A escrita da história do Brasil entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX pode ser lida como uma operação que buscou construir novos passados reiterando representações relativas à unidade nacional ancoradas nos conceitos de Nação, Estado e Povo, sob o signo da modernidade e do progresso. Convém lembrar que mesmo após a independência, a noção de pátria era ambígua, podendo denotar tanto as províncias como o Brasil (Carvalho, 2002). Urgia, portanto, investir na consolidação do sentido de pátria como representante da Nação, o Brasil, e não mais as unidades políticas que o formavam. Essa questão esteve presente no Império, mas tornou-se central no projeto republicano. Nesse movimento os historiadores que escreviam sobre as (e a partir das) diferentes regiões do território brasileiro enfrentavam o desafio de, ao ressaltar as singularidades de sua região, não fraturar a pretensa homogeneidade cultural necessária à invenção e/ou reiteração do ideal de Estado-Nação republicano.
A história, sobretudo aquela escrita sob a responsabilidade do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e seus congêneres, serviu ao propósito de legitimação das fronteiras politicas e administrativas, bem como da construção de um passado e tradição comuns que destacasse as especificidades de cada região e sua respectiva contribuição para a grandeza da nação. Instaurava-se aí um discurso de longa duração que estabelecia uma clara hierarquia da nação em relação à região que, por sua vez, também posicionaria as identidades nacionais como normativas e hegemônicas e as regionais como desviantes e secundárias, numa operação marcada pela “metanarrativa hegemônica da nação” (Weistein, 2003, p. 23)3.
A obra historiográfica de Lucas Alexandre Boiteux relativa a Santa Catarina é um exemplo disso. Como homem de letras, aqui caracterizado como indivíduo voltado para o estudo, a leitura e a vida em gabinetes (Chartier, 1996, p. 160), ele viveu as ambiguidades e contradições de um período de transição entre o século XIX e o XX, entre o regime imperial e o republicano, participando de um estrato dos que “se reconheciam e queriam ser reconhecidos como historiadores em uma categoria mais abrangente de intelectuais” (Gomes, 2009, p. 9). Sua produção histórica foi bastante vasta, e a circulação de seus trabalhos se deu em diferentes lugares. Ele teve mais de uma centena de artigos publicados em diferentes jornais e revistas de abrangência local e nacional, sendo o mais importante deles o Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, no qual colaborou entre 1911 e 1959 (Cunha, 1982). Preocupava-se em divulgar seus estudos também em diferentes fóruns acadêmicos; em 1914, por exemplo, participou do primeiro Congresso de História Nacional, promovido pelo IHGB. Nesses diferentes espaços o autor dividia sua produção entre a história catarinense e a história naval.
Para a discussão proposta neste artigo serão analisados alguns documentos pertencentes a Lucas Boiteux e parte da sua obra, destacando-se três livros: Notas para a História Catarinense4 (Figura 1), 1912, Pequena História Catarinense, 1920, História de Santa Catarina - Resumo Didático, 1930. Compreende-se que esses documentos não têm relação “imediata e transparente com as práticas que designa” (Chartier, 2011, p. 16), e por essa razão serão lidos como representações de um tempo passado, de um determinado projeto social e político que fizeram circular formas de ver e perceber o mundo. Processos que são, antes de tudo, construções sociais situadas no tempo, nos espaços físico e simbólico habitados por Boiteux e que informam os projetos aos quais ele aderia tanto quanto os que rechaçava. (Figura 1; Figura 2; Figura 3)
A publicação do livro Notas para a História Catarinense, em 1912, (Figura 1) alcançou ampla repercussão entre intelectuais e políticos do Estado ligados ao Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina (IHGSC) e serviu para divulgar a representação da existência de “um espaço” e de “uma gente” catarinenses. O investimento de legitimidade conferido a Lucas Boiteux por seus pares relativo à escrita de uma história de Santa Catarina o credenciaria como aquele a quem caberia a responsabilidade de divulgá-la nas escolas. A ideia é discutir sobre a escrita dessa história por Boiteux e sua didatização que a habilitava para uso escolar. Pretendemos, assim, contribuir para duas ordens de reflexão: uma sobre as relações de aproximação e distanciamento entre uma dada escrita acadêmica e o saber escolar e outra sobre traços de longa duração relativos à nação e suas repercussões na representação de uma história regional.
Um lugar: Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina
Em Santa Catarina as tarefas de pensar sua história, bem como construir uma narrativa sobre o Estado que pudesse ser objeto de divulgação entre os pares e também ensinada nas escolas, nas primeiras décadas do século XX, foram realizadas sob forte aproximação com os intelectuais e políticos que compunham a “sociedade do discurso” (Gomes, 2009, p. 65) catarinense, ou seja, o IHGSC. Guardando as devidas especificidades, grosso modo podemos dizer que essa relação tem ressonâncias5 com aquela mantida entre o IHGB e a História como disciplina escolar, evidenciada em diferentes pesquisas realizadas (Fonseca, 2006; Gasparello, 2004; Bittencourt, 2008; Abud, 2005). Assim como ocorreu na cidade do Rio de Janeiro: forte associação entre a história dita acadêmica e a escolar. Ou seja, a história produzida pelo IHGB passava às salas de aula por meio de livros didáticos muitas vezes escritos pelos próprios membros do Instituto, que por sua vez também exerciam o papel de professores da disciplina (Fonseca, 2006, p. 46) em instituições como o Colégio Pedro II e em escolas normais. Nas primeiras décadas do século XX, em Santa Catarina, de igual maneira, os livros sobre história, que poderiam fornecer os aportes para os programas das aulas de história local ou regional, eram escritos pela elite intelectual catarinense, que fazia parte do IHGSC.
Civismo, educação e pátria estavam simbolicamente atrelados ao projeto de país republicano em construção no início do século XX. A ideia de povo como dependente, ignorante, súdito do império precisava ser deixado para trás. Urgia educá-lo e civilizá-lo para o experimento dos valores e ideais republicanos. Esses sentidos estão disponíveis na reiteração da missão do Instituto. Exemplo disso pode ser acompanhado na sequência da apresentação da Revista, quando do discurso do presidente do IHGSC sobre a comemoração do 11o aniversário da Constituição da República:
Foi assim que, há 5 anos passados, um pequeno grupo de homens patriotas e ousados fundou o Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. Agora, no momento em que vos falo, temos um número de sócios 10 vezes maior, nos correspondemos com todas as sociedades congêneres do país. [...] Hoje nos reunimos aqui a fim de, em sessão solene, comemorar o aniversário da promulgação da Constituição da República, comprovando assim que o nosso Instituto cumpre seu dever histórico vindo recordar e festejar uma data gloriosa da história Pátria. [...] Todos vós sabeis que há muito quem julgue precisar a nossa magna carta ser reformada em mais de um ponto: e nós que a defendemos tenhamos a coragem de ser lógicos, de 1889 e só assim teremos nosso ideal - a Pátria grande e unida constituindo uma verdadeira fraternidade e uma perfeita igualdade realizando por inteiro o programa de 15 de novembro. (RTIHGSC, n. 1, vol. 1, 1902, p.9-10). Grifos nossos.
Luiz Cavalcante de Campos Mello, presidente do IHGSC à época e então deputado estadual, deixa explícito em seu discurso que o compromisso do Instituto centrava-se no dever histórico com a pátria. As representações sobre a história pátria e o dever cívico, dadas a ler nos excertos acima, são chaves de leitura importantes para que possamos compreender o lugar ocupado pelo “pequeno grupo de homens patriotas e ousados” quando chamaram para si a responsabilidade de educar cívica e intelectualmente os catarinenses.
Os sócios do Instituto eram principalmente pessoas ligadas à política do Estado, ou pelo menos pessoas que ocupavam lugar social com alto prestígio simbólico. Em razão da posição que ocupavam, das redes de relações das quais participavam, e da importância que se investiam, legitimavam-se como aqueles que possuíam o dever de preservar a memória e escrever a história de Santa Catarina. Afinal, com a República, era preciso reinventar a pátria a partir de um passado comum a ser construído, forjado. A história do Brasil e a de Santa Catarina precisariam ser narradas sob a égide de outro projeto político. Nessa (re)escrita da história impunha-se a necessidade de se projetar a modernidade, o progresso, prerrogativas da construção de uma “pátria grande e unida”.
Segundo Ângela de Castro Gomes (2009; 2010), no Brasil, entre o final do século XIX e início do XX, os campos intelectual e político são de difícil distinção, muito embora se perceba uma relativa e crescente autonomia nas dinâmicas de cada um. A partir desse pressuposto compreendemos os sócios do IHGSC como intelectuais, a despeito da falta de consistência teórica e principalmente empírica que subsidie a separação da atuação do intelectual da atuação do político no período aqui abordado. Isso porque, ainda acompanhando as análises dessa historiadora, os sujeitos que compunham o Instituto catarinense eram produtores de bens simbólicos, produtores de interpretações da realidade social de grande valor político, sendo identificados pela propriedade de capital cultural e que estavam envolvidos direta ou indiretamente na arena política (Gomes, 2010, p. 147-148).
Importante chamar a atenção para o caráter polissêmico e móvel da noção de intelectual na história. Essa dimensão foi destacada por Jean-François Sirinelli (2003), para quem os critérios de definição do termo precisam admitir variáveis baseadas em invariantes. No caso francês, Sirinelli (2003, p. 242-243) defende que as invariantes permitem duas acepções do intelectual. Uma ampla e sociocultural, que engloba os criadores e os “mediadores” culturais (nessa categoria incluem-se tanto o jornalista como o escritor, o professor secundário e o erudito), e outra mais estreita, baseada na noção de engajamento na vida da cidade como autor. Pensamos que, também para o caso brasileiro, essas invariantes são válidas. Guardadas as devidas especificidades do cenário político e cultural de Santa Catarina, grosso modo pode-se aferir que os sócios do Instituto não só mediavam e produziam bens culturais no âmbito local como também estavam engajados nos projetos políticos coletivos da época, em escalas regional e nacional.
A atuação e circulação dos sócios do IHGSC apresentam indícios de sobreposições das acepções de intelectual às quais se refere Sirinelli (2003). O Instituto foi fundado em 1896 por José Arthur Boiteux (1864-1934), jornalista e advogado que acabou ocupando importante cargo no executivo estadual durante o governo de Hercílio Pedro da Luz. Convém destacar que entre os demais sócios estão principalmente advogados, jornalistas, engenheiros civis, militares, desembargadores e juízes de direito que mantinham fortes relações com a política do Estado. Faz-se importante notar também que muitos dos sócios do IHGSC, no período estudado, também eram professores nos cursos secundário e normal de Florianópolis, ocupavam cargos no executivo estadual, escreviam para os jornais locais, publicavam livros que inclusive seriam adotados oficialmente nos grupos escolares e cursos normais no Estado, movimentando-se todos da esfera cultural ao campo político.
Como exemplo dessa circulação e atuação citamos o próprio José Arthur Boiteux, que, para além da participação no governo estadual, fundou instituições importantes (além do IHGSC), como a Faculdade de Direito, a Academia Catarinense de Letras, o Instituto Politécnico com ambições de ensino superior. Lucas Boiteux era irmão de José Boiteux, almirante da Marinha, era sócio do Instituto e foi seu presidente entre 1914 e 1920. Outro sócio com atuação significativa nos âmbitos político e educacional foi Henrique da Silva Fontes (1885-1966), que atuou em diferentes cargos públicos de relevância política e, ao mesmo tempo, lecionou em diversos estabelecimentos escolares de Florianópolis. Foi também membro da Academia Catarinense de Letras e um dos fundadores da Faculdade de Direito e posteriormente da Universidade Federal de Santa Catarina. Ressalte-se ainda sua condição de autor de cartilhas escolares conhecidas como Série Fontes, distribuídas gratuitamente na rede de Instrução Pública de Santa Catarina e adotada também nos estabelecimentos de ensino privados, entre a década de 1920 e meados da década de 1950 (Silva; Flores, 2010).
A produção historiográfica catarinense foi alvo de um estudo de Cristina Scheibe Wolff (1994, p. 6) que analisa que seria “possível vislumbrar a existência de um grupo formado por obras que se pretendem estaduais [geralmente oriundas dos membros do IHGSC] e que dão grande importância a eventos políticos de âmbito estadual”. Parece importante destacar que essas obras, como alvo de inflexões intelectuais daquele momento, circularam nas escolas do Estado e divulgaram preceitos e hábitos considerados importantes para a consolidação desse modelo de história centrado em um conjunto específico de ações que exaltavam as condutas exemplares dos heróis como ícones da pátria.
Em perspectiva semelhante, a historiadora Janice Gonçalves (2006) - em sua análise da historiografia sobre Santa Catarina - observa que as ações do IHGSC foram marcadas pelo claro posicionamento em favor da integridade territorial catarinense e nacional, que seria fundamental para a construção e divulgação das noções relativas à “pequena pátria”. A perspectiva patriótica do IHGSC é a alavanca inicial do comprometimento dos seus membros com a escrita da história catarinense, perspectiva essa que “nem mesmo o recalque dos regionalismos promovido pelo governo de Vargas, em especial durante o Estado Novo, conseguiu alterar” (Gonçalves, 2006, p. 75). Na revista do Instituto catarinense, bem como na obra de Boiteux, há várias passagens que denotam o investimento de ressignificação do sentido de pátria e pequena pátria, de atribuição de contornos relativos ao que é nacional e ao que é regional. Se no Império a ideia de pátria aparecia nos discursos como referência afetiva à província em contraste com o Brasil, que seria o “Império” (Carvalho, 2002, p. 77), no início do século XX os defensores do projeto republicano vão buscar significar a pequena pátria como parte integrante e a serviço da grande pátria ou pátria-mãe.
Um autor: Lucas Alexandre Boiteux
Filho de pais brasileiros, de descendência francesa e suíça por parte do pai, o coronel Henrique Carlos Boiteux, e açoriana por parte da mãe, Maria Carolina Jacques Boiteux, ele nasceu em Nova Trento, Santa Catarina, em 23 de outubro de 1880 e faleceu no Rio de Janeiro em 16 de dezembro de 1966. Iniciou os estudos das primeiras letras numa escola mista em Nova Trento e aos 13 anos incompletos iniciou os estudos no Colégio Jesuítico de “São Luiz Gonzaga”, em Itu, São Paulo. Contudo em 1895 retornou a Santa Catarina, onde passou a estudar no prestigiado Ginásio Catarinense, em Florianópolis. Em 1897, com a aprovação nos exames para a Escola Naval, ele iniciaria a carreira militar, que lhe permitiu alcançar o almirantado (Cunha, 1982; Piazza, 1996). Essa condição o faria passar a maior parte da vida no Rio de Janeiro, com intervalos de alguns anos prestando diferentes serviços à Marinha em Florianópolis (Piazza, 1981, p. 31). Em 1904 casou-se com sua prima Diamantina Dorvalina Demaria, filha de negociante e na época cônsul da Argentina no Brasil, João Bonfante Demaria. Teve 12 filhos (Cunha, 1982).
Ele pertenceu a uma família de militares, intelectuais e políticos influentes no Estado, destacando-se as relações estabelecidas com seu irmão, José Arthur Boiteux, reconhecidamente republicano ainda antes da Proclamação da República. O próprio Lucas Boiteux transitaria entre as questões historiográficas e políticas do Estado (por exemplo quando participou da comissão de demarcação de limites entre Santa Catarina e Paraná nos anos de 1918 a 1922), incluindo aquelas referentes à educação. Ao que consta, chegou a atuar como professor do Ginásio Catarinense, conforme observa Dallabrida (2001, p. 105). Documentos localizados em acervo do IHGSC informam sua participação como avaliador em bancas de exames finais nas Escolas Normais do Estado na década de 1930. Cartas também mostram uma constante comunicação com figuras políticas e/ou intelectuais importantes no Estado, em que se debatiam temas sobre história catarinense e até disputas entre seus colegas do IHGSC, que ele mediava e sobre as quais não se furtava em dar sua opinião.
É lembrado pelos pares como historiador dedicado, frequentador assíduo de bibliotecas e arquivos. É autor de numerosas obras sobre a história de Santa Catarina, tendo pertencido a diversas entidades culturais como o IHGB, a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, o IHGSC e a Academia Catarinense de Letras. Além da história regional ele se notabilizou também como historiador de temas navais com vasta produção historiográfica. Desde 1911, passou a residir na cidade do Rio de Janeiro e na então capital federal se fez articulista constante do Jornal do Comércio, tendo ali publicado entre 1911 a 1959 cerca de 200 artigos6 principalmente sobre história naval brasileira e história de Santa Catarina.
Três livros: Notas para a História Catarinense, Pequena História Catarinense e História de Santa Catarina - Resumo Didático
As primeiras décadas do século XX foram marcadas pela escassez de produção e circulação de obras sobre história de Santa Catarina. Isso se deve em parte à constituição tardia (em relação aos demais Estados do Sul e do Sudeste) de uma chamada rede editorial no Estado, algo que só se efetivaria a partir da década de 1980, com a implantação da Editora da UFSC (Hallewell, 2005). Na ausência de uma rede editorial, mesmo com a presença da tipografia em Santa Catarina desde a década de 18307, foi o Estado que se ocupou em financiar a produção e circulação das obras relativas à história local e/ou regional na primeira metade do século XX, através da Imprensa Oficial, condição que ainda guarda resíduos e se faz atual. A maior parte dos livros de história dos municípios é financiada pelas prefeituras e os livros didáticos de História de Santa Catarina publicados exclusivamente com o financiamento do Estado ainda são uma realidade.
A configuração do (inexistente) mercado editorial, o lugar ocupado pela família Boiteux nas redes sociais e culturais no contexto da época, a condição de militar e de membro no IHGSC foram algumas das condições que concederam ao capitão-tenente Lucas Alexandre Boiteux legitimidade para a escrita da história de Santa Catarina. Seguramente, ele foi um dos principais responsáveis pela construção de uma narrativa sobre a história de Santa Catarina. E essa narrativa era, sobretudo, eloquente e patriótica, enfatizando os grandes fatos e os grandes homens - heróis da história nacional.
Pode-se afirmar que o livro Notas para a História Catarinense (Figura 1) é uma história dos acontecimentos, muito próxima do ideal de narrativa descrita por Von Martius (1845, p. 402), para quem a História seria antes de tudo um epos. Sua escrita investe na construção de certa singularidade que definiria Santa Catarina e sua gente, mas circunscrevendo-a de modo importante como parte da história nacional. Tal investimento parece repercutir as lições de Von Martius no que se refere ao lugar que as histórias das províncias deveriam ocupar na escrita da história do Brasil. Segundo os estudos de José Honório Rodrigues (1969, p. 130-131), a monografia de Von Martius foi muito apropriada pelos nossos intelectuais para a escrita das histórias regionais, pois continha muitas ideias gerais sobre a escrita da história brasileira que serviram, posteriormente, de ponto de partida para vários trabalhos de histórias regionais. Nessa percepção, Von Martius propunha que:
Para evitar o conflito das histórias especiais [regionais] de cada província, que então se andava propondo, lembrava que melhor seria tratar conjuntamente daquelas porções do país que, por analogia de sua natureza física, pertencessem umas às outras, ou seja, que se fizessem histórias dos grandes grupos regionais [...]. Era, assim, a primeira sugestão de história regional que se fazia em nosso país (Rodrigues, 1969, p.131).
O fato é que a ideia de formação nacional, carregada de noções que atrelavam a defesa da pátria à garantia de unidade territorial, acabou por sobrepor essas representações na escrita da história regional, alçada, no caso de Santa Catarina do final do século XIX e início do XX, à condição de “pequena pátria” ressignificada na perspectiva de integrar o Estado ao todo da nacionalidade. Lucas Boiteux dividia a História em Universal, Geral e Particular. A partir disso ele definiu a história de Santa Catarina como uma história particular, “porque só se ocupa da evolução de um Estado, da parcela de um povo, qual é o brasileiro” (Boiteux, 1916, f. 3). A noção de região adquire nessa definição um caráter particular em relação à nação. Nota-se que Boiteux reitera uma hierarquia entre os tipos de abordagens históricas. Na relação entre geral e particular a história de Santa Catarina construía-se a partir de uma ideia de história nacional instituída como regra.
O livro de 1912 possuía 436 páginas, capa dura em vermelho, medindo 16 cm x 23 cm. Na abertura as marcas de sua legitimidade e também financiamento: uma reprodução de retrato do Coronel Vidal de Oliveira Ramos (governador do Estado à época) ocupando uma página inteira. Em sua apresentação, intitulada Duas palavras, ele fala diretamente aos seus interlocutores “Meus patrícios: aqui tendes os resultados de alguns anos de trabalho na reunião de documentos e notícias acerca da história de nosso estremecido torrão natal” (Boiteux, 1912, p. V). O estremecimento da pequena pátria catarinense aludido nesse início da apresentação poderia se referir tanto aos rescaldos dos conflitos da Revolução Federalista, de 1893, quanto às contendas com o Estado vizinho, Paraná, em relação a uma área contestada pelos dois Estados. Mas se ela é estremecida é também fecunda e pródiga; e a apresentação termina com o anúncio do desejo de Lucas, que ele possa ser útil à sua terra natal.
A história de Santa Catarina começa com a epopeia das grandes navegações, e segue seu itinerário exaltando as ações ora dos soldados ora das figuras políticas catarinenses. As guerras ocupam um lugar importante em sua narrativa, e seus personagens, sobretudo os brasileiros e os catarinenses, são corajosos e sempre dispostos a lutar pela causa nobre, que é a pátria. Sobre a disputa territorial entre Portugal e Espanha, enfatiza em tom laudatório: “Continuavam os soldados catarinenses a prestar seu grande devotamento à causa nobre e justa da reconquista do Rio Grande” (Boiteux, 1912, p. 238).
Destacamos que parte de seu discurso dedicava-se justamente a enfatizar a participação de membros da Marinha e do Exército na história do Brasil e de Santa Catarina. Como integrante dos quadros da Marinha Nacional, tal expediente pressupõe um espirit de corps, “constituindo-se num elemento de unidade e de adesão a um projeto comum de formação de corpos e almas” (Alves, 2002, p. 31). Boiteux dedicava páginas de suas produções aos muitos retratos dos grandes heróis catarinenses na Guerra do Paraguai, na sua maioria militares e membros do Exército e da Marinha, sempre exaltando, em suas falas, a coragem que fez parte da postura dos cidadãos catarinenses naquele período. Essa seleção dos homens dignos de lembrança funcionava como um modelo masculino e um ideal identitário, ao mesmo tempo que reforçava a ideia de uma história como mestra da vida, em que o passado com seus exemplos revelava ensinamentos para as ações no presente. Um dos expedientes utilizados para tal eram construções retóricas destinadas a mobilizar sentimentos, como nas duas referências abaixo transcritas:
Sobre a Guerra do Paraguai,
Não tendo sido aceitos os seus oferecimentos, sentiu-se Solano Lopes ferido no seu amor próprio; vinga-se aprisionando o vapor nacional Marques de Olinda a 14 de Novembro e um mês após nos declara guerra. Não temos em vista aqui historiar tão sanguinolenta e heroica campanha, cheia de tantos exemplos gloriosos e lances épicos, mas somente mostra como os catarinenses se portaram ante o altar da pátria ultrajada no decorrer de tão longa e porfiada luta (Boiteux, 1912, p. 369).
Para José Murilo de Carvalho (2002, p. 78) a guerra contra o Paraguai teria sido “o principal fator de produção de identidade brasileira”. Durante a guerra (1865-1870) discursos na imprensa, poesias e canções populares passariam a ser referir ao Brasil como um todo nacional. A narrativa de Boiteux sobre o acontecimento, a valorização dos heróis e a identificação de catarinenses reitera a imagem de nação e o lugar de Santa Catarina em tal projeto. Como quando ele destaca o papel das mulheres catarinenses:
As senhoras catarinenses, mostrando também o seu grande entusiasmo pela causa sagrada do Brasil, bordaram uma linda bandeira nacional, que ofereceram ao brioso 25o Batalhão de Voluntários. Essa bandeira existe ainda guardada na Superintendência Municipal da Capital, porém em mísero estado de conservação, pois um dos Superintendentes do atual regime cometeu o crime de despojá-la de seus cordões e estrelas de ouro para com eles adornar os bonés dos fiscais!!! Mísero farrapo glorioso, digna e honrosa representação da bravura catarinense, a que te reduziram! (Boiteux, 1912, p. 371)
Sobre a episódica participação feminina na Guerra do Paraguai, cabe uma reflexão feita pelo historiador George Lachmann Mosse (1996). Segundo ele, tanto imagens masculinas quanto femininas tornaram-se símbolos públicos que, em diferentes contextos, representaram a nação. Mulheres como símbolos nacionais, no entanto, geralmente não incorporaram as normas socialmente consideradas válidas, tais como as virtudes projetadas para a masculinidade, mas sim as qualidades de mãe da nação. Como um símbolo público, a mulher também exemplifica valores sociais normativos por meio de sua aparência calma e postura passiva. Nesse sentido, a obra de Lucas Boiteux Santa Catarina nas guerras do Uruguai e Paraguai8 (1972) ratifica essa proposição, quando do relato sobre a oferta de bandeira ao 25o Batalhão de Voluntários, já referido anteriormente:
Porque a mulher catarinense, sempre meiga e sensível, não quis que seus irmãos partissem para os campos de batalha sem levar como um palácio augusto, o símbolo do Brasil, doado por suas delicadas mãos e regado com suas puras lágrimas (Boiteux, 1972, p. 157).
Era o contraponto à imagem de masculinidade, portanto. Essas imagens femininas geralmente usavam vestidos antigos, olhando para trás, como Germania, Brittania ou mesmo Marianne, que após a revolução foi na maior parte matronal na aparência. Esses símbolos geralmente não eram dependentes de mudanças na própria nação, republicana ou monárquica, e representaram de forma constante o pensamento dos antigos valores que a nação deveria preservar (Mosse, 1996, p. 8).
A repercussão da obra entre os intelectuais e políticos ligados ao Instituto e ao governo estadual certamente resultou no convite feito por Orestes Guimarães9 para que ele fizesse uma adaptação da “sua” história para o uso escolar. Há longos trechos de textos chamados de “Súmula”, datados de 1916, que indicam ser o processo de adaptação do livro realizado por Boiteux. Datilografados e com anotações nas margens feitas a mão, esses textos trazem apontamentos sobre a história, de modo geral, e a história de Santa Catarina, em particular. Na apresentação também intitulada Duas palavras, ele escreve:
O ilustrado professor paulista Orestes Guimarães, chamado em boa hora para remodelar a Instrução Pública entre nós, em palestra que entreteve comigo, animou- me a fazer um resumo das minhas - NOTAS PARA A HISTÓRIA CATARINENSE - que servisse não só de guia aos professores na explanação aos alunos como a estes no preparo de suas lições. Embora com o tempo tomado por inúmeros afazeres dele consegui poupar algumas horas, que foram aplicadas na súmula, que ora apresento. Não sei, francamente, se consegui realizar o desejo do experimentado mestre. Que viesse a satisfazer o escopo prefixado foi a minha intenção ao tentá-lo. Se ela prestar serviço útil à mocidade da minha terra, terei com isso a maior satisfação e largamente compensado o meu trabalho. Florianópolis, 7 de setembro de 191610.
Essa apresentação não consta no livro Pequena História Catarinense, (Figura 2) publicado em 1920 - em seu lugar, traz-se o seguinte texto, intitulado Prefácio:
Como prólogo desejo, apenas, tomar dois trechos d’ouro de Emilio Faguet11, nada mais. Diz ele: ‘o amor da pequena Pátria é a própria essência do patriotismo, porque a pequena Pátria é a que amamos instintivamente e que não precisa de ser admirável para ser admirada nem de ser amável para ser amada’. E: ‘Pode o historiador não ser um patriota, mas, em que lhe pese, será um semeador de patriotas’. Foi assim pensando que me animei a escrever o presente livrinho. Que a sagrada semente, que procuro difundir, caia em campo feraz é o meu maior anhelo. Florianópolis, 02 de maio de 1919.
Pequena História Catarinense (Figura 2) foi financiada pelo governo de Santa Catarina para atender às Escolas Normais e aos quartos anos dos Grupos Escolares. Ambos os livros cobrem os mesmos conteúdos, com algumas poucas mudanças observadas em alguns títulos (ver tabela com o sumário das obras adiante). Ao comparar o conteúdo dos dois livros, de 1912 e 1920, fica evidente que Lucas Boiteux elaborou a versão didática principalmente resumindo os textos e acrescentando diferentes ilustrações em preto e branco: fotografias, mapas, gravuras e autógrafos de diferentes personalidades políticas conhecidas. A versão didática possui 131 páginas e é um pouco menor que o livro de 1912: 14 cm x 20 cm. Na versão didática sua adoção oficial é informada na capa e legitimada pela reprodução, já na abertura do livro, dos decretos assinados pelo governador em exercício à época, Hercílio Pedro Luz, e dos pareceres de Henrique da Silva Fontes, diretor de instrução pública, e Orestes Guimarães, inspetor geral do ensino. Esse processo informa que a escrita, o financiamento e a adoção oficial da Pequena História Catarinense (Figura 2) remetem para o controle e a interferência do Estado na história da produção didática, conforme analisou Circe Bittencourt (2008) em suas pesquisas.
Importa notar também que a versão didática não apresenta atividades de nenhuma ordem. Muito embora houvesse discussões sobre metodologias de ensino, sobretudo sob os ideais escolanovistas, a maior parte dos livros ainda acabava valorizando os conteúdos. A produção destinava-se quase que somente aos professores e estudantes das escolas normais e, em alguma medida, dos secundários. Lembramos que a oferta de obras didáticas ainda era escassa nas décadas de 1920 e 1930, com custo elevado, portanto não estava acessível à maior parte da população escolar (Bittencourt, 2008).
A filiação de Lucas Boiteux ao IHGSC e ao IHGB, bem como o lugar legitimado como autor de uma história catarinense, certamente foi credencial importante para o convite da Editora Melhoramentos para que ele publicasse sua história de Santa Catarina na série Resumo Didático. Coleção de livros escolares de história regional publicados entre 1918 e 1936, inédita no período, era organizada com o apoio dos historiadores Afonso d´Escragnolle Taunay e Oliveira Lima, próximos aos editores. A série destinava- se aos professores das escolas primárias e aos alunos das Escolas Normais dos Estados. Os autores convidados compõem um grupo de historiadores de diferentes Estados, tendo em comum sua filiação ao IHGB ou aos seus congêneres nos Estados. Constituíam, assim, um grupo de intelectuais ligados à produção historiográfica e, com algumas exceções, sem vinculação direta com os problemas educacionais da escola primária. O primeiro livro foi de autoria de Rocha Pombo, História do Estado de São Paulo, em 191812 (Figura 4). Ao todo foram publicados 12 livros. Segundo Marco Antonio de Oliveira (2006), embora o objetivo dos editores fosse abranger o maior número possível de Estados, a instalação do Estado Novo, em 1937, acabou por alterar as políticas públicas vigentes no que dizia respeito à instalação de um sistema único de escolarização e maior controle sobre a produção didática. Além disso, o projeto estadonovista referente à unidade nacional colocaria em xeque obras didáticas regionais.
O livro História de Santa Catarina - Resumo Didático, assim como os demais livros da série, era ilustrado e possuía edição bem cuidada com qualidade gráfica que a distinguia.
A edição da Melhoramentos foi publicada em capa dura, com dimensões um pouco menores do que as da Pequena História Catarinense, 13 cm x 18 cm, mas com número maior de páginas (215). Na apresentação, chamada Duas Palavras, Boiteux escreve:
A Companhia Melhoramentos de S. Paulo (Weiszflog Irmãos Incorporada), com empenho digno dos maiores encômios e num fito dos mais alevantados, vem editando uma coleção, muito interessante e de grande utilidade de pequenos manuais, profusamente ilustrados, de História regional de diferentes Estados brasileiros. Desejando incluir agora na preciosa série um resumo didático da História Catarinense, teve a gentileza extrema de bater à minha porta, a do seu mais apagado cultor, quando, com certeza, outras penas mais aparadas e eruditas encontraria para versá-la. Sobremodo honrado com o convite, tenho dúvidas se soube corresponder a diligência dos esforçados editores. Não procurei fazer obra nova, mesmo porque o presente trabalho, aprovado pela Inspetoria Geral do Ensino e adotado pelo Governo, já se encontra incorporado à literatura escolar do Estado. Nessas condições procurei apenas expungi-lo de pequenos erros e senões, corrigir-lhe falhas e demasias e, finalmente, atualizá-lo, e assim pudesse receber as novas roupagens com que as primorosas oficinas gráficas da casa editora sabe, com apurado gosto, envolver todas as obras que delas promanam. Meus desejos são que este desataviado manual continue a prestar os mesmos serviços à mocidade estudiosa da minha terra e aos seus avisados e dignos Mestres, como até agora tem acontecido, e que a sua divulgação seja o premio da bela e patriota iniciativa dos Srs. Weiszflog Irmãos. Rio de Janeiro, 11 de fevereiro de 1930.
Convém destacar que os capítulos dos três livros seguem a mesma ordem e possuem quase o mesmo teor, sendo que aos livros de 1920 e 1930 foram acrescentados poucos itens relativos às “Novas administrações republicadas”, como se pode observar na comparação do sumário das três obras (Tabela 1):
Notas para a História Catarinense, 1912 | Pequena história catarinense, 1920 | História de Santa Catarina - Resumo Didático, 1930 |
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Primeiro Século: | Primeiro Século: do descobrimento e da conquista (1492-1600) | |
Cap. I - Descobrimento do Brasil. | Cap. I - O descobrimento | Cap. I - O descobrimento |
Cap. II - A Terra Catarinense. | Cap. II - A Terra Catarinense. | Cap. II - A Terra Catarinense. |
Cap. III - Os Aborígenes catarinenses. | Cap. III - Os aborígenes | Cap. III - Os aborígenes |
Cap. IV - Viagem de Gonçalo Coelho. | Cap. IV - Primeiros reconhecimentos | Cap. IV - Primeiros reconhecimentos |
Cap. V - Expedição de Martim Alfonso. | Cap. V - Portugueses e Castelhanos | Cap. V - Portugueses e Castelhanos |
Cap. VI - O governo geral do Brasil. | Cap. VI - Governo Geral - A catequese. | Cap. VI - Governo Geral - A catequese. |
Segundo Século: | Segundo Século: Do desbravamento do sertão e do povoamento (1600-1700). | Cap. VII - O litoral - primeiras penetrações |
Cap. I - A catequese vai em prosseguimento. | Cap. I - O litoral - primeiras penetrações | Cap. VIII - Fundação de S. Francisco. O municipalismo |
Cap. II - S. Francisco é povoado por vicentistas e portugueses. | Cap. II - Fundação de S. Francisco | Cap. IX - Desterro e Laguna |
Cap. III - Desterro e Laguna | Cap. X - Novos povoadores - A Capitania de S. Paulo | |
Cap. XI - A vida catarinense | ||
Cap. XII - Os surtos para o sertão - Guarnição militar | ||
Terceiro Século: | Terceiro Século: Da colonização e do primeiro governo (1700-1800) | Cap. XIII - Capitania subalterna |
Cap. I - Criação da Capitania de S.Paulo. | Cap. I - A Capitania de S. Paulo | Cap. XIV - Colonização açorita e madeirense |
Cap. II - A capitania de S. Paulo é separada da de Minas. | Cap. II - A vida catarinense | Cap. XV - Novas freguesias - Lages |
Cap. III - Novo governador de São Paulo. | Cap. III - Os surtos para o sertão | Cap. XVI - A invasão espanhola |
Cap. IV - O território catarinense é desmembrado da Capitania de São Paulo. | Cap. IV - Capitania subalterna | Cap. XVII - Novas administrações |
Cap. V - Colonização açorita e madeirense. | Cap. V - Colonização açoriana e madeirense | Cap. XVIII - Derradeiros governos coloniais |
Cap. VI - O governo de d. José de Mello Manuel. | Cap. VI - Novas freguesias - Lages | Cap. XIX - Primeiros presidentes |
Cap. VII - Instruções do Marquês de Pombal para a defesa da Ilha. | Cap. VII - A invasão espanhola | Cap. XX - Assembleia Provincial - Novas administrações |
Cap. VIII - Faz-se a paz. | Cap. VIII - Novas administrações | Cap. XXI - A República Juliana |
Quarto Século: | Quarto Século: Da independência e da república (1800-1900) | Cap. XXII - Colonização estrangeira |
Cap. I - Triunvirato. | Cap. I - Derradeiros governos coloniais | Cap. XXIII - A Guerra do Paraguai |
Cap. II - O governo de Pereira Valente. | Cap. II - Os primeiros presidentes | Cap. XXIV - Novas gestões - Campanha abolicionista |
Cap. III - As Regências. | Cap. III - Assembleia Provincial - novas administrações | Cap. XXV - O regime republicano |
Cap. IV - Revolução dos Farrapos no Rio Grande. | Cap. IV - A república Juliana | Cap. XXVI - Revolução Federalista |
Cap. V - A presidência de Antero de Brito. | Cap. V - Colonização estrangeira | Cap. XXVII - Domínio da legalidade |
Cap. VI - A guerra com o estado Oriental. | Cap. VI - A Guerra do Paraguai | Cap. XXVIII - Novas administrações |
Cap. VII - Novos presidentes. | Cap. VII - Novas gestões - campanha abolicionista | |
Cap. VIII - A propaganda republicana e os primeiros clubes. | Cap. VIII - O regime republicano | |
Cap. IX - A junta provisória. | Cap. IX - Revolução Federalista | |
Cap. X - A esquadra legal chega a Santa Catarina. | Cap. X - Domínio da legalidade | |
Quinto Século: | Quinto Século: Do progresso (1900-1920) | |
Cap. I - As administrações do dr. Lauro Muller, coronéis Vidal Ramos e Pereira e Oliveira | Cap. I - Administrações republicanas |
A escrita da história de Santa Catarina por Lucas Boiteux foi laudada pelos sócios do Instituto e, tempos depois, seguiu reiterada como marco divisor entre um antes e um depois relacionado à invenção de uma determinada representação de “cultura catarinense” e, ao mesmo tempo, de uma história integrada à nação, comprometida com o progresso da Pátria13. Aliás, um dos traços mais fortes que caracterizam Boiteux e sua obra é o patriotismo (Piazza, 1981; Cunha, 1982). Pode-se ler em sua obra que a pequena pátria catarinense sustenta-se a partir de seus heróis e feitos cívicos. Esses elementos sustentam a missão pedagógica que Lucas Boiteux atribuiu a si mesmo. Nessa direção, ser útil à sua terra natal era sobretudo atuar na consolidação de um sentimento de patriotismo. Homem do seu tempo, hipotecava à educação a responsabilidade de desenvolver nas crianças e jovens o sentimento de dever à pátria.
Ressonâncias: arremates
Lucas Boiteux, assim como demais membros do IHGSC, representava os valores manifestos no projeto pedagógico republicano, ou seja, a crença nas virtudes da instrução moral e cívica como forma de manter a ordem social e fortalecer o caráter nacional. No IHGSC a afiliação em tal projeto encontrava discursivamente o sentimento de amor à “pequena pátria”. Como militar de formação, parece inegável que sua proposta está em consonância com práticas regulares na educação militar desde as primeiras décadas do século XIX. A presença enfática de construções discursivas sobre nacionalismo e patriotismo no currículo escolar fazia parte dos ensinamentos dados pelo Exército e pela própria Marinha Nacional para formar homens viris para desenvolver tanto qualidades físicas - resistência, valor, destreza - como valores morais - coragem, caráter, hierarquia -, preparando os alunos para o exercício de funções militares, principalmente para enfrentamentos de guerra e combate (Cunha Júnior, 2008, p. 127). Esse sentimento certamente não estava descolado da pátria-mãe, como bem demonstra Lucas Boiteux em seus “livrinhos”. Seu discurso historiográfico privilegiava a abordagem de perfis heroicos de nossa história onde sobressaía o herói fundador como paradigma do guerreiro com atributos valorosos e reconhecidos nos seus livros escolares, situação que se pode considerar como uma narrativa canônica no período, mas que vai permanecer até a década de 1950 na escrita da história com fins escolares.
Nos excertos das lições de história dadas a ler foi possível encontrar discursos que formalizam práticas e veiculam representações (Chartier, 2005, p. 54), além de apontarem para a propagação de saberes históricos escolares definidores de masculinidades expressas em lugares e momentos determinados e que caracterizavam uma cultura escolar de época que engloba aspectos “da vida escolar; fatos, ideias, mentes, corpos, objetos e condutas, modos de pensar, dizer e fazer” (Viñao Frago, 1995, p. 69).
A partir deste estudo, tornou-se possível reforçar a problematização de que a escrita de uma história regional foi realizada com vistas a reforçar a história nacional, adquirindo assim um espaço periférico e hierárquico em relação à nação. Pôde-se perceber, nos vários textos escritos e em circulação nas escolas catarinenses nas décadas iniciais do século XX, o investimento dispensado pela escola à formação pessoal e cívica de sujeitos, uma prática que investia igualmente nos princípios de autocontrole e exemplaridade como possibilidades civilizatórias para chegar às mentes.
Estas reflexões permitem pensar na permanência por décadas desses livros escolares no ensino de História em Santa Catarina ao mesmo tempo que evidenciam, pelos exemplos trabalhados, o nosso conhecimento sobre o conjunto de conteúdos que era oferecido para o ensino naquele período. O estudo desses materiais obriga o leitor/ historiador a lembrar que as representações não cessam de ser elaboradas, produzindo ainda hoje uma “coexistência única entre os antigos objetos e gestos com novas técnicas e práticas” (Chartier, 2014, p. 38).