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Revista Eletrônica de Educação

versión impresa ISSN 1982-7199

Rev. Elet. Educ. vol.14  São Carlos ene./dic 2020  Epub 09-Oct-2020

https://doi.org/10.14244/198271994261 

Dossiê Formação e inserção profissional de professores iniciantes: conceitos e práticas

Comunidades de Aprendizagem e práticas colaborativas nos processos de inserção profissional

Laurizete Ferragut PassosI  , discussão dos conceitos teóricos, contribuição para a concepção e análise, interpretação dos dados
http://orcid.org/0000-0001-7702-0825

Maria de Fátima Ramos de AndradeII  III  , contribuição para a concepção e análise, interpretação dos dados
http://orcid.org/0000-0003-4945-8752

Ana Silvia Moço AparicioIV  , contribuição para a concepção e análise, discussão dos resultados
http://orcid.org/0000-0001-6725-5372

Elana Cristiana dos Santos CostaV  , contribuição para a concepção e análise, revisão final
http://orcid.org/0000-0001-9794-1971

IPontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP , São Paulo-SP , Brasil- Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Coordenadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Formação de Formadores e Professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação. E-mail: laurizetefer@gmail.com

IIUniversidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo-SP , Brasil- Professora do Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura do Mackenzie e do Curso de Pedagogia e do Mestrado Profissional em Educação na Universidade Municipal de São Caetano do Sul. E-mail: mfrda@uol.com.br

IIIUniversidade Municipal de São Caetano do Sul, São Paulo-SP, Brasil - Professora do Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura do Mackenzie e do Curso de Pedagogia e do Mestrado Profissional em Educação na Universidade Municipal de São Caetano do Sul. E-mail: mfrda@uol.com.br

IVUniversidade Municipal de São Caetano do Sul - Professora do Curso de Pedagogia e do Mestrado Profissional em Educação na Universidade Municipal de São Caetano do Sul. E-mail: anaparicio@uol.com.br

VFundação Municipal de Educação de Niterói, Rio de Janeiro-RJ, Brasil - Professora da Educação Básica na Rede Municipal de Educação de Niterói. E-mail: profelana@hotmail.com


Resumo

O trabalho colaborativo se apresenta como resposta ao individualismo marcado historicamente na cultura das instituições escolares. O artigo analisa os modos de colaboração que constituem as comunidades de aprendizagem profissional, suas relações com a cultura da escola e com o processo de inserção de professores iniciantes. As formas de interação entre docentes nos locais de trabalho e descritas como colaboração nem sempre expressam metas, ações comuns e decisões mais amplas que envolvem a melhoria das práticas, dos conhecimentos e das concepções e que resultem na qualidade da docência e da gestão. A instituição escolar precisa se posicionar em relação a essas decisões e criar condições para que novas formas de colaboração beneficiem o trabalho pedagógico do professor. As características e dimensões dos grupos colaborativos constituídos como comunidades de aprendizagem são exploradas a partir de critérios apresentados pela literatura na perspectiva de assegurar a aprendizagem e o desenvolvimento profissional dos professores em inserção profissional. A análise de uma experiência pedagógica de aprendizagem colaborativa no âmbito da pesquisa de professores e da relação universidade-escola é apresentada como potencializadora da reflexão, do questionamento de crenças e valores, assim como da problematização das escolhas didáticas que orientarão a prática de professores na sala de aula.

Palavras-chave: Comunidades de aprendizagem; Grupos colaborativos; Cultura da escola; Inserção profissional.

Abstract

Collaborative work presents itself as a response to individualism, historically marked in the culture of school institutions. The paper analyzes the modes of collaboration that constitute the professional learning communities, their relations with the school culture and with the process of novice teacher’s insertion. The forms of interaction among teachers in the workplace described as collaborative do not always express goals, common actions and broader decisions that involve the improvement of practices, knowledge and concepts that result in the quality of teaching and management. The school institution needs to take a stand in relation to these decisions and create conditions so that new forms of collaboration can benefit the teacher pedagogical work. The characteristics and dimensions of collaborative groups constituted as learning communities are explored based on criteria presented in literature, in the perspective of ensuring teacher’s learning and professional development. The analysis of a collaborative learning pedagogical experience in the scope of teacher research and the university-school relationship is presented as an enhancer for reflection, for questioning beliefs and values, as well as for problematizing the didactic choices that will guide teachers practice in the classroom.

Keywords: Learning communities; Collaborative groups; School culture; Professional insertion.

Introdução

Num momento em que a comunidade mundial experimenta pela primeira vez um isolamento forçado, sentimentos de solidariedade e aprendizagens para lidar com uma situação nova são compartilhados1 e o reconhecimento da responsabilidade individual e coletiva expressa a busca e o valor da comunidade na vida das pessoas. É no contexto desse cenário que as reflexões aqui propostas reforçam a importância da escola na promoção de mecanismos para que o coletivo seja construído e se constitua na base do trabalho dos profissionais que nela atuam e não num mero slogan das determinações oficiais que se mostram, muitas vezes, como mobilizadoras de práticas instrumentais. É no coletivo que as interações acontecem e nele que os processos de aprendizagem profissional podem ser potencializados e ter efeitos sobre o desenvolvimento profissional dos professores, gestores e demais profissionais que atuam na instituição escolar, assim como nos sistemas de ensino.

A literatura tem mostrado que as formas de interação entre docentes nos locais de trabalho e descritas como colaboração nem sempre expressam metas, ações comuns e decisões mais amplas que envolvem a melhoria das práticas, dos conhecimentos e das concepções e que resultem na qualidade da docência e da gestão. Essas decisões posicionam a instituição escolar no processo de desenvolvimento profissional docente (CALVO, 2014) e, ao considerar o papel do coletivo e da colaboração, alarga-se o conceito na perspectiva do desenvolvimento profissional coletivo e institucional, conforme indica Imbernón (2009). Nesse sentido, o conceito de colaboração abarca não só os processos que melhoram os conhecimentos profissionais, as habilidades e as atitudes, mas também a situação de trabalho de todo o pessoal que atua nas escolas.

Por esse prisma, os graus e modos de colaboração profissional no interior das escolas demarcam a sua cultura e as formas como os docentes e gestores nela se integram ou a ela resistem (PÉREZ-GÓMES, 2001; THURLER, 2001). A defesa de uma cultura docente que contempla diferentes modos de colaboração e que remete para uma visão conjunta de melhoria das práticas e das aprendizagens pode encontrar nas comunidades de aprendizagem (FLORES, 2012) ou nas comunidades profissionais de ensino (LIMA, 2012) possibilidades formativas de análise das experiências profissionais conquistadas pelo estudo, pela troca e pelos conhecimentos partilhados e resultantes de questionamentos reflexivos e críticos.

O artigo analisa os modos de colaboração que constituem essas comunidades, suas relações com a cultura da escola e com o processo de inserção de professores. Na perspectiva de clarificar o conceito da colaboração com base na sua dimensão interativa, o texto está organizado em três partes. Na primeira são trabalhados os conceitos de colaboração, cultura colaborativa e grupos colaborativos e suas relações com o desenvolvimento profissional do professor; na segunda são abordadas as características e critérios das comunidades de aprendizagem dos professores e sua relação com o ingresso profissional e na última sessão é analisada uma experiência de aprendizagem colaborativa no âmbito da pesquisa de professores e da relação universidade-escola.

2. Desenvolvimento

Contextos e cultura colaborativa

Os estudos que abordam o conceito da colaboração ganharam força aqui no Brasil em meados dos anos 1990 quando os educadores foram desafiados por novas circunstâncias na sala de aula, seja pela entrada de um contingente de alunos até então excluídos pelo sistema e que trouxe para mais perto a diversidade sociocultural, seja pelo avanço da tecnologia que imprimiu novas formas de relações pelas mídias sociais. A formação dos professores, marcada e reconhecida até então pela racionalidade técnica e instrumental, se mostra inadequada para um momento caracterizado por situações novas, mutáveis e imprevisíveis e que demandou pensar a formação alicerçada nos “contextos de trabalho, nas situações específicas da prática docente, nos saberes que vão sendo construídos com base na reflexão crítica sobre as experiências vividas e nos embates profissionais que ocorrem no local de trabalho.” (PASSOS; ANDRÉ, 2016, p.12). Para lidar com essas situações do contexto não basta ao professor ser detentor e difusor de conhecimentos especializados para serem transmitidos aos alunos, mas ser reconhecido como “...um dos principais parceiros de um saber coletivo, a quem compete organizar e ajudar a construir, e como um facilitador de situações de aprendizagem que permitam aos estudantes participarem nessa construção.” (MORGADO, 2005, p. 69).

Essa parceria que se dá mediada não por uma organização formal, mas pelas relações que se estabelecem, põe em destaque a docência como uma atividade interativa e relacional. A constituição do sujeito, seu aprendizado e processos de pensamento são mediados pelas relações consigo e com os outros (VYGOTSKY,1998 e se dá pela comunicação e linguagem. Assim, o diálogo, as trocas afetivas e cognitivas expressam o caráter interativo da docência e são construtores importantes das aprendizagens dos professores. Se os professores também aprendem pelo diálogo, vendo e ouvindo o que os outros, alunos e colegas, fazem ou dizem e enriquecendo seu pensamento e seus conhecimentos para tomadas de decisões, é preciso questionar se os contextos escolares têm sido facilitadores de situações que promovam o trabalho coletivo e colaborativo.

As culturas escolares ou culturas colaborativas como chamam Fullan e Hargreaves (2001) podem beneficiar fortemente as discussões das práticas dos professores que, muitas vezes, são carregadas de tensões e incertezas diante da realidade complexa das escolas hoje. A concepção de cultura definida por Trice e Beyer (1993, p. 2) como “fenômenos coletivos que incorporam as respostas das pessoas às incertezas e ao caos que são inevitáveis na experiência humana” traz um reforço para a análise das culturas colaborativas do ponto de vista das interações e da interdependência e que englobam o pensar e o fazer coletivos e compromissos profissionais mais fortes. Nessa direção, Lima reforça que não apenas valores, crenças, concepções devam são considerados nas culturas dos professores, mas também comportamentos e práticas:

“...fazer e agir é culturalmente tão importante como sentir ou pensar e que as culturas dos professores devem ser encaradas também como modos de ação e padrões de interação consistentes e relativamente regulares que os professores interiorizam, produzem e reproduzem durante (e em resultados das) em suas experiências de trabalho.” (LIMA, 2002, p. 20)

Desse modo, escolas que buscam se organizar a partir de uma perspectiva colaborativa devem considerar dois aspectos do processo educativo que se implicam mutuamente: o debate intelectual que se abre para o diverso e para os não consensos e o clima afetivo de confiança, o que permite a abertura para experimentar, mesmo com incertezas, novas formas de lidar com as situações escolares e sem medo do risco. A reflexão na cultura de colaboração não é somente um requisito, mas uma condição para que os dois aspectos, intelectual e afetivo, sejam a base para qualquer processo de mudança que se queira realizar (PÉREZ-GÓMES, 2001).

As escolas são espaços em que situações de incerteza e risco se apresentam com muita frequência pois decisões são tomadas a todo momento pelos professores, algumas individualmente e baseadas na intuição, outras coletivamente e decorrentes de discussões e reflexões. Mas nenhuma decisão é tomada no vácuo, como descreve Munthe (2007), ela é influenciada pela situação, pela experiência, pelo histórico de aprendizagem e cultura do professor e, pode-se acrescentar, pela cultura da instituição. Os estudos dessa pesquisadora norueguesa têm mostrado que no trabalho dos professores, a incerteza não é necessariamente negativa, ela pode se apresentar como uma pré-condição de aprendizagem docente. Se os riscos e resultados de uma decisão forem partilhados, contribuem para a tomada de consciência sobre eles e colocam o professor numa posição fortalecida para questionar, fazer novas tentativas e inovar.

Decisões como experimentar uma nova metodologia, organizar a sala de aula de forma diferente, adotar procedimentos variados de avaliação, dentre outras, envolvem riscos e possibilidades de ganhos e perdas. Quando tomadas de forma isolada, não discutidas e apoiadas ou confrontadas pelo olhar dos colegas, as decisões individuais podem apresentar resultados positivos, mas, de forma geral, as incertezas para tomá-las são maiores e podem trazer inseguranças. Os resultados da pesquisa de Rosenholtz (1989) descrito por Thurler (2001) mostrou que nas escolas muito defensivas em relação à mudança e ao desenvolvimento profissional dos professores, o isolamento e a incerteza andam juntos e pouco favorecem as suas aprendizagens.

O isolamento, que se apresenta muitas vezes como forma de esconder as incertezas da ação pedagógica, pode ser minimizado pela criação de uma cultura de participação coletiva que apoie o professor na partilha dessas incertezas e decisões, o distancie do isolamento e provoque avanços no seu fazer profissional. Os grupos colaborativos de professores com gestores e outros profissionais da escola se mostram como dispositivos importantes para esse apoio, se organizados a partir da participação voluntária, partilha de objetivos e de responsabilidades para tomadas de decisões-chave. Isso significa que neles, os professores têm oportunidade de potencializar a sua capacidade reflexiva sobre o que fazem na sala de aula. A prática docente é, então, o eixo que conduz a reflexão e quanto mais o grupo se pautar pelo respeito ao outro, mais os pontos de vista poderão ser discutidos e clarificados na direção de gerar novas aprendizagens do professor e compromissos coletivos com o aprendizado dos alunos.

A colaboração entre os profissionais no contexto dos grupos não se justifica por ela própria, passa a ser um meio para se atingir um fim. Esclarecendo que o trabalho colaborativo não é meramente um encontro entre pessoas com tarefas coletivas, Roldão (2007) aponta que suas potencialidades se dão no plano estratégico e sua operacionalização no plano técnico. O trabalho colaborativo como promotor de aprendizagens e de desenvolvimento profissional dos professores deve estruturar-se, segundo a pesquisadora:

[...] essencialmente como um processo de trabalho articulado e pensado em conjunto, que permite alcançar melhor os resultados visados, com base no enriquecimento trazido pela interação dinâmica de vários saberes específicos e de vários processos cognitivos de colaboração”. (ROLDÃO, 2007, p. 27)

Nessa abordagem apresentada, a dimensão do tempo precisa ser considerada juntamente com duas outras que caracterizam os grupos colaborativos e já aqui comentadas, o vínculo pessoal e o profissional. Quando os professores trabalham juntos e as problemáticas profissionais se constituem no núcleo dos debates e preocupações, necessitam de um tempo considerável para o reconhecimento dos seus saberes, dos saberes dos seus colegas, e, especialmente, um tempo para aprender a tornar públicas suas práticas e agir a partir de sua análise coletiva. A longevidade do grupo se mostra, então, como um elemento importante no processo de abertura do professor para narrar suas ações e práticas, bem como para aprender a se aproximar da literatura que ajuda a compreendê-la e criar, assim, novos vínculos com o conhecimento. Desse modo, para que seja vivenciado um processo formativo a partir de uma colaboração efetiva e bem sucedida, o tempo mais longo dessa vivência do grupo pode favorecer o diálogo partilhado num contraponto ao trabalho partilhado (MIZUKAMI, 2003) já que conhecimentos podem ser gerados de forma progressiva a partir da compreensão e negociação de significados das experiências pessoais e profissionais.

A colaboração entendida no contexto dos grupos colaborativos como o modo de assegurar a aprendizagem e o desenvolvimento profissional dos professores, bem como a dos alunos, pode representar um dispositivo de apoio fundamental para todos professores, mas é decisivo para o professor iniciante, que pode, com a ajuda do grupo, experimentar um processo de socialização profissional intensificado, não só pelo conhecimento do contexto em que irá atuar, como pelas aprendizagens dos fazeres da docência, cruciais nesse período inicial da profissão. A definição e redefinição da identidade dos professores em início de carreira também são influenciadas pelos grupos colaborativos com características formativas, o que traz novamente para discussão o papel da cultura da escola nos modos conceber e priorizar a organização de espaços formativos mais consistentes e que se mostrem como comunidades de aprendizagem profissional.

Várias pesquisas (GAMA; FIORENTINI, 2009; MONTALVÃO, 2008; LOSANO, 2018) têm demonstrado que o processo de constituição profissional é potencializado quando o professor iniciante participa de grupos colaborativos e tem neles interlocutores com os quais compartilha suas primeiras experiências profissionais, dúvidas, anseios.

LOSANO (2018) se reporta ao movimento reflexivo que experimenta o professor iniciante ao participar de grupos colaborativos e que reúne passado, presente e futuro:

Eles conseguem refletir sobre as primeiras experiências como docentes que estão vivenciando no presente, compartilhando dúvidas e dilemas e problematizando suas próprias práticas e as práticas estabelecidas nas escolas. Ao mesmo tempo, conseguem recuperar e ressignificar parte das experiências vividas no passado, particularmente, durante a sua formação inicial. Finalmente, a participação no grupo possibilita que os professores iniciantes se projetem no futuro, imaginando o tipo de práticas docentes que gostariam de desenvolver na sua sala de aula, se sentindo acompanhados e apoiados no propósito de tentar alcançá-las. (LOSANO, 2018, p. 460)

Comunidades de aprendizagem na escola: um apoio para a inserção profissional?

O questionamento acima decorre das discussões postas pela literatura sobre o que caracteriza uma comunidade de aprendizagem profissional. Ferreira e Flores, (2012, p. 201) ao destacarem os diversos termos utilizados na literatura e nos textos da legislação educacional como comunidades de aprendizagem profissional ou de aprendizagem docente, comunidades de prática, comunidades investigativas, comunidades profissionais de ensino, dentre outras, advertem que, independentemente do qualificativo utilizado, podem ser transformar em lugares-comuns ou slogans, se os sentidos, contextos e práticas não forem problematizados ou submetidos ao questionamento. Alerta, também para o risco de se conferir ao termo “...uma bondade natural” e que pode esconder, muitas vezes, uma perspectiva instrumental.

Cochran Smith tem seus estudos voltados para a formação dos professores e suas aprendizagens em comunidades investigativas. Em entrevista concedida para Fiorentini e Crecci (2016), menciona que os diferentes nomes dados às comunidades de professores dizem muito pouco sobre a forma como operam e ressalta que o que importa é aquilo que acontece dentro delas, em especial as perguntas que os participantes fazem e tentam responder. A pesquisadora reconhece que as comunidades de aprendizagem docente, pela sua configuração intelectual e organizacional, dão suporte ao crescimento profissional dos professores pois nelas são criadas oportunidades para que estudem, pensem, falem do seu trabalho e dos seus contextos.

Porém, os discursos sobre o conceito de comunidades profissionais revelam fragilidades que são sinalizadas por Lima (2012, p. 174) ao indicar que “...se aplicam indiscriminadamente a um conjunto muito diverso de fenômenos”. Para ele, a literatura aborda o que as comunidades deveriam ser e/ou a importância de adotá-las e muito pouco sobre o que são, na prática”. Com essa preocupação e defendendo que a clareza de critérios e explicitação dos conceitos distinguem as comunidades que se organizam pelo diálogo profissional e avanço do conhecimento, o pesquisador assinala que o conhecimento desses critérios se constitui no ponto de partida de uma comunidade de professores.

A explicitação dos critérios põe em destaque situações que favorecem a inserção profissional do professor iniciante que vive um período de adaptação e de aquisição de conhecimentos para saber ensinar. Chama a atenção a qualificação em comum repetida em todos os critérios, indicando a sua perspectiva coletiva e colaborativa.

O primeiro deles é o estar em comum, que pressupõe a participação em encontros frequentes do grupo de profissionais da escola e com formas de comunicação que não privilegiem questões ou situações de um ou dois colegas. Essa participação vai além de estar junto, é resultado da construção de uma interação intensa e abrangente que envolve compreender as problemáticas comuns e juntos buscar conhecer as explicações das diversas áreas de estudo que ajudam a compreender as questões específicas do ensino.

O segundo critério, fazer em comum, ganha destaque no caso do professor que está iniciando na profissão pois é na comunidade de pares que pode se valer da ajuda dos colegas experientes para o desenvolvimento de práticas conjuntas. Períodos de ansiedade marcam, muitas vezes, os anos iniciais da docência, já que os iniciantes frequentemente são colocados para atuar em situações difíceis sem nenhuma orientação (MARCELO GARCIA, 1999). O acompanhamento e o apoio se mostram decisivos para a formação do iniciante e para sua permanência na carreira e, quando organizados de forma mais sistemática, com duração estipulada e estruturado de forma institucional (WONG, 2004), se instala um processo de indução durante essa fase de ingresso. Nela, iniciantes e experientes podem vivenciar juntos um processo de aprender a ensinar mobilizados por ações concretas desenvolvidas de forma compartilhada. O fazer em comum abrange

[...] desenvolvimento de práticas conjuntas como concepção e produção de materiais pedagógicos; a definição de planos de ação; a produção conjunta de documentos estratégicos; a troca de materiais; a realização de avaliações regulares do trabalho realizado, etc. (LIMA, 2012, p. 180).

Outros dois critérios apontados pelo autor serão tratados de forma conjunta dadas as suas relações - o ser em comum e o sentir em comum. Esses critérios caracterizam a comunidade de professores naquilo que é vital para os que estão iniciando na carreira: o sentimento de pertença e a constituição da identidade profissional. Sentir-se parte de um todo com o qual se identificam e partilhar e expandir a cultura colaborativa experimentada e produzida pelo grupo e com foco na aprendizagem, do professor e do aluno, leva à construção da autonomia, aqui entendida na perspectiva freireana de tomada de decisões com liberdade de ação (ser para si) e responsabilidade ética (ser para o outro).

Como já foi assinalado, a questão do tempo é também indicada como critério para Lima (2012) e explicitada como perdurar em comum. Ele enfatiza que a duração e continuidade da comunidade, mesmo com a entrada e saída de professores, consolida uma identidade coletiva.

É no diálogo com esses critérios que o autor apresenta situações que destacam o que uma comunidade profissional não é. Uma comunidade autodesignada, ou seja, não basta um grupo de professores se reunir e considerar que se formou uma comunidade; uma comunidade declarada oficial ou administrativamente, ou seja, o registro do termo nos documentos oficiais e, pode-se acrescentar, nos documentos curriculares, não garantem sua existência com os objetivos já aqui apresentados e, por último, uma comunidade de afetos, quando os professores formam uma comunidade que se apoia quase que exclusivamente nas questões pessoais e pouco voltadas para as profissionais.

Importante salientar que a demarcação de critérios para a compreensão do que é e não é uma comunidade de professores não pode ser encarada de forma fechada e mecânica. A dimensão comunitária da atividade docente (VAILLANT, 2019) é que precisa ser garantida, pois se constitui no aspecto central dessas comunidades em qualquer das suas formas: comunidade de aprendizagem profissional, comunidade de investigação ou comunidade de prática docente. Mas a garantia dessa dimensão depende das condições institucionais e do envolvimento, autonomia e liderança da equipe gestora em seu papel de promotora do desenvolvimento profissional dos professores. Diretores de escola, coordenadores pedagógicos ou educacionais são atores importantes no desenvolvimento de ações voltadas para as aprendizagens profissionais colaborativas no cotidiano das escolas.

Essas ações funcionam como estratégias de desenvolvimento profissional para os professores iniciantes ao focar como essenciais as atividades de formação no contexto de trabalho, estudo em grupo, atividades de pesquisa e análise de práticas pedagógicas, co-observação das aulas e compartilhamento com os colegas, estudos de casos de aula, dentre outras. São práticas colaborativas que ocorrem no interior da escola e que, segundo Calvo (2014, p.128) se mostram eficazes pois

[...] tem a ver com o que fazem os docentes e gestores quando trabalham juntos para desenvolver práticas efetivas de aprendizagem, analisam o que acontece realmente nas aulas prestando atenção aos elementos que constituem boas práticas e tendo como meta a aprendizagem dos alunos

Aprendizagens colaborativas no contexto das interações universidade-escola: em foco a pesquisa de professor

Nas interações universidade-escola, as aprendizagens colaborativas podem ser destacadas no âmbito da pesquisa de professores, considerando que, ao pesquisar, o professor tem mais condições de compreender a sua prática, de buscar caminhos para a superação de suas dificuldades e de assumir o seu ofício com mais autonomia. Quando a pesquisa desse professor envolve um professor colaborador, o trabalho colaborativo potencializa a reflexão, o questionamento de crenças e valores, a problematização de escolhas, enfim, uma série de ações que promovem o desenvolvimento e a aprendizagem da docência.

Dessa forma, as práticas colaborativas são constituídas nesse percurso em que os participantes socializam conhecimentos, opiniões e experiências, negociam sentidos, decidem e agem a partir de consenso nem sempre sem conflitos. E quando o professor pesquisador e o professor colaborador atuam na mesma escola ou rede, as relações da parceira podem ser ainda mais conflituosas, pois, na situação da pesquisa, eles não têm necessariamente o mesmo papel. Com isso, as negociações funcionam como ferramentas para a formação de ambos que, ao repensarem os papéis do professor, dos alunos, do material didático, transformam-se. (CRISTÓVÃO, 2009).

O exemplo aqui mencionado, de um trabalho colaborativo constituído entre professor pesquisador e professor colaborador, ocorreu no âmbito de um Programa de Mestrado Profissional em Educação (MPE), em uma pesquisa que objetivou investigar o processo de construção colaborativa de sequência didática no ensino da língua materna, no 1º. ano do Ensino Fundamental, em uma escola municipal.

No contexto analisado, a sequência didática, tal como proposta por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), não se refere a um conjunto de atividades prontas, nem elaboradas previamente pelo professor, mas sim a uma sequência de atividades interligadas que vão sendo construídas etapa por etapa, com base em procedimentos contínuos e não lineares de estudo, análise e produção. Esse processo envolve a mobilização de conhecimentos sobre o objeto de ensino (a língua/linguagem em uso, os gêneros textuais); os objetivos de ensino adequados às capacidades dos alunos; os recursos didáticos; a avaliação diagnóstica e formativa; os princípios da progressão curricular; a gestão da sala de aula; entre outros.

Trata-se, portanto, de um processo bastante complexo que se constitui em uma estratégia de formação docente, tal como já apontado em trabalhos (ANDRADE; APARÍCIO, 2016) que analisam as contribuições da construção colaborativa de sequências didáticas em contextos de iniciação à docência, envolvendo o professor e o aluno da graduação na universidade e o professor da escola.

No contexto analisado, a professora experiente (Joana) constituiu a parceria com uma colega (Beatriz), professora iniciante, da mesma escola. Até o início da pesquisa, elas já trocavam experiências e práticas de alfabetização, porém nunca haviam trabalhado na produção colaborativa de atividades, nem com a sequência didática tal como proposta na pesquisa. Além disso, não tinham o costume de registrar suas práticas para discuti-las, individual ou coletivamente.

A sequência didática foi desenvolvida na sala de aula da professora Beatriz, sempre com a presença da professora Joana que acompanhou todas as aulas fazendo os registros em áudio e vídeo das interações professor-alunos e alunos-alunos. Todo o processo de construção colaborativa da sequência didática ocorreu ao longo do ano letivo de 2018, com encontros periódicos entre as duas professoras, para estudo, discussão, planejamento e desenvolvimento das atividades em sala de aula.

O processo inicial da constituição do trabalho colaborativo entre as professoras já deu indícios de que essa prática propicia situações que levam à reflexão, o que dificilmente um trabalho solitário provocaria, como no trecho transcrito a seguir, em que Beatriz compartilha com Joana seus anseios em relação ao trabalho com a sequência didática, algo novo para ela, tendo como referência as suas práticas rotineiras de trabalho com gêneros textuais.

Beatriz: Mas nós iremos trabalhar a carta por muitas aulas, será que as crianças não vão se cansar? Pois costumo trabalhar diferentes gêneros a cada aula, e no terceiro trimestre já iniciamos as reescritas de contos e de fábulas.

Joana: Mas há uma diferença entre você trabalhar com os gêneros e trabalhar com os textos, certo?

Beatriz: Como assim? Não entendi.

Joana: Quando trabalhamos apenas o texto, ou seja, a reescrita é apenas um exercício, olhamos apenas a estrutura e o sistema de escrita, mas com o trabalho com gênero, olhamos outros elementos e por isso temos que pensar em desenvolver as melhores condições de produção para a criança ter vontade de escrever, nós precisamos criar condições significativas, tendo um leitor-alvo para se tornar real, com um objetivo e cumprir com a finalidade.

Beatriz: Ah, como na escrita da carta para o autor, pois ele vai receber essa carta.

Joana: Sim, assim a criança vai perceber-se como produtor de linguagem, pois vivenciou uma situação de comunicação real e nós vamos conseguir avaliar melhor o processo de aprendizagem dos alunos.

Nessa interação, pode-se observar algumas crenças da professora iniciante Beatriz acerca do trabalho com os diferentes gêneros em sala de aula, uma orientação recorrente nos materiais oficiais para o ensino da língua. Tudo indica que a preocupação de Beatriz é a “fixação” de estruturas e formas de organização dos textos por meio da reescrita, outra prática muito recorrente nos anos iniciais. Não pretendemos aqui fazer uma crítica em relação a esse posicionamento da professora, e sim evidenciar a importância da construção compartilhada de conhecimento, que permite a troca entre os professores, avanços no processo de reflexão da prática e consequentemente a melhoria do ensino e do próprio desenvolvimento profissional docente. Vale lembrar que para o professor desenvolver a sua prática, ele também depende de que o conhecimento do conteúdo seja trabalhado a partir de investigações de ensino.

Ainda com relação ao diálogo acima, cabe ressaltar que nada garante que a professora Joana também não tenha uma preocupação semelhante à de Beatriz, pois, ambas estão preocupadas com o ensino. Contudo, ela demonstra uma adesão aos referenciais teóricos de sua pesquisa, o que é uma marca da diferença entre os papéis assumidos por cada uma no desenvolvimento do estudo. É interessante observar como essa marca vai desaparecendo ao longo do processo colaborativo na construção da sequência didática, à medida que a professora iniciante torna-se mais confiante e segura, demonstrando autonomia e autoria em suas práticas. O episódio a seguir retrata o momento em que a professora iniciante realiza a “apresentação da situação”, é a primeira etapa da sequência didática na sala de aula, quando a professora constrói com os alunos uma representação da situação de comunicação da qual irão participar, no caso a produção de uma “carta ao autor”.

Beatriz entregou para cada aluno o livro paradidático Tutuli em: que barulho é esse, papai? Juntos, realizaram a leitura compartilhada, enfatizando que o livro possui um autor. A professora também relembrou que o pai de Tutuli é o autor Marcelo Loro. E, ao terminar a leitura, iniciou-se a discussão:

Professora Beatriz: eu quando li esse livro fiquei com muitas perguntas na cabeça e eu acho bacana fazer essas perguntas para o autor. Me digam de que forma conseguimos conversar e se comunicar com o autor?

Aluna 1: um bilhete.

Aluno 2: mandar uma carta.

Professora Beatriz: que bacana, uma boa ideia, alguém aqui já viu uma carta?

Alunos: sim.

Professora Beatriz: onde você viu uma carta?

Aluno 3: correio.

Professora Beatriz: você já foi ao correio?

Aluno 4: sim, ela é fechada com uma coisa escrita dentro; precisa pôr o nome; precisa de pôr a data e uma coisa escrita para saber, eu já escrevi uma carta.

Aluno 5: eu também escrevi.

Professora Beatriz: e nós poderíamos escrever uma carta para o autor, ele iria gostar de saber que nós estamos lendo a história dele, mas o que podemos escrever nessa carta?

Aluna 1: podemos falar assim: oi, Marcelo Loro.

Professora Beatriz: e quais perguntas poderiam ser feitas?

Aluno 6: lemos o seu livro e a gente adorou.

Aluna 7: como tirar o medo da nossa cabeça?

Aluno 8: foi muito legal a sua história.

Aluno 9: quando você vai lançar os próximos livros?

Professora Beatriz: quem tem mais ideias para perguntar (alunos levantam os braços com muito entusiasmo).

Esse é um momento muito importante no desenvolvimento da sequência didática, pois é quando o professor iniciante coloca em prática o que foi projetado juntamente com o professor experiente. Como se pode observar no episódio, a professora consegue estabelecer a interação e cooperação com os alunos, dando-lhes a oportunidade de pensar na situação comunicativa que vão estabelecer com o autor do livro que leram. O que comumente não é realizado quando a sequência didática é pronta.

No caso da professora Beatriz, as ações que desenvolve em sala de aula foram projetadas e executadas em colaboração. Esse “estar junto”, no dizer de Lima (2012), envolve entender os problemas comuns e buscar possibilidades que ajudam a compreender as questões específicas do ensino. Logo, o que acontece, assume as características de um espaço comum de aprendizagem, ou seja, de uma comunidade de aprendizagem.

O trecho a seguir traz um diálogo das professoras Joana e Beatriz.

Joana: Os alunos participaram bastante na apresentação da situação. Você viu que não foi preciso antecipar e apresentar que iriam escrever uma carta? A forma como você foi conduzindo levou os alunos a darem a sugestão da escrita de uma carta. O que você achou desse processo?

Beatriz: fiquei maravilhada...eu não tinha tanta certeza de que isso iria acontecer. Agora percebi na prática como envolver os alunos e permitir que eles falem, e não entregar a proposta pronta, como sempre fazemos.

O trecho acima explicita como uma ação partilhada faz com que determinados conhecimentos que os professores constroem como “verdades”, aos poucos, sejam repensados. Nesse aspecto, ressaltamos o que Roldão (2007) afirma com relação ao trabalho colaborativo como estratégia que amplia os processos cognitivos dos envolvidos no processo de constituição das ações partilhadas.

Outra etapa marcante do trabalho colaborativo ocorreu na elaboração dos módulos, isto é, das atividades construídas a partir das dificuldades que as professoras identificaram na análise das produções dos alunos. O diálogo a seguir ilustra uma situação em que a professora Beatriz sugere uma atividade e justifica sua pertinência.

Joana: Eu estou achando que agora você está mais segura e confiante com o nosso trabalho...

Beatriz: Na minha opinião, eles já fizeram a primeira produção da carta e eu já tenho noção do que eles sabem... Eu acho bacana apresentar para eles uma outra carta, mas sem o compromisso de escrever.

Joana: Vamos fazer a leitura de diferentes cartas?

Beatriz: Ou apresentamos uma carta de livro, uma carta interessante, e a partir dessa carta como já sabem o que é um bilhete, ir discutindo com eles as características da carta.

Joana: É uma ideia muito boa, assim ampliamos o repertório de conhecimento dos alunos.

Beatriz: Para que as crianças percebam as diferenças com essa comparativa, busquem informações e para que todos possam ver.

Joana: Sim, assim todos os alunos terão a oportunidade de conhecer e vivenciar como é uma escrita de uma carta.

Beatriz: Como já temos os conhecimentos prévios dos alunos, na roda de conversa podemos ampliar e discutir, pois ao oferecer a carta vamos oferecer melhores condições para que desenvolvam as próximas.

Joana: Correto, vamos melhorar as fontes de busca de informação. Você conhece aquele livro O carteiro chegou, possui uma escrita de carta interessante, podemos usá-lo.

Beatriz: Verdade, nesse livro também tem a escrita de um bilhete; podemos mostrar e fazer essa comparativa.

Importante destacar, na análise da professora experiente, ao notar que, ao longo dos encontros com a professora iniciante, nessa etapa, observava que esta sentia-se mais segura e confiante, percebendo-se como atora e autora no processo colaborativo, assumindo a sua voz no planejamento dos módulos, adequando-os aos conhecimentos de seus alunos.

De fato, é um desafio pensar, colaborativamente, nas ações a serem realizadas em sala de aula. Mesmo quando educadores desenvolvem ideias bem estruturadas sobre a prática docente, colocá-las em ação é desafiador. As reações dos alunos, suas dúvidas, como estão interpretando o que foi proposto, pressupõe, muitas vezes, um agir que não foi planejado. Logo, quando o professor assume uma postura investigativa tem mais elementos para entender a complexidade do ensino.

Cabe destacar também o reflexo desse trabalho nas práticas dos alunos em sala de aula. No trecho abaixo, os alunos trabalham colaborativamente com empenho e dedicação, no início da escrita da carta ao autor, na etapa da “produção final”, ou seja, após as atividades dos módulos da sequência didática.

Aluno: O que vamos escrever?

Aluna: O nome da cidade e o dia de hoje.

Aluno: Que dia é hoje?

Aluna:13 de novembro.

Aluno: Bro, bro.

Aluna: É B R O.

Aluna: Agora pula uma linha e escreve: “Olá, Marcelo Loro”.

Aluno: Mar-ce -lo Lo-ro (os dois se ajudam).

Aluna: Pula mais uma linha.

Aluno: E agora?

Aluna: Vamos falar “muito obrigado”.

Aluno: Mas eu queria que ele fizesse mais livros.

Aluna: Então, escreve: “você pode fazer mais livros para a gente?” e “muito obrigada” (o aluno aceita prontamente a ideia da aluna e iniciam e escrita).

Aluno: Mas obrigada é por que você é menina, vou escrever embaixo obrigado por fazer você fazer esse livro.

Aluna: Tá bom (os dois se ajudam na escrita).

Aluna: Pula a linha e faz a despedida, escreve “tchau”.

Aluno: Como escreve “tchau”?

Aluna: A professora escreveu na lousa TCHAU para ajudar a (nome da aluna): é T-C-H-A-U.

Aluno: E agora o nosso nome; eu assino o meu e você assina o seu.

Aluna: Tá.

Como podemos observar, os alunos respeitam as ideias um do outro e vão negociando, a partir do que aprenderam, como apresentar os elementos iniciais da carta. A concepção de formação implícita na construção de sequências didáticas é a mesma que está presente no contexto da sala de aula, ou seja, o trabalho projetado pelos professores parceiros, quando executado, pressupõe que seja compartilhado numa perspectiva investigativa.

Cabe destacar, por fim, o relato da professora Beatriz ao término da sequência didática. Foi um processo longo, não invasivo, respeitoso em que ambas as professoras, numa perspectiva colaborativa, constituíram uma comunidade de aprendizagem, desenvolveram-se profissionalmente. Uma professora experiente e uma iniciante vivenciaram juntas processos de ensino e aprendizagem. Há evidências de um fazer comum, no sentido proposto por LIMA (2012).

Joana: como terminamos esse processo de construção da sequência didática, gostaria que você relatasse o que sentiu, o que achou interessante e o que percebeu durante as suas aulas com a utilização do dispositivo sequência didática.

Beatriz: eu vou te falar o que eu senti. É muito confortável você receber um projeto pronto. É muito confortável! Você recebe o projeto pronto todo ano, é aquilo, você já tem as atividades prontas, só que a sala de aula que você recebe não é a mesma. As crianças pensam diferente, eles vêm com a cabeça mil anos luz à tua frente e, se você deixar, eles te enrolam. Outra coisa que eu achei significativo é que no começo a gente fica assustada, mas depois a gente começa a ficar empolgada, porque comecei a ver que o interesse vai aparecendo e percebi o desenvolvimento das crianças. Realmente saem daquela história de estar sempre recebendo e com a sequência didática elas começam a falar, começam a questionar: "como eu escrevo isso, como eu faço aquilo? Professora, eu queria escrever tal palavra…". Às vezes, uma palavra totalmente diferente. Elas querem se colocar dentro do texto que estão fazendo. Então, percebi que os pequenos detalhes, como uma régua, podem empoderar as crianças. A minha fala com os meus alunos depois desse projeto mudou muito: eu digo para eles virem na lousa, quem vai vir escrever, também estou pensando mais nas minhas consignas. Agora dou mais liberdade para eles tentarem executar as atividades e depois vamos para a lousa para corrigir e assim vou escolhendo e principalmente aquelas crianças que dentro daquela situação possuem alguma dificuldade e assim consigo mediar. Os alunos vão ganhando mais confiança, segurança e não ter medo de escrever e se colocar. Com a sequência didática, tive a sensação que dá e que estou conseguindo fazer com que realmente se apaixonem por ler e escrever. É diferente. Percebi a vontade para escrever a partir do contexto em que a criança tem interesse. Também uma coisa que eu achei interessante é que percebi avanços na questão da oralidade, pois nós, professores, temos a mania de achar que o aluno tem que ficar em silêncio na sala de aula, mas se o aluno não fala, como ele vai escrever? Se ele não coloca as ideias dele para fora, como ele vai escrever? Se ele não interage e expõe a ideia, como vai começar a argumentar, a se colocar? O aluno precisa falar. Com esse projeto, os alunos se sentiram desafiados a resolver uma situação e a pensar como eu escolho as palavras que eu quero colocar no texto. Aprendi que temos que proporcionar momentos de discussão e de diálogo. Uma vez que permitimos que todos falem no momento da aula, todos começaram a entender que tem o direito de falar, e percebi que agora, quando eu coloco a turma para trabalhar em duplas e grupos, começaram a questionar e se colocar mais. Isso é bom para a vida.

Com o depoimento final, pode-se concluir que: tanto a professora experiente quanto a iniciante, ao elaborarem práticas a serem executadas em sala de aula, enfrentaram problemas de ensino; o trabalho colaborativo propiciado pela construção da sequência didática foi construído a partir de um conhecimento que veio da prática observada e compreendida; a comunidade de aprendizagem, pautada no trabalho colaborativo envolvendo a professora experiente e a professora iniciante, propiciou condições para um pensar sistematizado, reflexivo e investigativo; o professor iniciante vai, aos poucos, percebendo que é um aprendiz ao longo da vida, numa perspectiva compartilhada e profissional.

Com isso, a comunidade de aprendizagem, constituída no trabalho colaborativo, no âmbito da pesquisa de professor, tende a se ampliar depois, na escola, para o grupo de professores, possibilitando, como defende Imbernón (2009), que todos os educadores se impliquem no processo de aperfeiçoamento da prática pedagógica para que sejam atingidos os objetivos de aprendizagem dos alunos.

Considerações finais

A proposta desse artigo foi motivada por dois fatores que mobilizaram sua construção: a participação das autoras numa pesquisa interinstitucional que trata do objeto aqui relatado e a constatação da produção restrita da temática da colaboração e da pesquisa colaborativa relacionada ao início da profissão docente. Dos 161 artigos brasileiros encontrados na Base SciELO e de 54 trabalhos da BDTD, entre teses e dissertações, apenas 01 trabalho em cada banco de dados faz referência ao trabalho colaborativo ou à pesquisa colaborativa conectados ao início da profissão docente e nenhum ao processo da indução profissional nesse período inicial da carreira.

Essa revisão, embora limitada a duas bibliotecas eletrônicas, trouxe questionamentos em relação à preocupação das escolas e das redes de ensino com a entrada dos novos professores ou ao modo como vêm se organizando para acolher e acompanhar esses iniciantes.

No artigo, buscou-se argumentar que as diversas formas de trabalho coletivo intencional e com foco na aprendizagem dos professores e dos alunos demandam revisão das condições das escolas e do papel dos gestores na promoção e sustentação de práticas baseadas na colaboração, reflexão e no apoio à aprendizagem profissional. Esse apoio institucional é decisivo para o professor iniciante que ainda está aprendendo a ensinar e precisa assimilar e se adaptar a uma cultura de ensino já estabelecida. As responsabilidades que assume são as mesmas que o professor experiente e as escolas esperam que enfrente e resolva os problemas da mesma forma que este. As tensões e inseguranças podem ser reduzidas quando participa de espaços colaborativos que tenham uma finalidade formativa voltada para a aquisição e trocas do conhecimento profissional e desenvolvimento de competências para atuar na profissão.

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1 Estamos nos referindo ao isolamento provocado pela epidemia do Covid19 no decorrer do mês de março de 2020, momento de finalização desse artigo.

2We are herein referring to the isolation caused by the Covid-19 epidemic during the month of March 2020, when this paper was finished.

Recebido: 20 de Abril de 2020; Aceito: 03 de Junho de 2020

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