SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.14Pandemia e educação superior no BrasilBolsonarismo: a necropolítica brasileira como pacto entre fascistas e neoliberais índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista Eletrônica de Educação

versão impressa ISSN 1982-7199

Rev. Elet. Educ. vol.14  São Carlos jan./dez 2020  Epub 29-Out-2020

https://doi.org/10.14244/198271994538 

Dossiê Consequências do Bolsonarismo sobre os direitos humanos, a educação superior e a produção científica no Brasil

A Personalidade Autoritária no Brasil em tempos de neoliberalismo e de Coronavírus1

The Authoritarian Personality in Brazil in times of neoliberalism and the Coronavirus

La personalidad autoritaria en Brasil en tiempos de neoliberalismo y coronavirus

Bruno PucciI 

IUniversidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos-SP, Brasil - Professor Titular Aposentado do Departamento de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos. Fundador e membro do Grupo de Pesquisa “Teoria Crítica e Educação” (UFSCar/CNPq). Membro da Sociedade Brasileira de Filosofia da Educação - SOFIE. E-mail: puccibru@gmail.com


Resumo

A proposta deste artigo é analisar as manifestações antidemocráticas que estão ocorrendo no Brasil neste momento histórico em que o sistema capitalista dominante é o neoliberalismo e seu representante político é Jair Bolsonaro, Presidente da República. Inicialmente serão abordados dois textos de Theodor Adorno - Antissemitismo e propaganda fascista, de 1946 e Estudos sobre a personalidade autoritária, de 1950, com destaque para a Escala F - escala do Fascismo -, para deles se extraírem eixos teórico-metodológicos que lancem luzes sobre a dramática realidade social e política em que o país se encontra mergulhado. Em um segundo momento, com a intencionalidade de se buscar perspectivas de saída, o texto dialogará com três pensadores contemporâneos - Stuenkel, Lago e Brum - que apresentam subsídios para se analisar as evidências autoritárias que se estabeleceram progressivamente no país e possibilidades de superá-las.

Palavras-chave: Personalidade autoritária; Bolsonarismo; Manifestações antidemocráticas; Teoria Crítica.

Abstract

The purpose of this article is to analyze the anti-democratic manifestations that have been occurring in Brazil at this historical moment, when the dominant capitalist system is the neoliberalism and its political representative is Jair Bolsonaro, the President of the country. Initially, two essays by Theodor Adorno will be analyzed - “Anti-Semitism and Fascist Propaganda”, from 1946 and Studies on Authoritarian Personality, from 1950, with emphasis on Scale F - Fascism Scale -, in order to extract the theoretical-methodological categories, that shed light on the dramatic social and political reality in which the country is immersed. Subsequently, with the intention of seeking outgoing perspectives, the text dialogues with three contemporary thinkers - Stuenkel, Lago and Brum - who present subsidies to analyze the authoritarian evidences that have been progressively established in the country and the possibilities to overcome them.

Keywords: Authoritarian personality; Bolsonarism; Anti-democratic manifestations; Critical Theory

Resumen

El propósito de este artículo es analizar las manifestaciones antidemocráticas que están ocurriendo en Brasil en este momento histórico cuando el sistema capitalista dominante es el neoliberalismo y su representante político es Jair Bolsonaro, presidente de la República. Inicialmente, se abordarán dos textos de Theodor Adorno: "Antisemitismo y propaganda fascista", de 1946, y “Estudios sobre la personalidad autoritaria”, de 1950, con énfasis en la Escala F -- la escala del fascismo --, para extraer de ellos algunos ejes teóricos y metodológicos que arrojen luces sobre la dramática realidad social y política en la que Brasil está inmerso. En un segundo momento, con la intención de buscar perspectivas de salida, el texto dialoga con tres pensadores contemporáneos, Stuenkel, Lago y Brum, quienes presentan subsidios para analizar las evidencias autoritarias que se han establecido gradualmente en el país y las posibilidades de superarlas.

Palabras claves: Personalidad autoritaria; Manifestaciones antidemocráticas; Teoría crítica.

Introdução

Dois testemunhos dramáticos recentes de homens públicos brasileiros - atores nascidos há mais de 80 anos, que viveram a trágica experiência da ditadura militar - nos fazem pensar na persistência de traços autoritários em nossa sociedade e na violência reiterada desses indícios contra a vida. O ator Lima Duarte, ao chorar e ao entender a morte do colega de profissão Flávio Migliaccio, disse “sentir o hálito putrefato de 64 e o bafo terrível de 68”. E nos adverte: “os que lavam as mãos, o fazem numa bacia de sangue”. E Flávio Migliaccio, que ao pôr fim à sua vida, nos deixou seu recado: “Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este... Cuidem bem das crianças de hoje”. Como pensar sobre este momento e esses lamentos?

Vamos, nesta exposição, tendo como guia este momento e esses lamentos, dialogar com dois escritos de Theodor Adorno elaborados em seu exílio nos Estados Unidos nos anos 1938 a 1950: “Antissemitismo e propaganda fascista”, de 1946; e Estudos sobre a Personalidade Autoritária, de 1950. Nossa proposta é analisar eixos teórico-metodológicos desses dois escritos e tensioná-los com manifestações antidemocráticas que ocorrem em nosso país. Vamos dialogar também com autores que analisaram os estudos acima e/ou o tenso desenrolar de nossos dias, entre eles: Lowenthal e Guterman (1987); Carone (2002; 2012); Stuenkel (2018); Cerasoli (2019); Lago (2020); Brum (2020).

Antissemitismo e propaganda fascista

O ensaio “Antissemitismo e propaganda fascista” (ADORNO, 2004) se fundamenta em pesquisas realizadas sob os auspícios do Instituto de Investigação Social da Universidade de Colúmbia2, e estuda um conjunto de propagandas antidemocráticas e antissemitas realizado por pastores da Costa Oeste dos Estados Unidos nos anos 30 a 40 do século passado. O material de análise dessas pesquisas é composto principalmente de transcrições taquigráficas de programas de rádio, de panfletos e publicações semanais. A análise interpretativa do material de propaganda desses líderes assume, no texto de Adorno, uma perspectiva predominantemente psicológica na abordagem das técnicas usadas para a formação e manipulação das massas.

O frankfurtiano apresenta três características do enfoque psicológico da propaganda fascista: 1. Trata-se de uma propaganda personalizada, essencialmente não objetiva, em que o pregador utiliza grande parte do tempo para falar bem dele mesmo e também do público que o ouve. Era comum nessas alocuções ele ser nomeado como “pequeno grande homem”, “mártir pela causa do povo norte-americano”, “lobo solitário”, “inocente perseguido”, “homem carismático” etc. De outro lado, aparentava um humano interesse pelas preocupações diárias de seus ouvintes, que eram descritos como cristãos simples, mas honestos, dotados de bom senso, não intelectuais, gente modesta, mas de grande valor. O líder afastava qualquer pretensão de superioridade; mostrava-se tão frágil como seus ouvintes; ao mesmo tempo atrevia-se a confessar sua debilidade sem inibição e, como consequência, ia se transformando em um homem forte (ADORNO, 2004, p. 370). Outro esquema indicativo de aproximação do líder a seus ouvintes se dava na apresentação de suas necessidades financeiras e na solicitação de pequenas quantidades de dinheiro, tornando-se ele imaginariamente tão carente quanto seus fiéis anônimos, que o ajudavam a levar avante sua cruzada evangélica. Em troca lhes retribuía a força de uma coletividade em torno de uma causa comum para livrá-los dos inimigos que rondavam suas vidas (CARONE, 2002, p. 203).

2. Todos esses demagogos substituíam os fins pelos meios. Eles reforçavam continuamente a ideia de um grande movimento de renascimento americano, com a participação e ajuda das massas, solicitando delas sacrifícios e união; no entanto a finalidade da proposta permanecia vaga e obscura para aqueles que aceitavam dela participar. Os pregadores se tornavam mais concretos apenas quando tratavam da organização do movimento, de dinheiro e quando se referiam a seus adversários e ao perigo que eles supostamente representavam (ADORNO, 2004, p. 370; idem,1975, p.41-42).

3. Como o peso total desta propaganda tendia a promover os meios, ela mesma acabava se convertendo em seu próprio conteúdo; funcionava como uma espécie de cumprimento-do-desejo. Os ouvintes eram tratados como uma elite que merecia ser informada sobre os mistérios escabrosos, sobre histórias de escândalos, a maioria delas fake news, principalmente excessos sexuais e atrocidades3. Como nos Estados unidos a ideologia democrática desenvolveu certos tabus cuja violação poderia colocar seu agente em perigo de comprometer-se com atividades subversivas, em geral os agitadores não se atreviam a proferir abertamente metas antidemocráticas. Utilizavam-se de um discurso calculado racionalmente para provocar efeitos irracionais. Mascaravam suas simpatias pelo nazismo e por ideias totalitárias com a capa da religião (Cf. ADORNO, 2004, p. 371-372).

Segundo Iray Carone, os estudos de Adorno, Lowenthal e Guterman sobre os agitadores fascistas norte-americanos lançaram luzes sobre aspectos peculiares de sua face autoritária, com o objetivo de:

- “mostrar que o veículo religioso de algumas seitas derivadas do luteranismo nos Estados Unidos era, muitas vezes, o meio principal de difusão de ideias totalitárias”;

- “mostrar que pretendiam alavancar a força dos descontentes e alijados dos benefícios sociais, contra a democracia e por meios não democráticos”;

- mostrar que suas técnicas eram manipuladoras e se aproveitavam do descontentamento (medos, ressentimentos) de porções da população;

- “mostrar que a análise psicológica desses discursos evidenciava a construção da imagem do inimigo como ‘força do mal’, a ser erradicada pelo movimento”;

- “mostrar que ‘as forças do mal’ eram nomeadas por grupos: judeus, comunistas, ateus, radicais de esquerda, plutocratas etc.” (CARONE, 2002, p. 215-216).

No texto “A elaboração do passado no Brasil em tempos de neoliberalismo selvagem”, por nós escrito em outubro de 2019, afirmamos que “no Brasil, na segunda década do século XXI, um conjunto de manifestações e expressões reacionárias de ordem político-cultural se fazem fortemente presentes e atuantes”. E que esse ambiente conservador-autoritário é determinado por quatro Faces de poder: Face Militar; Face Pró-Segurança; Face Financeira; e Face Religiosa (CERASOLI, 2019). E nos detivemos, mesmo que de forma rápida, na Face Religiosa do poder, que, a nosso ver, se manifestava conservadora nos costumes, favorecendo o individualismo e apresentando discurso antidemocrático:

A Face Religiosa é ocupada fundamentalmente pelos membros das igrejas evangélicas neopentecostais, que nos últimos anos têm aumentado significativamente o número de fiéis e também sua representação no Congresso Nacional. Eles já são 30% dos 200 milhões de brasileiros e 90 dos 513 deputados4. Pastores evangélicos fundamentalistas utilizam-se do rádio, da televisão, de revistas e de panfletos para divulgarem suas ideologias político-religiosas, imiscuídas de atitudes misóginas, racistas e homofóbicas (PUCCI, 2019, p. 3-4).

Em diálogo com o texto de Adorno, “Antissemitismo e propaganda fascista” (ADORNO, 2004), vamos tentar entender um pouco mais a participação da Face Religiosa na construção do autoritarismo político-cultural que permeia nosso país.

A situação política atual no Brasil se diferencia da situação política dos Estados Unidos no período em que Adorno escreveu o texto acima, 1946. Se naquele momento, os pregadores evangélicos, através do rádio e de panfletos, utilizavam-se, disfarçadamente, da capa da religião para destilarem suas mensagens manipuladoras e autoritárias, no Brasil de hoje, em tempos de novas tecnologias da Comunicação, os pregadores religiosos se fazem cada vez mais onipresentes, através do rádio, da televisão e das redes sociais, na divulgação, de forma explícita e articulada, de propostas antidemocráticas.

É verdade que quando falamos da Face Religiosa do poder demos destaque aos evangélicos, pelo reconhecido crescimento de seus adeptos e pela destacada aproximação do atual Presidente de suas igrejas, mas não devemos nos esquecer de que a religião católica continua sendo a primeira, no Brasil, em número de fiéis. E que, entre eles, os seguidores de um catolicismo reacionário são, certamente, mais numerosos que os defensores de um cristianismo solidário e democrático. Por outro lado, nem todo evangélico é conservador, antidemocrático. Há algumas igrejas cristãs, particularmente, nas periferias das grandes cidades, envolvidas com causas populares e com atividades verdadeiramente humanitárias. Mas não podemos ignorar que diferentes denominações cristãs, evangélicas e católicas, em nome de seus princípios religiosos, apoiam e participam da política fascista do atual governo, que sufoca a liberdade de expressão cultural e artística.

Não há dúvidas de que o voto evangélico, assim como o voto católico, desempenhou importante papel na vitória do atual Presidente5. Este, por sua vez, tem manifestado amiúde seu compromisso com esse grupo de eleitores, através de inúmeros atos, tais como: a escolha do lema de sua campanha eleitoral: “Pátria acima de tudo, Deus acima de todos”; ida a cultos, a encontros, participação em manifestações religiosas; oração antes de seu primeiro discurso presidencial. A originalidade fascista da Face Religiosa do governo está na substituição das vítimas de ataque e de rejeição; os nazistas europeus demonizavam os judeus, os ciganos, os esquerdistas; os brasileiros demonizam os “marxistas culturais”6, os petistas, os LGBTs, os imigrantes entre outros.

Dois exemplares da Face Religiosa do Poder ocupam as cadeiras do Ministério da “Mulher, da Família e dos Direitos humanos” e do Ministério das “Relações exteriores”; a primeira, ex-pastora da Igreja Quadrangular, da qual seu pai foi fundador; hoje vinculada à igreja Batista da Lagoinha7, que surgiu em Belo Horizonte, mas que se encontra em diversas cidades brasileiras; o segundo, Ministro das Relações exteriores, indicado ao governo de plantão pelo “anti-filósofo” Olavo de Carvalho.

A ministra da “Mulher, da Família e dos Direitos humanos”, com experiência religiosa, mas também política - era assessora de Senador e participou da campanha do presidente -, indicada como ministra por sugestão da mulher do presidente, também evangélica, se tornou mais conhecida por posturas notadamente idiossincráticas, como, por exemplos: após a posse do presidente, divulgou um vídeo em que comemorava a vitória, proclamando que “a nova era começou, e que agora menino veste azul e menina veste rosa”; em uma entrevista ao portal Fé em Jesus, conduzida pela pastora Cynthia Ferreira, envolveu-se numa nova polêmica ao tentar refutar a teoria evolucionista, afirmando que a igreja evangélica perdeu o espaço na história e na ciência devido ao ensino do evolucionismo nos ambientes escolares; em uma palestra em 2013, perguntava: “A igreja evangélica cresceu demais, amém, mas o que de fato está fazendo para mudar a sociedade?”. Ela mesma respondeu. “Deus está nos preparando para uma nova fase, que é a transformação da sociedade”8.

O Ministro das Relações Exteriores também se destaca pelas suas posturas e declarações conservadoras e antidemocráticas. Vamos apresentar algumas delas: ‘É entusiasta da política externa de Donald Trump; Segundo o Ministro, "a esquerda sequestrou a causa ambiental e a perverteu", criando uma "ideologia da mudança climática"; Em seu blog, declarou sua intenção de ajudar o mundo a se libertar do globalismo, que, segundo ele, é uma ideologia anticristã, dominada por uma teoria da conspiração conhecida como marxismo cultural; Em março de 2019 afirmou, em uma entrevista, que o nazismo e o fascismo são resultados de “fenômenos de esquerda”; Durante a formatura de diplomatas do Instituto Rio Branco, o Ministro comparou o Presidente a Jesus Cristo e foi às lágrimas. Também afirmou que “diplomacia não significa ficar em cima do muro” e que é preciso “ter sangue nas veias”9.

Vemos, pois que, apesar do tempo que separa as pregações religiosas dos pastores norte-americanos, nos anos 1940, das exposições de religiosos reacionários contemporâneos, cerca de 80 anos, a postura antidemocrática continua fundamentalmente a mesma, com ao menos uma diferença importante. Nos Estados Unidos, a síndrome autoritária era exposta de forma camuflada e limitada a poucos influenciadores; no Brasil de hoje ela é exposta de forma escancarada e generalizada.

Estudos sobre a personalidade autoritária

O segundo texto, com o qual queremos dialogar, intitula-se Estudos sobre a Personalidade Autoritária, publicado em 1950, como resultado da pesquisa sobre o antissemitismo, o etnocentrismo e o preconceito, desenvolvida por Adorno, em parceria com Levinson, Sanford e Frenkel-Brunswick, docentes da Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos anos 1944 a 194710. Interessa-nos, nesta exposição, para lançarmos luzes sobre as manifestações autoritárias que acontecem em nosso país, examinar apenas os componentes ideológicos da Escala F - letra inicial do Fascismo - por eles criada e aplicada na referida investigação.

O fundamento teórico dessa pesquisa residia no pressuposto de que um conjunto de características relacionadas entre si poderia indicar o potencial autoritário latente no indivíduo. “Pode-se dizer que a escala F tenta mensurar a personalidade potencialmente antidemocrática” (ADORNO, 2019, p. 135). São nove as variáveis que compõem a referida Escala:

1) Convencionalismo. “Adesão rígida a valores convencionais” da classe social, com a qual o indivíduo se sente identificado. Essa síndrome representa uma estereotipia que vem de fora, mas que foi integrada no interior da personalidade como parte de sua constituição interna; o preconceito contra o outgroup é-lhe uma coisa natural; assume-se o julgamento sobre os outros, sem se ter examinado por si mesmo essa questão; a rejeição aos ciganos, aos negros, aos imigrantes latino-americanos, por exemplo, são síndromes do convencionalismo (ADORNO, 2019).

Dois exemplos de adesão rígida a valores convencionais: a) no primeiro ano de seu governo, o atual presidente da república decidiu acabar com o Programa Mais Médicos, que chegou a ter cerca de 8 mil médicos cubanos e que trabalharam nas regiões mais pobres e rurais do Brasil. Segundo o presidente “o envio de médicos cubanos ao Brasil durante o governo petista de Dilma Rousseff tinha o objetivo de "formar núcleos de guerrilha" e avaliou que se a medicina em Cuba fosse tão boa teria salvado a vida do finado presidente venezuelano Hugo Chávez”11; b) O ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso suspendeu, em 02/05/2020, o ato do presidente Jair Bolsonaro, que determinava a expulsão de funcionários da Embaixada da Venezuela em Brasília. A decisão também previa a expulsão de funcionários de consulados venezuelanos em Belém (PA), Boa Vista (RR), Manaus (AM), Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP)12.

2) Submissão autoritária. “Atitude submissa, acrítica a autoridades morais idealizadas do ingroup”; dedicação incondicional do indivíduo ao Estado ou a um tipo de relação que supõe superioridade - pais, pessoas mais velhas, líderes, poder sobrenatural e outros. A obediência e o respeito na educação das crianças como os valores mais importantes; obedecer sem questionar as decisões superiores. Desejo de um líder forte: essa adesão devotada expressa falta de consistência interior; contribui também para o potencial antidemocrático ao tornar o indivíduo passível de manipulação pelos poderes externos mais fortes. Essa variável representa o componente masoquista do autoritarismo (ADORNO, 2019).

Desejo de um líder forte; homenagem ao general Ustra: Em abril de 2016, Jair Bolsonaro parabenizou o deputado Eduardo Cunha pela forma como conduziu o impeachment de Dilma Rousseff e usou seu discurso de voto para homenagear Carlos Alberto Brilhante Ustra, o primeiro militar a ser reconhecido pela Justiça como um dos torturadores durante a ditadura militar. Em sua defesa, alegou que as declarações durante a votação do impeachment estão protegidas pela imunidade parlamentar. Em entrevista de 2018, voltou a defender Ustra, chamando-o de "herói nacional"13.

3) Agressividade autoritária. “Tendência a vigiar e condenar, rejeitar e punir, em nome do patriotismo, pessoas que violam os valores convencionais”. Essa variável representa o componente sádico do autoritarismo; o indivíduo, incapaz de apresentar as causas de suas necessidades, sobretudo econômicas, e, inibido, psicologicamente, de atacar as autoridades de seu próprio ingroup, parte para o ataque contra minorias dos outgroups, despejando sobre eles sua fúria. A carga de hostilidade, não acionada contra as causas diretas do problema, encontra uma saída projetiva em grupos minoritários. A fraqueza do eu se mostra na incapacidade de se construir um conjunto consistente de valores morais no interior de sua personalidade (ADORNO, 2019, p.135; 142-147).

Duas atitudes de agressividade autoritária: a) Em abril de 2016, Bolsonaro defende a revogação do Estatuto do Desarmamento e o direito ao proprietário rural de aquisição de fuzis para evitar invasões do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). b) Bolsonaro defende a ditadura militar brasileira com frequência. Ele já chegou a afirmar, durante uma discussão com manifestantes em dezembro de 2008, que "o erro da ditadura foi torturar e não matar". Ele foi criticado pelos meios de comunicação, por políticos e pelo Grupo Tortura Nunca Mais, sobretudo depois de ter afixado na porta de seu escritório um cartaz que dizia aos familiares dos desaparecidos da ditadura militar que "quem procura osso é cachorro”.14

4) Anti-intracepção. “Oposição ao subjetivo, ao imaginativo, a um espírito compassivo”. Intracepção, para Murray, exprime “a predominância de sentimentos, fantasias, especulações, aspirações - um perfil humano imaginativo e subjetivo”. O antônimo de intracepção é extracepção, “um termo que descreve a tendência a ser determinada por condições físicas concretas, claramente observáveis (fatos tangíveis e objetivos)”15. A anti-intracepção se mostra como uma atitude de impaciência ao subjetivo, ao espírito compassivo e pode caracterizar um eu fraco. O anti-intraceptivo é contra a intromissão naquilo que as pessoas pensam e sentem; procura se manter sempre ocupado, dedicando-se a “coisas práticas”. “Essa atitude geral leva facilmente a uma desvalorização do humano e a uma sobrevalorização do objeto físico; quando é extrema, os seres humanos são vistos como se fossem objetos físicos a serem friamente manipulados” (ADORNO, 2019, p. 135; 147-149).

Atitudes de impaciência ao subjetivo, ao espírito compassivo: postura de solidariedade, de compaixão, de sentimento humano em relação aos familiares dos mortos pela Covid-19, não é uma das virtudes do atual presidente. Alguns fatos reiteram progressivamente esse diagnóstico. Cito uns poucos: no dia 24/03/2020, em cadeia nacional, o presidente atenuou a gravidade da Covid-19: “Pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria acometido, quando muito, de uma gripezinha ou resfriadinho”. No dia 20/04/2020, as mortes no Brasil passavam de 2,5 mil. Os repórteres pediram-lhe um comentário sobre esse número. Ele assim reagiu: “Oh cara, quem fala, eu não sou coveiro, tá certo? Eu não sou coveiro”. Mas o ponto alto da falta de sentimento humana nesse contexto se deu em 28/04/2020, quando interrogado sobre o novo recorde de mortes registradas em 24 horas, então com 474 óbitos, respondeu: "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre​"16.

5) Superstição e estereotipia17: “A crença em determinantes místicos do destino individual; a disposição a pensar por meio de categorias rígidas”. São dois componentes relacionados ao etnocentrismo18, que se contrapõem e que, ao mesmo tempo, se complementam: a superstição enquanto crença em determinantes externos, fantásticos do destino humano; enquanto uma tendência a transferir a responsabilidade do interior do indivíduo para forças exteriores além de seu controle; indicaria um eu frágil ou um eu que, de certa maneira, já teria desistido de si mesmo. A estereotipia enquanto expressão de uma forma obtusa de se posicionar em questões psicológicas e sociais, que levam as pessoas - mesmo aquelas “inteligentes” e/ou “informadas” a recorrer a explicações primitivas e até bizarras sobre o comportamento de outras pessoas e sobre as causas dos eventos na natureza (ADORNO, 2019, p.135; 149-151).

A estereotipia enquanto expressão de uma forma obtusa de se posicionar em questões psicológicas e sociais: Em uma entrevista à revista Playboy, em junho de 2011, Bolsonaro afirmou: "Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui, prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo." Ele também disse que se um casal homossexual fosse morar ao seu lado, isto iria desvalorizar sua casa. Em julho do mesmo ano, durante uma entrevista para leitores da revista Época, disse que "se lutar para impedir a distribuição do 'kit gay' nas escolas de ensino fundamental com a intenção de estimular o homossexualismo, em verdadeira afronta à família, é ser preconceituoso, então sou preconceituoso, com muito orgulho".19

6) Poder e “dureza”. “Preocupação com a dimensão de dominação-submissão, forte-fraco, líder-seguidor; identificação com figuras de poder; ênfase excessiva nos atributos convencionalizados do eu; asserção exagerada de força e dureza”. A superexibição da dureza pode refletir não apenas a fraqueza do eu, mas também a grandeza da tarefa que o “eu” pretende desempenhar, mas que se sente interditado ou impotente para tal. Relacionado à dureza exagerada está o “complexo do poder”, isto é, a disposição a ver todas as relações entre pessoas em termos de categorias como forte-fraco, dominante-submisso, líder-seguidor. E é difícil dizer com quais desses papéis o sujeito se identifica mais. Ele quer conseguir o poder, não o perder, e, ao mesmo tempo, tem medo de conquistá-lo e exercê-lo, embora o negue. Uma solução que tal indivíduo frequentemente encontra é se alinhar com figuras de poder, pois, no caso, ele está satisfazendo tanto sua necessidade de poder quanto a de se submeter ao poder (ADORNO, 2019, p.135; 151-153).

Identificação com figuras do poder; alinhamento com figuras de poder: Bolsonaro já em sua Proposta Eleitoral de Política Externa elogiava o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Acenava com uma maior aproximação com os Estados Unidos, ao mesmo tempo em que defendia o distanciamento do Brasil de países como Venezuela e Cuba. Disse ele:

Deixaremos de louvar ditaduras assassinas e desprezar ou mesmo atacar democracias importantes como EUA, Israel e Itália”. (...). Trata-se de querer um Brasil grande assim como ele (Trump) quer uma América grande. Ele (Trump) diminuiu a carga tributária do setor produtivo, foi criticado, mas isso gerou empregos e atraiu novas empresas de fora. (...) Admiro muito ele (Trump), por isso aí.20

De fato, logo no início de sua gestão, visitou o presidente norte-americano; queria indicar seu filho como embaixador do Brasil nos Estados Unidos; não conseguiu, mas escolheu um ministro também admirador convicto do presidente Trump. No início da pandemia do Covid-19, assumiu uma política muito semelhante à do presidente norte-americano. Primeiro critério, não prejudicar a economia; depois, cuidar da vida. À semelhança de Trump, pretendia realocar a embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. 21

7) Destrutividade e cinismo. “Hostilidade generalizada, desprezo pelo humano”. O indivíduo antidemocrático, por ser obrigado a aceitar numerosas restrições impostas de fora sobre a satisfação de suas necessidades, carrega em si fortes impulsos agressivos, com tendência a descarregá-los em direção a minorias. Uma justificativa para utilizar-se da agressividade mais livremente é a crença de que todos estão fazendo o mesmo, que é da “natureza humana” a violência, particularmente contra os vizinhos mais fracos (ADORNO, 2019, p. 135; 153-155).

Em setembro de 2015, durante uma entrevista ao Jornal Opção, de Goiás, disse Bolsonaro: "Não sei qual é a adesão dos comandantes, mas, caso venham reduzir o efetivo das Forças Armadas é menos gente nas ruas para fazer frente aos marginais do MST, dos haitianos, senegaleses, bolivianos e tudo que é escória do mundo que, agora, está chegando, os sírios também. A escória do mundo está chegando ao Brasil como se nós não tivéssemos problema demais para resolver"22.

8) Projetividade. “A disposição para acreditar que coisas tresloucadas e perigosas acontecem no mundo; a projeção para fora de impulsos emocionais inconscientes”. O mecanismo de projeção, já vimos, se manifesta na agressividade autoritária, quando os impulsos reprimidos do caráter autoritário tendem a ser projetados em outras pessoas tidas como culpadas. Ele caracteriza a capacidade de “transferir” problemas interiores para o mundo exterior: impulsos, tabus, temores, responsabilidades. A projeção é, pois, um dispositivo para manter as pulsões do id alheias ao ego e pode ser vista como um sinal de inadequação do mesmo no desempenho de sua função (ADORNO, 2019, p. 135; 156-157).

A projeção para fora de impulsos emocionais inconscientes: em abril de 2017, em um discurso no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, Bolsonaro fez uma piada sobre sua filha Laura, então com 6 anos, ao dizer "Eu tenho cinco filhos. Foram quatro homens, aí no quinto eu dei uma fraquejada e veio uma mulher". A fala gerou uma repercussão negativa nas redes sociais, sobretudo do público feminino, que considerou suas palavras machistas e misóginas23.

9) Sexo. “Preocupação exagerada com “eventos” sexuais”, com atos de sexualidade alheios; a repressão e a ansiedade são fontes prováveis de tais excessos. Há uma forte inclinação em punir os transgressores dos costumes sexuais (homossexuais, criminosos sexuais), que pode ser expressão de uma atitude punitiva baseada na identificação com autoridade do ingroup, mas também pode sugerir repressão dos próprios desejos sexuais, bem como o risco de os mesmos saírem do controle (ADORNO, 2019, p. 135; 157-159).

Bolsonaro já condenou publicamente a homossexualidade (fevereiro de 2015) e já se opôs à aplicação de leis que garantam direitos LGBT, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adoção de filhos por casais homossexuais (maio de 2013) e a alteração no registro civil para transexuais (maio de 2002). Também já fez declarações controversas sobre homossexuais, no entanto, desde que começou a se apresentar como pré-candidato à Presidência do Brasil, passou a adotar um discurso mais moderado em relação aos LGBTs e a dizer que não tem nada contra os homossexuais, mas que combate apenas o que chama de "kit gay" nas escolas24.

Como vimos acima, o propósito científico da Escala F, para Adorno e seus colegas de pesquisa, nos anos 1940, nos Estados Unidos, era, através de nove variáveis, “mensurar a personalidade potencialmente antidemocrática” do indivíduo pesquisado. Em outros termos: “indiciar o seu potencial autoritário latente”. No diálogo que estabelecemos entre as nove variáveis da síndrome autoritária e as atitudes do atual presidente de nosso país, 80 anos depois, o que percebemos não foram apenas os indícios de um “potencial autoritário latente” e sim “manifestações explícitas de uma personalidade autoritária”, governando autocraticamente uma nação tida como democrática.

Evidências antidemocráticas no Brasil hoje

Vamos dialogar, a seguir, com pensadores contemporâneos que nos apresentam subsídios para analisar as evidências antidemocráticas que se estabeleceram progressivamente em nosso país nos dias de hoje:

O primeiro é o professor doutor em Ciência Política, Oliver Stuenkel, alemão25, cujo título de seus comentários expressa-se com a questão: “Por que a Alemanha, o país com um dos melhores sistemas de educação pública e a maior concentração de doutores do mundo na época, sucumbiu a um charlatão fascista?” (STUENKEL, 2018).

Nos anos 1920, Adolf Hitler era um ex-militar bizarro, de baixo escalão, que poucas pessoas levavam a sério. Era conhecido por seus discursos contra minorias, contra políticos de esquerda, feministas, gays, imigrantes, contra a mídia e a Liga das Nações, precursora das Nações Unidas. Em 1932, porém, 37% dos eleitores alemães votaram no partido de Hitler; e, em janeiro de 1933, tornou-se chefe de governo. “Por que tantos alemães instruídos votaram em um patético bufão que levou o país ao abismo?”, pergunta Stuenkel (2018).

O cientista enumera uma série de motivos que, em sua análise, levaram tantos alemães a votarem nesse “ex-militar bizarro”: “os alemães tinham perdido a fé no sistema político da época”; “Hitler sabia como usar a mídia para seus propósitos”; para ele: “toda propaganda devia ser apresentada em uma forma popular.... para despertar a imaginação do público através de um apelo aos seus sentimentos”; “muitos alemães sentiram que seu país sofria uma crise moral e Hitler prometeu uma restauração”; “apesar de fazer declarações ultrajantes - como a de que judeus e gays deveriam ser mortos --, muitos pensavam que ele só queria chocar as pessoas”; “Hitler ofereceu soluções simplistas que, à primeira vista, faziam sentido, como sobre o problema do crime” (aumento do tempo de prisão e/ou pena de morte); sobre problemas econômicos (atuar sobre os comunistas e os judeus, seus causadores); ele prometeu e implantou “contratos suculentos” para as elites e para os industriais que aderiram a ele; mesmo antes da eleição de 1932, jovens agressivos, que apoiavam Hitler, ameaçavam os oponentes, no início de forma verbal, depois de forma fisicamente violenta; isso levou muitos alemães, que não apoiavam o regime, a preferirem ficar calados para evitar problemas com os nazistas” (STUENKEL, 2018).

De fato, uma análise mais objetiva mostra que, justamente quando era mais necessário defender a democracia, os alemães caíram na tentação fácil de um demagogo patético que fornecia uma falsa sensação de segurança e muito poucas propostas concretas de como lidar com os problemas da Alemanha em 1932 (...) Hitler não chegou ao poder porque todos os alemães eram nazistas ou antissemitas, mas porque muitas pessoas razoáveis fizeram vista grossa. O mal se estabeleceu na vida cotidiana porque as pessoas eram incapazes ou sem vontade de reconhecê-lo ou denunciá-lo. ... Antes de muitos perceberem o que a maquinaria fascista do partido governista estava fazendo, ele já não podia mais ser contido. Era tarde demais (STUENKEL, 2018, p. 4).

O segundo pensador com quem dialogamos, a seguir, é o sociólogo político Ivann Lago26, para quem “Bolsonaro está longe de ser algo surgido do nada ou brotado do chão pisoteado pela negação da política, alimentada nos anos que antecederam as eleições”. Ao contrário, o professor/doutor, enquanto “pesquisador das relações entre cultura e comportamento político”, está cada vez mais convencido de que o atual presidente “é uma expressão bastante fiel do brasileiro médio, um retrato do modo de pensar o mundo, a sociedade e a política que caracteriza o típico cidadão do nosso país”. Para ele, na realidade, o brasileiro médio “é preconceituoso, violento, analfabeto (nas letras, na política, na ciência... em quase tudo). É racista, machista, autoritário, interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro, desonesto”. O título de seu artigo é “O Jair que há em nós” (LAGO, 2020, p.1).

Lago traz dois exemplos de preconceitos, o machismo e o racismo, que se tornaram crimes a serem punidos e que, formalmente, esse fato representa um avanço civilizacional. Porém, diz o pensador, esses dois preconceitos sobrevivem no “imaginário da população, no cotidiano da vida privada, ... nos ambientes de trabalho, nas redes sociais, ... nas piadas diárias, nos comentários entre os amigos, nos pequenos grupos onde há certa garantia de que ninguém irá denunciá-lo”. Os avanços “nas relações de gênero, na inclusão de negros e homossexuais, foram menos por superação cultural do preconceito do que pela pressão exercida pelos instrumentos jurídicos e policiais” (LAGO, 2020, p.2). Ou seja, esses preconceitos não foram superados objetivamente e sim reprimidos; e, como ocorre com tudo o que é reprimido, ele é armazenado e pode extravasar-se.

Para o sociólogo político, o cidadão “brasileiro médio”, com todos os seus preconceitos reprimidos, teve a possibilidade de escolher como Presidente da República, como seu representante e líder máximo, “alguém que podia ser e dizer tudo o que ele também pensa, mas que não pode expressar por ser um “cidadão comum”” (LAGO, 2020 p.3).

Agora esse “cidadão comum” tem voz. Ele de fato se sente representado pelo Presidente que ofende as mulheres, os homossexuais, os índios, os nordestinos. Ele tem a sensação de estar pessoalmente no poder quando vê o líder máximo da nação usar palavreado vulgar, frases mal formuladas, palavrões e ofensas para atacar quem pensa diferente. Ele se sente importante quando seu “mito” enaltece a ignorância, a falta de conhecimento, o senso comum e a violência verbal para difamar os cientistas, os professores, os artistas, os intelectuais, pois eles representam uma forma de ver o mundo que sua própria ignorância não permite compreender (LAGO, 2020, p.3).

Para o pesquisador, poucas vezes na história o povo brasileiro esteve tão bem representado por seus governantes, como nos dias de hoje. Ele termina o texto reflexivo afirmando que a pergunta a ser feita diante do que se vê, não é esta: “como é possível que um Presidente da República consiga ser tão indigno do cargo e ainda assim manter o apoio incondicional de um terço da população?” Mas sim a seguinte: “Como milhões de brasileiros mantêm vivos padrões tão altos de mediocridade, intolerância, preconceito e falta de senso crítico ao ponto de sentirem-se representados por tal governo?” (LAGO, 2020, p. 4).

O terceiro diálogo se dá com a jornalista e escritora Eliane Brum27, em seu artigo de 26 de fevereiro de 2020, intitulado “O golpe de Bolsonaro está em curso; já está acontecendo: a hora de lutar pela democracia é agora”.

“Não há nada comparável à situação vivida hoje pelo Brasil sob o governo de Bolsonaro. Mas ela só é possível porque, desde o início, se tolerou o envolvimento de parte das PMs com esquadrões da morte, na ditadura e além dela”, afirma a jornalista. Para ela, “desde a redemocratização do país, nenhum dos governos combateu diretamente a banda podre das forças de segurança”. Parte das PMs se converteu em milícias, aterrorizando as comunidades pobres, especialmente no Rio de Janeiro, e isso foi tolerado em nome da “governabilidade”. E a jornalista vai além: “Nos últimos anos as milícias deixaram de ser um Estado paralelo para se confundir com o próprio Estado” (BRUM, 2020, p. 2).

Segundo Brum, Bolsonaro é o líder moral de parcela das polícias militares. O que elas fizeram nos últimos anos, ao se amotinarem e aterrorizarem a população - o acontecido em Fortaleza em março deste ano é testemunho dessa realidade28 - foi o que Bolsonaro tentou fazer quando capitão do Exército e foi descoberto antes. Ele é, pois, o homem de vanguarda desse setor, o mito a ser imitado.

Não se vira refém de uma hora para outra. É um processo. Não dá para enfrentar o horror do presente sem enfrentar o horror do passado porque o que o Brasil vive hoje não aconteceu de repente e não aconteceu sem silenciamentos de diferentes parcelas da sociedade e dos partidos políticos que ocuparam o poder. Para seguir em frente é preciso carregar os pecados junto e ser capaz de fazer melhor. (BRUM, 2020, p.4).

Para a analista política, a classe média se calou diante do horror nas favelas e periferias, porque pensou que estaria a salvo; os políticos de esquerda recuaram e não enfrentaram as milícias porque pensaram que seria possível contornar a situação. Como consequência, o momento conflituoso em que vivemos mostra que “ninguém está a salvo quando se aposta na violência e no caos; ninguém controla os violentos” (BRUM, 2020, p. 4).

A hora de lutar está passando. O homem que planejava colocar bombas em quartéis para pressionar por melhores salários é hoje o presidente do Brasil, está cercado de generais, alguns deles da ativa,29 e é o ídolo dos policiais que se amotinam para impor seus interesses pela força. Estes policiais estão acostumados a matar em nome do Estado, mesmo na democracia, e a raramente responder pelos seus crimes. Eles estão por toda a parte, são armados e há muito já não obedecem a ninguém (BRUM, 2020, p. 6).

E a jornalista termina seu ensaio, eminentemente político, incentivando seus leitores a abrirem os olhos e lutarem pela democracia, porque a hora é agora. Ela faz uma referência elogiosa ao senador Cid Gomes, do Ceará, que, em Sobral, em cima de um trator marchou ao lado de moradores da cidade rumo ao quartel em que os policiais estavam amotinados e foi ferido por arma de fogo. Diz ela: “Se você não acha que pegar uma retroescavadeira é a solução, melhor pensar logo em outra estratégia, porque (o golpe, acréscimo nosso) já está acontecendo. E, não se iluda, nem você estará a salvo” (BRUM, 2020, p. 6).

No dia 04/05/2020, Flávio Migliaccio, ao colocar fim a sua vida, nos deixou uma desconcertante mensagem:

Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é o caos, como tudo aqui. A humanidade não deu certo. Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este. É com esse tipo de gente que acabei me encontrando. Cuidem bem das crianças de hoje!

O ator Lima Duarte, com 90 anos de idade, em vídeo plangente se dirige ao amigo e colega de trabalho, manifestando entender sua morte e, ao mesmo tempo, “sentir o hálito putrefato de 64 e o bafo terrível de 68”. E nos adverte: “os que lavam as mãos, o fazem numa bacia de sangue”.

Conclusão

Como complemento vivo às reflexões dos três pensadores contemporâneos - Stuenkel, Lago e Brum -, a lucidez de Lima Duarte e de Flávio Migliaccio nos deixam mais que um testemunho de vida, nos lançam um desafio existencial em contraposição ao que estamos todos vivendo.

A democracia brasileira está sendo roída e vai se deteriorando aos poucos30. E os motivos de sua erosão não se encontram apenas - já vimos -- nas atitudes antidemocráticas do presidente e de seu séquito político e religioso. Está, sobretudo, na desarticulação política das forças democráticas, que se fecham em suas bolhas partidárias, que manifestam individualmente seu posicionamento crítico através das redes sociais e dos meios de comunicação, mas não se unem na busca de um agir comum, intenso e solidário.

É urgente a organização de um movimento semelhante ao das “Diretas Já!”. Em contraposição ao lema “Pátria acima de tudo, Deus acima de todos”, levantar a bandeira: “Democracia acima de tudo, Direitos Humanos acima de todos”31. E incentivar manifestações políticas e sociais no desenvolvimento mais pleno possível de um governo da maioria, com a participação de todos aqueles que, individualmente e/ou coletivamente sentem o clamor pela democracia.

Referências

ADORNO, Theodor W. & alii. The Authoritarian Personality - Studies on Prejudice. New York: Harper & Brothers, 1950. [ Links ]

ADORNO, Theodor W. The Psychological Techniques of Martin Luther Thomas. Soziologische Schriften II. Frankfurt: Surkhamp Verlag, 1975. [ Links ]

ADORNO, Theodor W. Antisemitismo y Propaganda Fascista. In ADORNO, Theodor W. Escritos Sociológicos I. Trad. Augustín González Ruiz. Madrid - España: Ediciones Akal, 2004, p. 369-379. [ Links ]

ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a Personalidade Autoritária. Trad. Virgínia Helena Ferreira da Costa, Francisco Lopez Toledo Corrêa, Carlos Henrique Pissardo. São Paulo: Editora UNESP, 2019. [ Links ]

ALMEIDA, Ronaldo. Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangélicos e a crise brasileira. Novos Estudos. CEBRAP, v. 38, p. 185-213, 2019. [ Links ]

BARROS E SILVA, Fernando de. Dentro do Pesadelo: O governo Bolsonaro e a calamidade Brasileira. In: Revista Piauí, Edição 164. Maio de 2020. Acesso: 17/05/2020. https://piaui.folha.uol.com.br/materia/dentro-do-pesadelo-2/Links ]

BRUM, Eliane. O golpe de Bolsonaro está em curso. In: El Pais. 20/02/2020. Acesso: 14/05/2020. https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-02-26/o-golpe-de-bolsonaro-esta-em-curso.htmlLinks ]

CARONE, Iray. Fascismo on the air: Estudos frankfurtianos sobre a agitador fascista. In: Lua Nova, nº 55-56, 2002, p. 194-217. [ Links ]

CARONE, Iray, A Personalidade Autoritária Estudos Frankfurtianos sobre o Fascismo. In: Revista Sociologia em Rede, vol. 2, nº 2, 2012, p. 14-21. [ Links ]

CERASOLI, Josianne Francia. Quatro Faces do Poder na Gestão Bolsonaro. Slide - debatido no Ciclo de Palestras Constituição/88, UFSCar: São Carlos, 2019. [ Links ]

LAGO, Ivann. O Jair que há em nós. In Blog do autor. 28/02/2020. Acesso: 14/05/2020. In: In: https://ivannlago.blogspot.com/2020/02/o-jair-que-ha-em-nos.html?fbclid=IwAR3lMwyoWpPQ0fP5rheMk2QkDpMvcHd0J65RPcyGhUXDJhakMBNNgQhGSJ4Links ]

LOWENTHAL, L. & GUTERMAN, N. “Prophets of Deceit: a Study of the Techniques of the American Agitator”. False Prophets - studies on authoritarianism. New Jersey: Transaction Books, 1987. [ Links ]

PUCCI, Bruno. A elaboração do passado no Brasil em tempos de neoliberalismo selvagem. Inédito, 2019. [ Links ]

STUENKEL, Oliver. Por que votamos em Hitler. In: El Pais. 08/10/2018. Acesso: 14/05/2020. https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/06/opinion/1538852257_174248.html?rel=lomLinks ]

VECCHIATTI, I. Lema de Bolsonaro, também usado no Nazismo, vai contra nossa “Era dos Direitos”. Podcast - Justificando. 22/10/2018. In: In: https://www.justificando.com/2018/10/22/lema-de-bolsonaro-tambem-usado-no-nazismo-vai-contra-nossa-era-dos-direitos/ . Acesso: 17/05/2020. [ Links ]

1Essa é uma versão ampliada da conferência online, apresentada no dia 24/06/2020, no evento “Diálogos de Sofie I: a Personalidade Autoritária no Brasil em tempos de neoliberalismo e de Coronavirus: o que esperar da Educação?” O evento foi promovido pela Sociedade Brasileira de Filosofia da Educação - SOFIE e pelo GT 17 da ANPEd.

2Entre as pesquisas enunciadas, destacam-se: os discursos radiofônicos do pastor Martin Luther Thomas, referente ao período de maio de 1934 a julho de 1935, analisados por Adorno; e o estudo de Lowenthal e Guterman sobre Prophets of Deceit (Profetas da Fraude, da Falsidade), em que os autores analisam principalmente os panfletos e os livros de uma série de agitadores fascistas, do período anterior à Segunda Grande Guerra (anos 30) e durante ela (anos 40) (Cf. CARONE, 2002, p. 195; 209).

3Certo demagogo da Costa Oeste prometeu uma vez apresentar em seu seguinte discurso detalhes completos sobre um decreto do governo soviético que organizava a prostituição das mulheres russas (ADORNO, 2004, p. 371).

4Cf. Qual a força de grupos evangélicos no Brasil de 2019. Acesso: 18/07/2019. In: https://www.nexojornal.com.br/expresso/ 2019/06/20/ Qual-a-for%C3%A7a-de-grupos-evang%C3%A9licos-no-Brasil-de-2019

5“Bolsonaro Presidente. Conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira” é o título do artigo de Ronaldo Almeida (2019), cuja leitura complementa e enriquece a temática por nós abordada sobre a Face Religiosa.

6Marxismo cultural é uma teoria da conspiração, difundida nos círculos conservadores estadunidenses desde 1990. Refere-se a uma suposta forma de marxismo, adaptada a termos culturais pela Escola de Frankfurt, com o objetivo final de destruir instituições e valores tradicionais através do estabelecimento de uma sociedade global, igualitária e multicultural. No Brasil seu principal proponente é Olavo de Carvalho, Bolsonaro e membros de seu governo. In: https://www.politize.com.br/marxismo-cultural/

7Ambas as igrejas são neopentecostais.

8In: https://oglobo.globo.com/sociedade/damares-alves-trajetoria-conservadora-da-ministra-que-criou-polemica-23367259.

9In: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/05/03/ministro-compara-bolsonaro-a-jesus-ao-chamar-presidente-de-pedra-angular-do-novo-brasil.ghtml.

10A edição em português dos Estudos sobre a personalidade autoritária, é resultado de uma seleção de textos da obra original, de quase mil páginas, intitulada The Authoritarian Personality, publicada nos Estados Unidos em 1950. Tal seleção segue a edição alemã das obras completas de Adorno publicadas pela Suhrkamp no volume 9, Escritos Sociológicos II (ADORNO, 2019, p. 13). A tradução portuguesa, publicada pela Editora da UNESP em 2019, contêm cerca de 600 páginas.

11In:https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2019/08/01/interna_internacional,1074176/bolsonaro-diz-que-medicos-cubanos-queriam-implantar-guerrilha-no-brasi.shtml

12In: https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/internacional/2020/05/737114-stf-suspende-ordem-de-bolsonaro-para-expulsao-de-diplomatas-venezuelanos.html

13In: https://extra.globo.com/noticias/brasil/coronel-ustra-homenageado-por-bolsonaro-como-pavor-de-dilma-rousseff-era-um-dos-mais-temidos-da-ditadura-19112449.html.

14In: https://brasilpagina1.wordpress.com/2009/06/27/jair-bolsonaro-sobre-os-mortos-do-araguaia-quem-procura-osso-e-cachorro/s

15MURRAY et al. Explorations in Personality. New York: oxford University Press, 1938.

16In: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/04/29/e-dai-de-bolsonaro-nao-e-primeira-reacao-de-desdem-as-mortes-de-brasileiros-por-covid-19.ghtml

17Estereotipia: comportamento verbal ou motor repetitivo, produzido de forma quase automática, sem relação com a situação, e de aparência absurda. Estereótipo = ideia ou convicção classificatória preconcebida sobre alguém ou algo, resultante de expectativa, hábitos de julgamento ou falsas generalizações (HOUAISS, 2001, p. 1252).

18A palavra etnocentrismo designa uma forma de enxergar outra etnia (e suas derivações, como cultura, hábitos, religião, idioma e formas de vida em geral) com base na etnia própria. A visão etnocêntrica de mundo não permite ao observador de uma cultura reconhecer a alteridade e faz com que ele estabeleça a sua própria cultura como ponto de partida e referência para quantificar e qualificar as outras culturas. Disso se resulta, grosso modo, que o observador etnocêntrico se vê como superior aos demais em aspectos culturais, religiosos e étnico-raciais (Brasil Escola. In: https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/ etnocentrismo.htm

19In: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-10/veja-propostas-de-bolsonaro-e-haddad-para-politica-externa; In: http://noticias.terra.com.br/brasil/bolsonaro-quotprefiro-filho-morto-em-acidente-a-um-homossexualquot,cf89cc00a90ea310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html

20In: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-10/veja-propostas-de-bolsonaro-e-haddad-para-politica-externa; https://pt.wikipedia.org/wiki/Jair_Bolsonaro.

21In: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-10/veja-propostas-de-bolsonaro-e-haddad-para-politica-externa; https://pt.wikipedia.org/wiki/Jair_Bolsonaro.

22In: https://exame.abril.com.br/brasil/bolsonaro-chama-refugiados-de-escoria-do-mundo/.

23In: https://exame.abril.com.br/brasil/piada-de-bolsonaro-sobre-sua-filha-gera-revolta-nas-redes-sociais/

24In: http://noticias.terra.com.br/brasil/politica/bolsonaro-sobre-casamento-gay-nao-querem-igualdade-e-sim-privilegios,99ff52d635aae310VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.html.

25Oliver Stuenkel é um professor e pesquisador de relações internacionais. Graduado pela Universidade de Valência, na Espanha, é mestre em Políticas Públicas pela Kennedy School of Government de Harvard University, onde foi McCloy Scholar, e doutor em Ciência Política pela Universidade de Duisburg-Essen, na Alemanha.

26Ivan Carlos Lago é sociólogo, mestre e doutor em Sociologia Política. É professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Cerro Largo (RS).

27Eliane Brum é jornalista, escritora e documentarista. Trabalhou 11 anos como repórter do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e 10 como repórter especial da Revista Época, em São Paulo. Desde 2013 tem uma coluna quinzenal, em português e espanhol, no jornal El País. Desde 2018, mantém uma coluna quinzenal no jornal El País impresso, de Madri. É também colaboradora do jornal britânico The Guardian e de outros jornais e revistas europeias. Publicou oito livros - sete de não ficção e um romance -, além de participar de coletâneas de crônicas, contos e ensaios.

28O Comandante da Força Nacional, Agnaldo de Oliveira, elogia policiais militares amotinados no Ceará: 'Vocês são gigantes e corajosos'. In: https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2020/03/02/comandante-da-forca-nacional-elogia-policiais-militares-amotinados-no-ceara-voces-sao-gigantes-e-corajosos.ghtml

29O presidente disse que as Forças Armadas estão com ele - tem 22 militares no governo, quatro dentro do palácio”. COURI, Norma. “A nau dos insensatos”. Carta Maior, 13/05/2020. In: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia-e-Redes-Sociais/A-nau-dos-insensatos/12/47483. “Estima-se que sejam em torno de 2,5 mil os militares que ocupam cargos de confiança na esfera federal. Estão no filé-mignon da administração pública. É o que se chamava na época do PT de aparelhamento do Estado” (BARROS; SILVA, 2020).

30Confira a entrevista de BARROS E SILVA (2019).

31Confira o artigo de IOTTI VECCHIATTI (2020).

Recebido: 11 de Julho de 2020; Aceito: 28 de Agosto de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons