Para Márcio Danelon
I. Apresentação do problema, orientação teórica e diretriz metodológica
O propósito deste artigo é subsidiar a fundamentação teórica de pesquisas destinadas à abordagem das práticas sociais com crianças no espaço delimitado pelos adultos para a sua formação: a escola2. Por esse motivo, as páginas que se seguem não se distanciam da concepção de infância do começo da modernidade e pouco adentram nos registros factuais das vivências de adultos e crianças, esse material valioso exigiria outra modalidade de pesquisa. No curso da investigação, que resultou neste artigo, é feito menção aos trabalhos de alguns cientistas sociais - historiadores, psicólogos, sociólogos - que realizaram grandes pesquisas documentais, portanto, os dados desses inventários relativos à infância nos séculos inaugurais da modernidade, sempre que necessários, irão subsidiar a análise da produção dos educadores humanistas.
A orientação teórica aplicada ao manuseio do acervo bibliográfico em questão foi feita a partir da apropriação de duas metodologias distintas, mas que não se opõem de modo irreconciliável, me refiro à arqueologia de Foucault e ao rizoma de Deleuze e Guattari3. Na execução da pesquisa essas referências do pensamento contemporâneo foram assimiladas para compor uma atitude crítica em face dos sujeitos da pesquisa: a infância e a escola.
O trabalho historiográfico reúne os fatores que juntos oferecem a compreensão das mudanças e dos novos hábitos sociais, é difícil, porém, afirmar a suposta predestinação de um fator para o outro, cuja meta seria a composição de um sistema, uma totalidade sob a autoridade de tal fator; essa visão unitária do processo histórico é uma tentação suscitada pelas filosofias da história e que enfraquece o produto do historiador. Com Foucault fica reconhecido o direito de abordar as obras humanistas - a Civilidade pueril e o Método de estudos dos jesuítas - como configurações particulares, pois, “não são signos para descrever, em sua totalidade, a fisionomia de uma cultura” (FOUCAULT, 1987, p. 182). Portanto, a aproximação da infância e da escola não anula as singularidades das trajetórias históricas de ambas, que correram em paralelo no século XVI e tiveram como cenário a reforma e a contrarreforma religiosa. As mudanças econômicas que estavam em curso não autorizam a pretensão de descrever uma época para reduzi-la a um único fator que permitiria inferir a ocorrência simultânea dos processos de escolarização e de formação do sentimento de infância para todo o ocidente a um só tempo. As práticas introduzidas pelas reformas sociais ocorreram com ritmos distintos para os diversos lugares. Tal como o subtítulo do artigo sugere, o motivo desta análise é oferecer subsídios destinados à pesquisa historiográfica voltada para a infância dos primórdios da modernidade, não há aqui a presunção de expor uma grande síntese histórica.
Na ótica filosófica, ou no plano ético-social, vale o mesmo apelo ao referencial teórico, com Deleuze e Guattari me eximo de fundamentar um juízo moral relativo à eficácia - ou ineficácia - da descoberta do sentimento de infância e da escolarização da sociedade; o mesmo pode ser dito a respeito do debate interminável sobre a função da escola no mundo capitalista: reprodutora da ordem vigente ou ponto de ruptura para o melhor dos mundos. Os fatores distintos a cada instante se entrelaçam para compor um determinado momento histórico permitindo entrever a nova mentalidade em formação. Esse processo começou com a educação não escolar destinada a promover as regras de civilidade4 entre as crianças, essa ação reforçou a importância da língua materna, principalmente nas nações que haviam aderido à reforma, cuja meta de alfabetização era promover a leitura da Bíblia nas línguas vernáculas. Paralelo ao florescimento das escolinhas dominicais tinha início a expansão da rede de colégios. Esses fatores não têm uma destinação prévia enunciada por uma razão absoluta5. Deleuze e Guattari são obstinados na refutação de qualquer plano teleológico6, somente com a refutação do fim da história é que o trabalho historiográfico alcança a sua autonomia, livre das ilusões da filosofia da história. Admitindo a autonomia da história não há como prever os desdobramentos do curso social, a escolarização da infância é um acontecimento da modernidade, suas consequências permanecem em aberto, não é ela a responsável única pela salvação ou perdição da criança.
O referencial teórico exposto acima conduzirá a discussão dos resultados da investigação que precedeu o artigo, cujo desenvolvimento ocupará dois tópicos centrais articulados que expressam a tese norteadora da incursão deste pesquisador no horizonte da história social da infância. Desde já, é preciso deixar claro que se trata de um campo aberto e em permanente mudança, cujos contornos são definidos pelas sucessivas releituras da ordem discursiva da modernidade7, nisso consiste o mérito da historiografia contemporânea. Portanto, a tese que conduz o esforço investigativo é definida da seguinte maneira: a criança é um corpo destinado à disciplina e ao trabalho; a realização desse intento exigiu a antecipação do início do processo de escolarização8, que deveria incluir as crianças pequenas, somente a escola poderia responde pelas duas metas impostas unilateralmente à infância. Em suma, a criança é um ser para o outro, nesse caso, o outro é o adulto e suas representações pragmáticas que se materializam no modo de vida burguês do mundo capitalista9. Assim, a criança é expropriada de seu ser infantil pelos agentes dos poderes econômico, estatal e, o persistente poder religioso, cujo declínio se deu com a consolidação da sociedade moderna, no entanto, ele não desapareceu completamente. Essas premissas serão demonstradas no desenvolvimento do artigo com uma exposição empenhada na demonstração da autonomia dos dois sujeitos: a infância e a escola.
Um balanço das conquistas modernas pôde ser feito no século passado, foi o momento da falência do humanismo. Esse raciocínio foi manifestado por M. Heidegger em 1947 na sua célebre carta sobre o humanismo, ou simplesmente, Sobre o humanismo. O fim do humanismo deixa um vazio, pois, “essa palavra perdeu o seu sentido” (HEIDEGGER, 1967, p. 72). O espaço das crianças também foi abalado pelos eventos da derrocada do humanismo, é inegável que o sentimento de infância foi uma das suas criações, por isso a historiografia do pós-guerra incluiu em seu programa de pesquisa a infância, na tentativa de elucidar a gênese da criança como ser social, isto é, identificada no corpo social graças à sua singularidade, bem distinta da caracterização do adulto segundo o modelo hegemônico de homem10. A nova perspectiva historiográfica se serviu das conquistas metodológicas do estruturalismo e da etnografia, no solo da historiografia esse movimento ganhou atenção nas sucessivas fases da École des Annales11.
Essa referência à historiografia francesa do século passado foi necessária para explicitar a caracterização deste artigo em sua dimensão historiográfica, ele se inscreve na história das mentalidades, essa opção não é feita para suscitar polêmica a respeito da cidadania desse movimento no território da história, a menção feita aqui é para informar que o percurso da pesquisa vislumbrou a longa duração da modernidade e, com ela, a extensa e contraditória jornada da criança e da escola no ocidente moderno-contemporâneo12.
Feita a definição metodológica é possível justificar os marcos temporais do subtítulo do artigo. Não se trata do intervalo temporal que vai de 1530 a 159913, as indicações reforçam a importância de duas obras que surgiram antes da pedagogia: A civilidade pueril (1530) de Erasmo de Roterdã e o Método dos estudos (1599) dos jesuítas. Essas obras deram força para a formação dos dois domínios, anteriormente mencionados: a infância e a escola, cujo encontro - ou confronto - deu forma à pedagogia moderna. Na primeira metade do século XVI prevalecia a aspiração pela boa educação das crianças o que não incidia na necessidade da criação de uma rede de escolas à moda dos colégios já existentes; o vínculo da infância com a escola é tardio, sua efetivação maciça ocorreu somente dois séculos depois. Contudo, a segunda metade do século XVI foi o momento de afirmação da escola com o aumento considerável dos colégios para adolescentes e jovens14. A nova instituição social teve na obra pastoral dos jesuítas um impulso considerável, não apenas na ampliação vertiginosa da rede ensino, mas sobretudo na normatização do trabalho educativo com o estabelecimento de regras que abarcaram o ambiente escolar, da administração até os regulamentos para os professores e os estudantes; aquele momento foi a afirmação da instituição escolar tal como ela se encontra no presente em muitas partes do mundo. A tarefa do tempo seria a inserção das crianças no universo educativo.
As duas condições elementares para a pedagogia moderna, apesar de ainda não serem realidades efetivas no século XVI, estavam sendo plasmadas, apesar da ligação das práticas educativas ao discurso filosófico que impedia a emancipação de uma arte específica, que somente atingiria a plenitude nos séculos seguintes. Porém, o registro é essencial: o pioneirismo dos humanistas impulsionou não apenas a educação escolar, mas também a filosofia e a ciência, criando uma teia complexa que dava lugar à criança e lhe assegurava - na ordem do discurso - os cuidados específicos destinados à sua segurança e integridade, mas não só isso, nessa trama complexa também estava o anúncio da escola que prometia ampliar as oportunidades de escolarização, destinando-a inclusive às primeiras idades, tornando uma realidade, ao menos, a escola a partir dos 10 anos de vida. Esses homens do século eram cultos e profundos observadores da natureza, graças a eles a história natural despontou como disciplina destinada a promover a ruptura com o saber dos antigos15. Além disso, eram dotados de uma nova percepção da dinâmica do mundo e valendo-se do senso de observação criaram as condições para a irrupção da ciência experimental. Enfim, eram homens engajados na superação do obscurantismo da idade média, por isso são lembrados também como reformadores sociais que viveram no estágio pré-capitalista, entre os séculos XIV e XVI.
Outro aspecto pouco notado na atividade dos humanistas no terreno educativo é que eles anteciparam a literatura especializada destinada à fundamentação do método científico, do qual a filosofia dos séculos XVII e XVIII tanto se ocupou16. Por isso, a gênese da pedagogia no humanismo foi decisiva para a revolução científica que se seguiu, o cuidado com a organização e o método dos estudos foram vitais para o amadurecimento da prática da ciência experimental e da teoria do conhecimento dos modernos.
Após a explicitação da orientação teórica e metodológica deste artigo, fica o registro de que o tempo presente é a crise do humanismo, esse evento prolongado que tem deixado uma grande lacuna e sérias consequências. A ciência parece ter superado o vazio, ao menos no âmbito da produção tecnológica e da criação de novas perspectivas impactantes sobre a esfera da vida comum. As inovações têm trazido também as inquietações decorrentes da nanotecnologia, da manipulação genética e da clonagem, dos alimentos transgênicos, da simbiose homem-máquina e das próteses inteligentes etc. Porém, a educação escolar e a representação da infância ainda parecem presas ao velho humanismo e por isso são tomadas pela crise do ocidente. O lugar da criança nesse cenário, que mescla a crise moral com a superprodução da ciência, é evidente: ela permanece refém da velha representação, que reconhece a sua potencialidade para o aprender, mas reforça a ambivalência, ou seja, o tempo da criança só tem a finalidade de torna-la um adulto rapidamente. A educação humanista pretendia acabar com a condição servil do homem, colocando-o em sintonia com as novas descobertas científicas do período. Porém, a ciência e a filosofia modernas não tiveram seus conteúdos revolucionários introduzidos de imediato nas escolas da época, seria preciso um longo período de adaptação dos valores sociais aos resultados concretos das novas ciências. Essa defasagem foi um dos temas das severas críticas de Descartes à escola humanista, uma escola confessional e arraigada aos valores religiosos, presa ao velho saber destituído de rigor e de certeza, em suma, meramente retórico (DESCARTES, [1637], p. 8 e ss.)17.
Aqui não é o lugar da discussão dos impasses para a infância, cabe agora adentrar a formação do mundo moderno e explorar o ambiente de preparação dos dois fatores marcantes da nova sociedade: os germes da descoberta do sentimento de infância e os primeiros movimentos da instituição escolar para a conformação da pedagogia moderna. Erasmo e os educadores jesuítas serão referências singulares, capazes de elucidar as mudanças em curso, essa é a razão para tomar quase que exclusivamente esses escritos educacionais como orientação da pesquisa sobre as fontes humanistas para a educação moderna.
II. A reforma social: os germes do sentimento de infância - 1530
Dentre os pensadores humanistas, o que mais se destacou na proposição de uma série de preceitos destinados à proteção e educação das crianças foi Erasmo de Roterdã (1466-1536), a sua obra educacional ultrapassou a tradição medieval e renascentista, ele foi um pensador paradigmático: o primeiro a postular a universalidade da educação escolar, sem distinção de sexo e de origem social (REVEL, 2009, p. 173/174). Diferente dos outros manuais da época, A civilidade pueril (De civilitate morum puerili, 1530) era destinada à boa educação de todas as crianças; essa prática social, dizia Erasmo, se apresenta como o segundo nascimento do homem, principalmente para os desfavorecidos, pois a educação pode compensar as adversidades que o nascimento impõe18. Apesar da defesa acalorada de Erasmo pela universalização do da educação, o seu tempo desdenhava desse direito, até mesmo homens respeitados pela filosofia e pelas letras assumiam uma atitude contrária à educação das camadas populares, apenas para mencionar um nome ilustre: Voltaire, personagem do século das luzes, se manifestava dessa maneira, o filósofo dizia aos seus confidentes que o povo deve ser guiado, isto é, tutelado pela nobreza, ao invés de ser instruído (JOLIBERT, 1981, p. 22).
A civilidade pueril não foi a única obra de Erasmo dedicada à educação, ao que tudo indica, desde 1509 ele se ocupava desse assunto com entusiasmo, tendo publicado antes do pequeno livro de 1530 outros três: De ratione studii (Plano dos estudos, 1511), Institutio principis christiani (A educação do príncipe cristão, 1516) e De Pueris statim ac liberaliter instituendis, libellus et novus et elegans(Dos meninos, opúsculo com regras bem escolhidas para a nova educação liberal, 1529). No Plano dos estudos Erasmo elaborou uma proposta de ensino destinada a alunos adolescentes. O Plano é tipicamente humanista19, prioriza a formação liberal, isto é, inspirada nas artes liberais que desde o final da antiguidade eram a meta da educação do homem virtuoso. A atenção de Erasmo recaia sobre o trivium: gramática, retórica e dialética20. Não há no Plano a gradação do conhecimento ou a seriação para as diferentes idades, dos 10 aos 15 anos; no preâmbulo da obra Erasmo dizia que o plano de estudos consiste prioritariamente na definição do método e na fixação de normas para o estudo (ERASMO, [1511], p. 276). Ora, o método está subordinado à matéria, a saber, o estudo da linguagem, pois, dizia Erasmo: “o conhecimento se mostra como duplo: conhecimento das coisas e conhecimento das palavras. Aquele das palavras tem a prioridade, aquele das coisas é o mais importante” (ERASMO, [1511], p. 277)21. Embora Erasmo tenha atribuído maior importância ao conhecimento das coisas, ele foi enfático: o ensino deve começar pelas palavras, pois elas são os signos das coisas, por isso, a educação liberal é a iniciação tendo em vista os estudos mais sutis que estão reservados à juventude no ensino superior.
O Dos meninos não é uma peça pedagógica, esse escrito contribuiu com a filosofia da educação, o livro é destinado aos professores com a exortação para o início da instrução escolar o mais cedo possível, contemplando, portanto, a faixa etária para a qual o Plano dos estudos não se aplicava. A metodologia de Erasmo era destinada às crianças pequenas, possivelmente a partir de 3 anos, é o que fica subsumido no texto. Logo de início, se dirigindo ao agraciado com a dedicatória da obra, que havia acabado de se tornar pai, Erasmo o exortava, pedindo para que não se deixasse persuadir pela opinião corrente que desacreditava na capacidade infantil para os estudos, tendo-os como incompatíveis à idade, além de ser um exercício extenuante para as forças ainda débeis da criança; ao contrário, dizia o filósofo: “Faze-o aprender as primeiras noções antes que a idade fique menos dúctil e o ânimo mais propenso aos defeitos” ((ERASMO, [1529], p. 21). Qual é a idade propicia ao aprendizado das primeiras noções? Na evolução do opúsculo não há uma determinação explicita, porém, Erasmo sempre critica os adultos refratários à instrução das crianças: “Quem endossaria a opinião de ter como inapta para o estudo das letras a mesma idade que já é idônea para a educação moral?” ((ERASMO, [1529], p. 53). Mais à frente e indiretamente Erasmo sugere a melhor idade para o início da formação escolar: desde o momento em que a criança já é capaz de falar22. Nas últimas linhas do escrito Erasmo manifesta a sua convicção a respeito da potencialidade do intelecto infantil e diz que não é preciso esperar até os 7 anos para dar início ao convívio com as letras, isso pode ser feito desde os 3 anos, ou mais cedo ainda ((ERASMO, [1529], p. 105).
Das quatro obras de Erasmo já mencionadas, A Civilidade pueril merece distinção porque é dirigido às crianças - não aos professores e adolescentes do Plano dos estudos, nem aos mestres a quem se destinava o Dos meninos. Mais ainda, a página que abre o livrinho traz o alfabeto latino para que as crianças aprendam a ler valendo-se do próprio esforço, o que não dispensa o trabalho do professor, mas é essencial a iniciativa da criança. Esse expediente pode explicar o sucesso da obra e seu uso até o começo do século XIX. Dar as letras à criança pequena, dar-lhe a oportunidade de ingressar com o próprio esforço no mundo civil, essa é a novidade contida em A Civilidade pueril23. A posteridade recebeu de Erasmo dois excelentes trabalhos educativos que se integram: o Dos meninos com sua filosofia da educação destinada aos mestres e a Civilidade pueril com as regras de boas maneiras destinada às crianças pequenas como a iniciação ao cultivo das letras.
A posição de Erasmo o notabiliza como o precursor da educação infantil, mesmo que não tenha se esmerado para produzir uma didática contendo os instrumentos para a promoção da instrução escolar. A atitude de Erasmo fez dele um reformador social, o típico humanista, ainda distante da competência técnica do homem moderno imbuído da prática de uma determinada arte ou ciência. Apesar de Erasmo não ser um pedagogo moderno24, os seus escritos foram imprescindíveis para a nova cultura escolar surgida no século seguinte e que se expandiu no tempo. Quando Erasmo tratava da boa educação, esse argumento já trazia consigo a distinção entre o saber da vida adquirido pela experiência espontânea de cada indivíduo e o saber sistematizado que resulta do amadurecimento científico de uma comunidade, de modo mais abrangente, de um povo25. O que se destaca na postura de Erasmo, quando comparado a outros humanistas, é o seu empenho na preparação do trabalho pedagógico para tornar a aprendizagem compatível com as forças cognitivas das crianças, outra diferença crucial foi a insistência na necessidade de começar o trabalho escolar o mais cedo possível, para complementar aquilo que a natureza legou aos homens. Erasmo acreditava que isso era viável porque a criança traz consigo a predisposição para aprender, sem exagero, o colo materno é a primeira escola ((ERASMO, [1529], p. 59).
O conteúdo da obra de 1529 considera os genitores como primeiros educadores26, responsáveis pela educação moral e pelas primeiras noções de gramática. Não há nesse manual o predomínio de programas que delimitam conteúdos destinados à formação da criança, tanto é assim que, somente na aproximação da conclusão da obra, Erasmo foi se manifestar a respeito de um “programa de ensino”, mas também ali estão reunidos preceitos básicos: aprendizado das línguas e noções gerais de história natural, seguidos de orientações para os professores da educação infantil, tais como: observar as aptidões das crianças, conversar com elas de modo correto (correção linguística), despertar o amor pela educação, e, por fim, uma reflexão sobre a didática ((ERASMO, [1529], p. 89 e ss.).
A motivação para a educação das crianças pequenas foi uma das consequências da reforma protestante ocorrida durante a vida adulta de Erasmo, esse evento introduziu novas práticas sociais, como o funcionamento de escolinhas dominicais que, além da catequese, promoviam a alfabetização das crianças para a leitura da Bíblia na língua materna27, esses jardins literários atendiam crianças a partir dos 4 anos28. Erasmo atentou para essa prática e se adiantou ao propor a sua institucionalização, porém, não se pode inferir dessa constatação a imediata defesa da incorporação da educação infantil ao sistema que já funcionava atendendo adolescentes e jovens. Aos olhos do presente parece simples a iniciativa, contudo, na época eram vários os obstáculos, um deles a suposta incapacidade da criança pequena para os estudos, além da já referida fragilidade desse estágio da vida29. Esses argumentos são falaciosos e não atentam para a natureza da criança e, mais ainda, para a necessidade de elaboração de uma didática voltada para o aprendizado infantil, cujo trato deve ser norteado por “modos mais brandos, na direção da virtude e das letras” ((ERASMO, [1529], p. 57).
A obra educativa de Erasmo antecedeu em um século a descoberta do sentimento de infância. Ariès se reportou a Erasmo para destacar a importância d’A Civilidade pueril, contudo a pequena obra não faz do filósofo humanista o ícone do sentimento de infância, no entanto, o historiador francês concorda com o humanista a respeito da falta de zelo no acompanhamento educativo da criança pequena. Nas palavras de Ariès: “Ia-se para a escola quando se podia, ou muito cedo ou muito tarde. Esse modo de ver persistia ao longo do século XVII, a despeito das influências contrárias” (ARIÈS, 1981, p. 188)30; essas influências contrárias eram os anseios dos educadores humanistas. O fato é que, não obstante a escolarização, o século XVII foi o momento do sentimento de infância, da individuação da criança na sociedade.
Outro historiador das mentalidades, Revel (2009, p. 177), deu importância ao trabalho educativo de Erasmo e, portanto, à sua contribuição para o reconhecimento da idade infantil, a ponto de afirmar que A Civilidade pueril em pouquíssimo tempo se tornou “um bem comum”. Cabe acrescentar, recorrendo a outro historiador da mesma geração, que “A evolução do sentimento de infância não se manifesta de maneira linear” (GÉLIS, 2009, p. 315), portanto, mesmo que Erasmo não ocupe a centralidade dessa construção de identidade social da criança, o filósofo humanista deixou uma contribuição significativa para essa realização.
Que papel Erasmo desempenhou, Rememorando o referencial teórico de análise deste artigo, não é permitido interpretar os escritos do filósofo com uma meta que não fosse a dele. O julgamento interpretativo é um exercício posterior que acaba enxergando conexões que por vezes não eram as do autor; dizer de Erasmo: o patrono da educação infantil, ou, o utilitarista da educação escolar. Ambos os raciocínios se desprendem dos seus escritos educacionais, desde que se queria alinha-los com os esquemas tradicionais de interpretação. Dizer que Erasmo se antecipa à economia de Estado quando propunha o ensino simultâneo, o que na prática era manter quatro ou seis crianças sob a responsabilidade de um único mestre, é atestar a ignorância do conteúdo das proposições do filósofo, que considerava mais salutar para as crianças o precoce convívio social do que o isolamento da educação particular. A reunião de poucas crianças sob a regência de um mestre não é o mesmo que propor a instrução pública estatal, típica do século XIX em diante. Caso se queira ver na iniciativa de Erasmo a promoção da educação pública, isso só pode ser confrontado com a prática corrente do tempo, como oposição à educação doméstica, ou educação personalizada, o que não é mesmo que o ensino público estatal31. Apesar do seu vínculo religioso, Erasmo sempre conservou a independência de pensamento e defendeu uma educação liberal destinada a todas as crianças.
A obra educacional de Erasmo introduziu certos cuidados para com a infância, uma parte considerável Dos meninos é dedicada à condenação dos castigos corporais impostos às crianças. Porém, Erasmo não pleiteava uma revolução social, ele queria preservar a criança das perversões do mundo adulto, nos seus escritos sobressaem as linhas gerais de uma educação civil que encontrou n’A Civilidade pueril o seu coroamento com as regras de boas maneiras e o incentivo para a sua educação emancipatória. Essas diretrizes situadas no contexto inicial da modernidade possuem um valor intrínseco: a autonomia da criança, deixa-la se fazer homem pelas suas próprias forças32, portanto, não há nisso nada de revolucionário, mas também não há nada de conservador, apenas o reconhecimento da potencialidade infantil que deslinda o seu futuro.
III. Os primeiros germes da escola para crianças - 1599
O legado de Erasmo, com os seus escritos sobre a educação, especialmente o Dos meninos e A Civilidade pueril, abriu espaço para a criança, mesmo que a concretização do sentimento de infância viesse ocorrer mais tarde. Apesar do seu entusiasmo pela educação, Erasmo não postulava a institucionalização da instrução infantil. Bem diferente foi a postura dos jesuítas, responsáveis por uma obra pedagógica de grande relevância, tanto pelo tempo em que se manteve em vigor, quanto pelo número expressivo de escolas e estudantes matriculados, tudo isso contribuiu para a consolidação da escola na modernidade. Esses dois eventos correram paralelos, mantendo sua independência e distância temporal no transcorrer do século XVI, até que, por fim, outros agentes históricos cindiram os dois sujeitos discursivos: a infância e a escola. A criança começou a ser percebida ainda que muito discretamente a partir do século XIV, ali se manifestava a individuação do corpo infantil no interior da sociedade burguesa. A escola começava na segunda metade do século XVI a se tornar instituição indispensável para o funcionamento da nova sociedade.
Embora pareça óbvio que o ensino religioso fosse sobreposto à educação formal, as ordens religiosas rapidamente se adequaram à novidade, ampliando os seus estabelecimentos que até então eram exclusivos para a formação de futuros religiosos e sacerdotes. Desde então fizeram de seus colégios também escolas extensivas ao grande público33. Certamente, a característica marcante da pedagogia humanista é a ênfase na educação moralizante, na centralidade do ensino formal - calcado na gramática, na retórica e na lógica - e submetido à autoridade da palavra impressa dos manuais de ensino, que graças ao invento de Gutemberg, foram popularizados e se tornaram acessíveis, entretanto, a nova tecnologia serviu para limitar o ensino, mantendo-o preso aos livros escolares que se fizeram receptáculo e expressão da verdade da tradição.
O Método dos estudos (Ratio studiorum34, 1599) merece registro neste artigo, apesar dos colégios dos jesuítas serem destinados à mesma faixa etária a que se destinava o Plano dos estudos de Erasmo, a saber, dos 10 aos 15 anos aproximadamente. A importância da iniciativa dos jesuítas reside na expansão acelerada da educação escolar, o que impactou na sociedade da época e fez da escola uma instituição social que aos poucos foi se fazendo obrigatória. O traço comum entre os jesuítas e Erasmo é a extensão da instrução escolar aos desfavorecidos, por isso, a novidade dos colégios jesuítas era a gratuidade para quem não tinha condições de arcar com os estudos35, eles eram acolhidos como alunos externos, que não vislumbravam necessariamente a carreira religiosa (LUZURIAGA, 1976, p. 120).
A sintonia da Companhia de Jesus com as mudanças estruturais da sociedade do século XVI foi um fator que explica o sucesso dos seus colégios. A ordem religiosa fundada por Inácio de Loyola foi, certamente, o que de mais importante aconteceu no que se costuma chamar de contrarreforma católica. Tudo ocorreu rapidamente, em 1517 na Alemanha Lutero havia consumado o cisma da cristandade, que se seguiu na Suíça e na Inglaterra durante a década de 1530. A reação católica adquiriu força com o movimento de Loyola, em 1534 era fundada a Companhia de Jesus (Societas Jesu), ou o exército de Cristo, em 1540 o papa Paulo III reconhecia a existência da nova ordem, que foi confirmada três anos depois pelo papa Júlio III.
O curioso é constatar que o primeiro colégio surgiu fora da Europa, mais especificamente na Índia entre 1543 e 1548, o grande artífice dessa empreitada foi o padre Francisco Xavier que abriu o Seminário Santa Fé, da cidade de Goa, que recebia também a população local, quando o projeto inicial do seminário era atender os vocacionados para o sacerdócio e os filhos de portugueses residentes naquela cidade. A iniciativa foi consolidada em 1548, quando, além do seminário, passou a funcionar oficialmente o Colégio São Paulo para os externos (TAVARES, 2007, p. 131). No mesmo ano, na Europa surgiu o colégio jesuíta de Messina na Itália, no ano seguinte o colégio de Palermo na Sicília e em 1551 o Colégio Romano em Roma. Em 1556, ano do falecimento de Loyola, já existiam 40 colégios espalhados pelo mundo.
A partir dali tudo foi intenso e rápido: expansão da rede de colégios e elaboração de uma linha pedagógica comum a todas as escolas. No século XVII já existiam 372 colégios, os números não paravam de aumentar, no século XVIII eram 612 colégios, 157 escolas normais destinadas à formação dos professores, 24 universidades. No ano da supressão da ordem pelo papa Clemente XIV, em 1773, os jesuítas possuíam 728 colégios (MONROE, 1958, p. 203). Os fatores que contribuíram para o sucesso imediato da iniciativa educacional dos jesuítas, além da gratuidade do ensino para os alunos carentes, foi a criteriosa seleção e preparação dos professores associada à cuidadosa edificação dos colégios, com instalações modernas e bem equipadas, tudo isso somado permitiu o funcionamento de estabelecimentos que se propunham a oferecer uma educação integral: “física, estética e moral” (LUZURIAGA, 1976, p. 120).
A expansão dos colégios impunha a necessidade da manutenção da unidade da doutrina por intermédio da regulamentação pedagógica. Nas Constituições da Companhia de Jesus, em sua primeira versão de 155936 havia na quarta parte as diretrizes da formação intelectual e da orientação do ensino, capítulos IV e V respectivamente (COMPANHIA DE JESUS, [1559], p. 263 e ss.). Essas linhas gerais eram destinadas à formação dos religiosos e dos sacerdotes, e não se destinava à educação escolar de adolescentes, tampouco de crianças. A preocupação maior dos formadores jesuítas era o oferecimento das condições espirituais para que cada indivíduo pudesse realizar o propósito para o qual fora criado: a salvação da alma por intermédio das boas obras (MIRANDA, 2011, p. 475); a instrução e os conhecimentos em conformidade com a doutrina da Igreja deveriam auxiliar nessa tarefa.
A elaboração do plano dos estudos tornou-se uma obrigação para os religiosos. A inspiração para essa tarefa veio do Colégio Santa Bárbara de Paris (TAVARES, 2007, p. 126; FRANCA, 1952, p. 28), frequentado por Loyola e que lhe inspirou na proposição das linhas disciplinar e didática destinadas aos seus colégios. Após a sua morte teve início um intenso trabalho de regulamentação da pedagogia dos colégios e universidades, tanto no que concerne à administração dos estabelecimentos, passando pelo estatuto de professores e estudantes, até o plano dos estudos enquanto tal.
Os jesuítas consumiram mais de quatro décadas para finalmente, em 1599, aprovar a versão definitiva do Método dos estudos destinado a todos os colégios espalhados pelo mundo. O processo de elaboração, avaliação e revisão foi lento e cuidadoso, do qual todas as instituições de ensino da Companhia participaram, sendo justamente os reitores e professores dessa grande rede de colégios os responsáveis pela versão final, pois, eram eles que avaliavam as versões preliminares que lhes eram enviadas.
O período mais intenso da elaboração do Método foi conduzido pelo superior geral da Companhia, padre Cláudio Aquaviva, que em 1586 editou uma versão preliminar contendo as inúmeras contribuições advindas dos colégios, esse volume trazia o título Praxis et ordo studiorum (PADBERG, 2000, p. 91). Os anos que se seguiram foram de intensa e ininterrupta atividade destinada à aprovação da versão definitiva. Porém, entre 1586 e 1599, uma nova versão para avaliação foi enviada aos colégios em 1591, essa versão contava com o empenho de uma comissão de notáveis da Companhia, entre eles estava G. Belarmino, que se tornaria célebre nos processos inquisitoriais de Giordano Bruno e Galileu Galilei. Além desse teólogo e futuro inquisidor, fazia parte da referida comissão o filósofo humanista Francisco Suarez; ao todo, eram oito jesuítas notáveis com o encargo de encontrar a melhor expressão para a ordem dos estudos. A partir de 1594 começaram a chegar ao Colégio Romano as críticas e sugestões; esse período de avaliação se estendeu até 1598 (FRANCA, 1952, p. 21). A comissão responsável pela redação do Método detinha-se na doutrina católica, enquanto que os reitores e professores analisavam os procedimentos pedagógicos e chamavam a atenção para a necessidade de tornar o plano mais simples e breve, sem descuidar da sua funcionalidade na normatização das diversas matérias relativas ao funcionamento dos estabelecimentos de ensino37.
O Método dos estudos possui uma organização prática, cujas regras normatizam o trabalho educativo de toda a comunidade escolar, a começar pelos superiores da ordem jesuíta, depois deles os reitores, os prefeitos dos estudos; em seguida são apresentadas as regras para os professores das universidades e das faculdades, para os professores das classes inferiores e suas respectivas disciplinas; por fim, as regras dos bedéis, dos estudantes do internato e do externato (FRANCA, 1952, p. 43). O Método dos estudos não inovou na concepção do ensino, ele permanecia humanista, mantendo a prioridade das disciplinas vinculadas ao estudo da linguagem - gramática das línguas clássicas, retórica e lógica - acompanhados da aritmética, geometria e noções de história natural (LUZURIAGA, 1976, p. 119). Se não houve mudança no conteúdo, a novidade dos colégios foi a clara definição da gradação do ensino pela seriação das idades, uma deliberação que rompeu com as práticas medievais que mesclavam pré-adolescentes de 10 anos38 até rapazes com mais de 20 anos39. Porém, alheio aos anseios de Erasmo em prol da educação infantil, o Método dos estudos fixou a idade de 10 anos para o ingresso no colégio.
IV. Considerações finais
O século XVII foi a consolidação da ruptura com o saber antigo alimentado pelas studia humanitatis, a partir dali teve início a reivindicação pela educação científica. A efetivação da nova modalidade acarretou mudanças significativas sobre a concepção de infância com o paulatino ingresso da criança pequena no sistema de ensino. O impacto da mentalidade moderna acarretou o enfraquecimento da proposta lúdica pleiteada por Erasmo. A nova perspectiva escolar não se fez acessível a todas as crianças de imediato, mas passou a funcionar para o segmento burguês como alternativa à velha educação retórica. O ideal educativo, que só se efetivou em grande escala nos séculos XIX e XX40, insistia na otimização do tempo de escola, o que demandava uma disciplina rígida para a transmissão de conteúdos considerados indispensáveis para sanar a incapacidade do entendimento infantil e habilita-lo o quanto antes à prática da ciência. A escola se apresentava como o atalho que abrevia a duração da infância, para que através dos juízos lógicos ela se tornasse apta, o mais cedo possível, para as atividades superiores.
Descartes é um personagem emblemático do novo tempo, não que ele manifestasse um propósito pedagógico que corroborasse a abreviação da infância em favor da prática precoce da ciência. O filósofo francês é elucidativo no encerramento deste artigo porque se fazia indiferente ao potencial da infância e da escola, as duas vias de conformação da pedagogia moderna. No Discurso do método (Discours sur la méthode, 1637), escrito em francês vulgar e, portanto, destinado ao grande público, Descartes fez severas críticas à escola, responsabilizando-a pelos erros produzidos pelas opiniões cultivadas nos livros escolares, tão distantes da realidade do mundo. Nas Meditações metafísicas (Meditationes de prima filosofia, 1641), uma obra destinada aos doutores teólogos do Colégio da Sorbonne, Descartes não ousou a crítica direta à escola confessional e responsabilizou a criança pelos erros e pela incapacidade do uso da razão41. Mas, antes desses dois livros, Descartes compôs um manuscrito, que ele dizia ser para a sua própria instrução, o qual certamente foi escrito em 1628, aos 32 anos de idade. Esse trabalho permaneceu inédito durante a vida do filósofo, mas naquele momento em que era redigido, Descartes equiparava a escola à criança, de tal maneira que ambas correspondem ao mesmo estágio e ocupação inúteis para a vida madura. No fim das contas, Descartes dizia que apesar das deficiências mútuas, é sempre recomendável que a criança vá à escola, porque lá estará sob os cuidados dos mestres, cuja moral é sempre sadia, além disso, a criança fará uma série de aprendizados no âmbito da moral, graças ao convívio com outras tantas crianças42. O raciocínio de Descartes expressa a reprovação da eficiência da escola e da capacidade da mente infantil, suscetível a todos os perigos, “Talvez sem guia fossem elas [as crianças] a precipícios” (DESCARTES, [1628], p. 7). Essa opinião contrasta com algumas filosofias sociais do século XVIII.
Quando a história da filosofia moderna é consultada percebe-se facilmente a mudança de comportamento dos pensadores do século XVII em relação aos humanistas do século anterior. O século de Descartes passou a moldar a imagem da criança à semelhança do bárbaro do novo mundo, era esse o termo de comparação para avaliação da inteligência infantil, obviamente um juízo adulto amplamente desfavorável tanto ao homem selvagem quanto à criança, pois ambos estão fora da civilização. No século XVIII a noção de homem natural foi revista por dois pensadores: Giambattista Vico (1668-1744) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), ambos destoavam do discurso hegemônico da filosofia moderna que considerava a criança como ser sem razão a exemplo dos homens do novo mundo. Vico mantinha a relação criança-bárbaro, porém, ele considerava o estágio infantil, seja do indivíduo seja dos povos, um momento vital e decisivo para a história de vida e para a história das nações, pois, a barbárie é o momento criativo da afirmação do ser social que se realiza graças à sua capacidade racional que é auxiliada - e não atrapalhada - pela fantasia, pela memória e pelo engenho. Essas faculdades, dizia Vico, florescem na infância e na adolescência, depois começam a declinar, se a educação escolar não respeitar o tempo da criança e do adolescente há o risco da esterilidade da vida adulta, incapaz de grandes trabalhos, porque indigente dos talentos da razão43. Rousseau, bem mais conhecido do que Vico, desenvolveu a hipótese do bom selvagem e ao mesmo tempo propunha a educação natural para as crianças, isso significava mantê-las até os 15 anos de idade longe dos livros, apenas em contato com a natureza para se fazerem homens44. Com essa meta Rousseau redigiu o Emílio, ou da educação, publicado em 1762, esse livro é considerado o marco inaugural da pedagogia moderna e fonte de inspiração para as modalidades de educação centradas na criança.
Apesar do legado de Vico e Rousseau, e antes deles, do legado humanista, a tendência cientificista foi determinante para a abreviação da infância, porque o seu tempo estava associado à animalidade que precisava ser extirpada pela disciplina corporal45, a pedagogia de Kant chamava a atenção para a disciplina, sem a qual não é possível a instrução, mais ainda, as palavras do filósofo deixam de considerar o momento singular da criança para incumbir a educação infantil da execução de um projeto para o futuro, que exige “submeter a natureza a normas” (KANT. 1999, p. 23)46. Quando a criança for incapaz de observar as normas e de se submeter às penas morais, então o mestre está autorizado a praticar os castigos físicos47 - não há nada de mais reprovável na educação, dizia Erasmo. Em suma, a escola para crianças se tornou obrigatória e estatal nos últimos dois séculos, porém, o seu cotidiano está muito distante dos ideais educativos humanistas. A criança e a escola do tempo presente são situações que colocam em discussão a crença no valor do irrefreável progresso, pois, pode acontecer do progresso produzir a irrefreável regressão à barbárie48, não aquela barbárie benevolente que tanto encantava Giambattista Vico em sua observação do comportamento infantil.