações (de si mesmo, do exogrupo, do endogrupo), pôde analisar o reconhecimento de pertença e não pertença ao grupo social de professores o que possibilitou, não apenas, a identificação dos elementos constituintes da identidade docente, mas uma ampliação no mapeamento das relações entre as investigações desenvolvidas nesse campo de pesquisa e da pluralidade teórico-metodológica existente para ajudar a compreender a complexidade da temática.

Portanto, é desafio, para a formação inicial, considerar a identidade docente, para que o licenciando seja capaz de ter autonomia para analisar as constantes ressignificações dos saberes docentes que ocorrerão com a práxis docente.

Referências

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Recebido: 07 de Março de 2018; Aceito: 15 de Janeiro de 2019

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