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Cadernos de História da Educação

versão On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.14 no.2 Uberlândia maio/ago 2015  Epub 06-Dez-2015

https://doi.org/10.14393/che-v14n2-2015-599 

Artigos

A história social da criança: subsídios para a pesquisa historiográfica da infância (1530-1599)

The social history of the child: subsidies for historical research of childhood (1530-1599)

Humberto Guido1  1

1 Professor Associado do Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia. Professor permanente dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: guido@ufu.br


RESUMO

Este artigo é a exposição sintética de uma pesquisa situada na confluência da filosofia e da história, mais especificamente da filosofia moderna e da história social, essa indicação não vale como mera delimitação cronológica de um período, o recorte temporal indica um momento em que o sentimento de infância despontou na sociedade ocidental: na Europa burguesa e capitalista. Nem sempre na história da infância essa convergência é adequadamente explorada, porém, é inegável a junção da sociedade burguesa e da economia capitalista por um lado, e, da criança e da sua escolarização por outro lado. Há uma trajetória comum, que teve início no humanismo renascentista e culminou no ensino público estatal obrigatório conquistado no final do século XIX e que se tornou efetivo no século XX. A discussão se detém no começo desse processo, quando infância e escola ainda não formavam uma unidade inquebrável, para tanto, no primeiro momento é analisada a contribuição de Erasmo para a escolarização da criança, posteriormente, é apresentado o processo de expansão dos colégios por intermédio da obra educativa dos jesuítas.

Palavras-chave: infância; escola; humanismo; Erasmo de Roterdã; Ratio studiorum

ABSTRACT

This paper is a exposition of a research situated at the confluence of philosophy and history, specifically of modern philosophy and social history, this statement does not constitute mere chronological definition of a period, the time frame indicates a moment when the feeling childhood emerged in Western society: the bourgeois and capitalist Europe. Not always in the childhood history this convergence is properly exploited, however, is undeniable the junction of bourgeois society and capitalist economy on the one hand, and of the child and their education on the other. There is a parallel path that began in the Renaissance humanism and culminated in the compulsory state public education achieved in the late nineteenth century and which became effective in the twentieth century. The discussion stops at the beginning of this process, when childhood and school not yet formed an unbreakable unity, therefore, at first analyzes the contribution of Erasmus of Rotterdam to the education of the child, later, shows the process of expanding schools through the educational work of the Jesuits.

Keywords: childhood; school; humanism; Erasmus of Rotterdam; Ratio studiorum

Para Márcio Danelon

I. Apresentação do problema, orientação teórica e diretriz metodológica

O propósito deste artigo é subsidiar a fundamentação teórica de pesquisas destinadas à abordagem das práticas sociais com crianças no espaço delimitado pelos adultos para a sua formação: a escola2. Por esse motivo, as páginas que se seguem não se distanciam da concepção de infância do começo da modernidade e pouco adentram nos registros factuais das vivências de adultos e crianças, esse material valioso exigiria outra modalidade de pesquisa. No curso da investigação, que resultou neste artigo, é feito menção aos trabalhos de alguns cientistas sociais - historiadores, psicólogos, sociólogos - que realizaram grandes pesquisas documentais, portanto, os dados desses inventários relativos à infância nos séculos inaugurais da modernidade, sempre que necessários, irão subsidiar a análise da produção dos educadores humanistas.

A orientação teórica aplicada ao manuseio do acervo bibliográfico em questão foi feita a partir da apropriação de duas metodologias distintas, mas que não se opõem de modo irreconciliável, me refiro à arqueologia de Foucault e ao rizoma de Deleuze e Guattari3. Na execução da pesquisa essas referências do pensamento contemporâneo foram assimiladas para compor uma atitude crítica em face dos sujeitos da pesquisa: a infância e a escola.

O trabalho historiográfico reúne os fatores que juntos oferecem a compreensão das mudanças e dos novos hábitos sociais, é difícil, porém, afirmar a suposta predestinação de um fator para o outro, cuja meta seria a composição de um sistema, uma totalidade sob a autoridade de tal fator; essa visão unitária do processo histórico é uma tentação suscitada pelas filosofias da história e que enfraquece o produto do historiador. Com Foucault fica reconhecido o direito de abordar as obras humanistas - a Civilidade pueril e o Método de estudos dos jesuítas - como configurações particulares, pois, “não são signos para descrever, em sua totalidade, a fisionomia de uma cultura” (FOUCAULT, 1987, p. 182). Portanto, a aproximação da infância e da escola não anula as singularidades das trajetórias históricas de ambas, que correram em paralelo no século XVI e tiveram como cenário a reforma e a contrarreforma religiosa. As mudanças econômicas que estavam em curso não autorizam a pretensão de descrever uma época para reduzi-la a um único fator que permitiria inferir a ocorrência simultânea dos processos de escolarização e de formação do sentimento de infância para todo o ocidente a um só tempo. As práticas introduzidas pelas reformas sociais ocorreram com ritmos distintos para os diversos lugares. Tal como o subtítulo do artigo sugere, o motivo desta análise é oferecer subsídios destinados à pesquisa historiográfica voltada para a infância dos primórdios da modernidade, não há aqui a presunção de expor uma grande síntese histórica.

Na ótica filosófica, ou no plano ético-social, vale o mesmo apelo ao referencial teórico, com Deleuze e Guattari me eximo de fundamentar um juízo moral relativo à eficácia - ou ineficácia - da descoberta do sentimento de infância e da escolarização da sociedade; o mesmo pode ser dito a respeito do debate interminável sobre a função da escola no mundo capitalista: reprodutora da ordem vigente ou ponto de ruptura para o melhor dos mundos. Os fatores distintos a cada instante se entrelaçam para compor um determinado momento histórico permitindo entrever a nova mentalidade em formação. Esse processo começou com a educação não escolar destinada a promover as regras de civilidade4 entre as crianças, essa ação reforçou a importância da língua materna, principalmente nas nações que haviam aderido à reforma, cuja meta de alfabetização era promover a leitura da Bíblia nas línguas vernáculas. Paralelo ao florescimento das escolinhas dominicais tinha início a expansão da rede de colégios. Esses fatores não têm uma destinação prévia enunciada por uma razão absoluta5. Deleuze e Guattari são obstinados na refutação de qualquer plano teleológico6, somente com a refutação do fim da história é que o trabalho historiográfico alcança a sua autonomia, livre das ilusões da filosofia da história. Admitindo a autonomia da história não há como prever os desdobramentos do curso social, a escolarização da infância é um acontecimento da modernidade, suas consequências permanecem em aberto, não é ela a responsável única pela salvação ou perdição da criança.

O referencial teórico exposto acima conduzirá a discussão dos resultados da investigação que precedeu o artigo, cujo desenvolvimento ocupará dois tópicos centrais articulados que expressam a tese norteadora da incursão deste pesquisador no horizonte da história social da infância. Desde já, é preciso deixar claro que se trata de um campo aberto e em permanente mudança, cujos contornos são definidos pelas sucessivas releituras da ordem discursiva da modernidade7, nisso consiste o mérito da historiografia contemporânea. Portanto, a tese que conduz o esforço investigativo é definida da seguinte maneira: a criança é um corpo destinado à disciplina e ao trabalho; a realização desse intento exigiu a antecipação do início do processo de escolarização8, que deveria incluir as crianças pequenas, somente a escola poderia responde pelas duas metas impostas unilateralmente à infância. Em suma, a criança é um ser para o outro, nesse caso, o outro é o adulto e suas representações pragmáticas que se materializam no modo de vida burguês do mundo capitalista9. Assim, a criança é expropriada de seu ser infantil pelos agentes dos poderes econômico, estatal e, o persistente poder religioso, cujo declínio se deu com a consolidação da sociedade moderna, no entanto, ele não desapareceu completamente. Essas premissas serão demonstradas no desenvolvimento do artigo com uma exposição empenhada na demonstração da autonomia dos dois sujeitos: a infância e a escola.

Um balanço das conquistas modernas pôde ser feito no século passado, foi o momento da falência do humanismo. Esse raciocínio foi manifestado por M. Heidegger em 1947 na sua célebre carta sobre o humanismo, ou simplesmente, Sobre o humanismo. O fim do humanismo deixa um vazio, pois, “essa palavra perdeu o seu sentido” (HEIDEGGER, 1967, p. 72). O espaço das crianças também foi abalado pelos eventos da derrocada do humanismo, é inegável que o sentimento de infância foi uma das suas criações, por isso a historiografia do pós-guerra incluiu em seu programa de pesquisa a infância, na tentativa de elucidar a gênese da criança como ser social, isto é, identificada no corpo social graças à sua singularidade, bem distinta da caracterização do adulto segundo o modelo hegemônico de homem10. A nova perspectiva historiográfica se serviu das conquistas metodológicas do estruturalismo e da etnografia, no solo da historiografia esse movimento ganhou atenção nas sucessivas fases da École des Annales11.

Essa referência à historiografia francesa do século passado foi necessária para explicitar a caracterização deste artigo em sua dimensão historiográfica, ele se inscreve na história das mentalidades, essa opção não é feita para suscitar polêmica a respeito da cidadania desse movimento no território da história, a menção feita aqui é para informar que o percurso da pesquisa vislumbrou a longa duração da modernidade e, com ela, a extensa e contraditória jornada da criança e da escola no ocidente moderno-contemporâneo12.

Feita a definição metodológica é possível justificar os marcos temporais do subtítulo do artigo. Não se trata do intervalo temporal que vai de 1530 a 159913, as indicações reforçam a importância de duas obras que surgiram antes da pedagogia: A civilidade pueril (1530) de Erasmo de Roterdã e o Método dos estudos (1599) dos jesuítas. Essas obras deram força para a formação dos dois domínios, anteriormente mencionados: a infância e a escola, cujo encontro - ou confronto - deu forma à pedagogia moderna. Na primeira metade do século XVI prevalecia a aspiração pela boa educação das crianças o que não incidia na necessidade da criação de uma rede de escolas à moda dos colégios já existentes; o vínculo da infância com a escola é tardio, sua efetivação maciça ocorreu somente dois séculos depois. Contudo, a segunda metade do século XVI foi o momento de afirmação da escola com o aumento considerável dos colégios para adolescentes e jovens14. A nova instituição social teve na obra pastoral dos jesuítas um impulso considerável, não apenas na ampliação vertiginosa da rede ensino, mas sobretudo na normatização do trabalho educativo com o estabelecimento de regras que abarcaram o ambiente escolar, da administração até os regulamentos para os professores e os estudantes; aquele momento foi a afirmação da instituição escolar tal como ela se encontra no presente em muitas partes do mundo. A tarefa do tempo seria a inserção das crianças no universo educativo.

As duas condições elementares para a pedagogia moderna, apesar de ainda não serem realidades efetivas no século XVI, estavam sendo plasmadas, apesar da ligação das práticas educativas ao discurso filosófico que impedia a emancipação de uma arte específica, que somente atingiria a plenitude nos séculos seguintes. Porém, o registro é essencial: o pioneirismo dos humanistas impulsionou não apenas a educação escolar, mas também a filosofia e a ciência, criando uma teia complexa que dava lugar à criança e lhe assegurava - na ordem do discurso - os cuidados específicos destinados à sua segurança e integridade, mas não só isso, nessa trama complexa também estava o anúncio da escola que prometia ampliar as oportunidades de escolarização, destinando-a inclusive às primeiras idades, tornando uma realidade, ao menos, a escola a partir dos 10 anos de vida. Esses homens do século eram cultos e profundos observadores da natureza, graças a eles a história natural despontou como disciplina destinada a promover a ruptura com o saber dos antigos15. Além disso, eram dotados de uma nova percepção da dinâmica do mundo e valendo-se do senso de observação criaram as condições para a irrupção da ciência experimental. Enfim, eram homens engajados na superação do obscurantismo da idade média, por isso são lembrados também como reformadores sociais que viveram no estágio pré-capitalista, entre os séculos XIV e XVI.

Outro aspecto pouco notado na atividade dos humanistas no terreno educativo é que eles anteciparam a literatura especializada destinada à fundamentação do método científico, do qual a filosofia dos séculos XVII e XVIII tanto se ocupou16. Por isso, a gênese da pedagogia no humanismo foi decisiva para a revolução científica que se seguiu, o cuidado com a organização e o método dos estudos foram vitais para o amadurecimento da prática da ciência experimental e da teoria do conhecimento dos modernos.

Após a explicitação da orientação teórica e metodológica deste artigo, fica o registro de que o tempo presente é a crise do humanismo, esse evento prolongado que tem deixado uma grande lacuna e sérias consequências. A ciência parece ter superado o vazio, ao menos no âmbito da produção tecnológica e da criação de novas perspectivas impactantes sobre a esfera da vida comum. As inovações têm trazido também as inquietações decorrentes da nanotecnologia, da manipulação genética e da clonagem, dos alimentos transgênicos, da simbiose homem-máquina e das próteses inteligentes etc. Porém, a educação escolar e a representação da infância ainda parecem presas ao velho humanismo e por isso são tomadas pela crise do ocidente. O lugar da criança nesse cenário, que mescla a crise moral com a superprodução da ciência, é evidente: ela permanece refém da velha representação, que reconhece a sua potencialidade para o aprender, mas reforça a ambivalência, ou seja, o tempo da criança só tem a finalidade de torna-la um adulto rapidamente. A educação humanista pretendia acabar com a condição servil do homem, colocando-o em sintonia com as novas descobertas científicas do período. Porém, a ciência e a filosofia modernas não tiveram seus conteúdos revolucionários introduzidos de imediato nas escolas da época, seria preciso um longo período de adaptação dos valores sociais aos resultados concretos das novas ciências. Essa defasagem foi um dos temas das severas críticas de Descartes à escola humanista, uma escola confessional e arraigada aos valores religiosos, presa ao velho saber destituído de rigor e de certeza, em suma, meramente retórico (DESCARTES, [1637], p. 8 e ss.)17.

Aqui não é o lugar da discussão dos impasses para a infância, cabe agora adentrar a formação do mundo moderno e explorar o ambiente de preparação dos dois fatores marcantes da nova sociedade: os germes da descoberta do sentimento de infância e os primeiros movimentos da instituição escolar para a conformação da pedagogia moderna. Erasmo e os educadores jesuítas serão referências singulares, capazes de elucidar as mudanças em curso, essa é a razão para tomar quase que exclusivamente esses escritos educacionais como orientação da pesquisa sobre as fontes humanistas para a educação moderna.

II. A reforma social: os germes do sentimento de infância - 1530

Dentre os pensadores humanistas, o que mais se destacou na proposição de uma série de preceitos destinados à proteção e educação das crianças foi Erasmo de Roterdã (1466-1536), a sua obra educacional ultrapassou a tradição medieval e renascentista, ele foi um pensador paradigmático: o primeiro a postular a universalidade da educação escolar, sem distinção de sexo e de origem social (REVEL, 2009, p. 173/174). Diferente dos outros manuais da época, A civilidade pueril (De civilitate morum puerili, 1530) era destinada à boa educação de todas as crianças; essa prática social, dizia Erasmo, se apresenta como o segundo nascimento do homem, principalmente para os desfavorecidos, pois a educação pode compensar as adversidades que o nascimento impõe18. Apesar da defesa acalorada de Erasmo pela universalização do da educação, o seu tempo desdenhava desse direito, até mesmo homens respeitados pela filosofia e pelas letras assumiam uma atitude contrária à educação das camadas populares, apenas para mencionar um nome ilustre: Voltaire, personagem do século das luzes, se manifestava dessa maneira, o filósofo dizia aos seus confidentes que o povo deve ser guiado, isto é, tutelado pela nobreza, ao invés de ser instruído (JOLIBERT, 1981, p. 22).

A civilidade pueril não foi a única obra de Erasmo dedicada à educação, ao que tudo indica, desde 1509 ele se ocupava desse assunto com entusiasmo, tendo publicado antes do pequeno livro de 1530 outros três: De ratione studii (Plano dos estudos, 1511), Institutio principis christiani (A educação do príncipe cristão, 1516) e De Pueris statim ac liberaliter instituendis, libellus et novus et elegans(Dos meninos, opúsculo com regras bem escolhidas para a nova educação liberal, 1529). No Plano dos estudos Erasmo elaborou uma proposta de ensino destinada a alunos adolescentes. O Plano é tipicamente humanista19, prioriza a formação liberal, isto é, inspirada nas artes liberais que desde o final da antiguidade eram a meta da educação do homem virtuoso. A atenção de Erasmo recaia sobre o trivium: gramática, retórica e dialética20. Não há no Plano a gradação do conhecimento ou a seriação para as diferentes idades, dos 10 aos 15 anos; no preâmbulo da obra Erasmo dizia que o plano de estudos consiste prioritariamente na definição do método e na fixação de normas para o estudo (ERASMO, [1511], p. 276). Ora, o método está subordinado à matéria, a saber, o estudo da linguagem, pois, dizia Erasmo: “o conhecimento se mostra como duplo: conhecimento das coisas e conhecimento das palavras. Aquele das palavras tem a prioridade, aquele das coisas é o mais importante” (ERASMO, [1511], p. 277)21. Embora Erasmo tenha atribuído maior importância ao conhecimento das coisas, ele foi enfático: o ensino deve começar pelas palavras, pois elas são os signos das coisas, por isso, a educação liberal é a iniciação tendo em vista os estudos mais sutis que estão reservados à juventude no ensino superior.

O Dos meninos não é uma peça pedagógica, esse escrito contribuiu com a filosofia da educação, o livro é destinado aos professores com a exortação para o início da instrução escolar o mais cedo possível, contemplando, portanto, a faixa etária para a qual o Plano dos estudos não se aplicava. A metodologia de Erasmo era destinada às crianças pequenas, possivelmente a partir de 3 anos, é o que fica subsumido no texto. Logo de início, se dirigindo ao agraciado com a dedicatória da obra, que havia acabado de se tornar pai, Erasmo o exortava, pedindo para que não se deixasse persuadir pela opinião corrente que desacreditava na capacidade infantil para os estudos, tendo-os como incompatíveis à idade, além de ser um exercício extenuante para as forças ainda débeis da criança; ao contrário, dizia o filósofo: “Faze-o aprender as primeiras noções antes que a idade fique menos dúctil e o ânimo mais propenso aos defeitos” ((ERASMO, [1529], p. 21). Qual é a idade propicia ao aprendizado das primeiras noções? Na evolução do opúsculo não há uma determinação explicita, porém, Erasmo sempre critica os adultos refratários à instrução das crianças: “Quem endossaria a opinião de ter como inapta para o estudo das letras a mesma idade que já é idônea para a educação moral?” ((ERASMO, [1529], p. 53). Mais à frente e indiretamente Erasmo sugere a melhor idade para o início da formação escolar: desde o momento em que a criança já é capaz de falar22. Nas últimas linhas do escrito Erasmo manifesta a sua convicção a respeito da potencialidade do intelecto infantil e diz que não é preciso esperar até os 7 anos para dar início ao convívio com as letras, isso pode ser feito desde os 3 anos, ou mais cedo ainda ((ERASMO, [1529], p. 105).

Das quatro obras de Erasmo já mencionadas, A Civilidade pueril merece distinção porque é dirigido às crianças - não aos professores e adolescentes do Plano dos estudos, nem aos mestres a quem se destinava o Dos meninos. Mais ainda, a página que abre o livrinho traz o alfabeto latino para que as crianças aprendam a ler valendo-se do próprio esforço, o que não dispensa o trabalho do professor, mas é essencial a iniciativa da criança. Esse expediente pode explicar o sucesso da obra e seu uso até o começo do século XIX. Dar as letras à criança pequena, dar-lhe a oportunidade de ingressar com o próprio esforço no mundo civil, essa é a novidade contida em A Civilidade pueril23. A posteridade recebeu de Erasmo dois excelentes trabalhos educativos que se integram: o Dos meninos com sua filosofia da educação destinada aos mestres e a Civilidade pueril com as regras de boas maneiras destinada às crianças pequenas como a iniciação ao cultivo das letras.

A posição de Erasmo o notabiliza como o precursor da educação infantil, mesmo que não tenha se esmerado para produzir uma didática contendo os instrumentos para a promoção da instrução escolar. A atitude de Erasmo fez dele um reformador social, o típico humanista, ainda distante da competência técnica do homem moderno imbuído da prática de uma determinada arte ou ciência. Apesar de Erasmo não ser um pedagogo moderno24, os seus escritos foram imprescindíveis para a nova cultura escolar surgida no século seguinte e que se expandiu no tempo. Quando Erasmo tratava da boa educação, esse argumento já trazia consigo a distinção entre o saber da vida adquirido pela experiência espontânea de cada indivíduo e o saber sistematizado que resulta do amadurecimento científico de uma comunidade, de modo mais abrangente, de um povo25. O que se destaca na postura de Erasmo, quando comparado a outros humanistas, é o seu empenho na preparação do trabalho pedagógico para tornar a aprendizagem compatível com as forças cognitivas das crianças, outra diferença crucial foi a insistência na necessidade de começar o trabalho escolar o mais cedo possível, para complementar aquilo que a natureza legou aos homens. Erasmo acreditava que isso era viável porque a criança traz consigo a predisposição para aprender, sem exagero, o colo materno é a primeira escola ((ERASMO, [1529], p. 59).

O conteúdo da obra de 1529 considera os genitores como primeiros educadores26, responsáveis pela educação moral e pelas primeiras noções de gramática. Não há nesse manual o predomínio de programas que delimitam conteúdos destinados à formação da criança, tanto é assim que, somente na aproximação da conclusão da obra, Erasmo foi se manifestar a respeito de um “programa de ensino”, mas também ali estão reunidos preceitos básicos: aprendizado das línguas e noções gerais de história natural, seguidos de orientações para os professores da educação infantil, tais como: observar as aptidões das crianças, conversar com elas de modo correto (correção linguística), despertar o amor pela educação, e, por fim, uma reflexão sobre a didática ((ERASMO, [1529], p. 89 e ss.).

A motivação para a educação das crianças pequenas foi uma das consequências da reforma protestante ocorrida durante a vida adulta de Erasmo, esse evento introduziu novas práticas sociais, como o funcionamento de escolinhas dominicais que, além da catequese, promoviam a alfabetização das crianças para a leitura da Bíblia na língua materna27, esses jardins literários atendiam crianças a partir dos 4 anos28. Erasmo atentou para essa prática e se adiantou ao propor a sua institucionalização, porém, não se pode inferir dessa constatação a imediata defesa da incorporação da educação infantil ao sistema que já funcionava atendendo adolescentes e jovens. Aos olhos do presente parece simples a iniciativa, contudo, na época eram vários os obstáculos, um deles a suposta incapacidade da criança pequena para os estudos, além da já referida fragilidade desse estágio da vida29. Esses argumentos são falaciosos e não atentam para a natureza da criança e, mais ainda, para a necessidade de elaboração de uma didática voltada para o aprendizado infantil, cujo trato deve ser norteado por “modos mais brandos, na direção da virtude e das letras” ((ERASMO, [1529], p. 57).

A obra educativa de Erasmo antecedeu em um século a descoberta do sentimento de infância. Ariès se reportou a Erasmo para destacar a importância d’A Civilidade pueril, contudo a pequena obra não faz do filósofo humanista o ícone do sentimento de infância, no entanto, o historiador francês concorda com o humanista a respeito da falta de zelo no acompanhamento educativo da criança pequena. Nas palavras de Ariès: “Ia-se para a escola quando se podia, ou muito cedo ou muito tarde. Esse modo de ver persistia ao longo do século XVII, a despeito das influências contrárias” (ARIÈS, 1981, p. 188)30; essas influências contrárias eram os anseios dos educadores humanistas. O fato é que, não obstante a escolarização, o século XVII foi o momento do sentimento de infância, da individuação da criança na sociedade.

Outro historiador das mentalidades, Revel (2009, p. 177), deu importância ao trabalho educativo de Erasmo e, portanto, à sua contribuição para o reconhecimento da idade infantil, a ponto de afirmar que A Civilidade pueril em pouquíssimo tempo se tornou “um bem comum”. Cabe acrescentar, recorrendo a outro historiador da mesma geração, que “A evolução do sentimento de infância não se manifesta de maneira linear” (GÉLIS, 2009, p. 315), portanto, mesmo que Erasmo não ocupe a centralidade dessa construção de identidade social da criança, o filósofo humanista deixou uma contribuição significativa para essa realização.

Que papel Erasmo desempenhou, Rememorando o referencial teórico de análise deste artigo, não é permitido interpretar os escritos do filósofo com uma meta que não fosse a dele. O julgamento interpretativo é um exercício posterior que acaba enxergando conexões que por vezes não eram as do autor; dizer de Erasmo: o patrono da educação infantil, ou, o utilitarista da educação escolar. Ambos os raciocínios se desprendem dos seus escritos educacionais, desde que se queria alinha-los com os esquemas tradicionais de interpretação. Dizer que Erasmo se antecipa à economia de Estado quando propunha o ensino simultâneo, o que na prática era manter quatro ou seis crianças sob a responsabilidade de um único mestre, é atestar a ignorância do conteúdo das proposições do filósofo, que considerava mais salutar para as crianças o precoce convívio social do que o isolamento da educação particular. A reunião de poucas crianças sob a regência de um mestre não é o mesmo que propor a instrução pública estatal, típica do século XIX em diante. Caso se queira ver na iniciativa de Erasmo a promoção da educação pública, isso só pode ser confrontado com a prática corrente do tempo, como oposição à educação doméstica, ou educação personalizada, o que não é mesmo que o ensino público estatal31. Apesar do seu vínculo religioso, Erasmo sempre conservou a independência de pensamento e defendeu uma educação liberal destinada a todas as crianças.

A obra educacional de Erasmo introduziu certos cuidados para com a infância, uma parte considerável Dos meninos é dedicada à condenação dos castigos corporais impostos às crianças. Porém, Erasmo não pleiteava uma revolução social, ele queria preservar a criança das perversões do mundo adulto, nos seus escritos sobressaem as linhas gerais de uma educação civil que encontrou n’A Civilidade pueril o seu coroamento com as regras de boas maneiras e o incentivo para a sua educação emancipatória. Essas diretrizes situadas no contexto inicial da modernidade possuem um valor intrínseco: a autonomia da criança, deixa-la se fazer homem pelas suas próprias forças32, portanto, não há nisso nada de revolucionário, mas também não há nada de conservador, apenas o reconhecimento da potencialidade infantil que deslinda o seu futuro.

III. Os primeiros germes da escola para crianças - 1599

O legado de Erasmo, com os seus escritos sobre a educação, especialmente o Dos meninos e A Civilidade pueril, abriu espaço para a criança, mesmo que a concretização do sentimento de infância viesse ocorrer mais tarde. Apesar do seu entusiasmo pela educação, Erasmo não postulava a institucionalização da instrução infantil. Bem diferente foi a postura dos jesuítas, responsáveis por uma obra pedagógica de grande relevância, tanto pelo tempo em que se manteve em vigor, quanto pelo número expressivo de escolas e estudantes matriculados, tudo isso contribuiu para a consolidação da escola na modernidade. Esses dois eventos correram paralelos, mantendo sua independência e distância temporal no transcorrer do século XVI, até que, por fim, outros agentes históricos cindiram os dois sujeitos discursivos: a infância e a escola. A criança começou a ser percebida ainda que muito discretamente a partir do século XIV, ali se manifestava a individuação do corpo infantil no interior da sociedade burguesa. A escola começava na segunda metade do século XVI a se tornar instituição indispensável para o funcionamento da nova sociedade.

Embora pareça óbvio que o ensino religioso fosse sobreposto à educação formal, as ordens religiosas rapidamente se adequaram à novidade, ampliando os seus estabelecimentos que até então eram exclusivos para a formação de futuros religiosos e sacerdotes. Desde então fizeram de seus colégios também escolas extensivas ao grande público33. Certamente, a característica marcante da pedagogia humanista é a ênfase na educação moralizante, na centralidade do ensino formal - calcado na gramática, na retórica e na lógica - e submetido à autoridade da palavra impressa dos manuais de ensino, que graças ao invento de Gutemberg, foram popularizados e se tornaram acessíveis, entretanto, a nova tecnologia serviu para limitar o ensino, mantendo-o preso aos livros escolares que se fizeram receptáculo e expressão da verdade da tradição.

O Método dos estudos (Ratio studiorum34, 1599) merece registro neste artigo, apesar dos colégios dos jesuítas serem destinados à mesma faixa etária a que se destinava o Plano dos estudos de Erasmo, a saber, dos 10 aos 15 anos aproximadamente. A importância da iniciativa dos jesuítas reside na expansão acelerada da educação escolar, o que impactou na sociedade da época e fez da escola uma instituição social que aos poucos foi se fazendo obrigatória. O traço comum entre os jesuítas e Erasmo é a extensão da instrução escolar aos desfavorecidos, por isso, a novidade dos colégios jesuítas era a gratuidade para quem não tinha condições de arcar com os estudos35, eles eram acolhidos como alunos externos, que não vislumbravam necessariamente a carreira religiosa (LUZURIAGA, 1976, p. 120).

A sintonia da Companhia de Jesus com as mudanças estruturais da sociedade do século XVI foi um fator que explica o sucesso dos seus colégios. A ordem religiosa fundada por Inácio de Loyola foi, certamente, o que de mais importante aconteceu no que se costuma chamar de contrarreforma católica. Tudo ocorreu rapidamente, em 1517 na Alemanha Lutero havia consumado o cisma da cristandade, que se seguiu na Suíça e na Inglaterra durante a década de 1530. A reação católica adquiriu força com o movimento de Loyola, em 1534 era fundada a Companhia de Jesus (Societas Jesu), ou o exército de Cristo, em 1540 o papa Paulo III reconhecia a existência da nova ordem, que foi confirmada três anos depois pelo papa Júlio III.

O curioso é constatar que o primeiro colégio surgiu fora da Europa, mais especificamente na Índia entre 1543 e 1548, o grande artífice dessa empreitada foi o padre Francisco Xavier que abriu o Seminário Santa Fé, da cidade de Goa, que recebia também a população local, quando o projeto inicial do seminário era atender os vocacionados para o sacerdócio e os filhos de portugueses residentes naquela cidade. A iniciativa foi consolidada em 1548, quando, além do seminário, passou a funcionar oficialmente o Colégio São Paulo para os externos (TAVARES, 2007, p. 131). No mesmo ano, na Europa surgiu o colégio jesuíta de Messina na Itália, no ano seguinte o colégio de Palermo na Sicília e em 1551 o Colégio Romano em Roma. Em 1556, ano do falecimento de Loyola, já existiam 40 colégios espalhados pelo mundo.

A partir dali tudo foi intenso e rápido: expansão da rede de colégios e elaboração de uma linha pedagógica comum a todas as escolas. No século XVII já existiam 372 colégios, os números não paravam de aumentar, no século XVIII eram 612 colégios, 157 escolas normais destinadas à formação dos professores, 24 universidades. No ano da supressão da ordem pelo papa Clemente XIV, em 1773, os jesuítas possuíam 728 colégios (MONROE, 1958, p. 203). Os fatores que contribuíram para o sucesso imediato da iniciativa educacional dos jesuítas, além da gratuidade do ensino para os alunos carentes, foi a criteriosa seleção e preparação dos professores associada à cuidadosa edificação dos colégios, com instalações modernas e bem equipadas, tudo isso somado permitiu o funcionamento de estabelecimentos que se propunham a oferecer uma educação integral: “física, estética e moral” (LUZURIAGA, 1976, p. 120).

A expansão dos colégios impunha a necessidade da manutenção da unidade da doutrina por intermédio da regulamentação pedagógica. Nas Constituições da Companhia de Jesus, em sua primeira versão de 155936 havia na quarta parte as diretrizes da formação intelectual e da orientação do ensino, capítulos IV e V respectivamente (COMPANHIA DE JESUS, [1559], p. 263 e ss.). Essas linhas gerais eram destinadas à formação dos religiosos e dos sacerdotes, e não se destinava à educação escolar de adolescentes, tampouco de crianças. A preocupação maior dos formadores jesuítas era o oferecimento das condições espirituais para que cada indivíduo pudesse realizar o propósito para o qual fora criado: a salvação da alma por intermédio das boas obras (MIRANDA, 2011, p. 475); a instrução e os conhecimentos em conformidade com a doutrina da Igreja deveriam auxiliar nessa tarefa.

A elaboração do plano dos estudos tornou-se uma obrigação para os religiosos. A inspiração para essa tarefa veio do Colégio Santa Bárbara de Paris (TAVARES, 2007, p. 126; FRANCA, 1952, p. 28), frequentado por Loyola e que lhe inspirou na proposição das linhas disciplinar e didática destinadas aos seus colégios. Após a sua morte teve início um intenso trabalho de regulamentação da pedagogia dos colégios e universidades, tanto no que concerne à administração dos estabelecimentos, passando pelo estatuto de professores e estudantes, até o plano dos estudos enquanto tal.

Os jesuítas consumiram mais de quatro décadas para finalmente, em 1599, aprovar a versão definitiva do Método dos estudos destinado a todos os colégios espalhados pelo mundo. O processo de elaboração, avaliação e revisão foi lento e cuidadoso, do qual todas as instituições de ensino da Companhia participaram, sendo justamente os reitores e professores dessa grande rede de colégios os responsáveis pela versão final, pois, eram eles que avaliavam as versões preliminares que lhes eram enviadas.

O período mais intenso da elaboração do Método foi conduzido pelo superior geral da Companhia, padre Cláudio Aquaviva, que em 1586 editou uma versão preliminar contendo as inúmeras contribuições advindas dos colégios, esse volume trazia o título Praxis et ordo studiorum (PADBERG, 2000, p. 91). Os anos que se seguiram foram de intensa e ininterrupta atividade destinada à aprovação da versão definitiva. Porém, entre 1586 e 1599, uma nova versão para avaliação foi enviada aos colégios em 1591, essa versão contava com o empenho de uma comissão de notáveis da Companhia, entre eles estava G. Belarmino, que se tornaria célebre nos processos inquisitoriais de Giordano Bruno e Galileu Galilei. Além desse teólogo e futuro inquisidor, fazia parte da referida comissão o filósofo humanista Francisco Suarez; ao todo, eram oito jesuítas notáveis com o encargo de encontrar a melhor expressão para a ordem dos estudos. A partir de 1594 começaram a chegar ao Colégio Romano as críticas e sugestões; esse período de avaliação se estendeu até 1598 (FRANCA, 1952, p. 21). A comissão responsável pela redação do Método detinha-se na doutrina católica, enquanto que os reitores e professores analisavam os procedimentos pedagógicos e chamavam a atenção para a necessidade de tornar o plano mais simples e breve, sem descuidar da sua funcionalidade na normatização das diversas matérias relativas ao funcionamento dos estabelecimentos de ensino37.

O Método dos estudos possui uma organização prática, cujas regras normatizam o trabalho educativo de toda a comunidade escolar, a começar pelos superiores da ordem jesuíta, depois deles os reitores, os prefeitos dos estudos; em seguida são apresentadas as regras para os professores das universidades e das faculdades, para os professores das classes inferiores e suas respectivas disciplinas; por fim, as regras dos bedéis, dos estudantes do internato e do externato (FRANCA, 1952, p. 43). O Método dos estudos não inovou na concepção do ensino, ele permanecia humanista, mantendo a prioridade das disciplinas vinculadas ao estudo da linguagem - gramática das línguas clássicas, retórica e lógica - acompanhados da aritmética, geometria e noções de história natural (LUZURIAGA, 1976, p. 119). Se não houve mudança no conteúdo, a novidade dos colégios foi a clara definição da gradação do ensino pela seriação das idades, uma deliberação que rompeu com as práticas medievais que mesclavam pré-adolescentes de 10 anos38 até rapazes com mais de 20 anos39. Porém, alheio aos anseios de Erasmo em prol da educação infantil, o Método dos estudos fixou a idade de 10 anos para o ingresso no colégio.

IV. Considerações finais

O século XVII foi a consolidação da ruptura com o saber antigo alimentado pelas studia humanitatis, a partir dali teve início a reivindicação pela educação científica. A efetivação da nova modalidade acarretou mudanças significativas sobre a concepção de infância com o paulatino ingresso da criança pequena no sistema de ensino. O impacto da mentalidade moderna acarretou o enfraquecimento da proposta lúdica pleiteada por Erasmo. A nova perspectiva escolar não se fez acessível a todas as crianças de imediato, mas passou a funcionar para o segmento burguês como alternativa à velha educação retórica. O ideal educativo, que só se efetivou em grande escala nos séculos XIX e XX40, insistia na otimização do tempo de escola, o que demandava uma disciplina rígida para a transmissão de conteúdos considerados indispensáveis para sanar a incapacidade do entendimento infantil e habilita-lo o quanto antes à prática da ciência. A escola se apresentava como o atalho que abrevia a duração da infância, para que através dos juízos lógicos ela se tornasse apta, o mais cedo possível, para as atividades superiores.

Descartes é um personagem emblemático do novo tempo, não que ele manifestasse um propósito pedagógico que corroborasse a abreviação da infância em favor da prática precoce da ciência. O filósofo francês é elucidativo no encerramento deste artigo porque se fazia indiferente ao potencial da infância e da escola, as duas vias de conformação da pedagogia moderna. No Discurso do método (Discours sur la méthode, 1637), escrito em francês vulgar e, portanto, destinado ao grande público, Descartes fez severas críticas à escola, responsabilizando-a pelos erros produzidos pelas opiniões cultivadas nos livros escolares, tão distantes da realidade do mundo. Nas Meditações metafísicas (Meditationes de prima filosofia, 1641), uma obra destinada aos doutores teólogos do Colégio da Sorbonne, Descartes não ousou a crítica direta à escola confessional e responsabilizou a criança pelos erros e pela incapacidade do uso da razão41. Mas, antes desses dois livros, Descartes compôs um manuscrito, que ele dizia ser para a sua própria instrução, o qual certamente foi escrito em 1628, aos 32 anos de idade. Esse trabalho permaneceu inédito durante a vida do filósofo, mas naquele momento em que era redigido, Descartes equiparava a escola à criança, de tal maneira que ambas correspondem ao mesmo estágio e ocupação inúteis para a vida madura. No fim das contas, Descartes dizia que apesar das deficiências mútuas, é sempre recomendável que a criança vá à escola, porque lá estará sob os cuidados dos mestres, cuja moral é sempre sadia, além disso, a criança fará uma série de aprendizados no âmbito da moral, graças ao convívio com outras tantas crianças42. O raciocínio de Descartes expressa a reprovação da eficiência da escola e da capacidade da mente infantil, suscetível a todos os perigos, “Talvez sem guia fossem elas [as crianças] a precipícios” (DESCARTES, [1628], p. 7). Essa opinião contrasta com algumas filosofias sociais do século XVIII.

Quando a história da filosofia moderna é consultada percebe-se facilmente a mudança de comportamento dos pensadores do século XVII em relação aos humanistas do século anterior. O século de Descartes passou a moldar a imagem da criança à semelhança do bárbaro do novo mundo, era esse o termo de comparação para avaliação da inteligência infantil, obviamente um juízo adulto amplamente desfavorável tanto ao homem selvagem quanto à criança, pois ambos estão fora da civilização. No século XVIII a noção de homem natural foi revista por dois pensadores: Giambattista Vico (1668-1744) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), ambos destoavam do discurso hegemônico da filosofia moderna que considerava a criança como ser sem razão a exemplo dos homens do novo mundo. Vico mantinha a relação criança-bárbaro, porém, ele considerava o estágio infantil, seja do indivíduo seja dos povos, um momento vital e decisivo para a história de vida e para a história das nações, pois, a barbárie é o momento criativo da afirmação do ser social que se realiza graças à sua capacidade racional que é auxiliada - e não atrapalhada - pela fantasia, pela memória e pelo engenho. Essas faculdades, dizia Vico, florescem na infância e na adolescência, depois começam a declinar, se a educação escolar não respeitar o tempo da criança e do adolescente há o risco da esterilidade da vida adulta, incapaz de grandes trabalhos, porque indigente dos talentos da razão43. Rousseau, bem mais conhecido do que Vico, desenvolveu a hipótese do bom selvagem e ao mesmo tempo propunha a educação natural para as crianças, isso significava mantê-las até os 15 anos de idade longe dos livros, apenas em contato com a natureza para se fazerem homens44. Com essa meta Rousseau redigiu o Emílio, ou da educação, publicado em 1762, esse livro é considerado o marco inaugural da pedagogia moderna e fonte de inspiração para as modalidades de educação centradas na criança.

Apesar do legado de Vico e Rousseau, e antes deles, do legado humanista, a tendência cientificista foi determinante para a abreviação da infância, porque o seu tempo estava associado à animalidade que precisava ser extirpada pela disciplina corporal45, a pedagogia de Kant chamava a atenção para a disciplina, sem a qual não é possível a instrução, mais ainda, as palavras do filósofo deixam de considerar o momento singular da criança para incumbir a educação infantil da execução de um projeto para o futuro, que exige “submeter a natureza a normas” (KANT. 1999, p. 23)46. Quando a criança for incapaz de observar as normas e de se submeter às penas morais, então o mestre está autorizado a praticar os castigos físicos47 - não há nada de mais reprovável na educação, dizia Erasmo. Em suma, a escola para crianças se tornou obrigatória e estatal nos últimos dois séculos, porém, o seu cotidiano está muito distante dos ideais educativos humanistas. A criança e a escola do tempo presente são situações que colocam em discussão a crença no valor do irrefreável progresso, pois, pode acontecer do progresso produzir a irrefreável regressão à barbárie48, não aquela barbárie benevolente que tanto encantava Giambattista Vico em sua observação do comportamento infantil.

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1Professor Associado do Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia. Professor permanente dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: guido@ufu.br

2Ariès havia chamado a atenção para essa articulação criança-escola: “Essa evolução da instituição escolar está ligada a uma evolução paralela do sentimento das idades e da infância.” (ARIÈS, 1981, p. 170).

3Considero relevante para as análises desenvolvidas neste artigo duas obras: A arqueologia do saber, publicada por Foucault em 1969, e, Mil platôs de Deleuze e Guattari, de 1972; respeitando as diferenças epistemológicas dessas obras, elas coincidem na posição crítica para certos conceitos que faziam parte da historiografia francesa, a saber: totalidade, gênese, finalidade e continuidade. Os autores acreditavam que o legado da pesquisa social deveria ser a descoberta das singularidades das situações sociais e que não se mostram como mera etapa de uma cadeia teleológica, sendo assim, cada momento e cada agente histórico têm autonomia e merece consideração quando se quer conhecer a história e não simplesmente interpretar fatos para compor totalidades que substituem a história no seu acontecer incessante. Foucault dizia a favor da arqueologia: “A arqueologia busca definir [...] os próprios discursos, enquanto práticas que obedecem as regras. Ela não trata o discurso como documento, como signo de outra coisa, como elemento que deveria ser transparente, mas cuja opacidade importuna (sic) é preciso atravessar [...]. Não se trata de uma disciplina interpretativa: não busca um ‘outro discurso’ mais oculto.” (FOUCAULT, 1987, p. 159 - grifo do autor). Em uma atitude transgressora, Deleuze e Guattari apresentaram o rizoma como uma anti-história: “Se escreve a história, mas ela sempre foi escrita do ponto de vista dos sedentários, e em nome de um aparelho unitário de Estado, ao menos possível mesmo quando se fala de nômades. O que falta é uma Nomadologia, o oposto de uma história.” (Deleuze e Guattari, de 1972, p. 34). Certamente, na composição deste artigo o seu autor não foi capaz de adequar plenamente o seu trabalho aos ditames dos pensadores sociais franceses, talvez o que o leitor terá diante dos olhos ainda é a velha disciplina da história das ideias: “incapaz de modificar realmente a velha forma de análise, incapaz de fazer com que transpusesse o limiar de cientificidade.” (FOUCAULT, 1987, p. 156).

4Na obra de Ariès: “A palavra ‘civil’ era quase sinônimo de nosso ‘social’ moderno: um ser civil era um ser social. A palavra ‘civilidade’ corresponderia aproximadamente ao que hoje entenderíamos por ‘conhecimento da sociedade’, mas a correspondência já é menos perfeita.” (ARIÈS, 1981, p. 245). Na interpretação etimológica, civilidade equivale à civilitas “do latim pós-ciceroniano, sobretudo na dimensão semântica da ‘benignidade’, ‘bondade’, ‘simplicidade’, tudo (sic) aspectos que giram à volta do ideal de um relacionamento pacífico e amável com os outros.” (OSÓRIO, 1993, p. 15).

5Na filosofia da história de Hegel se lê: “A história universal representa a evolução da consciência do espírito no tocante à sua liberdade e à realidade efetiva de tal consciência. A evolução traz consigo uma gradação crescente, uma série de determinações mais amplas da liberdade que decorrem do conceito do objeto: a natureza lógica e, principalmente, a dialética do conceito que se autodetermina, que cria determinações e a supera, e, mediante essa superação, ganha uma característica afirmativa.” (HEGEL, 1998, p. 60); a ideia de evolução corresponde ao progresso, descrito como gradação crescente, cuja culminância é o Estado, ou a síntese da história universal, reduzida ao ocidente cristão, tudo mais está fora da razão: “O Estado é o que existe, é a vida real e ética, pois ele é a unidade do querer universal, essencial, e do querer subjetivo - e isso é a moralidade objetiva. [...]. O interesse absoluto da razão é que essa totalidade ética exista.” (HEGEL, 1998, p. 39).

6“Um tal plano, com efeito, é mais de organização do que de desenvolvimento: é estrutural ou genético, e os dois ao mesmo tempo, estrutura e gênese, plano estrutural das organizações formadas com seus desenvolvimentos, plano genético dos desenvolvimentos evolutivos com suas organizações. [...]. Por isso, é um plano teleológico, um desenho, um princípio mental. É um plano de transcendência.” (Deleuze e Guattari, de 1972, p. 324).

7De acordo com Habermas, a modernidade “refere-se a um conjunto de processos cumulativos e de reforço mutuo: à formação de capital e mobilização de recursos; ao desenvolvimento das forças produtivas e ao aumento da produtividade do trabalho; ao estabelecimento do poder político centralizado e à formação de identidades nacionais; à expansão dos direitos de participação política, das formas urbanas de vida e da formação escolar formal (sic); à secularização de valores e normas etc.” (HABERMAS, 2000, p. 5).

8Provavelmente, o pensador que melhor expressou essa tarefa social da escola foi Kant em seus cursos de pedagogia, ofertados entre as décadas de 1770 e 1780 na Universidade de Königsberb: “Assim, as crianças são mandadas cedo à escola, não para que aí aprendam alguma coisa, mas para que aí se acostumem a ficar sentadas tranquilamente e a obedecer pontualmente àquilo que lhes é mandado, a fim de que no futuro elas não sigam de fato e imediatamente cada um dos seus caprichos.” (KANT, 1999, p. 13).

9Lloyd deMause dizia que a relação adulto-criança era ambivalente, pois, a criança passou a ser reconhecida como tal, porém, era vista pela ótica do adulto, a admissão da criança lhe sobrecarregou com as projeções dos adultos que tinham na criança o receptáculo de suas ambições e frustrações (deMAUSE, 1982, p. 89). A concretização do projeto de homem inoculado na criança só seria possível por intermédio de uma instituição encarregada de sua formação, assim, teve início a defesa da educação escolar das crianças, essa atividade deveria complementar aquilo que a natureza deixou inacabado e, rapidamente, formar na criança o adulto conforme o modelo de homem previamente definido pela sociedade.

10A crítica à definição de homem que mais se aproxima da orientação teórica dessa investigação é encontrada em Derrida, para quem a afirmação “nós homens” indica exclusivamente: “nós os europeus adultos machos brancos carnívoros e capazes de qualquer sacrifício.” (DERRIDA, 2007, p. 34).

11Esse movimento de renovação da historiografia surgiu com a veiculação dos Annales d’histoire économique et sociale, cuja primeira fase está situada entre 1929 e 1939; os pioneiros dessa iniciativa foram os historiadores Lucien Febvre e Marc Bloch; posteriormente, seguiu-se a segunda etapa conduzida por Fernand Braudel; há, por fim, uma terceira etapa, que é contemporânea do pós-estruturalismo filosófico, essa terceira geração ficou conhecida pela designação nouvelle histoire como desdobramento inevitável da história cultural. A respeito da fortuna da École des Annales P. Burke teceu o seguinte comentário: “O grupo ampliou o território da história, abrangendo áreas inesperadas do comportamento humano e a grupos sociais negligenciados pelos historiadores tradicionais.” (BURKE, 1997, p. 126).

12As palavras de P. Ariès são suficientes para justificar a opção historiográfica deste trabalho: “A história das mentalidades é sempre, quer o admita ou não, uma história comparativa e regressiva. Partimos necessariamente do que sabemos sobre o comportamento do homem de hoje, como de um modelo ao qual comparamos os dados do passado - com a condição de, a seguir, considerar o modelo novo, construído com o auxílio dos dados do passado, como uma segunda origem, e descer novamente até o presente, modificando a imagem ingênua que tínhamos no início.” (ARIÈS, 1981, p. 26 - grifos meus).

13A respeito de marcos cronológicos é muito instrutivo o comentário de J. Revel: “As transformações dos comportamentos e das representações são lentas, difusas e muitas vezes contraditórias. Assim, só excepcionalmente podemos atribuir uma data precisa a uma evolução ou a uma inovação e associa-la a um fato histórico. Contudo, a história da civilidade propõe essa experiência única. Ancora-se num texto básico, que depois não cessou de ser reivindicado, plagiado, deformado. Essa matriz é A civilidade pueril de Erasmo, publicada pela primeira vez na Basileia em 1530 e logo destinada a imenso sucesso.” (REVEL, 2009, p. 171 - grifos do autor). O mesmo raciocínio, portanto, pode ser aplicado ao Método dos estudos dos jesuítas, pois, na mesma passagem citada Revel afirmou: “podemos atribuir uma data precisa a uma evolução ou a uma inovação e associa-la a um fato histórico”.

14Mais uma vez, é oportuno recorrer a Ariès: “A diferença essencial entre a escola da Idade Média e o colégio dos tempos modernos reside na introdução da disciplina. [...]. Apesar da persistência dos traços arcaicos, a disciplina daria ao colégio do Ancien Régime um caráter moderno que já anunciava nossos estabelecimentos secundários contemporâneos.” (ARIÈS, 1981, p. 191 - grifos do autor).

15A história natural não estava isenta da influência do pensamento religioso; tal como Deus é perfeito, a natureza é organizada, vale dizer, bem regulada, nas palavras de E. Husserl: “O naturalismo apareceu depois da descoberta da natureza no sentido de uma unidade de ser espaço-temporal, unidade que obedece a leis exatas.” (HUSSERL, 2005, p. 19); na mesma passagem o autor afirma que o naturalismo foi responsável também pela ideia de progresso, decisiva para a perspectiva científica do conhecimento histórico.

16Jolibert ressalta o pioneirismo do método pedagógico sobre os métodos filosófico e científico: “Antes de serem promovidas por Descartes e Malebranche ao primeiro posto dos valores científicos e filosóficos, as ideias de ordem e de método eram manifestadas como valores pedagógicos nas regulamentações dos jesuítas” (JOLIBERT, 1981, p. 107); o autor se refere ao já mencionado Método dos estudos, cuja elaboração consumiu mais de quatro décadas, de 1552 até 08/01/1599, quando foi aprovado, após ampla discussão e enriquecido com os pareceres dos padres-professores dos muitos colégios espalhados pelo mundo.

17A. Ponce havia enfatizado o anacronismo do ensino em relação à prática da ciência: “Enquanto Galileu (1564-1642) descobria os satélites de Júpiter e Harvey (1578-1657) a circulação do sangue, nas escolas da burguesia continuava-se ensinando as ciências dos antigos, quer dizer, uma anatomia sem dissecações e uma física sem experimentos. Bacon afirmava que ‘o poder aumenta com os conhecimentos’, mas a burguesia tardava em introduzir nas suas escolas essa promessa tentadora.” (PONCE, 1991, p. 126).

18“Aqueles que a fortuna fez plebeus, gentes de condição humilde, camponeses mesmo, devem se esforçar para compensar com as boas maneiras as desvantagens impostas pelo acaso. Ninguém escolhe o seu lugar nem o seu pai: todo mundo pode adquirir as qualidades e as [boas] maneiras.” (ERASMO, [1530], p. 119). Esse último período é autobiográfico; os pais de Erasmo morreram infectados pela peste negra em 1483, ele passou a ter nos estudos o seu segundo nascimento, tornando-se homem de letras e filósofo respeitado pelas autoridades civis e eclesiásticas do seu tempo. No Dos meninos Erasmo foi mais enfático a respeito da instrução dos desfavorecidos: “De minha parte, eu me restrinjo a propor o modo melhor possível de educar. Quanto ao dinheiro, nada possuo para oferecer. Caberia, sim, à liberalidade dos afortunados patrocinarem os talentos de indivíduos agraciados pelos dons da natureza, mas a braços com restrições no orçamento familiar e, em decorrência disso, impedidos de explicitarem seu potencial nato.” (ERASMO, [1529], p. 84).

19A educação humanista era destinada à preparação para o ingresso no ensino superior, naquelas carreiras que vigoraram sem concorrência até o século XVIII: a medicina, a teologia e o direito. Assim, a educação básica para adolescentes de 10 a 15 anos era composta de duas partes, o trivium que se atinha aos estudos da linguagem, e o quadrivium composto pela aritmética, geometria, harmonia e astronomia. Esse modelo de ensino vigorou por mais de 11 séculos, em algumas regiões mais atrasadas da Europa ainda era praticado em pleno século XIX.

20Pierre de la Ramée, ou na forma aportuguesada Pedro Ramus (1515-1572), foi outro ilustre educador do período, em sua obra pedagógica ele justificava o ensino humanista: “[...] a Gramática e a Retórica para bem falar e ornar a palavra, a Aritmética e a Geometria para bem contar e bem medir; quanta vigília e quanto conviria ao homem para tramar a Dialética, arte geral para inventar e julgar todas as coisas?” (RAMÉE, [1555], p. 11). A dialética na tradição humanista equivale à lógica clássica.

21No Dos meninos esse argumento é retomado: “A ignorância do idioma impede ou atrasa e até transtorna aquele universo do saber, máxime, a teologia, a medicina e o direito.” (ERASMO, [1529], p. 59).

22“[...] desde nascido, o homem vem aparelhado para captar os ensinamentos sobre os bons costumes. Apenas aprende a falar e está hábil para ser iniciado no aprendizado das letras.” (ERASMO, [1529], p. 56).

23Novamente Ariès: “O primeiro manual de civilidade foi o de Erasmo, que fundou o gênero. Todos os manuais posteriores, e houve muitos, nele se inspiraram ou o imitaram servilmente.”; o mesmo autor atesta a absorção desse manual para as tarefas escolares das crianças: “O tratado de civilidade não era livro escolar, mas satisfazia uma necessidade de educação mais rigorosa do que a mixórdia dos antigos livros de cortesia ou dos ensinamentos do pseudo-Catão. As circunstâncias - os progressos da escolarização - fizeram com que, embora estranho à escola, e transmitindo regras de conduta não escolares e mal escolarizáveis, o manual de civilidade fosse associado ao ensino das crianças pequenas, a suas primeiras lições de leitura e escrita.” (ARIÈS, 1981, p. 247).

24A. Prosperi em uma introdução aos Colloquia de Erasmo afirmou: “Erasmo não foi um mestre de escola ou de universidade. A sua obra de educador se desenvolve e se veicula com a palavra escrita e a imprensa, em função de uma língua europeia de comunicação dos clássicos cultos que de fato vigoraram até o século XVIII.” (PROSPERI, 2002, p. 54).

25No livro Dos meninos, Erasmo afirmou: “A filosofia ensina mais em um único ano do que em trinta anos a mera experiência por enriquecedora que seja” (ERASMO, [1529], p. 44).

26A incumbência dada aos pais é acompanhada da nova percepção social, fazendo-se presente no discurso de Erasmo a conotação pragmática da importância da educação infantil, não para preparar o homem na criança, mas por considerar a educação dos filhos como o maior investimento e o maior legado para o futuro, em passagens sucessivas de Dos meninos Erasmo adverte os pais a esse respeito: “De outro lado, como não ver um comportamento perverso e contraditório naqueles que se empenham, com muito afã, no cultivo de lavouras, na edificação de casas, na criação de cavalos, consultando, a propósito, o parecer de peritos com longa vivência na área, mas se ocupam, muito de leve, em instruir e educar os próprios filhos, aos quais, no entanto, tudo se destina.”; ou ainda: “Se ajustas tais bens para pessoa devidamente educada, entregas-lhe instrumento de virtude; se, ao invés, caem em poder de indivíduo desinformado e rude, que fizeste a não ser municiá-lo de recursos para a malversação e os vícios? Seria, por ventura, imaginável um pai mais desatinado?” (ERASMO, [1529], pp. 23 e 27 respectivamente).

27O descompasso entre reformadores e contra reformadores está na importância que os primeiros atribuíram à língua materna e a negligência desses últimos que ainda insistiam no monopólio das línguas clássicas.

28A idade de 4 anos não é aleatória, Erasmo fez referência direta à ela, quando repudiava os péssimos hábitos dos mestres dos jardins literários inspirados nas escolinhas dominicais; “Que aproveitamento proporciona-se às crianças, de apenas quatro anos de idade, matriculando-as em jardins literários sob a direção de preceptores desconhecidos, rudes, de costumes nada sadios [...]?” (ERASMO, [1529], p. 67).

29Ariès também destacou esse preconceito quanto à instrução das crianças: “O sentimento mais comumente expresso para justificar a necessidade de retardar a entrada para o colégio era a fraqueza, ‘a imbecilidade’, ou a incapacidade dos pequeninos.” (ARIÈS, 1981, p. 176).

30Recorrendo ao mesmo Ariès, indiretamente é correto reconhecer o pioneirismo de Erasmo, pois, o filósofo havia escrito que tão logo a criança falasse, estava ali a oportunidade para instrui-la. A massificação dessa prática pedagógica demorou a acontecer, porque, segundo Ariès: “Tudo indica que a idade de sete anos marcava uma etapa de certa importância: era a idade geralmente fixada pela literatura moralista e pedagógica do século XVII para a criança entrar na escola ou começar a trabalhar.” (ARIÈS, 1981, p. 87).

31A manifestação de Erasmo: “Imperioso mesmo é ou não existir escola ou apenas haver escola pública. Este último sistema se revela mais adequado ao atendimento coletivo. Bem mais cômodo sujeitar muitos pela disciplina sob o comando de um único preceptor do que levar a termo uma educação personalizada.” (ERASMO, [1529], p. 69).

32“Não são raros os indivíduos que exigem da criança atitudes precoces de adulto. Sem a mínima consideração pela exígua idade dela, ficam a medir a mente infantil pela própria capacidade. [...]. Em suma, comportam-se como se lidassem com gente grande, esquecidos de que já foram eles mesmos crianças.” (ERASMO, [1529], p. 86/87).

33Acertadamente B. Jolibert escreveu: “aqueles que têm a criança, têm o adulto” (JOLIBERT, 1981, p. 12), em clara alusão à importância da educação escolar para a manutenção e ampliação do número de fiéis, como reação à reforma protestante.

34Ratio, uma palavra polissêmica, pode ser vertida para o português em quatro vocábulos distintos, contudo interligados: método, ordem, razão e plano; o primeiro vocábulo é predominante, a opção por ordem parece orientar as considerações de Miranda (2011), cujo título do seu artigo é “A Ratio Studiorum...” em clara alusão à palavra ordem, porém, é pouco usual essa escolha; mantenho a minha escolha: Método dos estudos; essa opção contrasta com a única tradução editada no Brasil e publicada somente em 1952, após a morte do tradutor, o padre Leonel Franca. O jesuíta brasileiro traduziu “studiorum” por “pedagógico”; da minha parte, considero a pedagogia uma ordem discursiva que encontra sua expressão no século XVIII, além do que, o padre Leonel Franca também manifestava igual entendimento: “De fato, o Ratio não é um tratado de pedagogia, não expõe sistemas nem discute princípios” (FRANCA, 1952, p. 43- grifo do auor); por isso mantenho “estudos” para studiorum ao invés de “pedagógico”.

35O comentário a seguir é oportuno: “A gratuidade do ensino abria as portas dos colégios a todas as classes sociais: não apenas aos que viriam a ser futuros clérigos, mas também aos leigos, desejosos de progredir no saber humanístico, uns por amor ao saber, outros por amor ao poder. De facto, a experiência jesuítica de ensino foi também, de certo modo, uma experiência de democratização do ensino ‘avant la lettre’, e constituiu, para muitos, a oportunidade de ascender na escala social.” (MIRANDA, 2011, p. 478 - grifos da autora).

36Editada em 1559, três anos após a morte do fundador, essas constituições tiveram uma primeira versão, elaborada ainda sob a supervisão de Loyola, datada de 1552, na qual já constava os cuidados com a formação escolar dos futuros religiosos (FRANCA, 1952, p. 16).

37“A brevitas imperatoria foi sempre uma das qualidades do estilo de comando e uma das garantias de sua eficiência. O esforço foi feito. Cortaram-se pelas repetições agrupando as regras comuns a vários professores. Às outras se deu uma redação mais concisa. Reduziu-se assim de metade o volume do Ratio; enquanto a segunda edição contava 400 páginas, a ultima não ia além de 208; o número total de regras descera de 837 a 467.” (FRANCA, 1952, p. 22 - grifos do autor).

38Essa idade, 10 anos, tinha Descartes quando ingressou no colégio jesuíta de La Flèche, permanecendo lá durante nove anos, onde realizou todo o ciclo preparatório para o ensino superior, o que equivaleria no presente ao segundo ciclo do ensino fundamental e todo o ensino médio. O registro dos anos em La Flèche, constam da primeira parte do Discurso do método: “Fui alimentado com as letras desde minha infância, e, por me terem persuadido de que por meio delas podia-se adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida, tinha um imenso desejo de aprende-las. Mas, assim que terminei todo esse ciclo de estudos, no termo do qual se costuma ser acolhido na fileira dos doutos, mudei inteiramente de opinião. Pois encontrava-me enredado entre tantas dúvidas e erros, que me parecia não ter tirado outro proveito, ao procurar instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais minha ignorância. E, no entanto, estava numa das mais célebres escolas da Europa.” (DESCARTES, [1637], p. 8).

39Apesar da inovação dos jesuítas, “a mistura arcaica das idades persistiu nos séculos XVII e XVIII entre o resto (sic) da população escolar, em que crianças de 10 a 14 anos, adolescentes de 15 e 18 e rapazes de 19 a 25 anos frequentavam as mesmas classes.” (ARIÈS, 1981, p. 176).

40Gramsci reivindicava a escola unitária e única para todas as crianças, adolescentes e jovens, isso significava romper com o monopólio da educação intelectual e científica para os setores dominantes da sociedade, e em contrapartida o oferecimento de uma educação rudimentar destinada à preparação das camadas populares e dos filhos de operários para o mundo do trabalho; note que a reivindicação de Gramsci pela escola democrática é datada de 1932, esse fato atesta que nas regiões menos desenvolvidas das nações prósperas prevalecia a velha educação; nas palavras de Gramsci: “A escola unitária deveria corresponder ao período representado hoje pelas escolas primárias e médias, reorganizadas não somente no que diz respeito ao método de ensino, mas também no que diz respeito à disposição dos vários graus da carreira escolar.” (GRAMSCI, 2004, p. 37).

41“Há algum tempo eu percebi que, em meus primeiros anos, eu havia recebido uma quantidade de falsas opiniões por verdadeiras, e o que depois fundei sobre esses princípios nada seguros, não poderia ser senão muito duvidoso e incerto; de modo que eu deveria tentar seriamente em minha vida me desfazer de todas as opiniões que eu havia recebido quando era criança, e começar tudo de novo desde os fundamentos, se quisesse estabelecer alguma coisa sólida e constante nas ciências.” (DESCARTES, [1641], p. 57).

42As matérias ensinadas nas escolas, diz Descartes: “São, de fato, exercícios para os espíritos das crianças e um meio de emulação para fazê-las progredir: é bem melhor forma-las com opiniões semelhantes, ainda que sejam aparentemente incertas por causa da controvérsia dos eruditos, do que abandona-las livremente a si mesmas. [...]. E, nós mesmos, nos alegramos de ter sido outrora educados desse modo nas escolas.” (DESCARTES, [1628], p. 7).

43Vico designava a infância como barbárie do intelecto, uma barbárie benigna porque fecunda de humanidade e propícia à boa ordem dos estudos, bastando aos mestres evitarem de incorrerem no embrutecimento da mente infantil com o ensino das disciplinas incompatíveis à idade: “na idade em que é robusta a memória, vivida a fantasia e fogoso o engenho - que exercitariam com proveito no estudo das línguas, da geometria linear, sem domar com tais exercícios a imaturidade da mente contraída pelo corpo, que se poderia dizer barbárie do intelecto” (VICO, 1992, p. 85).

44Rousseau se pôs de acordo com Erasmo a respeito da capacidade natural da criança para a educação: “Eu repito, a educação do homem começa no seu nascimento; antes de falar, antes de entender, ele já se instrui.” (ROUSSEAU, 1966, p. 70); no início do primeiro livro do Emílio, o filósofo afirmava que a educação compreende três modalidades: da natureza, dos homens e das coisas; a primeira modalidade é, portanto, a educação natural reservada às crianças e consiste no “desenvolvimento interno das nossas faculdades e dos nossos órgãos” (ROUSSEAU, 1966, p. 37); por conseguinte, a educação dos homens nada mais é que o uso da educação natural, e, por fim, a experiência que o indivíduo estabelece com os objetos que lhe afetam a inteligência é a educação das coisas.

45“[...] não se pode educar um homem apoiando-se sobre os caracteres próprios da infância, pois estes pertencem à animalidade, mais do que à humanidade” (CHARLOT, 1979, p. 119).

46Antes, na mesma obra, Kant havia escrito: “[...] não se deve educar as crianças segundo o presente estado da espécie humana, mas segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é, segundo a ideia de humanidade e da sua inteira destinação.” (KANT, 1999, p. 22). A filosofia de Kant é própria de um estágio que ele próprio designava de tempo de esclarecimento, vale dizer, a humanidade ainda não está esclarecida, ela avança naquela direção; porém, a desconsideração do estado presente - da história e da vida da criança - faz da educação uma idealização, sem que venha alcançar a atitude crítica inseparável das condições concretas que a criança tem diante de si. O projeto de futuro resultou na sociedade iluminsita que produziu o mundo contemporâneo com as suas conquistas e os seus erros.

47Nos cursos Sobre a pedagogia, Kant se manifestava: “Os castigos físicos devem ser empregados somente como complemento à insuficiência das penas morais. Quando as penas morais deixaram de ter eficácia, e se recorre aos castigos físicos, então, não se consegue mais formar um bom caráter. Mas, no início, a coação física deve suprir a falta de reflexão na criança.” (KANT, 1999, p. 79/80); Kant mantinha a opinião cartesiana a respeito da incapacidade de reflexão da criança, sendo assim, tudo poderá ser feito em seu nome, até mesmo açoita-la para seu benefício!

48Essa é a tese sustentada por Adorno e Horkheimer na Dialética do esclarecimento: “A maldição do progresso irrefreável é a irrefreável regressão” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 46).

Recebido: 01 de Setembro de 2014; Aceito: 01 de Novembro de 2014

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