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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.17 no.2 Uberlândia mayo/ago 2018  Epub 01-Mayo-2019

https://doi.org/10.14393/che-v17n2-2018-18 

Resenhas

Entre morros, mares, campos e aldeias: costuras historiográficas sobre a escolarização das populações rurais.

Between hills, seas, fields and villages: historiographic seamings on the schooling of rural populations.

Entre morros, mares, campos y aldeias: costuras historiográficas sobre la escolarización de las poblaciones rurales.

JULIANA PEREIRA DE ARAÚJO1 

1Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos. Professora da graduação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Goiás (Regional Catalão). E-mail: juliana.barrado@gmail.com

LIMA, S.C.F.; MUSIAL, G.B.S.. Histórias e memórias da escolarização das populações rurais: sujeitos, instituições, práticas, fontes e conflitos. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.


A obra em questão é mais que um livro que socializa percursos e resultados de pesquisas para pesquisadores da história da educação. Após sua leitura consideramos que ele atuará em prol da elevação das produções da área a um patamar outro, que une rigor científico e toques sensíveis de escrita literária. Assim, o leitor encontrará o lastro da ciência nas referências sólidas que fundamentam as análises e no cuidado na descrição das metodologias e instrumentos metodológicos, mas também a fruição marcada pela liberdade de estabelecer parada a partir dos enunciados que separam as seções do livro: “Aqui... Minas Gerais”, até “Ali... Ceará, Rio Grande do Sul, Pernambuco, São Paulo” ou “Em todo lugar... Mali, Portugal e Argentina”. O ancoradouro parece ser a diversidade de textos reunidos pela interlocução de pesquisadores de diferentes lugares, como aqueles que conduzem o vigoroso trabalho do Grupo de Pesquisas em História do Ensino Rural da Universidade Federal de Uberlândia (GPHER/UFU), aqueles ligados ao Núcleo de Estudos e Pesquisas em História da Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais (Nephe/UEMG) e ainda os pesquisadores estrangeiros que apenas enriquecem a obra. Diversidade e riqueza que manifestam o valor do intercâmbio entre pesquisadores e grupos de pesquisa.

Pelo avançar da leitura notamos que é obra de sutilezas e consistências. Das sutilezas destacamos a organização que consegue uma obra única ainda que composta por 14 textos de 15 pesquisadores de diferentes estados do Brasil, como Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Sul e ainda de pesquisadores de Portugal, da Argentina e da França. Os enunciados que abrem as seções soam como guias e interlocuções dos autores convidando ao passeio historiográfico, cativando o leitor pelo domínio de paisagens e períodos que emanam sujeitos, documentos, conflitos, práticas e todo um universo de saberes. Ainda do campo das sutilezas ressaltamos que há uma linearidade na linguagem utilizada ao longo de toda obra que consegue manter a unidade em torno da escolarização das populações rurais e os rigores da escrita científica, não se distanciando do apreço ao específico, aos cenários das pesquisas. Nisso repousa o cuidado de historiadores-escritores em cativar, conquistar leitores tanto da academia quanto leitores ordinários de Minas, Pernambuco, Brasil e terras do Sul ou além mar.

Das consistências que cruzam fronteiras geográficas acessamos os resultados. O conjunto de pesquisas delineia critérios comuns no trato do arsenal de dados e escolhas particulares sobre fontes e origens dos mesmos de tal forma que encontramos através dos textos olhares sobre atas de escolas, atas de Câmaras de Vereadores, trechos de discursos, excertos de obras memorialistas publicadas em mídias impressas de circulação local, como jornais e revistas, fotografias, narrativas. Desse modo, a historiografia vai se consolidando pela valorização do dito, do sugerido, do publicado, do censurado, do não dito, da imagem, das mensagens e tudo que faça ventura ao entendimento da história da educação. O espaço ou os espaços rurais são consistência, cimento comum, norte e paisagem. Passemos às seções.

A primeira seção nomeada “Aqui... Minas Gerais” é composta por 07 textos que juntos estruturam um panorama essencial sobre a temática da educação rural nas Minas Gerais pela exploração de vários ângulos, objetos, perspectivas metodológicas e aportes. O texto “A literatura como fonte para o estudo da educação das populações rurais em Minas Gerais no final do século XIX” de Gilvanice B. S. Musial busca analisar potencias e limites dessa arte literária como fonte de estudo da educação das populações rurais. A fundamentação teórica do capítulo campeia pela discussão sobre as representações utilizando teóricos como Roger Chartier. É contributiva a admissão dos autores de que as representações ocorrem pela ausência-presença das imagens e narrativas literárias. Explorando as possibilidades de historiadores o texto mostra que pela literatura, tomada como uma produção social, é possível produzir novas perguntas sobre o passado. Devemos salientar a fruição que o texto proporciona ao apresentar a análise de trechos da obra de Avelino (são utilizados trechos de 04 livros) evidenciando que deste autor há rico material para estudiosos da vida social de Minas. O texto seguinte chamado “Escolas públicas primárias rurais em Minas Gerais: condições materiais e materiais pedagógicos em fins do século XIX e início do XX” de Josemir A. Barros oferece surpreendente contraste com o texto anterior na medida em que esmiúça a concretude dos materiais pedagógicos e da infraestrutura das escolas primárias rurais mineiras localizadas na 1ª Circunscrição Literária em fins do século XIX e início do século XX. A partir de uma análise bem conduzida pela pesquisa documental, Barros mostra a complexa constituição da escola como instituição social que atendesse aos objetivos de uma determinada elite em integrar Minas Gerais a um contexto internacional maior guiado pela modernidade. É cuidadoso o detalhamento das reformas que pretendiam garantir esse acesso e dos documentos que, revelando as condições materiais das escolas, visibilizam a precariedade das mesmas e a discrepância entre discurso e prática. Indiretamente, o texto oferece pistas interessantes para pensarmos a produção da docência e das práticas pedagógicas nestas escolas assim como a questão política do afastamento do Estado perante a responsabilidade pela educação, sobretudo das populações rurais. Gilma M. Rios é autora do terceiro texto da seção chamado “Novos tempos, discursos antigos: educação rural em Araguari na década de 1930”. O intento é a análise dos discursos sobre a educação do campo em Araguari na década de 1930 acessados através de pesquisa documental realizada nos arquivos do jornal Gazeta do Triângulo. Rios esmiúça as várias reformas e iniciativas das décadas de 1930 e 1940, oferece dados bem organizados sobre os colégios em Araguari no período e ressalta as condições precárias impostas aos professores rurais sem perder de vista os conflitos estabelecidos pelo confronto de propostas de diferentes setores sendo um deles representado pela Igreja. Observamos que as reformas instituídas no período não chegaram a todos os lugares da mesma forma já que era mínima a referência à educação rural. O quarto texto “O rural e o urbano nas atas de reuniões da Associação Comercial, Industrial e Agropecuária de Uberlândia (Aciub), 1933-1953, de Tânia C. da Silveira e Cristiane Angélica Ribeiro, socializa os resultados de uma pesquisa que pretendeu analisar os discursos sobre os projetos políticos para desenvolvimento da cidade pinçando deles indícios sobre o papel destinado ao espaço rural e a escola rural. Tendo as atas das reuniões da Associação Comercial Industrial e Agropecuária de Uberlândia no período de 1933 a 1953 como lócus da pesquisa documental Silveira e Ribeiro conseguem chegar em documentos ainda pouco explorados que exprimem o pensamento da elite local o que amplia a riqueza da pesquisa. Os trechos escolhidos para serem apresentados salientam os modos pelos quais o empresariado uberlandense organizava continuamente a constituição de uma ideia de modernidade e como se dava a representatividade dessa classe junto aos órgãos públicos da administração municipal o que reflete o poder da elite dominante para qual o espaço urbano sobrepõe ao espaço rural. Pela leitura do texto vemos que coube ao ensino rural a representação social como manifestação do atraso em relação ao meio urbano o que de certa maneira explica (ainda que as autoras o façam) o fato de o termo “agropecuária” ter sofrido resistências quanto ao acréscimo na nomenclatura da associação. A agropecuária se associa ao espaço rural. Dados sobre a oferta de formação profissional no período mostram como os empresários oferecem todo o apoio da associação para ampliação da rede de escolas privadas na cidade e como a contribuição para as escolas rurais tem como base o assistencialismo encoberto pela ideia de solidariedade. Walquiria M. Rosa é autora do quinto texto intitulado “Prescrevendo práticas de higiene e saúde: os diários dos clubes de saúde do curso de aperfeiçoamento para professoras rurais da Fazenda do Rosário-Ibirité-MG (1940-1956)”. Objetivando identificar, descrever e analisar as relações entre os saberes tradicionais e os saberes escolares sobre a saúde das populações rurais em Minas Gerais de 1940 a 1970, a análise se baseou em dois eixos: as prescrições da escola sobre a saúde das populações rurais e o modo como a população, particularmente as pessoas que exerciam ocupações relacionadas a saúde, se relacionava com os discursos escolares. É possível compreendermos meandros do que Rosa identifica como um processo de ocidentalização a partir dos cursos de aperfeiçoamento realizados na Fazenda do Rosário e depois no Instituto Superior de Educação Rural criado em 1950 como parte do Complexo da Fazenda. Helena Antipoff aparece como influência no período devido a sua atuação em conjunto com o governo mineiro para atender as necessidades da zona rural e a falta de professores neste espaço. O texto evidencia que a formação de professores não preparava para a compreensão do homem do campo e suas necessidades o que explica em grande parte a intensificação de práticas que mudavam os hábitos dos sujeitos do meio rural, vistos como doentes e pouco higiênicos. Com “O rural, o silêncio, o esquecimento e o memorialista. Uberlândia-MG, 1950-1959” Sandra C. Fagundes de Lima socializa resultados de pesquisa que pretendeu acessar e compreender as representações do mundo rural e de seus habitantes construídas pelos memorialistas de Uberlândia entre 1950 e 1959. O texto é exemplo de como o trabalho historiográfico ganha consistência, coerência e beleza a partir da valorização de múltiplos documentos e escritos assomados com esmero e crivados de rigor analítico. O leitor mergulhará num universo discursivo que congrega a obra do memorialista Jerônimo Arantes (que foi Inspetor Municipal de Ensino e chefe do Serviço de Educação e Saúde no Município) em especial aqueles publicados em 28 números da revista Uberlândia Ilustrada entre 1935 e 1961. Acrescentam camadas, a análise atas do Legislativo, atas de reuniões escolares, livros de matrículas e diários de classe de escolas rurais. A costura revela com sensibilidade e objetividade as condições dos sujeitos do meio rural com sua dieta, com suas casas de taipa, suas doenças e remédios ao mesmo tempo que apresentam Uberlândia, a urbe de cinemas, comércios e confeitarias, essa a que predomina nas manchetes e capas divulgadas pela Revista Uberlândia Ilustrada. O mundo rural aparece poucas vezes e nestas o destaque ora aponta resultados e sujeitos da pujante agropecuária ora aponta a situação da roça, momento em que sai o discurso de riquezas e aparece a carência, abandono e isolamento. O que se depreende nas conclusões é de que o modelo de desenvolvimento perseguido constrói um rural subjugado pela lógica da hierarquização rural contado pelo silenciamento, pelo silêncio que para Lima não é ingênuo, mas sim expressão de disputas sobre a memória e sobre a história. Encerra a primeira seção o texto de Sandra C. Fagundes de Lima, Danielle A. de Assis e Silvana de J. Gonçalves intitulado “‘Inventores de trilhas nas selvas da racionalidade funcionalista’: professoras leigas e alunos das escolas rurais (Uberlândia-MG, 1950-1979)” que pela exploração da pesquisa de caráter autobiográfico e da pesquisa documental analisaram os significados atribuídos por professoras leigas, profissionais e alunos ao período em que trabalharam, estudaram na zona rural com ênfase nas memórias sobre a escola. Documentos localizados no Arquivo Público de Uberlândia e outros depositados nos arquivos pessoais dos entrevistados e elementos dos acervos particulares, como fotografias e cadernos constituem o arsenal empírico. Enveredando por categorias como o perfil ingresso na docência, as condições de trabalho e espaços e tempos escolares e significados da escola, entre outras, vão ganhando concretude histórica as instituições isoladas de ensino primário com suas turmas multisseriadas e unidocentes. O início da docência desvela ao leitor a precocidade das professoras e as formas precárias de ingresso. Desvela também o perfil dos alunos que eram em sua maioria filhos de pequenos proprietários rurais desprovidos de recursos. Dos ex-alunos acessamos as memórias que tingem de vermelho a escolarização pelas lembranças das correções em mesma cor. Assim como os castigos, significados como valor. Uma pesquisa, muitas narrativas, sete categorias e um passeio bem orientado pela história-memória sobre a escolarização rural do período. Assim, embevecidos pelas coisas de Minas Gerais nos sentimos preparados e instigados a pousar os olhos e mentes em outras paragens.

A segunda seção soa como convite, desafio ao leitor. É assim que “Ali... Ceará, Rio Grande do Sul, Pernambuco São Paulo” se descortina pelo texto, que é oitavo na obra e que de pronto sinaliza trazer perspectiva diferente e bem-vinda porque atenta a amarração entre famílias, rural e construção social de professores, contemplada pelo título “Vínculos familiares e comunitários na construção social dos professores leigos no meio rural”. Fábio Garcez de Carvalho se propõe a analisar como a construção social dos professores leigos no meio rural cearense é impactada, influenciada pelas trajetórias que enovelam as experiências das individualidades e das coletividades de uma comunidade. Os enredos na pequena cidade de Icapuí são explorados em roteiro que une a pesquisa em acervo documental na qual são acessados jornais editados nos anos 1950 como “O estado e o povo” de caráter estadual e a “Gazeta do Jaguaribe em Aracati” bem como os memorialísticos da terra aracatiense além da documentação da Secretaria Municipal de Educação de Icapuí. Nesse cenário, que é o de um território praiano marcado por precárias comunicações terrestres em processo de decadência pela transferência da capital, é que as escolas domésticas lutam, defendidas por núcleos familiares de camponeses e pescadores. O reconhecimento do trabalho das professoras por parte das famílias locais, as garantias mínimas obtidas de estratégias de acolhimento e proximidade é que vão promovendo o enraizamento dos professores e sua construção social. Estratégias que protegem uma escolarização precária, tortuosa, mas altamente valorizada também porque assume papel essencial no bojo de disputas políticas, de conflitos declarados nos quais faz diferença a existência da escola rural. Do Ceará ao Rio Grande do Sul. José Edimar de Souza e Luciane Sgarbi Santos Grazziotin contribuem ao apresentar o texto “Processos de institucionalização de escolas públicas no meio rural. Novo Hamburgo-RS (1824-1939)” que pressupõe considerar no processo o encontro nem sempre tranquilo das contribuições de diferentes grupos sociais que habitavam Lomba Grande, hoje Novo Hamburgo. É uma pesquisa alicerçada na prudente consideração da força dos costumes vindos tanto da influência religiosa luterana quanto das de outras culturas de outros povos imigrantes para compreender como se viabiliza o discurso em favor da difusão da escola pública primária como função do Estado. Desse modo se acompanha a trajetória de um tipo de escola pública que vai se institucionalizando no imbricamento da história da comunidade Evangélica Luterana que até 1859 tinha como estratégia para escolarização local as chamadas escolas de improviso ou escolas Capela com os ecos de outras culturas e do Estado que resiste a atender os anseios da mobilização dos moradores de Lomba Grande. Ofícios e cartas trocadas entre as autoridades da instrução pública estadual e lideranças locais explicitam a origem de um modo singular e híbrido de organização escolar e pistas sobre o entendimento dos moradores sobre as escolas públicas rurais. O décimo texto (terceiro da segunda seção) “Entre mangueiras e coqueiros: Grupo Escolar Dom Malan e a política nacional de educação rural (1949-1953)” de Virgínia P. da S. de Ávila transportará o leitor-pesquisador para um estudo que objetiva a reconstrução histórica da primeira escola pública estadual do município de Petrolina-PE, o antigo grupo escolar Dom Malan utilizando a pesquisa documental. Desde a doação de terreno, passando pela análise da planta arquitetônica do prédio escolar, a autora elucubra a criação da escola com ênfase no vínculo dessa com a política nacional de educação rural em vigência na década de 1950. Na sequência, no texto “Prescrições para a prática docente: estratégias de uniformização do ensino primário nas escolas isoladas paulistas (Rio Claro, 1946-1966)” Rosa Fátima de Souza e Kamila C. E. Leite socializam pesquisa que se debruçou sobre 134 atas das reuniões pedagógicas dos professores das escolas isoladas de cidade do interior paulista que passava por fase de expansão urbana e industrial no período de 1946 e 1966 para verificar e analisar as prescrições sobre as práticas docentes. Foram identificadas recomendações, esclarecimentos, informações e orientações de natureza administrativa e pedagógica que atuavam como instrumentos de prescrição da prática. Notamos que o que se preconizava nas reuniões não era uma formação específica para a zona rural, mas a uniformização das práticas nas escolas isoladas. Nas entrelinhas das atas, contudo, pistas que não permitem obscurecer de todo práticas de transigência e transgressão comuns da atividade profissional.

A derradeira seção “Em todo lugar... Mali, Portugal e Argentina” brinda o intercâmbio e explícita o potencial de uma produção coletiva e que ultrapassa os limites de um único grupo de pesquisadores. Com textos como “A infância de Hampâté Bâ, da escola corânica à escola dos colonos” de Anne-Marie Chartier o livro atinge culminância absoluta. O texto ilumina a infância de um jovem fula, nascido em 1900, filho órfão do príncipe herdeiro de duas linhagens rivais de um povo tradicionalmente nômade e pastoreador nos limites da África ocidental, da África Central e do norte da África sudanesa. As memórias do jovem fula escritas já na velhice fortalecem frases célebre do próprio autor como a que diz que “na África quando um velho morre, é uma biblioteca que se queima”. O uso da autobiografia amplifica uma história coletiva por meio de narrativas de infância, da vida fora do comum de um homem. Amplifica com coerência e seriedade a riqueza das educações africanas que permaneceram invisíveis aos olhos dos colonizadores, dos militares ou dos comerciantes. É ganho descobrirmos mais sobre a escola corânica onde Hampâté Bâ aprendeu como muitos outros a ler e memorizar a mãe dos livros. São lindos os trechos em que a autora descreve as rotinas dessa escola. Ainda que deva ser lido sobretudo por pesquisadores e interessados pela historiografia da educação, os sentimentos que afloram sensibilizam todo tipo de leitor, qualquer leitor. Nas passagens sobre a escola dos brancos e sobre a escola dos chefes vemos ecos das escolarizações impostas nas Minas, em Pernambuco e em tantos outros rurais evocadas ao longo do livro e fora de suas páginas pelo exercício do leitor. José Antônio Afonso, autor do texto intitulado “Escolas rurais na 1ª República Portuguesa (1910-1926). Inquéritos exploratórios” no qual as escolas rurais da primeira república portuguesa entre 1910 e 1926 são os objetos centrais. Há toda uma complexidade que na exposição da articulação das dimensões política, social, cultural, econômica e pedagógica, reveladoras da tensão entre a modernidade e a tradição, toca a questão da educação, educação rural. Vemos aproximação com a história da educação rural que no Brasil se produz na criação de um ideário sobre o rural em contraponto ao ideário da modernidade, do progresso. Os inquéritos exploratórios aos quais o autor se dedica se constroem por um conjunto de sondagens exploratórias. São consideradas as rupturas políticas e as continuidades culturais do período e do lugar para refletir sobre o projeto integrador da escola republicana portuguesa por meio da análise das publicações históricas do período. Através da pesquisa percebemos o processo ambíguo no qual se operava por um lado o reforço dos valores como terra, tradição, autenticidade e cultura ficcionados pela folclorização, mas por outro a perspectiva do rural delimitado ao limbo histórico, um microcosmo com conflito polarizado pelo ancestral continuum da bipolaridade entre ricos e pobres, característica das Comunidades Rurais, o que implica a construção cultural de um rural sem qualquer reconhecimento identitário individual ou coletivo. Os relatos dos professores portugueses das escolas rurais, de aldeias assinala o modo como barreiras de ordem cultural deveriam ser vencidas para que a modernidade penetrasse célere no rural. A escola republicana teria encontrado no rural um espaço no qual a renovação pedagógica não conseguiu se impregnar, mas possibilita uma escola rural vislumbrada na meritória tentativa de integração cívica mediante a manutenção de uma matriz regionalista. O destaque fica por conta do que tais escolas propiciaram em termos de alfabetização. O texto de Elisa Gragnolino “Las escuelas primárias en el campo tulumbano. Historias de construcción, apropriaciones y disputas en el norte de Córdoba (Argentina)” encerra de forma brilhante a obra. A autora se propõe a multiplicar a compreensão sobre tal objeto a partir dos olhares trazidos pela história, pela antropologia e pela sociologia de onde obtém sua referencias teóricas. A pesquisa documental alavanca o processo fornecendo amplo material do qual se dedica particular atenção ao campo político constituído que está na raiz da apropriação da escola primária. Neste entremeio de atores, olhares e interpretações a instituição escola se apresenta como um espaço de relações sociais, portanto produto da construção social que, por seu turno, é uma versão local e particular de um movimento histórico de amplo alcance. O que o texto sinaliza é que a escola não existe e se sustenta somente por uma decisão estatal ou pelas disposições, mas resulta da ação de múltiplos atores de práticas do presente e do passado e é fundamental investigar as fronteiras do escolar vinculadas às análises das estruturas sociais locais e das estruturas de poder por um olhar rigoroso e processual. Nesse sentido Gragnolino mostra como a escola se faz a partir da vida e dos esforços diários das famílias campesinas. Percebemos, conforme antevia a própria autora do texto, a existência de grande complexidade na admissão de uma abordagem interdisciplinar, mas consideramos que foi vencido o desafio de superar o risco, sobremaneira o previsto, de remeter a escola rural a partir da “pobre escola rural”. Ao analisar as versões e indícios sobre a presença do estado na criação do sistema educativo argentino a autora ressalta os esforços locais das famílias socializando uma versão das políticas de educação sobretudo das escolas rurais que não foram lineares e nem seguiram as modificações das estratégias de reprodução campesina. É mostra de como a compreensão da história social regional, do espaço social, do sistema educativo e dos seus sujeitos emerge nas trajetórias que se cruzam e interpenetram e que apenas pesquisadores munidos de fios analíticos podem distinguir.

Encerrar a leitura do livro revigora o desejo de novas obras de mesma dimensão e densidade. Temos a sensação de que há muito o que descobrirmos e caminharmos na historiografia justamente porque o livro nos dá condições de irmos mais longe, de irmos acompanhados.

Referências

LIMA, S.C.F.; MUSIAL, G.B.S. (Org.). Histórias e memórias da escolarização das populações rurais: sujeitos, instituições, práticas, fontes e conflitos. Jundiaí: Paco Editorial, 2016. [ Links ]

Recebido: 01 de Março de 2018; Aceito: 01 de Abril de 2018

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