Pierre Monbeig e a interiorização
(...) Os areais que as estradas e as ruas cavam, pulverizando um terreno que os disfarçava, dão a imagem do contato do homem com o sertão: vem abaixo a mata, a chuva lava o chão despido, o meio se refaz; esboroa-se a barbaria, desagrega-se a civilização, a sociedade tateia sobre lençóis de terra movediça, anelando por fixar-se. A própria população chega aos aluviões; os “grileiros”, os fazendeiros depois, em seguida, os colonos e, por último, as levas urbanas. (AMARAL, 1924, p. 121)
Não fosse pelo fato de descrever Jaú, como porta de entrada da região noroeste de São Paulo, a reportagem de Brenno Ferraz do Amaral - escrita no correr de 1923 quando era editor do Estado de S. Paulo - bem poderia narrar a formação de Ribeirão Preto. A lógica é a mesma: derrubada da mata, formação de fazendas, migração de famílias inteiras, imigração, concentração em povoações e, bastante importante, a fermentação social e demográfica nas cidades das fronteiras agrícolas do café.
Breno Ferraz era contemporâneo do avanço da ocupação do território paulista e da consequente formação de fronteiras agrícolas no começo do século XX; tanto que escreveu reportagens para o Estado de S. Paulo a partir de suas viagens pelo interior paulista nas zonas cafeeiras. O assunto de suas reportagens dava conta do movimento da cafeicultura que não esgotara seu avanço, iniciado desde o século XIX, em São Paulo. Do Vale do Paraíba, a cafeicultura rumou em direção ao interior do estado, num movimento de abertura de zonas de plantio após a derrubada da vegetação natural e de estabelecimento de toda a estrutura produtiva do café. E como esse fenômeno ainda repercutia em outras regiões do estado e circunvizinhas do Paraná e Mato Grosso do Sul, antes de terminar a segunda metade do século XX, não muito tempo após Breno Ferraz, o geógrafo francês e professor da recém-criada Universidade de São Paulo (USP), Pierre Monbeig, percorreu as terras paulistas para escrever seu literário trabalho acadêmico sobre as frentes pioneiras. Pioneiros e fazendeiros em São Paulo, nome do livro de Monbeig resultante de sua tese, é um clássico sobre o movimento humano em direção às terras virgens do sertão e de novas zonas não ocupados para o estabelecimento da agricultura de exploração. De seu autor vem a expressão “franjas pioneiras” para dizer da fronteira entre a retaguarda da marcha dos pioneiros, onde ficaram as cidades recentes pelo caminho percorrido, ou aquelas mais antigas que adquiriram vitalidade populacional e econômica, e a vanguarda, representada pelas áreas de nova ocupação, onde aconteciam a derrubada da mata e o estabelecimento das primeiras plantações.
A franja pioneira e o que ela explica, entretanto, deixa saber que ela comporta tempos e ações que fazem dela uma expressão cujo conteúdo não se resume apenas a determinar um lugar no mundo onde está o limite entre o sertão e as terras ocupadas, tendo no meio a vanguarda movida pelos pioneiros. O tempo, nessa lógica da franja pioneira, é o do desenvolvimento acelerado, da passagem de núcleos urbanos modestos e provincianos a cidades pujantes econômica e populacionalmente. As ações, por sua vez, são as do movimento de interiorização da agricultura extensiva, como a cafeicultura, da precedente alteração da paisagem, da migração e imigração, da especulação imobiliária, da mudança da estrutura fundiária e do adensamento populacional das cidades. Tempo e ação se conjugam no movimento pioneiro, pois “o que se levou milênios para fazer na Europa, aqui se fez em um século no máximo” (MONBEIG, 1984, p. 23).
Por extensão, a franja e a marcha pioneira de Monbeig são processos de interiorização. Sob esse ponto de vista, a relação entre marcha e interiorização é o que interessa neste artigo para levantar uma questão: entre as várias interiorizações que alcançaram as cidades influenciadas pela marcha pioneira, a assistência à infância é algo que se interioriza, como é o caso de Ribeirão Preto?
É possível que grande parte do processo de formação do Brasil siga várias trajetórias de interiorização num movimento do litoral em direção ao interior, quando não das fronteiras mais antigas para as zonas de ocupação nova. Desde a chegada do colonizador europeu, a primeira área ocupada é litorânea, seguindo-se de explorações rumo ao interior. À medida que a colonização portuguesa alcançou regiões mais distantes durante os séculos XVI e XVII, seguiu-se a territorialização da primeira geração de ocupantes, do que resultou entrementes o relacionamento frequentemente belicoso com os nativos, além do encaminhamento econômico do extrativismo para a agricultura, com destaque para a cultura da cana e o engenho, a pecuária e, fato ligado ao assentamento da população, a formação de povoações. No século XVIII, com o ciclo do ouro em Minas Gerais, há um outro processo de interiorização cuja novidade é o adensamento da população nas zonas mineradoras. Esse fenômeno encorpou os contingentes populacionais que, mais tarde, iniciaram a diáspora na direção das terras cultiváveis (para as roças) e dos campos (para a criação do gado) nas proximidades dos Rios Pardo e Mogi Mirim.
Essa diáspora é um tipo de interiorização por dentro, pois os formadores da região de Ribeirão Preto e Franca já haviam participado de um primeiro movimento de ocupação do interior antes de seu segundo deslocamento. Nesse caso, o tempo dessa interiorização passa pelos séculos XVIII e XIX ainda carregando características antigas do trato com a terra, entre elas o aproveitamento dos campos nativos para o gado, de muar a vacum, bem como a formação de roças para sustento próprio e venda dos excedentes. Esse modo de tomar para si a terra - geralmente apossada por famílias de entrantes mineiros - plantar roças e criar gado em áreas de pasto natural permaneceu em uso, embora rareando na segunda metade do século XIX, até que a cafeicultura chegasse a Ribeirão Preto (MONBEIG, 1984).
A formação de Ribeirão Preto, portanto, conta a história de um grande processo de interiorização, com vários desdobramentos ou, várias interiorizações derivantes. No tempo do Caminho de Goiás - rota dos bandeirantes no correr do século XVII -, a atual área da cidade era sertão desconhecido nos mapas. As primeiras notas oficiais de uma povoação são da época do seu reconhecimento como patrimônio e capela em 1854 (LAGES, 1996). Até esse tempo a interiorização tomava a forma do deslocamento dos entrantes mineiros, outrora estabelecidos nas regiões mineradoras, para os campos dos Rios Mogi e Pardo, onde famílias inteiras iniciaram o apossamento e, por extensão, encaminharam as demais relações de doação, legalização, compra e venda dessa terra. Essa forma de ocupação permaneceu nos decênios que se seguiram, até que as primeiras notícias publicadas sobre a qualidade da terra roxa para o cultivo do café, em 1876 e 18772, assinalassem o porvir.
Durante esse tempo a interiorização não parece sofrer grandes acelerações, acontecendo conforme as possibilidades de ocupação, uso e negociação da terra, até que os primeiros cafezais começassem a ser plantados na região. A partir de então, o resultado, como se sabe, é a transformação de uma região de fazendas de criar em área de especulação imobiliária em paralelo à sua emergência como fronteira agrícola e, cujo apogeu, foi a projeção de Ribeirão Preto como capital do café - tão logo, participante da economia agrário-exportadora - durante quase toda a Primeira República. A partir de então, o tempo é outro:
Atualmente é preciso ir mais longe, para atingir a frente do povoamento. Mas, na sua retaguarda, tudo lembra um passado ainda recente. Espanta-se o europeu, quando ouve chamar de ‘velha’ uma cidade como Ribeirão Preto, que não conta três quartos de século; custa-lhe compreender que ‘outrora’ significa 1910 e mesmo 1920, se o seu interlocutor é um homem moço. Tudo se passa como se este país conhecesse em setenta e cinco anos, um século no máximo, o que se levou milênios para fazer na Europa. E certamente é isso: nascimento e formação da paisagem rural, fundação e crescimento das cidades, construção duma rede de comunicações, mistura de raças, elaboração de uma mentalidade regional, tal o intenso trabalho que ainda prosseguia, aos nossos olhos. (MONBEIG, 1984, p. 23).
As frentes pioneiras, além de um movimento de avanço sobre novas áreas de ocupação do território, tocado pelo deslocamento humano, é também o da aparente aceleração do tempo em razão do adensamento de realizações. O “que se levou milênios para fazer na Europa”, no Brasil da marcha pioneira levou três quartos de século, do que resultou a profunda modificação da paisagem natural para uma outra, a das grandes extensões agricultáveis e, de interesse especial neste artigo, a “fundação e crescimento das cidades”. Nelas, as cidades, o que antes era um aglomerado de casas ou onde ainda não havia habitações, recebeu o aporte das levas de população que chegaram na segunda e terceira ondas da marcha. No iniciante século XX, as retaguardas da frente pioneira se tornaram cidades que recebiam seguidamente população nova. No primeiro recenseamento feito no Brasil, a vila de São Sebastião do Ribeirão Preto registrava 5.552 habitantes (INSTITUTO, 1958) sendo que, entre 1902 e 1912, duas contagens da população feitas localmente indicaram a indução ao aumento demográfico provocada pela imigração. Em 1902 eram 13.236 habitantes passando a 58.220, em 1912, ano da segunda contagem, (CÂMARA MUNICIPAL, 1920), com maior concentração desse contingente nas áreas rurais do município, 39.488, e, sinal da imigração, 27.000 imigrantes, a maioria italianos, havendo, ainda, 18.732 residentes no núcleo urbano (CÂMARA MUNICIPAL, 1920).
Como parte dessa população crescente de Ribeirão Preto havia o contingente de crianças. Para elas a escola era o que se tinha na cidade desde que as cadeiras de primeiras letras surgiram por aqui no início da segunda metade do século XIX. Quanto àqueles para quem a escola não era o encaminhamento preferencial, a exemplo das crianças desvalidas, somente em 1917 a cidade teve seu primeiro orfanato, apenas para meninas, e na década de 1940, um educandário, misto de orfanato e escola profissional, para meninos. Em todo esse tempo, a tutela, quando formalizada sob o arbítrio do judiciário, ou sua versão informal, na qual crianças eram incorporadas a uma outra família, que não a sua e nem sempre de parentes, para serem criadas, dando por retribuição o serviço prestado, responderam como recurso para os casos em que a institucionalização ou não era conhecida na cidade ou ainda não haviam orfanatos e asilos infantis que a praticassem. O relatório da administração municipal para o ano de 1919 assim mostrava a população infantil do município (Quadro 1):
IDADE | |||
---|---|---|---|
CIDADE | Menos de 1 anno | 743 | |
De 1 a 6 annos | 3.276 | ||
Somma | 4.019 | ||
De 7 a 12 annos | 2.966 | ||
De 13 a 20 annos | 3.450 | ||
De 21 a 30 annos | 3.204 | ||
De 31 a 40 annos | 2.306 | ||
De 41 a 60 annos | 2.300 | ||
De 61 a 80 annos | 400 | ||
De 80 a 100 annos | 31 | ||
Total | 18.732 |
Fonte: CÂMARA MUNICIPAL, 1920, p. 76-77.
E, mesmo contando com a escola como a instituição cabível para receber esse contingente local de crianças, havia problemas, pois:
[...] pode-se ainda affirmar com segurança que, sendo a população a mesma de 1912, haja tambem a mesma proporção e que, portanto, existem em Ribeirão Preto 9.764 meninos em idade escolar, dos quaes 4.474 frequentaram escolas em 1919, ficando 5.190 - muito mais da metade - sem recurso algum para aprenderem as primeiras letras. (CAMARA, 1920, p. 69)
Fato típico da expansão do ensino durante a Primeira República, a escolarização ainda não alcançava decisivamente as crianças dos primeiros anos escolares. Assim o atesta o relatório da administração municipal de 1919. E o problema era compartilhado pelo estado, que, “apesar dos esforços empregados, não tem conseguido o Estado fazer uma distribuição proporcional de suas escolas, de accôrdo com a densidade da população de seus 204 municípios” (INSPECTORIA, 1921, p. 5).
Esse contingente de crianças “sem recurso algum para aprenderem as primeiras letras” é, no mínimo, uma pista sobre a existência de um contingente infantil desprendido do alcance de uma instituição que, entre outras tarefas, tinha sob sua guarda as crianças por uma parte do dia e ao longo do ano, fato que mitigava a suscetibilidade ao trabalho infantil ou ao completo abandono, por exemplo. Desde o começo do século esses eram problemas conhecidos na cidade e muito lembrados pelos jornais locais, como demonstrei em estudo sobre essa questão (FONSECA, 2013). Num período de 1905 a 1920, os jornais A Cidade e Diário da Manhã publicaram uma quantidade considerável de notas policiais, editorias e notícias cujo conteúdo dá conta de fatos e acontecimentos relacionados à delinquência infanto-juvenil, à violência contra crianças, abandono e a sempre constante presença de meninos e meninas nas ruas. E os jornais noticiavam esses fatos como problemas da cidade, como algo que crescia à medida que a própria cidade também crescia. Embora não se saiba com precisão o número de crianças abandonadas ou necessitadas de alguma forma de assistência na Ribeirão Preto do começo do século XX, sabe-se que o problema era parte do cotidiano de uma cidade tonificada pelo avanço da marcha pioneira. Meninos e meninas compunham parte da população de rua da cidade:
CRIANÇAS ABANDONADAS
Constantemente, umas vezes nas primeiras horas da noite e outras pela madrugada, comparecem a esta redacção meninos pobres que, se achando em completo abandono pelas ruas, vêm pedir agasalho para dormir.
Noticiando a desoladora e perigosa situação dessas infelizes crianças não temos o intuito de fazer alarde de sentimentos nobres, pois é do mais comesinho dever de caridade dar abrigo aos abandonados muito principalmente creanças. (A CIDADE, 1910, p. 1)
Dentro da marcha pioneira, do avanço sobre a natureza, da formação de grandes fazendas, da imigração provocada, da geração de capitais com a cafeicultura, há uma outra marcha, a do crescimento das cidades e de seus problemas sociais. De vilarejos que eram as cidades passaram a aumentar seu núcleo habitado, suas ruas se estenderam, mais casas surgiram nos espaços antes vazios do tabuleiro urbano, novos bairros chegaram onde antes havia chácaras na borda entre área urbanizada e zona rural próxima e tudo isso provocado pelo aumento populacional. Ao passo que a cidade, ainda que modestamente, aumentava sua área estendida, dentro dela havia muito por fazer quando se tratava de cuidar dos resultados de seu crescimento e dos seus corolários como o engajamento precário ou não realizado no trabalho de parte de sua população, do aviltamento da renda dos pobres, da pressão do custo dos alimentos e da moradia, da mendicância, além do estabelecimento da infraestrutura.
Para qualquer cidade do começo do século XX, no Brasil, esses eram problemas de toda hora, com a diferença de as cidades da zona pioneira serem aquelas do tempo acelerado que cresceram em três quartos de século, razão pela qual suas demandas sociais surgiram ou se avolumaram à medida que se firmavam como núcleos urbanos das fronteiras agrícolas da vanguarda da marcha pioneira. Entre as demandas de uma cidade típica da marcha pioneira, porque crescera como capital de uma fronteira agrícola, porque se integrara à rede de trilhos na qual circulavam mercadorias e pessoas3, porque era uma urbe interiorana em uma das mais produtivas zonas cafeeiras paulistas - e, com isso, imersa nas relações econômicas do complexo cafeeiro - o que fazer com as suas crianças desvalidadas é sim um problema acumulado ao longo desses anos em que o movimento pioneiro fez a roda do tempo acelerar. Para tanto, as respostas foram buscadas em modelos de assistência bastante usuais desde o fin de siécle do XIX, mas inéditos em terras ribeirão-pretanas do então Oeste Novo.
Os modelos?
O orfanato, o reformatório e o instituto de puericultura.
Assistência fin de siécle: a variedade institucional paulistana
É possível afirmar, tal como Maria Luiza Marcílio, na sua conhecida História social da criança abandonada (1998), que se formou um sistema privado de assistência à infância em São Paulo durante o século XIX?
Caso sim, significaria entender que as várias instituições, de seminários a orfanatos, historicamente conhecidos por se ocuparem da criação e da educação de crianças órfãs, abandonadas e pobres teriam deliberadamente se estruturado, ainda no século XIX, para constituírem algo semelhante a uma rede ou mesmo a um corpo de organizações capazes de se articularem e, com isso, pactuarem atribuições entre si. Ou, por outro lado, o fato de as diferentes formas organizadas e institucionais de assistir crianças terem surgido a partir da mobilização de sujeitos, individuais ou coletivos, sem fortes vínculos formais e assumidos entre si, embora compartilhando a motivação de mitigar o sofrimento dos desafortunados, provavelmente dificultaria crer que a organicidade própria de um sistema seria extensiva à multiplicação de estabelecimentos para a infância desvalida na cidade de São Paulo durante o século XIX.
Mesmo o sentido de sistema proposto por Maria Luíza Marcílio é mais circunscrito, pois trata do circuito formado ao longo de anos de funcionamento das rodas e casas de expostos. Desde quando deixadas nas rodas, incontinente recolhidas às casas de expostos, enviadas à amas-de-leite, depois devolvidas à autoridade da irmandade mantenedora e, por vezes, encaminhadas a famílias - a quem serviam em troca da criação, do abrigo e do alimento - ou aos arsenais, muitas vezes à marinha, para serem aprendizes, as crianças trilhavam esse caminho, exaustivamente descrito por Marcílio (1998) e que reconhece nele as características indicativas da existência de um sistema privado de criação de órfãos.
É um percurso - ainda que reconhecidas as diferenças de tempo e lugar - consagrado pelo Oliver Twist, de Dickens, no início do mesmo século na Inglaterra pré-vitoriana, onde de fato havia um sistema estabelecido pela Lei dos Pobres, de 1834, que, entre diversas providências, instituiu as Workhouses. Por comparação, no Brasil, a primeira constituição nacional determinava que:
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.
XXXI. A Constituição tambem garante os soccorros publicos.
XXXII. A Instrucção primaria, e gratuita a todos os Cidadãos.
Sobre os mencionados socorros públicos, Martinez (2003, 155) explica que o estado imperial brasileiro, ainda no Primeiro Reinado (1823-1831) posicionou-se mais como quem velava pelo modo como eram assistidos os pobres e conservou o amparo social “entregue às localidades, nas obras de caridade, como as Santas Casas de Misericórdia, e às ações dos governos municipais”. Desse lugar o estado imperial manteve o amparo social, acredita Martinez (2003, p. 155), ancorado “na beneficência cristã, de âmbito familiar, individual e particular, e na assistência pública, executada pelas Câmaras Municipais”; não por acaso a mesma instituição encarregada do governo local designada desde as Ordenações Filipinas e nomeada como responsável por cuidar dos órfãos.
Justamente no Primeiro Reinado, o governo provincial de São Paulo fundou dois seminários para órfãos, ambos em 1825, mesmo ano em que Irmandade da Santa Casa de Misericórdia estabeleceu a casa dos expostos na capital da província.
Essa variedade institucional em São Paulo, considerando as datas de fundação, é mais evidente entre 1872 e 1897, quando vários estabelecimentos foram criados. Antes, de 1825 a 1873, a cidade contou com os serviços da Roda e da Casa de Expostos da Santa Casa de Misericórdia e com os dois seminários mantidos pelo governo da província (Quadro 2).
Coincidentemente, desde os que surgiram em 1825, exceção feita ao Seminário de Educandos de Santana, refundado como Instituto de Educandos Artífices, em 1869, e extinto em 1880, os estabelecimentos fundados até 1897 passaram ativos ao século seguinte e assim permaneceram duradouros no exercício de criação e educação de crianças desvalidas.
Essa longevidade é um dado frequentemente reconhecido por nomes contemporâneos do primeiro meio século de maturação desses estabelecimentos que, entre o final do século XIX até a década de 1930, escreveram de monografias a relatórios baseados em estudos de campo sobre a assistência aos pobres em São Paulo, a exemplo de Tolstói de Paula Ferreira (1940), Evangelista Franco (1944), Nadir Gouvêa Kfouri (s.d.) Samuel Lowrie (1936), e outros que se somam entre os “paulistanistas”, como é o caso de Barreto Amaral (2006), além de um memorialista precursor da historiografia da educação, posto ocupado por Primitivo Moacyr (1942). Não bastasse esse rol, as fontes oficiais, como é o caso dos relatórios de presidentes de província e os anuários estatísticos e anuários da educação, listam ano a ano, a participação das organizações assistenciais particulares na prestação de assistência aos pobres e, em especial à infância, pelo interior do estado e na capital. Pelo fato de reportarem ao legislativo os feitos do governo da província, mais tarde do estado, os relatórios listam as instituições subvencionadas pelo erário público, ao passo que os anuários, além de reiterarem essa informação, avisam sobre os serviços prestados.
Se considerados os períodos de fundação das instituições há, evidentemente, um acúmulo de estabelecimentos nos últimos trinta anos do século XIX, especialmente no decênio final, já em tempos republicanos. Coincidentemente, os dez últimos anos do século XIX são o tempo em que a imigração intensifica o crescimento populacional da capital e de áreas do interior, entre as quais os velhos e novos oestes, expressões correntes à época da expansão cafeeira que Monbeig retomou para colocar Campinas, como sendo a primeira franja pioneira, e as adjacências de Ribeirão Preto, como a nova frente da expansão no final do XIX. Quanto à relação entre o crescimento da cidade, pois só entre 1890 e 1900 São Paulo passa de 64.934 a 239.820 habitantes, e o surgimento de tantos orfanatos e asilos, o incremento na população da cidade é um dado a ser considerado. Esse problema fora constatado já nos estertores do Império, quando o então presidente da Província de São Paulo, avisou que “o aumento constante da população da Capital e a corrente de imigração que traz no geral pessoas que vem em demanda de recursos para sua subsistencia” fazia crescer a demanda por assistência (SÃO PAULO, 1887, p. 98).
Período | Estabelecimento | Fundação | Forma de organização | Natureza |
---|---|---|---|---|
1825 a 1869 | Roda e Casa de Expostos da Santa Casa de Misericórdia | 1824/1825 | Casa de expostos | Particular |
Seminário de Educandos de Santana | 1825 (extinto em 1868) | Nos moldes de um orfanato com longa permanência dos internos e dotado de programa instrutivo/profissionalizante | Público | |
Seminário de Educandas da Glória | 18254 | Nos moldes de um orfanato com longa permanência das internas e dotado de programa instrutivo/profissionalizante | Público | |
Instituto de Educandos Artífices | 18695 (extinto em 1880) | Escola profissionalizante para órfãos e pobres | Público | |
1873 a 1885 | Liceu de Artes e Ofícios | 1873 | Escola profissionalizante para órfãos e pobres - Internato | Particular |
Instituto D. Ana Rosa | 1874 | Escola profissionalizante para órfãos e pobres - Internato | Particular | |
Asilo Nossa Senhora Auxiliadora do Ipiranga | 1885 | Orfanato | Particular | |
Liceu Sagrado Coração de Jesus | 1885 | Escola profissionalizante para órfãos e pobres | Particular | |
Orfanato de Santana | 1892 | Orfanato | Particular | |
Colégio D. Carolina Tamandaré | 1892 | Nos moldes de um orfanato com longa permanência das internas e dotado de programa instrutivo/profissionalizante | Particular | |
1892 a 18976 | Abrigo Santa Maria | 1892 | Recolhimento de meninas órfãs | Particular |
Casa Pia São Vicente de Paulo | 1894 | Orfanato para meninos e meninas com o oferecimento de alguma instrução | Particular | |
Orfanato Cristóvão Colombo | 1895 | Orfanato para meninos com o oferecimento de alguma instrução | Particular | |
Asilo de Órfãos N. S. Auxiliadora do Ipiranga | 1896 | Orfanato para meninos com o oferecimento de alguma instrução | Particular | |
Casa da Divina Providência | 1896 | Orfanato para meninas com o oferecimento de alguma instrução | Particular | |
Casa da Divina Providência da Mooca | 1897 | Orfanato para meninos com o oferecimento de alguma instrução | Particular | |
Asilo Bom Pastor | 1897 | Orfanato para meninos com o oferecimento de alguma instrução | Particular |
Fonte: FONSECA, 2012, p. 82
A fundação de sete estabelecimentos em um período de cinco anos, de 1892 a 1897, corrobora essa tese, como também o surgimento de propostas para tratar do problema dos menores, entre as quais há a de Candido Mota que, em 1900, apresentou o projeto de criação do Instituto Educativo Paulista, sob a justificativa de, por um lado, cumprir com o que previa o artigo 30 do então recente Código Penal (o qual previa a internação em estabelecimentos industriais dos menores recolhidos da rua pela polícia ou por ordem do judiciário) e, de outra parte, de dotar o estado de um meio para intervir no problema dos menores. Essa era uma necessidade emergente, pois, segundo Mota, os meninos estavam à solta nas ruas:
Ninguem encara com seriedade o futuro desses individuos, ou antes ninguem se apercebe do futuro negro pelo crime que ameaça a nossa sociedade.
Temos aqui, para não citar o Bocca torta, o Frango amarello, o Girafa, o Mulatinho, todos de idade inferior a 15 annos, o célebre 25 Reis, menino de 12 annos, muito bonito, intelligentissimo, de uma actividade rara, de uma loquacidade que espanta, e que é ao mesmo tempo o mais ousado dos gatunos. (MOTA, 1897, p. 20)
Os pedidos de recurso dos mantenedores e líderes de organizações assistenciais da capital que apelavam à Câmara Municipal ou ao Congresso Legislativo, ainda que subliminarmente, também fazem referência ao fato de que a necessidade de criar e educar crianças abandonadas era um problema pungente mais do que fora em outros tempos.
Quanto a recorrer ao legislativo do estado, esse era um expediente usual dos filantropos do interior e da capital. A Assembleia Provincial - e depois o Congresso Legislativo do Estado - costumou ser o destinatário das demandas por subvenções, isenção de impostos e doações de terreno em benefício de organizações mantenedoras de estabelecimentos assistenciais. Esse expediente, além dos registros dos anuários do ensino e dos anuários estatísticos paulistas, mostra que o volume de pedidos de subvenção provenientes de cidades do interior paulista compõe um mapa da presença da assistência nas cidades velhas e novas de São Paulo.
A assistência à infância é um campo de interação e negociação entre público e privado, entre o poder público e as expressões organizadas da sociedade civil. E por essa razão, a filantropia, exercida a partir da obra, dos legados e da liderança de personalidades públicas, fundadores originais ou inspiradores de uma organização filantrópica, especialmente no século XIX, não faria parte de uma prática, de uma cultura, talvez, de fazer o bem, de prestar cuidados e serviços aos necessitados que não resultava somente da evasão do estado da assistência pública? Pode-se considerar, provavelmente, que, em que pese a constatação de essa evasão estatal ser um fato, a filantropia seria a tradução prática do interesse de assistir, de legar uma obra, de civilizar uma parte da sociedade. Daí que, em combinação, filantropos suprissem a ausência do estado, mas, agissem também sob sua procuração, ainda que tacitamente.
A estratégia de recorrer aos recursos públicos, por exemplo, e, para tanto, lançando mão do convencimento de ocupantes de legislativo, era usual nessa relação entre público e privado, além de ser uma prática reveladora de que havia um sistema de assistência que, se não acertou entre si articular-se num corpo de instituições, de sua parte o poder público listava as instituições que apoiava no orçamento como se as tivesse contratadas para assistir crianças.
Do começo ao final do século XIX, portanto, na cidade de São Paulo, a resposta para o problema do abandono de crianças e do ensino de ofícios para meninos pobres, inclusive para órfãos e abandonados, costumou partir da sociedade civil, geralmente concretizada na forma de orfanatos, asilos infantis, liceus e internatos, todos praticantes da assistência na versão institucional. Essa forma de assistir, inclusive, respondeu por ser a expressão de certa racionalidade, uma vez que as instituições ao longo do século XIX foram praticando uma versão da assistência às crianças, a institucionalizada que, em suma, é aquela na qual há a concentração de crianças em ambientes fechados com a aplicação de um programa tutelar e educativo, se não instrutivo. Por sua vez, esse tipo de assistência - à medida que seus serviços prestados se avolumavam em número, em atendidos e em intervenções - e essas instituições, conduzidas por seus mentores e corpo funcional, foram se incluindo entre as antigas relações de solidariedade entre famílias pobres como uma outra forma de assistir, quando não se sobrepondo.
Ao praticarem a forma institucional de assistir, os asilos, orfanatos, institutos e liceus, seja pelo seu trabalho cotidiano, combinado com seus propósitos e devido aos seus métodos de trabalho, à preferência por concentrarem seus internos em espaços assemelhados aos das escolas e ao que era ensinado, foram capazes de produzir uma espécie de conjugação de métodos ou savoir faire para a criação de órfãos e abandonados e para a educação de pobres para o trabalho. E é esta soma de saber e de fazer, cotidianamente aplicados, que responde por ser a racionalidade, a lógica pela qual se pode afirmar que, mesmo se considerados todos os estabelecimentos ainda seja difícil sustentar que fora articulado na cidade de São Paulo um sistema privado de assistência pública à infância, o ambiente das instituições e o modo como lidavam com seus internos, instituiu um sistema de criação e educação de crianças. Assim, o fato de vários estabelecimentos terem sido criados ao longo do período entre 1825 e 1897, mostra que esse saber fazer tornara-se uma espécie de referência, algo próprio de uma tradição, e o fato de existir certa simultaneidade - ressalvadas as posições idiossincráticas dos idealizadores e mantenedores - considerando o período em que se estabeleceram e porque os tipos de instituições apresentam modelos e métodos próximos, sugere haver um sistema não totalmente pactuado, porém ativo.
Trata-se, então, de um sistema comportado por uma tradição, por um modo dotado de variantes produzido durante o século XIX. E, se da porta para fora o conjunto de estabelecimentos podia ainda não apresentar fortes vínculos de organicidade entre as partes, a simultaneidade temporal com que foram surgindo acentua que as instituições praticantes da assistência na versão institucional em geral se fundamentavam na legitimidade do exercício da tutela dos seus internos porque concretizavam um princípio-crença de que essas crianças deviam ser tuteladas para que se pudesse emendar uma vida que, não fosse pelo condão redentor de filantropos a caridosos, estaria destinada ao perecimento, se não à marginalia. Por sua vez, dentro de seus espaços havia marcantes características comuns, como por exemplo o corpo funcional e sua organização na forma de certa divisão social do trabalho, pois atuavam professores, bedéis, cozinheiros, mestres de cultura, diretores e os filantropos líderes, de visibilidade e influência mobilizadas para obter apoio às obras que lideravam. Além disso, costumeiramente esse corpo funcional eram mais formado pelo saber fazer da experiência cotidiana, inclusive aquela acumulada pela instituição, que formado de antes para cuidar de crianças.
Todo esse acúmulo em termos de modelos institucionais, de práticas, de combinações entre público e privado acontecido em São Paulo e sedimentado até o final do século XIX está para as áreas abertas pelas frentes pioneiras como algo raro ou inexistente nas cidades novas e há tempos usual na capital paulista. Coincidência ou não, após 1917 o novo em matéria de assistência em Ribeirão Preto era um asilo infantil e um instituto de puericultura, mais tarde um reformatório, de efêmera existência, depois um educandário, misto de orfanato e escola profissional, todos eles modelados conforme congêneres há muito existentes na cidade de São Paulo.
Ribeirão Preto, 1917: a chegada da assistência à infância a uma cidade do Oeste Novo
As necessidades de saúde, abastecimento, infraestrutura, segurança, entre outras demandas modernas, contam muito sobre a história do desenvolvimento de uma cidade, ou, de inúmeras, senão de quase todas. Além disso, o morrer e o viver apresentam igualmente as suas exigências, pois quem habita na cidade pode passar por penúria, ou não, viver bem, ou não, perecer e, tão logo desaparecer, enquanto a cidade segue seu curso. As cidades criam e mantém meios de encaminhar o corpo dos que morrem, de evacuar os eflúvios que produzem, de manterem-se viventes a despeito do perecimento de seus habitantes. Por extensão, o ato de cuidar de meninos e meninas sem pais, família ou filhos de pobres confere com essa lógica, pois, propiciar a substituição da família ausente ou cuidar de emendar vidas, no caso dos pobres e marginais, atende ao fim de agir a favor de manter a cidade, de resolver aquilo que é defectivo em relação à ordem conhecida.
No caso de Ribeirão Preto essa lógica é aplicável, sobretudo, quando sua formação é colocada em perspectiva. Em dois quartos de século, desde a década de 1870, a cidade conheceu a imigração, o crescimento demográfico, a dupla concentração humana no núcleo urbano e nas fazendas de café, a carência de estrutura na cidade e os consequentes melhoramentos, como o calçamento das ruas e a iluminação elétrica; além disso, recebeu escolas, construiu cadeia, estabeleceu Câmara e Prefeitura, manteve Fórum, delegacia, construiu mercado municipal e matadouro; entre suas penúrias viveu epidemias, a Febre Amarela e a Gripe Espanhola e, por isso, manteve Comissão Sanitária ativa7; experimentou problemas sociais, como os numerosos mendigos em suas ruas, crimes, delinquência infanto-juvenil e abandono de crianças8.
Nesses mesmos dois quartos de século, a cidade também se acostumou a recorrer a respostas institucionais para a cura e a internação dos doentes, no interesse de oferecer instrução escolar às crianças, bem como prestar auxílio aos pobres e também a fim de dar encaminhamento os filhos sem pais ou abandonados. Para amparar os doentes havia a Santa Casa; no caso dos imigrantes, era preciso contar também com as sociedades de ajuda mútua; mendigos e migrantes miseráveis recebiam apoio da Sociedade Amiga dos Pobres em seu albergue; quanto às crianças, se não bastava a tutela, aquelas sem família ou entregues pelos pais eram levadas ao Asilo Anália Franco; e, por fim, mães e seus filhos pequenos recebiam cuidados médicos e assistência higiênica e alimentar do Instituto “Dr. Antonio Gouveia”. Era esse o sistema local de assistência aos pobres e à infância e de tal forma necessário que um dos prefeitos ribeirão-pretanos, João Rodrigues Guião, reconheceu no relatório de sua gestão, de 1920 a 1923, que “a iniciativa privada tem feito muito em prol do movimento social, principalmente no que diz respeito à assistência às classes pobres, dando provas” desta colaboração “o asilo de orphans Anália Franco, a Sociedade Amiga dos Pobres, a Sociedade de Assistência à Infância, a Sociedade S. Vicente de Paula e o Asilo de Mendicidade” (CÂMARA MUNICIPAL, 1924, p. 8) (Quadro 3).
Organizações | Fundação | Finalidade | Natureza | Mantenedor |
---|---|---|---|---|
Santa Casa de Misericórdia | 1896 (Ativa) | - Assistência médica e hospitalar | Particular | Sociedade Beneficente de Ribeirão Preto |
Societá de Mutuo Soccorso Unione Italiana | 1896 | Socorros Mútuos | Particular | - |
Societá Italiana Pátria e Lavoro | 1903 | |||
Sociedad Española de Socorros Mutuos | 1904 | |||
Sociedade Beneficente Portuguesa | 1907 | |||
Sociedade União Beneficente Syria9 | - | |||
Conferência de São Vicente de Paula | 1899 (Ativa) | - Assistência caritativa aos pobres | Particular | - |
- Escola da Sociedade Amiga dos Pobres - Albergue | 1905 | - Instrução primária; - Assistência aos pobres | Particular | Sociedade Amiga dos Pobres |
Asilo de Mendicidade “Padre Euclides” | 1919 | - Recolhimento de mendigos idosos | Particular | - |
Asilo de Órfãs “Anália Franco” | 1917 | - Assistência à infância | Particular | Loja Maçônica Estrela D´Oeste |
Instituto de Proteção e Assistência à Infância | 1917 | - Difusão de cuidados médicos e higiênicos | Particular | - |
Patronato Agrícola “Diogo Feijó” | 1922 a 1926 | - Correcional | Público | Ministério da Agricultura |
Abrigo de Menores (1944: passou a ser Educandário “Quito Junqueira”) | 1938 (Ativo) | - Criação e formação profissional de meninos pobres e/ou órfãos | Particular | Fundação “Sinhá Junqueira” |
Fonte: Elaborado pelo autor.
Todos esses estabelecimentos locais concretizaram na cidade os modelos já conhecidos em cidades mais antigas do estado e na capital (Quadros 4 e 5). Por essa razão, os modelos aplicados em São Paulo teriam ascendência sobre outras cidades, seriam apenas imitados ou haveria simultaneidade no modo como foram surgindo pelas cidades novas?
Cidade | Estabelecimento | Ano/relatório | Fundação | Mantenedor |
---|---|---|---|---|
Itu | Seminário de Meninos de Itu | 1838 | Governo da Província | |
Colégio Ytuano10 | 1842 | Governo da Província | ||
Seminário de Educandas | 1848 | - | ||
Liceu de Taubaté | 1848 | - | ||
Taubaté | Instituto Taubateano de Agricultura, Artes e Ofícios | 1888 | 1888 | - |
Guaratinguetá | Liceu Guaratinguetaense | 1880 | 1876 | - |
Santos | Companhia de Aprendizes Marinheiros da Província | 1884 | 1868 | Governo da Província |
Fonte: Elaborado pelo autor.
A escola, comparativamente, chegava às zonas novas do interior porque vinha de referências formalmente instituídas pelo estado, ao passo que a assistência era uma atividade fortemente exercida por particulares e, por isso, os modelos e métodos não constavam de regras legalmente determinadas, de sorte que os filantropos locais recorriam ao que se conhecia em termos de meios para assistir crianças abandonadas, órfãs e pobres. Diferente da escola, que também se interioriza desde o século XIX, mas pela via da ação oficial do poder público, a assistência à infância em geral chega ao interior, ou ocorre nele, por conta da mobilização de filantropos e caridosos locais, por vezes articulados com lideranças externas - Anália Franco é nítido exemplo nesse caso - ou, de modo autóctone.
Cidade | Estabelecimento | Anuário do Ensino | Anuário Estatístico | Congresso Legislativo | Mantenedor |
---|---|---|---|---|---|
Campinas | Asilo de Órfãos | 1908 | 1902-1912 | 1892 | - |
Liceu de Artes e Ofícios | 1896 e 1897 | - | |||
Liceu Salesiano Nossa Senhora Auxiliadora | 1908 | 1917 | - | ||
Sociedade Feminina de Assistência à Infância | 1919 | Mantinha uma creche e pretendia fundar uma policlínica | |||
Piracicaba | Asilo de Órfãos “Coração de Maria Nossa Mãe” | 1908 | 1902-1912 | 1902 | - |
Itu | Orfanato do Colégio São José | 1902 | - | ||
Ribeirão Preto | Orfanato do Colégio São Luiz | 1902-1912 | 1902 | - | |
Asilo Anália Franco | 1920 | Loja Maçônica “Estrela D’Oeste” | |||
Associação Protetora da Infância Desvalida | 1893 | - | |||
Santos | Liceu Feminino Santista | 1906 | Associação Feminina de Santos | ||
Escola Maternal “Anália Franco” | 1906 | Associação Feminina de Santos | |||
Escola Maternal “Julio Conceição” | 1906 | Associação Feminina de Santos | |||
Descalvado | Asilo de Órfãos da Imaculada Conceicção | 1908 | - | ||
Rio Claro | Liceu de Artes e Ofícios de São João do Rio Claro | 1892 | - | ||
São Manoel | Jardim da Infância | 1919 | Mantido pela Casa Pia São Vicente de Paulo | ||
Asilo de Órfãos | 1917-1919 | Associação das Pias Damas de Caridade |
Fonte: Elaborado pelo autor
Em outras zonas do estado as cidades mais antigas contavam com estabelecimentos e associações cujo propósito era assistir e educar crianças desvalidas. Itu, Taubaté, Guaratinguetá e Santos, conforme o Quadro 1 e segundo consta nos relatórios dos presidentes da província de 1838 a 1884, possuíam seminários mantidos ou auxiliados pelo governo provincial desde o terceiro decênio do século XIX. Dada a sua antiguidade, pois quase todas foram fundadas entre o século XVI e XVIII, seminários e liceus surgiram nelas muito depois do assentamento da população e de sua confirmação como cidades. Nas cidades novas e nas renovadas da marcha pioneira, ao contrário, o tempo em que a assistência na versão institucional surge é coetâneo do seu crescimento, à vezes até tardio, como em Ribeirão Preto, fundada em 1854, elevada a cidade em 1871 e tendo seu primeiro orfanato apenas em 1917. Até esse ano a cidade não contava com estabelecimentos praticantes da assistência à infância na versão institucional, embora houvesse manifestações locais que sinalizassem o conhecimento dessas formas de cuidar de crianças desvalidas. Os sinais eram dados na cidade por meio de porta-vozes autonomeados da sociedade e que tinham bem certo quais modelos seriam úteis aos problemas sociais locais, a exemplo do editorialista do Diário da Manhã, em 1913:
Há tempo venho acariciando a ideia de congregar os bons elementos desta cidade ou deste município para fundação de um estabelecimento ou de um instituto de protecção à infancia abandonada, às creanças de um e de outro sexo, atiradas pela miséria ou pelo abandono dos Paes no vórtice da perdição.
Há poucos dias, na sede da «Recreativa», na palestra, entre homens de senso moral elevado, feri novamente o assumpto. Tive ensejo de estender-me sobre considerações de ordem econômica e reputadas indispensáveis para a viabilidade da ideia. Entre outras, salientando-a como a primeira, a mais importante, a creadora, por assim dizer, do intuito, o aproveitamento da «Chacara Antunes», propriedade do município, e até hoje inaproveitada, a não se sabe de futuro que destino possa ter. Chacara esta que seria um optimo logar para a fundação do estabelecimento a que me venho referindo.
Sabe-se que a Camara Municipal adquiriu aquella Chacara com o fim de doal-o ao Governo do Estado, se este ali estabelecesse um instituto disciplinar. Infelizmente não dotaram o Ribeirão com esse estabelecimento de protecção aos menores desamparados.
Razão bastante para que a nossa Camara Municipal corra agora em auxilio da ideia -objecto destas linhas, aproveitando a «Chacara Antunes» para essa obra de inadiável, execução, obra meritória, e que virá attestar os nossos sentimentos altruísticos, a mesmo tempo patrioticos; pois preparando a infancia, fasendo dessas creanças que por ahi vivem ao desamparo, bons cidadãos e boas donas de casa, distintas mães de família, teremos feito um serviço de verdadeiro patriotismo. (SILVA, 1913, p. 1)
Os orfanatos e a assistência institucional são tecnologias aplicadas a um problema social, o abandono e a marginalização de crianças, e como tal não existiam nas cidades novas e naquelas renovadas, como Ribeirão Preto, porque foram concretizadas antes em outros lugares e tempos. Ao chegarem ao interior, especificamente nas cidades da franja pioneira, passaram a se colocar ao lado - ou por vezes a se sobrepor - das antigas formas de manter crianças sem pais ou filhas de pais pobres, quando não, apenas com a mãe como é o caso da tutela e do ingresso de crianças em famílias como serviçais. Do ponto de vista da genealogia, as ordenações do reino, em especial as Filipinas, já determinavam que os órfãos receberiam cuidados de responsabilidade do poder público, então, representado pelas Câmaras Municipais. Nesse sentido, as rodas e casas de expostos são expressões de uma primeira geração dessas tecnologias e os orfanatos, os liceus, asilos e reformatórios, todos estabelecidos em São Paulo, cidade e estado, durante o século XIX seriam os exemplares de uma segunda leva de criações-resposta para o problema do abandono de crianças.
Em todo esse tempo, porém, outras formas de cuidar dos abandonados e dos que perdiam a família estiveram um uso. Uma delas condiz com a tutela e correu os séculos XIX e XX sendo praticada como recurso para alojar em outras famílias crianças desvalidas dos pais ou, quando não, cedidas por um deles ou ambos e de quem se requeria o trabalho como paga pela criação, ou, em outros casos, os menores de idade e herdeiros de bens eram colocados sob a autoridade de um tutor, tanto responsável por criar quanto por gerir o legado.
No caso das heranças e legados, a tutela diz muito sobre o intento de as famílias evitarem a perda de patrimônio. É algo compatível com a forma na qual a propriedade da terra costumava ser preservada no interior das famílias. E uma prática muito antiga, pois será no começo do século XIX que o movimento migratório dos outrora entrantes mineiros dá sinais de assentamento, com a consequente formação das fazendas de criar. Trata-se do deslocamento de certa população, em geral famílias inteiras, que, devido ao esgotamento dos veios auríferos na Capitania das Minas Gerais, encaminhou-se para os campos do Rio Pardo, no antigo Caminho de Goiás. Para chegar a atual região de Ribeirão Preto, os entrantes costumavam partir do arraial de Nossa Senhora do Desterro do Rio das Velhas do Desemboque em direção ao sertão do Rio Pardo, estabelecendo como suas bases os antigos pousos, entre os quais Franca, Batatais, além de Mogi Mirim, São Simão e Caconde, onde se apossavam de terras desabitadas no entorno, derrubando a mata, plantando roças e criando gado nos campos (BRIOSCHI, 1999). Era costume entre as famílias, antes de adquirir, enviar alguém para reconhecer as terras e tratar com quem de direito, no caso de compra. Depois de acertado o lugar da posse, da limpeza do terreno, de plantadas as primeiras roças e levantadas as habitações (em geral choupanas, para, futuramente darem lugar às casas mais sólidas), o restante dos parentes se instalava.
A esse movimento de ocupação, entre o final do século XVIII até as duas primeiras décadas do XIX, seguiu a legitimação da posse, que acontecia fosse pelo reconhecimento, para os primeiros entrantes, ou pela requisição de novas sesmarias e pelas transações de terra para os que vieram a seguir. O caso da família Junqueira, originária de Minas Gerais, é ilustrativo, pois começaram a se estabelecer no Nordeste paulista na primeira década do século XIX. Desde 1814 já havia notícia de posses de um Junqueira, o capitão-mor Francisco Antônio Junqueira, em Batatais, sendo que, em 1822, de acordo com Brioschi (1999), sua família constou no recenseamento da região. Até o final da segunda década do século XIX “seis casais de netos do patriarca português constituíram a primeira geração da família no Nordeste de São Paulo” (BRIOSCHI, 1999, p. 67). Da segunda década do XIX até o seu final, os Junqueira adquiriram extensas posses de terras, lançando mão dos vínculos parentais naturais e adquiridos (entre irmãos e primos, no primeiro caso, e cunhados, noras e genros, no segundo) para realizar transações entre si (trocas, por exemplo) e com isso concentrar amplas áreas que hoje cobririam os municípios de Morro Agudo, Orlândia, Batatais, Cravinhos, Ribeirão Preto, Sertãozinho, alcançando até Bebedouro e Barretos.
Um aspecto importante da tutela, sobretudo, quando relacionada aos processos que envolviam heranças, é a permanência dos bens herdados na teia familiar. Vem de longa data em Ribeirão Preto essa associação entre posse, bens e família, uma vez que a primitiva formação da rede fundiária ocorreu em razão da ocupação da terra por famílias (BRIOSCHI, 1999). Com isso, os casamentos contribuíam para que alianças familiares se consolidassem, ampliando bens e influência, de sorte que a tutela não escapava a esse uso, porquanto atendia ao propósito de concentrar bens no corpo familiar a fim de evitar sua dispersão.
Outro uso da tutela, por sua vez, era o de servir-se, com o reconhecimento do judiciário, do trabalho prestado por crianças. Os contratos de soldada, no qual é literalmente firmado um contrato entre um adulto e um menino ou menino e sua família, previam que uma parte prestasse serviços a outra e em contrapartida o beneficiário dos serviços tinha por obrigação remunerar esse trabalho e cuidar da educação de quem estava sob sua tutela. Esse é outro uso frequente da tutela em Ribeirão Preto devido à quantidade de processos existentes no acervo do Primeiro Ofício da Comarca. São processos resultantes de querelas entre as partes arbitradas por um juiz quando do desacordo sobre a remuneração não recebida ou sobre o descumprimento do que fora acordado entre menores e contratantes.
Até que o Asilo Anália Franco, o primeiro orfanato de Ribeirão Preto, fosse inaugurado em 1917, a tutela e a soldada respondiam pela formalização do encaminhamento de crianças a outras famílias que não as suas naturais. Era o que se aplicava tanto para os que não tinham pais, ou só a mãe, e que eram criados por outros a quem serviam com seu trabalho.
A resposta institucional, como sendo aquela estranha em relação à prática da tutela, fosse a reconhecida pela autoridade judiciária ou aquela informal, tão mais frequente, começou a se instalar em Ribeirão Preto com o Asilo Anália Franco. No mesmo ano da criação dele, 1917, outro exemplar de instituição corrente no início do século XX, o instituto médico-higiênico, chega a cidade com a criação do Instituto de Assistência à Infância, concebido pelo médico Antonio Gouveia. Mais tarde, em 1922, foi instalado o Patronato Agrícola “Diogo Feijó”, mantido pelo Ministério da Agricultura com congêneres em outras cidades e estados brasileiros. Por último, em fins da década de 1930 foi idealizada uma escola profissional para receber meninos órfãos, o Educandário “Quito Junqueira”, de fato concretizada em 1944.
A partir do Asilo Anália Franco o orfanato - modelado para receber crianças muito novas e mantê-las por tempo prolongado, tendo nesse percurso a interposição da instrução para o trabalho e de alguma educação escolar - passa a se colocar como um possível destino das crianças, especificamente meninas, abandonadas, órfãs ou entregues por familiares. O livro de matrícula do Asilo, desde sua fundação em 1917, mostra que ele se projetou regionalmente como uma alternativa para receber meninas órfãs ou receber por tempo determinada aquelas cujos pais apelavam por ajuda (ASILO, 1917). Nesse sentido, nos dez primeiros anos de atividade do asilo há registro de entradas de meninas provenientes de Sertãozinho, Franca, São Simão, Serrana, Cravinhos, Brodósqui, Batatais e Bebedouro que, embora numericamente menores que as ingressantes de Ribeirão Preto, não invalida o fato de que a região de algum modo sabia existir uma alternativa para meninas desamparadas que não apenas deixa-las para criar na família de outrem.
Para se colocar como capaz de criar suas internas, o asilo riberião-pretano chegou a aplicar um programa que contemplava dos cuidados à educação escolar das meninas que recebia. Em 1925, o relatório da administração informava sobre o que se oferecia à internas:
A essas menores, dá o Asylo:
a) abrigo e alimentação;
b) vestuário;
c) educação doméstica;
d) instrução primária e profissional;
e) assistencia médica e:
f) assistencia dentária em gabinete próprio. (ASILO, 1925, p. 2)
O Asilo mantinha creche, escola primária, escola de datilografia e escola profissional em suas instalações para suas internas a fim de cumprir esse programa. Assim os mantenedores do Asilo tinham certo que esse percurso era adequado ao que se esperava de toda interna quando da época de sua saída: cuidar de si e formar família. Como qualquer congênere de seu tempo, o asilo ribeirão-pretano centrava no trabalho as aulas que oferecia, as oficinas, os afazeres da casa e os valores que escolhia ensinar. O trabalho era o mote da pedagogia dos estabelecimentos que praticavam a assistência institucional. Fossem liceus, orfanatos, asilos ou assemelhados onde as crianças não eram apenas abrigadas, mas permaneciam por alguns anos, a rotina se organizava priorizando trabalhar, quando a exigência era cuidar da casa, e aprender a trabalhar fazendo, no caso das oficinas. Nesse sentido, o Asilo Anália Franco se modelou conforme a cultura da assistência à infância em ambientes institucionais vigente em sua época. A simultaneidade com que essa cultura era praticada desde que os primeiros seminários se estabeleceram pela capital e por cidades do interior (como aquelas do Quadro 4) continuou a constar nas gerações seguintes de estabelecimentos (entre os quais os do Quadro 5) e alcançou o ano em que foi criado o asilo de Ribeirão Preto. Pesa para tanto a ligação com o legado da patronesse do asilo, Anália Franco, líder e fundadora da Associação Feminina Beneficente e Instrutiva, a AFBI.
O princípio guia do asilo ribeirão-pretano de assentar a educação das educandas sobre o trabalho e sobre a sua escolarização condiz com o que Anália Franco prescrevia - e praticava - nas escolas ligadas à AFBI. Interessava que as egressas, antes internas, deixassem a instituição tendo meios de se prover, mas não apenas isso, como também escolarizadas e instruídas. Isso valia para Anália Franco e também para o asilo ribeirão-pretano. E valia, como de fato valeu, também para outros congêneres que antes haviam dado abrigo a meninas desvalidas, a exemplo do Seminário da Glória, na capital paulista.
Os outros exemplares da assistência institucional em Ribeirão Preto e que se igualam aos usuais modelos do reformatório e do instituto de puericultura (ou médico-higiênico) são o Patronato Agrículo “Diogo Feijó” e o Instituto de Proteção e Assistência à Infância. O primeiro chegou à cidade por obra do Ministério da Agricultura, que em 1918 criara o patronato nos moldes de um reformatório, com acentuada ênfase no trabalho agrícola como capaz de reformar menores. Já o instituto ribeirão-pretano era cópia fiel do original Instituto de Proteção e Assistência à Infância, o primeiro sediado no Rio de Janeiro, concebido e concretizado pelo médico Moncorvo Filho.