Percurso
Em um texto que se tornou referência obrigatória da historiografia da educação brasileira, Marta Carvalho nos apresenta os debates de diferentes intelectuais em torno do que deveria ser o espectro de ação da Associação Brasileira de Educação - ABE na década de 1920.3 Um dos temas recorrentes no debate educacional daquele período era em relação à importância do trabalho para a construção da nação brasileira, que apenas muito lentamente adentrava ao moderno mundo industrial.
Aquela ênfase seria tomada por parte da historiografia como uma expressão da afirmação de um “modo burguês” de construção da sociedade, motivo pelo qual seria denunciada como uma operação ideológica. Transplantada a macro teorização de um tipo de marxismo para os fenômenos históricos não seria difícil concluir que a ênfase dada ao trabalho seria uma expressão clara da “luta de classes” em movimento na sociedade brasileira. O trabalho tomado como danação e como parte da alienação do mundo seria, claro, uma das dimensões ideológicas do capitalismo tupiniquim, tal como havia sido denunciado por Marx quem, ao menos, havia admitido o trabalho como uma expressão do “metabolismo do homem com a natureza”, logo, problemática menos esquemática do que suporiam alguns dos autores que supostamente orbitam no âmbito da influência da sua obra.
No prefácio da referida obra de Marta Carvalho, Mirian Jorge Warde faz uma alerta dos mais importantes, que parece ter passado despercebido para muitos pesquisadores. Fazendo um elogio da obra, sobretudo pela sua riqueza empírica não dependente da teoria, Mirian Warde dava destaque a uma forma de fazer história que sistematicamente era negada por muitos autores que insistiam em considerar a realidade histórica como uma expressão da teoria, tornando as explicações históricas um exercício de mera abstração, tal como foi mostrado há mais de uma década por Taborda de Oliveira (2003).
Mas o destaque mais importante dado por Warde naquele prefácio diz respeito à compreensão do trabalho em uma dimensão que não era meramente fabril, expressão pura e simples da preparação de mão de obra para a ocupação dos novos espaços laborais que surgiam com o desenvolvimento da industrialização brasileira. Segundo a autora, o que estava em jogo no debate pedagógico era algo muito mais sutil, o desenvolvimento de um ethos de trabalho que representaria uma ruptura com a tradição de negação do trabalho manual, forte marca de uma sociedade recém liberta do escravismo, comandada por grupos sociais avessos a qualquer forma de trabalho que mobilizasse o corpo. Contra o tabu do trabalho manual, então, nos ventos modernizadores da sociedade brasileira eram desenvolvidas retóricas educacionais que implicavam não só o reconhecimento do trabalho como uma dimensão fundamental da vida, mas também a necessidade de produzir uma sensibilidade social que o considerasse como benfazejo para a construção da brasilidade. Daí a necessidade de disseminar o ethos do trabalho como um valor em si mesmo e como condição de possibilidade de um mundo novo, que requeria um novo homem. Na esteira das suas observações, estimuladas pelo minucioso estudo de Carvalho, Mirian Warde nos fazia observar que se tratava de um período de significativas mudanças nas finalidades educacionais, não apenas em função e uma problemática e simplificada polarização entre escola tradicional e escola nova, até ali observada pela historiografia. Tratava-se, antes, da redefinição do sentido dado à educação para a construção da brasilidade, sentido que vinha se desenhando desde o séc. XIX, pelo menos, mas que se atualizava sob o influxo da modernização econômica da sociedade brasileira, mesmo que naquele projeto de uma educação nova subsistissem elementos de um país arcaico.4
A presença dos Trabalhos Manuais nos currículos escolares, expressos por vezes como uma rubrica específica, mas outras vezes fundamentando as Lições de Coisas, o Desenho, a Educação Física, o ensino de Artes, era indicativa que alguma coisa relacionada à ideia de ação sobre o mundo ganhava relevância em relação às velhas formas mnemônicas de transmissão da cultura. Assim, uma educação pelas coisas se destacava em relação à dimensão retórica da educação configurando uma nova experiência onde o lugar do corpo e dos sentidos seria potencializado.
Entendimento da produção de um ethos do trabalho como dimensão educadora. na modernidade ocidental.
Este não é o espaço para discutirmos os motivos que fizeram com que os grupos dominantes brasileiros negassem o trabalho manual como uma dimensão importante da vida social, embora essa seja uma marca da construção da nacionalidade brasileira ainda hoje visível. Mas é preciso observar que mesmo antes da afirmação do modo de produção capitalista industrial, certamente como um dos ecos mais perenes da Reforma Protestante, o trabalho ganhou uma dimensão positiva na modernidade, ou mesmo antes dela, como faz supor Jacques Le Goff, ou as condiderações de Hanna Arendt.5 Poderíamos lembrar as observações de Weber sobre a ética protestante, por exemplo, ou do movimento Arts and Crafts, desenvolvido na Inglaterra, entre outros, por William Morris.6 Nos dois autores a ênfase na importância do trabalho como uma dimensão formativa é inconteste. O trabalho permitiria o surgimento e a afirmação do moderno mundo industrial, com todos os seus efeitos deletérios, mas também significaria a possibilidade de o homem desenvolver-se em toda a sua plenitude uma vez que permitiria a apreensão das coisas que potencializariam a sua capacidade criativa. Logo, estaríamos diante de duas concepções distintas de trabalho, e cabe indagar historicamente quando os processos de formação, escolares ou não, estiveram mais próximo de uma ou de outra concepção. Não devemos esquecer que na utopia de Morris ou de John Ruskin, ambas críticas ao mundo industrial, o trabalho não deixava de ser um motor da criatividade e da ação humana no mundo.7
Seja como for, se entendermos que a escola é uma agência moderna, então ela estará inevitavelmente ligada á ética do trabalho, disseminando retóricas de valorização do homem como agente social portador de vontade própria. Então, é preciso lembrar a educação da vontade era um corolário da educação para o trabalho que permitia o estabelecimento de uma relação de complementaridade entre moral e educação.
Nesse sentido, ao indagarmos a experiência de imigrantes italianos chegados ao Estado do Paraná no último quartil do século XIX em busca de uma nova vida, nos deparamos com uma valorização do trabalho que confrontava a estrutura de sentimentos daquela sociedade. Pelo trabalho aqueles imigrantes construíram a possibilidade de estabelecimento no novo país. Não é demais lembrar, seguindo as pistas abertas por Maschio que trabalho e educação estavam profundamente relacionados naquela experiência sendo, a escola, uma das grandes reivindicações daqueles imigrantes junto às autoridades brasileiras. Literalmente, eles ergueram o seu mundo com o trabalho das suas mãos.8 Para aqueles imigrantes pobres, que enfrentavam as intempéries, as doenças, e a incúria das autoridades brasileiras, além da desconfiança dos nativos da terra, a oportunidade de construir uma nova vida só se materializaria pela intensa mobilização dos seus corpos no trabalho: abrindo estradas, levantando casas, igrejas, escolas, plantando, ensinando os mais novos. Não eram poucas as adversidades a serem vencidas, como mostram os primeiros relatos da chegada dos italianos ao território paranaense.
A introdução de imigrantes italianos no Paraná se deu primeiramente através de um contrato firmado entre o Presidente da Província, Venâncio José Lisboa, e o empresário Sabino Tripoti, no ano de 1872.9 Um número significativo de imigrantes foi instalado, inicialmente, na Colônia Alexandra, situada a 14 quilômetros da cidade de Paranaguá, então importante porta de entrada no Sul do país. Criada no ano de 1875 esta colônia litorânea era particular, de propriedade do agenciador italiano Sabino Tripoti. Era composta por uma sede e três núcleos (São Luís, Piedade e Toural), e acolheu um total de 262 italianos.10
Embora a proposta política de distribuição de terras dinamizada pela Província do Paraná para os imigrantes parecesse vantajosa, uma vez que estes, desejando a posse da terra, buscavam o desenvolvimento agrícola e econômico, aquela iniciativa acabou sofrendo as consequências da falta de interesse e de responsabilidade dos agentes da imigração, fossem privados ou estatais.
Um exemplo claro seria o do citado “empresário” Sabino Tripoti, quando organizou a Colônia Alexandra na região litorânea. Movido por interesses pessoais, fundou uma colônia localizada nas proximidades do Porto de Paranaguá, em área pouco propensa à agricultura, podendo transportar os colonos com a mobilização de poucos recursos. Atuando dessa forma o empresário poderia trazer um número maior de imigrantes com a metade dos recursos que o governo lhe pagaria, ignorando completamente a sua vocação para o trabalho agrícola.
Este, entre outros fatores que acarretavam o mau planejamento da colonização particular, colocava em evidência a situação lastimável da colônia Alexandra. Tornando quase impossível a sobrevivência dos imigrantes, a localidade era pequena em relação ao grande número de italianos que ali aportavam. Além disso, os poucos colonos que conseguiram suas terras não tiveram êxito com a produção devido ao clima que não era propício para o tipo de cultivo trazido do norte e nordeste da Itália, local de onde provinham. Cumpre notar que a maior parte deles era composta por camponeses (contadini) que procediam do Vêneto, região de clima bastante frio que contrastava radicalmente com o clima excessivamente calorento do litoral paranaense. O clima quente aumentava o cansaço e as doenças causadas por insetos da Mata Atlântica do sul do Brasil. Para completar o quadro de dificuldades os lotes destinados aos imigrantes eram compostos por terras improdutivas, situavam-se geograficamente em terrenos com alto declive e de difícil acesso.
Inúmeras reclamações chegavam à capital Curitiba sobre as más condições da Colônia Alexandra. Muitos imigrantes expressavam o desejo de até mesmo retornar à Itália, pois julgavam terem sido enganados pelas falsas promessas das propagandas brasileiras em torno da imigração. A solução encontrada naquele momento foi a assistência e a remoção dos colonos por parte do governo provincial para outras localidades. Assim, em 22 de abril de 1877 o Presidente da Província Adolfo Lamenha Lins rescindiu o contrato com o citado Sabino Tripoti, promoveu a reimigração de colonos italianos e, consequentemente, a imigração direta de novas famílias italianas para uma nova colônia denominada Nova Itália. Esta também se localizava na baixada litorânea do Paraná, na região de Morretes, nas proximidades do Porto de Barreiros, nos contrafortes da Serra do Mar.
A Colônia Nova Itália tinha dimensões territoriais bem maiores que a colônia Alexandra. Era uma colônia governamental e estava dividida em 12 núcleos coloniais: Rio dos Pintos, Sesmaria, Sítio Grande e Cary, America, Marques, Entre Rios e Prainha, Cabrestante, Rio Sagrado, Ipiranga, Graciosa, Zulmira e Turvo. Em 1880 tinha uma população com cerca de 2318 pessoas alocadas em 529 lotes.11
O interesse inicial do governo era estabelecer os imigrantes italianos nas regiões litorâneas com o intuito de desenvolver a produção da indústria açucareira, tendo em vista que os imigrantes alemães e poloneses já estavam nos arredores de Curitiba desenvolvendo o comércio e a produção de gêneros alimentícios. A ideia inicial não era a de remover os colonos italianos até o planalto Curitibano, porém devido aos mesmos problemas que afetaram a colônia Alexandra, a colônia Nova Itália também não prosperou.
A localização das colônias litorâneas dificultava a comercialização dos produtos, e as famílias italianas ali instaladas também desejavam trabalhar com a terra produzindo gêneros alimentícios e desenvolvendo a sua própria forma de plantio. Além disso, a maioria das colônias era margeada pelos principais rios do litoral paranaense, como o Rio Nhundiaquara e o Rio Sagrado. Esses rios em época de grandes chuvas transbordavam ocasionando enchentes e dificultando o trabalho nas lavouras. A locomoção pelas estradas era comprometida pela má conservação e pela dificuldade de acesso devido aos terrenos íngremes, levando em conta ainda que praticamente grande parte do acesso aos núcleos coloniais se dava pelas vias fluviais.
Em 1878, o Presidente da Província, Rodrigo Octávio de Oliveira Menezes, relatou a precariedade das condições de sobrevivência e a insatisfação dos colonos italianos ali estabelecidos: estavam sem alimentação nem roupa e acometidos de muitas doenças decorrentes do clima do litoral. Havia mais de 800 famílias ocupando 610 lotes, muitos dos quais eram impróprios para o plantio. Tudo isso dificultava a sua permanência nas terras a eles destinadas.
O estado em que se achava em meados de janeiro do anno findo, epocha em que tomou posse de sua direcção o engenheiro André Braz Chalréo Junior era desesperador. No archivo nenhum só documento que pudesse servir de guia ao engenheiro; no barracão e em casas alugadas, mais de 800 famílias a estabelecer, parte das quaes, desde abril do anno anterior, ahi se acham occupadas apenas em comer o pão que lhes dava o governo.12
Enviado pela Congregação Scalabriniana, com sede na Itália, para atender os imigrantes italianos, o missionário italiano Padre Pietro Colbacchini passou grande parte de sua estada no Brasil atendendo as colônias paranaenses.13 Em Relatório, datado de 13 de outubro de 1892, ao Presidente da Società Italiana de São Rafael, Volpi Landi14, responsável pela assistência aos emigrados, o padre relatou as condições daqueles colonos que viviam no litoral paranaense, entre os anos de 1875 e 1877. Entre tantos problemas, Colbacchini destacava as doenças causadas pelos insetos.
De dia os trabalhos têm sido insuportáveis pelo calor e mais por um enxame de mosquitos que fazem inchar as partes descobertas da pessoa e produzem fortes incômodos; à noite outra espécie do mesmo (pernilongo) rompe os sonos e sangra os pobres homens. Entre carne e pele as picadas agudíssimas de um verme, que assumem no seu desenvolvimento a grossura de um feijão, e que vem injetado por uma mosca cor de ouro (bicho-berne). Nos pés, especialmente nas extremidades e no calcanhar, coceiras insuportáveis e feridas malcheirosas, produzidas por outro inseto (bicho de pé) que nidifica e incuba, e se desenvolve como uma pequena pulga. As crianças e os velhos são os mais susceptíveis a esta grave enfermidade, que não respeita, todavia, idade e sexo ou condição das pessoas. A isto acrescento as consequências produzidas diretamente pelo clima, isto é, tontura, enfraquecimento dos membros, falta de apetite, desânimo, preguiça e tédio da vida. Esta é a verdadeira condição daqueles que vivem no litoral do Paraná.15
Diversos autores que se dedicaram a estudar o início da colonização italiana no Paraná dão ênfase às más condições oferecida pela política imigratória da época, destacando principalmente as doenças causadas por insetos e pelo clima. Isso porque as colônias do litoral paranaense foram organizadas de modo a oferecer apenas as mínimas condições aos imigrantes que ali se instalassem. Todo o resto deveria por eles ser construído. Em muitas delas os lotes divididos contemplavam uma área dedicada à construção da casa da administração, da igreja, do cemitério e da escola. Mesmo assim, o abandono das colônias pela maioria das famílias italianas foi inevitável. Ainda no ano de 1878, portanto dois a três anos após a fundação dessas comunidades, restavam na região poucas famílias italianas emigradas e alguns nacionais.
É de se perguntar como, naquele contexto, as famílias de imigrantes poderiam pensar na instrução escolar de seus filhos. No entanto, a educação e a escola eram elementos fundamentais constantemente reivindicados por eles. Isso independentemente do tempo que despendiam para os diversos tipos de trabalho que a nova vida reclamava. Nos primeiros meses de acomodação dos colonos, pensar em escolas seria um despropósito, uma vez que diante dessas dificuldades muitos deles não haviam ainda organizado a própria morada e as formas de obter alimentação e sustento. Foi possível verificar que a escola entrou em funcionamento um bom tempo depois da instalação dos primeiros colonos na Província, embora o espaço dedicado à construção de uma escola elementar tenha sido previsto na organização inicial das duas colônias pioneiras do litoral do Paraná. Mas a contingência da vida daqueles imigrantes provocava uma adesão ao trabalho árduo não apenas como danação, mas como possibilidade de construir o mundo novo que almejavam ao sair da penúria do seu país de origem. Por isso entendemos, contrariamente ao que supõe parte da literatura que se dedica a explorar as relações entre trabalho e educação, que a produção da vida requer uma forte moral do trabalho, gerando as condições para que a experiência humana no mundo se atualize, se recrie. Com Hanna Arendt (2005) pensamos a produção da vida, a vida ativa, em relação direta com o trabalho. Para a autora, ele seria condição de produção e manutenção da vida. Não necessariamente redundaria em um produto final porque ele se atualiza constantemente de maneira cíclica. Através dele reafirmamos a nossa conexão com a natureza, vivemos a vida intensamente a partir do âmbito da necessidade que produz nossa existência primeira. Nesse sentido a autora tece o seu elogio ao metabolismo com a natureza preconizado por Marx. O trabalho seria, pois, do universo da produção de sentido no agir no mundo. Diferiria do labor porque este implicaria em algum tipo de produção final e independente resultante de desejos e necessidades - objetos, coisas - o qual pode produzir a alienação. A obra daí decorrente representa a durabilidade e o testemunho do mundo e não se presta necessariamente à utilidade. A noção de trabalho de Hanna Arent e a tensão com a de labor, que tenciona também a tradição marxista, remete ao universo da ação: agir com, no mundo, pelo mundo comum. O imperativo aqui é a defesa do espaço público: estar no mundo com; produzir e habitar o mundo solidariamente. Nesse sentido a vida ativa seria uma condição humana da modernidade permitindo a intervenção solidária no mundo.
Se essa é uma chave fecunda para pensarmos a experiência dos imigrantes italianos, como a de tantos outros grupos sociais em diferentes temporalidades, não podemos olvidar, também, algo que dava o amálgama para o seu pertencimento étnico: a economia baseada em uma dimensão menos monetária e mais moral. Nas considerações que teceu sobre a economia moral, Edward Thompson pretendeu mostrar como, ao contrário do que pressupõe a economia clássica, desejos, expectativas e necessidades não podem ser reduzidos a uma dimensão meramente monetária.16 Antes, indivíduos e grupos se movem compartilhando experiências muitas vezes baseados no costume, fortalecendo laços de pertencimento dados por uma concepção mutualista, comunitária, da vida, tal como aquela compartilhada pelos imigrantes italianos pobres que chegaram ao Paraná no século XIX. Para eles a educação era mais que uma formalidade: era a condição de perpetuação de uma tradição, ao mesmo tempo em que a oportunidade de integração das suas comunidades com os habitantes da terra que os recebia. Aquela experiência estava calcada em uma estrutura de sentimentos que concebia a expansão das oportunidades educacionais como condição do pleno desenvolvimento de uma cultura dinâmica e criativa.17
Alguns indícios das fontes (Paraná, fins do XIX e começo do XX): escolarização e trabalho para os imigrantes italianos.
Não é demais lembrar que os imigrantes tinham e reivindicavam uma forte relação com o trabalho agrícola, o qual tornava o tempo da infância também um tempo produtivo, no sentido lato. Para eles os cuidados com a infância, que incluíam a educação para o trabalho e a educação escolar, se fundavam em expectativas de uma vida adulta mais confortável, tendo em vista a necessidade de adaptação social na nova pátria. Ou seja, longe da idealizada infância afastada das lides do trabalho, retórica poderosa nos dias atuais, trabalhar era condição do desenvolvimento das novas gerações nas colônias italianas paranaenses, pois o trabalho tinha ali um valor sem correspondente na sociedade brasileira do fim do século XIX.
Assim foi a infância nas colônias italianas. A vida na sua inteireza, sem a fragmentação que conheceríamos depois, pressupunha modos de escolarizar as crianças, de doutriná-las e de formá-las tendo o trabalho como um aspecto essencial da vivência comunitária. Se foi comum a vinculação da infância imigrante à pobreza e às privações, este preparo para a vida que incluía a relação com os modos de produção dos bens de consumo perpassava a formação das crianças, as quais aprendiam desde cedo a dividir o tempo entre as ações produtivas e o tempo livre da infância. O trabalho foi um elemento socializador de grande relevância e permeou a construção da representação sobre a infância e o ser criança nas colônias italianas do Paraná. O trabalho realizado pelos imigrantes com a terra exigia o controle próprio dos modos de fazer. Normalmente era o pai que determinava as formas de trabalhar com a terra, os modos de cultivo e da colheita. Cada membro da família submetia-se a essa figura e realizava sua tarefa de modo a compor o trabalho como um todo.
Repassado de pai para o filho, a aprendizagem em torno do trabalho com a terra assegurava a perpetuação do ethos camponês imigrante. Além de auxiliar na produção, as crianças aprendiam o valor da terra e as formas de nela conseguir sustento. Na perspectiva dos imigrantes o trabalho ajudaria a formar adultos honestos e afeitos a lida da terra. A participação da criança nos trabalhos domésticos, e também agrícolas, caracterizava a inclusão da infância no processo econômico e social das comunidades imigrantes. A criança era depositária de expectativas em torno da manutenção da propriedade e dos bens da família, devendo iniciar ainda pequena a vida produtiva. Roçar, colher e debulhar o milho, cortar e amontoar o feno, tratar os animais, entre outros, eram alguns dos afazeres que caracterizavam o trabalho infantil.18
Cumpre ressaltar que a mão de obra infantil contribuía na organização da vida familiar. No interior da família, o auxílio das crianças nas atividades agrícolas era considerado uma “obrigação” dos filhos para com os pais. Isso se configurava como uma qualidade natural da infância imigrante rural, pois o trabalho era compreendido também pela criança como uma obrigação comum a ser realizado por todos.
Nesta relação com a “obrigação” do trabalho familiar, era oportuna a preferência ao filho homem em detrimento a filha mulher, uma vez que a atividade braçal agrícola exigia força física. Por outro lado, a mulher também exercia a força, mas essa era direcionada aos trabalhos domésticos, muito embora essas atividades fossem pouco reconhecidas socialmente. Contudo, esperava-se das mulheres o exercício da educação moral e religiosa das crianças. Era evidente a relação entre a fragilidade feminina e a sua atuação na educação dos filhos, como uma atividade representada como de fácil execução. O ensino da doutrina cristã e dos bons modos à infância, dificilmente era efetuado pelo homem e também por isso, era pouco valorizado por eles. Assim, no interior das famílias imigrantes italianas, os papéis sociais eram bem definidos.
Cumpre notar, que o período que compreende o final do século XIX e início do século XX é marcado em todo o mundo pelo avanço de mudanças sociais vinculadas às ideias de progresso, modernidade, melhoria da raça; entretanto a sociedade ainda era marcada pela relação de prevalência social do homem em relação às mulheres. Essas relações acabaram por influenciar a constituição da infância, as formas de concebê-la e como ela se relacionava com o trabalho e a educação.
Para Maschio (2013) a escola contribuiu na conformação dessas representações da infância imigrante e de seus descendentes e dos papéis que cada homens e mulheres deveriam desempenhar socialmente. Segundo Luchese (2007) a historiografia sobre imigração italiana no Brasil da década de 1970 e 80 considerou a pouca importância que esta etnia atribuía a escolarização. Essa tese foi refutada depois que novas pesquisas sob a perspectiva da História Cultural foram realizadas sobre a escolarização dos filhos de famílias imigrantes italianas. Em sua tese, a autora demonstrou que já nas primeiras décadas da colonização italiana para o estado do Rio Grande do Sul, as famílias emigradas valorizavam e buscaram por meio de diferentes iniciativas a viabilização do ensino escolar.19 Para muitos colonos italianos fixados no estado do Paraná a escola também era valorizada. Ainda que a entrada e saída dela fossem determinadas pelo trabalho, frequentar a escola era também uma das “obrigações” da infância. Se na família rural imigrante, a criança auxiliava desde pequena nos trabalhos da casa e nas lavouras de modo a contribuir economicamente na vida familiar, essa condição não impediu de todo modo a presença da criança na escola. O tempo da infância foi rigorosamente dividido entre o trabalho, a escola, o brincar e a participação das atividades religiosas. Ademais, é evidente que ele, o trabalho, constituía-se como parte considerável do tempo da infância.
Notas sobre o trabalho nas escolas das colônias italianas.
Se os trabalhos manuais eram um elemento importante das práticas escolares no período aqui analisado, não devemos esquecer que eles assumiam uma função diferenciada conforme o gênero. Para Maschio (2013) o atendimento distinto entre meninos e meninas em sala de aula e na elaboração de atividades específicas para cada gênero, como bordar para as meninas e aprofundar o conhecimento aos cálculos matemáticos para os meninos, era a tônica. Havia, ainda, a disseminação de conteúdos moralizantes voltados tanto para os meninos quanto para as meninas, bem como a flexibilização dos horários e do calendário escolar conforme cada um. Por exemplo, a principal justificativa da professora Antonieta Marconi para a abertura de uma escola feminina na colônia Santa Maria do Novo Tyrol da Boca da Serra teria sido o ensino dos trabalhos de agulhas e prendas domésticas, conteúdos específicos das escolas femininas naquele período.
A abaixo assignada filha do professor público d’esta colônia Santa Maria do Novo Tyrol da Boca da Serra, roga respeitosamente a Vª Excª dignar-se crear uma escola feminil para entregar em ella as meninas que pertencem a escola promiscua existente. Pede ella também a graça de ser contemplada para a nomeação da futura professora obrigando-se de ter na nova aula o ensino elementar de baixo a observação do seu pai, como também o ensino dos trabalhos feminiles, tão importantes para as meninas que devem ser no tempo futuro mulheres de família.
Analisando atas de exames finais é possível observar que tais atividades eram desenvolvidas nas escolas femininas para afirmar essa finalidade: boas mães e esposas. Contudo, essa orientação não era específica às escolas públicas coloniais. O Regulamento do Ensino de 1876 já determinava o ensino das prendas domésticas para as meninas. No final de 1895, em 27 de novembro, a professora Dúlcia da Costa Saldanha, que ministrava aulas na escola feminina da Colônia Alfredo Chaves, realizou mais um exame no final daquele ano letivo. Em ofício ao Diretor da Instrução Pública a professora informou que 10 alunas foram submetidas a exames. No termo são mencionados os “trabalhos de agulhas”.
Aos vinte e três dias do mez de novembro de mil oitocentos e noventa e cinco, n’esta vila Colombo, na escola pública para o sexo feminino regida pela professora Dulcia da Costa Saldanha, as onze horas da manhã presentes o cidadão Inspector Escolar Francisco Buzatto e os examinadores por elle nomeados Benedicto Eleutério Cabral, João Romão do Pilar e Maria Tonini, prestaram exame final as alunnas Antonia Carlesso, Catharina Cavalli, Maria Gertrudes de Araújo e Pedrina Brotto, as quaes tendo dado sufficientes provas de habilitação conforme preceitua o Regulamento da Instrucção Pública em vigor, foram approvadas com distinção Antonia Carlesso, Catharina Cavalli e Maria Prestes de Araújo, e plenamente Ursulina Ceccon, Maria Gertrudes de Araújo e Pedrina Broto, e foram igualmente approvadas em trabalhos de agulha. Sujeitaram-se a exame parcial Joanna Trevisan, Virginia Cavalli, Rosa Tosin e Domingas Mochelin, que foram julgadas habilitadas a passarem para a 3ª classe.20
Na escola, o ensino não deveria extrapolar o aprendizado da leitura, da escrita e da aritmética. O bordado e a costura eram ensinamentos que deveriam ser privilegiados por serem consideradas habilidades exclusivas do universo feminino. Essas atividades complementavam o ensino básico das meninas, de modo a garantir sua permanência no espaço doméstico. Tratava-se, pois, de uma clara forma de educação dos corpos, das sensibilidades. A representação da infância imigrante rural masculina por sua vez, estava muito mais atrelada às relações com o trabalho nas lavouras. Conforme Maschio (2013), a análise das fontes, em especial os registros de frequência das escolas públicas masculinas nas colônias italianas do Paraná, revelou que o maior número de faltas concentrava-se nos períodos de roçada, plantio e colheita, justamente quando se exigia o aumento do número de pessoas para trabalhar.
Além disso, à medida que os meninos atingiam 10 anos tornavam-se mais aptos ao trabalho físico pesado. Este incluía, além das lides na roça, um conjunto amplo de atribuições, pois, de modo geral, era o homem que administrava os negócios. A compra da terra, dos instrumentos, a definição dos trabalhos na família, a comercialização dos produtos acabavam se configurando como formas de trabalho diretamente afeitas à melhora das condições de vida da comunidade, cuja responsabilidade desde muito cedo era atribuída aos varões. Nesse caso, a escolarização dos meninos deveria contribuir para o melhoramento das condições gerais do trabalho que afetava a vida do grupo, o que também implicava em práticas de educação do corpo e no desenvolvimento e um ethos de valorização do trabalho, ou seja, no desenvolvimento de uma sensibilidade marcada pela laboriosidade. Naqueles períodos especiais as meninas, além de desenvolver os trabalhos domésticos tidos como tradicionais, também se envolviam nos trabalhos da lavoura submetendo-se às orientações dos homens (pais, irmãos mais velhos ou maridos), contrariando a premissa que as mulheres seriam protegias das agruras do mundo. Naquelas práticas era possível observar que as faltas das crianças à escola eram corriqueiras. Mesmo preconizando a importância da escola, as famílias consideravam o trabalho com a terra prioritário, uma vez que dele dependia a sobrevivência e a estabilidade do grupo. A escola era um elemento necessário, mas complementar à estruturação da comunidade, a qual se dava pelo efetivo trabalho de todos. Um exemplo claro dessa representação foi o modo como o professor Giovanni Baptista Marconi registrou, em um documento enviado a Diretoria da Instrução Pública, a suspensão das aulas na colônia Novo Tyrol no ano de 1879, tendo em vista a necessidade dos alunos de ajudarem as famílias nos trabalhos com as roçadas nos seus respectivos lotes21.
Não há dúvidas que a escola deveria contribuir para a formação da infância por meio de conhecimentos caracterizados pelos modos de fazer agrícola e no aprendizado da língua nacional para a adaptação do adulto trabalhador no mercado nacional. Contudo, o trabalho também ditou os modos de fazer da escola, os seus tempos escolares e a organização social e temporal das comunidades imigrantes. A relação familiar, o trabalho, a escola e a participação na vida religiosa configuravam-se como elementos socializadores daquela infância. Consideramos que é plausível afirmar que o tempo da infância nas colônias italianas, foi um tempo ordenado pelas “obrigações” das crianças para com os adultos: um tempo de trabalho, entendido este como uma dimensão inexorável da vida em comunidade. Naquele mesmo período, escrevendo sobre a importância da imigração para o progresso na Província, Rocha Pombo fazia a defesa de uma educação ativa que produzisse obras e fomentasse o bem comum. Para o autor a cultura dos imigrantes, com o seu apego ao trabalho, deveria servir como uma grande escola para que país superasse o seu histórico descaso pelo trabalho.22 Aquela educação ativa pressuporia, nos anos vindouros e do ponto de vista das práticas escolares, o surgimento das colônias e excursões escolares, das lições de coisas, dos laboratórios, gabinetes e museus de ciências, das hortas e dos jardins escolares, todos aspectos centrais que representavam um lento processo de redefinição das finalidades escolares. Aquelas práticas que definiam a cultura comum dos imigrantes italianos, acabariam por permitir o surgimento de disciplinas tais como a Ginástica, o Canto, a História Natural, a Geografia, os Trabalhos Manuais, a Economia Doméstica, a Higiene, todas relacionadas com as possibilidades de perscrutar o mundo pelos sentidos corporais. Daí ser possível sustentar, como propôs em sua tese Elaine Maschio, que a experiência educativa dos imigrantes italianos no Paraná, no final do séc. XIX, teria ajudado a constituir, pelo que teve de adventícia, uma cultura escolar diferenciada que só alguns anos depois se converteria em uma dimensão pública e universal. Por isso sustentamos que muito do que viria ser a retórica reformadora dos anos 1920 e 1930 fora anunciado aproximadamente meio século antes pela experiência compartilhada dos imigrantes italianos que ajudariam a construir muito que viria a ser o Brasil tomado como “moderno”.
Tempos e o lugar do trabalho nas escolas públicas das colônias italianas
Assim como outras expressões que ligavam o trabalho com a vida nas colônias, os trabalhos de carpintaria pressupunham a construção - física e simbólica - da escola como espaço próprio da comunidade.
Após a abertura da escola pública promíscua na colônia de Alfredo Chaves, o passo seguinte dado pelo professor Antonio José de Souza Guimarães foi solicitar móveis e materiais escolares para equipar a escola. Em ofício, de 02 de setembro de 1882, enviado à Diretoria Geral da Instrução Pública, o referido professor apresentava um orçamento e solicitava uma verba de 82$000 (oitenta e dois mil réis) para a aquisição dos utensílios. O valor foi orçado pelo imigrante italiano Pedro Cavassin, que era carpinteiro e havia sido designado para confeccionar a mobília da escola. Observe-se que os materiais necessários ao cotidiano da escola colonial não eram enviados pelo governo; cabia à comunidade a sua produção. Assim, entre outros tantos afazeres aqueles que detinham o conhecimento técnico do trabalho com madeiras não só fabricavam o que a escola precisava, como ainda ensinavam aos mais jovens como prover as necessidades da Colônia. Informalmente, uma vez que não estava ainda previsto formalmente nos programas de ensino, aquele ensino ocupava parte do tempo dedicado à escola.
Mas aquele tempo formalmente demarcado pela norma escolar constantemente poderia ser alterado em função das necessidades da comunidade, o que permite em pensar novamente na expressão de uma economia moral. Era o caso do trabalho doméstico e agrícola, já identificados. Na colônia de Santa Felicidade, de acordo com inúmeras reclamações das famílias, o Inspetor Escolar determinou que as aulas femininas passassem a acontecer no período da tarde pelo fato dos pais imigrantes exigirem a presença dos filhos, principalmente das meninas na hora do almoço. O tempo da escola foi adequado ao tempo da família, mas acima de tudo, ao tempo determinado pelo auxílio nas lides domésticas.
No ano de 1890 o Padre Pietro Colbacchini, então Inspetor Parochial das escolas nas colônias, explicava ao Diretor da Instrução Pública que, a pedido dos colonos de Santa Felicidade, permitiu a alteração nos horários das aulas:
Sinto-me em dever de dizer a V.S. que as informações tidas desta escola da colônia de Santa Felicidade não forão exactas. É verdade que a professora ensinha na escola as meninas da uma hora da tarde até a cinquo (sic!) horas, antes que conforme o regulamento das nove horas até as duas da tarde, mas esta modificação deve a circunstância que não se podem desprezar. Não podendo uma professora attender ao empenho de mais de 80 entre meninos e meninas, sendo de tempo estabelecida nesta colônia a escola dos meninos dirigida da um professor muito abil e de plena confiança dos colonos, achei coisa necessária dividir as duas escolas, e deixar a tarde a professora e de manhã ao professor sendo um só o logar da escola pertencente aos colonos, os quaes certamente preferem a escola para os meninos, a escola para as meninas. Tem outra circunstância, isto é que os colonos continuão o costume italiano de fazer a sua comida da janta ao meio dia, hora na qual os meninos e as meninas devem-se achar na própria casa.
Ao racionalizar o uso do tempo na escola, o Regulamento de 1895 modificou o horário das aulas das escolas primárias do estado tendo em vista os períodos de inverno e verão. Entretanto, não alterou o horário que intermediava o almoço, os 10 minutos do descanso. O Regulamento de 1901, o Regimento Interno de 1903 e o Regulamento de 1907 também mantiveram essa orientação. Para os dias de inverno, o Regulamento propunha que as aulas iniciassem às 10 horas da manhã e finalizassem às 15 horas; no verão, às 9 horas da manhã e às 14 horas da tarde.23 Desta mesma legislação, merece destaque a dispensa dos alunos com idade inferior a nove anos das duas últimas horas das aulas. Portanto, os alunos abaixo desta idade deveriam permanecer na escola até às 12 horas no inverno e 11 horas no verão.24 Mesmo assim, o tempo da escola e submetida aos imperativos do trabalho na comunidade a qual, lentamente, foi confirmando aquele tempo em função das suas necessidades. Aquela prática pode ser identificada, inclusive, como um indício do surgimento dos recreios escolares como uma prática tipicamente escolar de descanso do trabalho:
Tendo diversos pais de alumnos das escolas isoladas dos bairros e colônias deste município se dirigido a inspetoria solicitando alteração do horário escolar dessas escolas, que é actualmente das 9 às 2 da tarde, para 9 a 12 no inverno e 8 ao meio dia no verão, ambos os horários sem recreio, visto assim melhor poderiam os seus filhos freqüentarem-nas mais assíduamente, e como os solicitantes são em sua maioria agricultores e tem necessidade dos filhos para auxiliarem em seus trabalhos agrícolas, durante o resto do dia...
Conclusões provisórias
Ao analisar fragmentos históricos de uma experiência específica, a constituição da relação entre trabalho e educação nas colônias de imigrantes italianos instaladas no Paraná nas últimas décadas do século XIX, pensamos que é preciso redimensionar as ênfases nos estudos sobre as relações entre trabalho e educação.
Primeiramente porque é preciso maior rigor ao definir o que chamamos de trabalho no campo educacional. Ora, apenas adotar uma ou outra tópica teórica não resolve os nossos problemas em relação a história social de grupos normalmente marginalizados, seja pela sociedade, seja pela historiografia. Assim, se o trabalho é a maneira como os homens produzem a sua existência - material e simbólica - então o problema está em reconhecer que as retóricas que denunciaram ou enalteceram o trabalho significaram muito mais operações discursivas que nem sempre levam em consideração a necessidade dos mais pobres de construir o seu próprio mundo. Nesse sentido, voltando a Hanna Arendt, o trabalho pode ser entendido como uma condição da vida digna e como um motor de construção do espaço de convivência pública. Para muitos, Rocha Pombo, por exemplo, o trabalho era uma possibilidade de integração social e de autovalorização do potencial humano de construção de um mundo melhor, algo que os imigrantes italianos aqui identificados reconheciam muito bem.
Assim, todas as formas de educação do corpo e das sensibilidades mobilizadas pelas comunidades imigrantes eram como motores de uma ética da ação, da vida ativa, algo marginalizados pelos grupos dominantes do período, no Brasil. A educação pelas coisas, que significava a exploração do mundo pelas mãos, coqueluche do movimento de renovação pedagógica tratado na obra de Marta Carvalho, não era apenas um “método ativo” na confirmação da nova pedagogia. Antes disso, era uma forma de ser e estar no mundo, de acordo com expectativas, necessidades e interesses daquelas comunidades de imigrantes. Aquilo que Sérgio Paulo Rouanet relatou como a reivindicação de estudantes da Politécnica na década de 1950 já era o primado orientador dos imigrantes pobres: menos “beletristas” e mais homens capazes de construir.25
A experiência daqueles imigrantes, constantemente ignorada para além dos estudos voltados para as comunidades étnicas, já anunciava algo que seria reafirmado por autores tais como Nicolau Sevcenko, Eric Hobsbawm ou Richard Sennet: ser republicano é ser um homem de ação: é ser o artesão da própria vida. No sentido mais fiel do termo, aqueles imigrantes desenvolveram em terras brasileiras algo que pouco marcaria o imaginário social e político deste país que se constituiu sobre a ética do favor. Ao invés de esperar pelo beneplácito do Estado eles se lançaram à tarefa de construir o mundo novo que acreditavam, o qual constantemente fora vilipendiado pelos agentes da imigração, fossem privados ou públicos. Mesmo assim, pelo trabalho das suas mãos construíram alternativas para a sua afirmação na nova terra.
Naquela experiência parecia ser relevante uma forma educativa não necessariamente escolar - embora a escola tenha sido sempre reivindicada por eles - mas que temos chamado, hoje, de educação social. Formas amplas de transmissão da cultura que envolve saberes, práticas, costumes que serviram de ponte entre a experiência das gerações mais velhas e os jovens que chegam na comunidade. Nesse sentido, a relação entre educação e trabalho, no sentido aqui assumido, foi permeada por uma necessidade premente de salvaguardar os interesses da comunidade. Algo bastante distinto dos modelos escolares que se afirmaram no ocidente, essa dimensão da educação social pressupõe uma intervenção imediata na vida, a qual trabalha de maneira menos abrupta com clivagens tais como escola e vida, infância e adulto, trabalho e brincadeira ou tempo livre, público e privado. A experiência dos imigrantes italianos mostra que há uma dimensão inexorável na relação entre trabalho, educação e produção da vida, a qual vai além dos artifícios produzidos pela forma escolar. Parece-nos, pois, tratar-se de um imperativo da história da educação tentar compreender formas de educar que frequentemente foram obliteradas pela imposição da escola obrigatória. Ou, ao menos, compreender como na experiência de grupos subalternos, outras formas educativas se articularam com o imperativo escolar tendo, inclusive, ajudado a definir alguns dos seus contornos.