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Cadernos de História da Educação

versión impresa ISSN 1982-7806versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.17 no.3 Uberlândia set./dic 2018  Epub 07-Mayo-2019

https://doi.org/10.14393/che-v17n3-2018-9 

Artigos

Currículo e Educação Física: uma análise do documento de Minas Gerais de 1978

CLÁUDIO PELLINI VARGAS1 

CARLOS FERNANDO FERREIRA DA CUNHA JUNIOR2 

1Doutor em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Professor Adjunto do Centro Universitário Estácio Juiz de Fora e do Colégio de Aplicação João XXIII da UFJF. E-mail:

2Doutor em Educação (UFMG). Professor do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE / UFJF) e da Faculdade de Educação Física e Desportos da UFJF. E-mail: carlos.fernando@ufjf.edu.br


Resumo

Em meados da década de 1980, emergiu no campo da Educação Física (EF) o conhecido Movimento Renovador. Trata-se de um período fortemente marcado pela influência das teorizações críticas sobre a área, seus professores e suas produções, bem como sobre a elaboração de documentos curriculares. Tendo encontrado potencialização a partir do período de reabertura política do Brasil, ao fim da ditadura militar, o referido movimento tem sido considerado pelos estudiosos da área como um momento de ruptura de paradigma, ou seja, a EF passou a não mais se pautar pela prática exclusiva de desenvolvimento da Aptidão Física no interior escolar. O presente trabalho objetivou analisar o documento curricular de EF escolar de Minas Gerais, publicado em 1978 pela Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais. Por meio de uma abordagem qualitativa de análise de conteúdo, verificamos a sólida presença das teorizações tradicionais de currículo em seu interior, mas destacamos, entretanto, rudimentos do debate crítico que inspirou o movimento citado. Na estrutura, apresentamos a descrição metodológica da investigação, uma síntese das teorizações curriculares e a contextualização da Educação e da EF na década de 1970 no Brasil. A análise é inspirada em referenciais teóricos consagrados na Educação e na EF. Por fim, sustentamos que o documento mineiro, no auge do governo militar, apresentava indícios de uma tensão, a qual já procurava caminhos mais críticos para a EF nas escolas.

Palavras-chave:  Educação Física Escolar. Currículo. História da Educação Física. Movimento Renovador. Teoria Crítica.

Abstract

In the mid-1980s, the so-called Renewal Movement emerged in the field of Physical Education (PE). It is a period strongly marked by the influence of the critical theorizations about the area, its teachers and its productions, as well as on the elaboration of curricular documents. Receiving a boost from the political reopening period in Brazil, by the end of the military dictatorship, the said movement has been considered a moment of paradigm break by the scholars of the area, that is, PE became no longer guided exclusively by a kind of practice intended for the development of physical fitness inside the school. The present work aims to analyze the Minas Gerais curriculum of PE, published in 1978 by the State Department of Education of Minas Gerais. Through a qualitative approach to content analysis, we verify the solid presence of the traditional theorizations of curriculum in its interior. However, we highlight the beginnings of the critical debate that inspired the quoted movement. In the structure, we present the methodological description of the research, a synthesis of the curricular theorizations and the contextualization of education and PE in the 1970s. The analysis is based on theoretical references in the field of education and PE. Finally, we argue that the Minas document, at the peak of the military government, presented indications of a tension, which suggests it had already been seeking more critical paths for PE in schools.

Keywords:  Physical Education; Curriculum; History of Physical Education; Renewal Movement

Introdução

Michael Apple (2006) argumentou que a estabilização de ideologias está fortemente ligada à internalização de regras e princípios do senso comum que controlam a ordem social vigente. Para o autor, “essa saturação ideológica sem dúvida será mais eficaz se ocorrer cedo na vida de alguém” (p. 81). São regras tais que darão sentido, valor e/ou significado às situações e experiências, as quais serão vivenciadas pelos indivíduos ao longo de suas vidas. A argumentação nos leva ao questionamento sobre a origem da função escolar, a construção de identidades, o acesso ao conhecimento difundido nos currículos, assim como suas relações com a vida pública ao longo dos diferentes períodos históricos.

A história do desenvolvimento das teorias curriculares no Brasil (MOREIRA, 2010) mostrou que muitos de seus estudiosos, até meados dos anos de 1960, preocupavam-se fundamentalmente com seus aspectos tecnicistas, utilitários ou mesmo com sua organização programática (Bobbitt, Dewey, Kilpatrick e Tyler). O sentido social das experiências na escola por meio do currículo foi aceito como “algo não problemático por sociólogos da educação” (APPLE, 2006, p. 82), o que fez com que outros teóricos, como Bourdieu, Bernstein e Young desenvolvessem suas teorizações sobre conhecimento e poder.

Nesse sentido, para Apple (2006), poucas parecem ter sido as reflexões sobre os problemas do conhecimento educacional curricular, compreendidos como formas de distribuição de bens e serviços na sociedade, emergindo assim a ideia de que “o estudo do conhecimento educacional é um estudo ideológico, a investigação do que determinados grupos sociais e classes, em determinadas instituições e em determinados momentos históricos, consideram como legítimo” (p. 83). Para Moreira e Silva (2011), o conhecimento curricular é entendido como uma produção histórica socialmente incerta, constituindo-se também numa arena política.

Pretendemos, neste artigo, colaborar para a produção do conhecimento sobre os currículos de EF e suas ênfases teóricas, seus projetos e objetivos, seu processo histórico, a partir da análise de um documento de 1978 publicado pela Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais (MINAS GERAIS, 1978). Que códigos, sentidos e significados tal proposta curricular mineira revela? Que contribuições podemos dar às compreensões históricas sobre a EF no Brasil a partir deste documento mineiro de 1978?

1. Procedimentos metodológicos e estrutura do trabalho

A discussão articula contribuições dos campos da História das Disciplinas Escolares e do Currículo. O diálogo teórico sobre Currículo se desenrola sustentado nas pesquisas de autores que discutem o assunto no cenário educacional contemporâneo, destacando-se Moreira e Silva, bem como Neira e Nunes sobre a EF escolar. As contribuições da História das Disciplinas Escolares nos ajudaram a refletir sobre o caso da EF em busca de identificar ao longo do seu percurso “os diferentes momentos históricos em que se constituem os saberes escolares, visando perceber a sua dinâmica, as continuidades e descontinuidades no processo de escolarização” (BITTENCOURT, 2003, p. 15).

A pesquisa se desenvolveu fundamentalmente por meio de uma abordagem qualitativa de análise de conteúdo do documento curricular mineiro de 1978, localizado no acervo bibliotecário do Centro de Memória da Educação Física, do Esporte e do Lazer (CEMEF), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)3. Optamos ainda pelo uso de fotografias do documento, considerando a necessidade de sua preservação no referido acervo.

Sobre a metodologia escolhida, fundamentamo-nos em Minayo (1998), que apresenta a análise de conteúdo em três fases distintas: (1) a exploratória, na qual refletimos sobre o objeto de investigação, o documento curricular de EF de 1978, e delimitamos o problema; (2) a fase de coleta de dados, quando identificamos as informações que respondem ao problema, observáveis nas figuras fotografadas; e (3) a fase de análise de dados, quando fizemos nossas inferências e interpretações sobre os dados coletados, articulando-as às teorias que iluminam o estudo. Entretanto, é imperioso destacar que as etapas não foram cumpridas de forma rígida, pois a pesquisa educacional é sempre atravessada por possibilidades flexíveis, na medida em que nossas subjetividades, assim como, ideologias, práticas e valores são sempre inerentes ao processo investigativo (TARDIF, 2002; CHARLOT, 2006).

Na estrutura do artigo, num primeiro momento, apresentamos breve revisão sobre as teorias curriculares no Brasil, identificando o contexto que resultou em influências mais significativas para o desenvolvimento do documento na década de 1970. Num segundo momento, emerge uma contextualização da Educação e da EF na referida época, seguida pela análise propriamente dita do documento. Identificamos a presença de concepções tradicionais sobre a EF, mas também percebemos vestígios de ideias e conceitos críticos que se aproximavam do chamado Movimento Renovador da Educação Física (CAPARROZ, 1997), o que representa uma novidade em termos do conhecimento da área. Por fim, apresentamos as considerações finais do estudo.

2. As teorias curriculares tradicionais e críticas no Brasil

De acordo com Moreira e Silva (2011), as teorias do currículo visam encontrar determinadas respostas para questões a respeito do conhecimento a ser ensinado aos estudantes e também ao tipo de ser humano que uma sociedade vislumbra. Entendemos que estejam implicadas nessa reflexão questões referentes à construção de um sujeito na sua evolução intelectual (cognição e aquisição de saberes úteis), e também na formação para a cidadania, ou seja, um indivíduo crítico capaz de identificar valores éticos e morais essenciais na formação humana, consciente de seus deveres e direitos. Dessa forma, o currículo se relaciona claramente tanto às questões epistemológicas, ou seja, aos conteúdos registrados nos documentos, bem como às de construção das identidades dos sujeitos. Segundo os autores, as “teorias [curriculares] têm sido classificadas em tradicionais, críticas e pós-críticas” (p. 07), mediante as respostas que apresentam a todas estas questões expostas.

As teorias tradicionais mostram-se focalizadas na organização dos processos curriculares, acreditando num posicionamento neutro ou científico de elaboração, o que nos leva a compreender que nelas não há maior preocupação com o desenvolvimento crítico do cidadão, que não se levam em conta os atravessamentos subjetivos existentes nas práticas pedagógicas institucionais e ainda, que não se consideram as históricas desigualdades sociais do mundo. Nas palavras dos autores, “as teorias tradicionais ignoram o caráter político das práticas curriculares, deixando, então, de levar em conta o quanto tais práticas contribuem para preservar os privilégios dos estudantes dos grupos socialmente favorecidos (...)” (p. 08). Essa visão, conforme Neira e Nunes (2009, p. 96), é ainda

sincrética, superficial e fragmentada, que apreende apenas a aparência e o efeito do problema e desconsidera o movimento, a historicidade, a contradição e a totalidade das relações que a escola mantém com outras esferas sociais, ou seja, desconsideram-se categorias que são inerentes à ação humana e, portanto, também à educação. Nessa lógica, são desprezadas quaisquer análises sobre os efeitos do currículo nas pessoas.

Esse foi o entendimento geral oriundo das ideias curriculares tradicionais, as quais predominaram na primeira metade do século XX. No Brasil, mais especificamente a partir dos anos de 1920, a teoria tradicional inspirou-se no pragmatismo e progressivismo de John Dewey, que emergiu em 1902, sustentando-se também em Bobbitt já no ano de 1918 e agregando-se ainda à pedagogia de projetos de Kilpatrick, a qual visava um currículo integrado. Mais adiante, em 1949, as teorias tradicionais ancoram-se também no tecnicismo ou instrumentalismo de Ralph Tyler (LOPES, MACEDO, 2011).

A partir da década de 1970, ainda conforme Moreira e Silva (2011), as teorias críticas emergem se contrapondo às tradicionais, destacando que qualquer teorização implica em relações de poder, ou seja, devido aos aspectos técnicos e instrumentais, as razões para determinadas decisões curriculares e suas consequências para os alunos são ignoradas.

As teorizações críticas rejeitam o foco até então central nos processos de planejar, implementar e avaliar currículos, voltando sua atenção para o conhecimento escolar e para os critérios implicados em sua seleção, distribuição, hierarquização, organização e transmissão nas escolas e salas de aula. Buscam entender a quem pertence o conhecimento considerado válido de ser incluído nos currículos, assim como quem ganha e quem perde com as opções feitas. Procuram, também, compreender as resistências a todo esse processo, analisando de que modo seria possível modificá-lo (p. 08).

Neira e Nunes (2009) sustentam que as teorias críticas têm suas bases nas tradições da filosofia social e política de Hegel e Marx, explicando “o funcionamento da sociedade com base em sua divisão de classes economicamente distintas e das relações sociais que nela se estabelecem” (p. 99). Para os autores, esta concepção vem perdendo o fôlego4 e, atualmente, vem sendo vista muito mais como um modo de análise do que uma forma de construção de uma sociedade mais humana.

3. A contextualização da Educação na década de 1970 e documento curricular da EF mineira de 1978

Conforme Germano (1993), nos anos que antecederam a tomada de poder pelos militares em 1964, a política e a economia brasileiras foram caracterizadas por certa estabilidade entre o populismo de Vargas e a expansão da indústria, sendo que para este último processo o Estado realizou a implementação de condições fundamentais de estrutura para seu avanço. Por isso, parte do grupo empresarial da época ofereceu base de apoio ao poder público, chegando ao ponto de tolerar o nacionalismo econômico governamental em alguns momentos. Na medida em que ocorreu a entrada do capital internacional, o equilíbrio se abalou e as tendências populistas se enfraqueceram com a falta de apoio das Forças Armadas, não sendo mais possível manter a política de massas e o nacionalismo atrelados ao desenvolvimento da economia. O governo Juscelino Kubitschek, então, preocupou-se em aprofundar

a distância entre o modelo político e a expansão econômica, já que continuara adotando a política de massas, mas acelerara a expansão industrial, abrindo mais as portas da economia nacional ao capital estrangeiro. As contradições chegam a um impasse com a radicalização das posições de direita e esquerda. Os rumos do desenvolvimento precisavam então ser definidos, ou em termos de uma revolução social e econômica pró-esquerda, ou em termos de uma orientação dos rumos da política e da economia de forma que eliminasse os obstáculos que se interpunham à sua inserção definitiva na esfera de controle do capital internacional. Foi esta última a opção feita e levada a cabo pelas lideranças do movimento de 1964 (ROMANELLI, 1978, p. 193).

Para Ferreira Júnior e Bittar (2008), as reformas educacionais então realizadas no governo militar, refletiram tanto a modernização autoritária do capitalismo brasileiro pós 1964, quanto a teoria econômica do capital humano. Havia a pretensão da eficiência técnica empresarial como alavanca para o desenvolvimento econômico do país e para sustentá-lo como potência mundial, fato que estimulou reformas e políticas educacionais marcadas por um referencial tecnocrático, autoritário e produtivista, voltados prioritariamente à preparação para o trabalho.

Os governos militares adotaram um movimento político de duplo sentido: ao mesmo tempo em que suprimiam as liberdades democráticas e instituíam instrumentos jurídicos de caráter autoritário e repressivo, levavam à prática os mecanismos de modernização do Estado nacional, no sentido de acelerar o processo de modernização do capitalismo brasileiro. Em síntese: propugnavam a criação de uma sociedade urbano-industrial na periferia do sistema capitalista mundial, pautada pela racionalidade técnica. (...) Foi assim que o Estado, com grande poder de ordenação da sociedade civil, assumiu uma face ideológica fundada no princípio da racionalidade técnica como o único mecanismo político válido para a consolidação da revolução burguesa que havia se iniciado depois de 1930 (p. 355).

Na esteira desse processo, o governo executou significativas reformas educacionais em 1968 com enfoque estruturante e também de contenção, dentre elas: (1) a Lei 5.537, de 21 de novembro de 1968, que criou o Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação, complementado pelo Decreto-Lei 872, 15 de setembro de 1969; (2) Decreto 63.341, de 1º de outubro de 1968, que estabeleceu critérios para expansão do ensino superior; (3) a Lei n. 5.540, que reformou a Universidade articulando-a à escola; (4) a de 1971, Lei n. 5.692, que estabeleceu o sistema nacional de 1° e 2° graus, com vistas a estabelecer uma ligação direta entre eficiência produtiva do trabalho e modernização das relações capitalistas de produção (CUNHA, 1977; FERREIRA JÚNIOR, BITTAR, 2008).

Como descrevem Neira e Nunes (2009), tanto a sociedade como a educação escolar nesse período pós 1964 eram influenciadas pelos ideais liberais e pragmáticos, sendo a educação acentuada por “processos metodológicos em detrimento da aquisição de conhecimentos, visando à construção de um posicionamento crítico (...)” (p. 75). Para os autores, havia uma prática escolar que não se preocupava em contextualizar questões políticas e sociais, o que gerava maior espaço para as políticas tecnicistas que dominavam a pedagogia, passando consequentemente, às próprias disciplinas escolares, como a EF. Os currículos planificados e sistematizados com vistas ao desempenho técnico e ao desenvolvimento econômico social eram comumente vistos no âmbito escolar.

Com a implantação do regime militar, o modelo político-econômico era fundamentado em um projeto desenvolvimentista, que buscava acelerar o crescimento socioeconômico do País. A educação desempenhava importante papel na preparação adequada dos recursos humanos necessários ao incremento do crescimento econômico e tecnológico da sociedade, em íntimo acordo com uma concepção economicista dos serviços educacionais (idem).

Simultaneamente, a história da EF revela que o desenvolvimento da área no Brasil foi atravessado por uma constante movimentação de ideias políticas e epistemológicas de matizes teóricas distintas. Especialmente nas formulações sobre o espaço escolar, observamos, prevalentemente, as concepções higienistas europeias do século XIX, o tecnicismo americano das décadas de 1960 e 1970, bem como a influência marxista nos anos 1980 e 1990 (BRACHT, 1999; FERREIRA JÚNIOR, BITTAR, 2008; SOARES, 2007).

Refletindo junto a Bracht e Almeida (2003), percebemos ainda que o governo federal, desde os anos da ditadura militar, buscou vincular o esporte escolar ao sistema esportivo nacional com intuito de fortalecer o nacionalismo, bem como alavancar o desenvolvimento econômico. Para os autores,

Estabeleceu-se uma relação de mútuo condicionamento: ao componente curricular educação física é colocada a tarefa de funcionar como o alicerce do esporte de rendimento, sendo considerado a base da pirâmide; e a instituição esportiva, com o discurso da saúde e da educação, lança mão desses argumentos para conseguir apoio e financiamento público e alcançar legitimidade social (p. 91).

As aproximações entre o governo federal brasileiro, a Educação Física e o Esporte, assumiram maior vigor a partir do período do Estado Novo com Getúlio Vargas, intensificandose na Ditadura Militar posta em 1964. As ações envolveram esforços legislativos, criação de organismos governamentais e infraestrutura, reformas educativas envolvendo a EF, o que, em muitos casos, não alcançou os resultados esperados no chão da escola e no sistema esportivo nacional, ficando mais notório seu resultado no plano das ideias sobre a área em questão.

O documento curricular mineiro de 1978 foi uma realização da Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais. O professor Lincoln Raso, chefe da Assessoria de Educação Física e Desportos Escolares da Superintendência Educacional, convidou a professora Eustáquia Salvadora de Souza para a organização do trabalho. Ela, então, na perspectiva de contemplar áreas diversas de saberes da EF e de atuação no campo, chamou outros professores para a discussão e produção do documento. Desta maneira, constituiu-se um grupo heterogêneo de ação composto por professores que atuavam na escola básica e na educação superior. Professores considerados especialistas em determinadas modalidades esportivas, atividades rítmicas, aquáticas, ginásticas e jogos. Participaram do grupo a própria Eustáquia Salvadora de Souza, Elenice Faccion, Luis Afonso de Vasconcellos e Almeida, Pedro Américo de Souza Sobrinho, Elizabeth da Costa Rosseti, Isabel Montandon, José Tarcísio Cavalieri, Wilson Camelier, entre outros.

O documento foi divido nas seguintes seções: Apresentação; Introdução; Normas para a elaboração de um plano de curso; Esquema do programa de Educação Física; Objetivos gerais da Educação Física na escola de 1º Grau; Movimentos básicos fundamentais e habilidades perceptivas; Atletismo; Atividades Rítmicas; Ginástica Olímpica; Esportes Coletivos – Jogos com bola, Basquetebol, Handebol, Voleibol; Natação; Bibliografia.

Fonte: MINAS GERAIS. Governo do Estado. Secretaria de Estado da Educação. Assessoria de Educação Física e Desportos Escolares da Superintendência Educacional. A Educação Física no Ensino de Primeiro Grau. 1978.

Figura 01 - Capa do documento curricular de EF mineiro de 1978. 

Em sua apresentação, assinada pelo professor Lincoln Raso, fica evidenciado o objetivo do documento que não tinha a intenção de ser um pacote fechado para guiar o trabalho dos professores de Educação Física, mas uma orientação organizada por profissionais da área aos seus colegas das escolas mineiras, sendo estes incumbidos da tarefa de adaptá-lo às diferentes realidades das escolas e das crianças. A Assessoria de Educação Física e Desportos Escolares da Superintendência Educacional visava com o documento:

apresentar uma orientação para o trabalho do professor de Educação Física de 1º grau [...] Sua estrutura permite uma utilização flexível e criativa por parte do professor que o adaptará às necessidades e interesses da criança, bem como às condições e recursos disponíveis das unidades escolares (MINAS GERAIS, 1978, s/p).

A seção Apresentação revela o conceito de Educação Física que baseou a construção do documento, a “Educação Física não apenas como aprimoramento físico, mas de desenvolvimento de habilidades intelectuais e formação de atitudes favoráveis em relação à vida social”. A Educação Física, portanto, teria o aprimoramento físico como referência, mas também estaria voltada à aquisição de outras habilidades do campo cognitivo e atitudinal, referências próprias do tempo da década de 1970 (NEIRA, NUNES, 2009).

Na Introdução, o documento de 1978 ratifica o caráter orientador das ideias ali apresentadas para os professores, bem como a necessidade das unidades escolares elaborarem suas adaptações em atenção as suas características físicas e materiais e com relação aos interesses dos estudantes.

Este trabalho visa auxiliar o professor de Educação Física no planejamento, orientação e controle de suas atividades docentes. A estruturação não seriada foi proposta, tendo em vista a heterogeneidade de nível de conhecimentos e habilidades de nosso aluno, bem como, das condições e recursos apresentados nas escolas do Estado de Minas Gerais. É necessário que cada unidade escolar elabore o seu programa, adaptando os objetivos, conteúdos e atividades apresentados aos interesses e necessidade do aluno. O educador deve ter o cuidado de não deixar que as suas habilidades e preferências influenciem demasiadamente na escolha dos objetivos e conteúdos. Deve ser ainda uma preocupação do professor, proporcionar a todos os alunos, oportunidade de se educarem não somente no aspecto psicomotor, mas também, em conhecimentos e ideais. Para isto é importante que o programa seja integrado a outros componentes curriculares, tais como: Ciências, Educação Artística, Estudos Sociais, Línguas. Atenção especial deve ser dada às atividades extra classe onde o educando poderá desenvolver atitudes e gosto pela prática de atividades físicas, não somente na escola, mas por toda sua vida. Cabe ainda ressaltar a necessidade fundamental de se avaliar continuamente os resultados dos trabalhos desenvolvidos, e utilizá-los para as revisões e ajustamentos que se fizerem necessários à melhoria do ensino (MINAS GERAIS, 1978, p.16).

A seção traz ainda a ideia de que o educador deve ter o cuidado de não deixar que as suas habilidades e preferências influenciem demasiadamente na escolha dos objetivos e conteúdos. Isso chamou nossa atenção em alguns aspectos, como a escolha dos organizadores em utilizar o termo educador para se referirem ao docente de EF. Depreendemos da análise que os elaboradores do documento já sustentavam a ideia de que o docente de EF deveria atuar como um educador, ou seja, não deveria agir como um professor tradicional ou um instrutor da EF que colocasse em primeiro plano na organização das aulas as suas preferências e/ou habilidades, oriundas de sua história e/ou vivência, sem dar voz aos estudantes. Agregamos que o documento já apresenta indícios de que o professor de EF deveria pensar de maneira mais abrangente a relação dos conteúdos da área com a formação dos seus alunos. Esta passagem parece estar voltada contra o predomínio do conteúdo esportivo no planejamento das aulas de EF. Assim, ao alertar os educadores, o documento parece defender uma perspectiva mais ampla de EF, para além da esportivização e da ênfase ao tecnicismo. Os elaboradores parecem se referir a uma EF que leve também em consideração os interesses e as necessidades dos estudantes.

Notamos, a seguir, mais dois aspectos. Primeiro, o avanço significativo em relação à ideia de educar para além do aspecto psicomotor, ou seja, um dado importante para flagrarmos no documento os indícios de tentativa de ruptura com relação ao paradigma de EF predominante que à época pautava-se no desenvolvimento físico. Em segundo, destacamos que o documento trata de uma EF que já oportunizaria aos estudantes se educarem em conhecimentos e ideais, sendo necessária a interdisciplinaridade, ou seja, outro argumento e estratégia de legitimar a disciplina no âmbito escolar. A EF teria mais sentido ou seria mais importante se superasse a ênfase no aspecto motor, fechada em si mesma, e se pudesse estar articulada a outros saberes escolares, os quais possuíam suas formas próprias de interrogação do mundo conforme os parâmetros da modernidade. Tal indício parece reforçar os estudos desenvolvidos sobre a crise epistemológica do campo que emergiram a partir da década de 1980 (BRACHT, 1992, 2007; MEDINA, 1983).

Fonte: MINAS GERAIS. Governo do Estado. Secretaria de Estado da Educação. Assessoria de Educação Física e Desportos Escolares da Superintendência Educacional. A Educação Física no Ensino de Primeiro Grau. 1978.

Figura 02 - Normas para elaboração de um plano de curso. 

A seção Esquema do programa de Educação Física revela também o caráter transitório de uma EF tecnicista para uma concepção que trataria de questões mais amplas da vida dos sujeitos. A marcação das etapas na planificação curricular (Figura 02) para os cursos escolares da EF mineira reforça um aspecto significativo sobre a trajetória das teorias curriculares no Brasil que permearam a primeira metade do século XX, culminando na década de 1970. Recuperamos as ideias de Ralph Tyler (MOREIRA, 2010; LOPES, MACEDO, 2011) e suas intenções de articulação entre o progressivismo e as concepções de eficiência, as quais influenciam o documento exposto. As teorias do autor caracterizam-se mais por um tipo de racionalidade curricular próxima dos aspectos de eficiência, evidenciando etapas de objetivos e as respectivas avaliações dos resultados.

A perspectiva de Tyler (1973) como teoria do currículo, exemplo paradigmático desta orientação, foi decisiva e estabeleceu as bases do que tem sido o discurso dominante nos estudos curriculares e nos gestores da educação. O único discurso até há pouco tempo e ainda arraigado em amplas esferas da administração educativa, da inspeção, da formação de professores, etc. Para Tyler, o currículo é composto pelas experiências de aprendizagem planejadas e dirigidas pela escola para conseguir os objetivos educativos (SACRISTÁN, 2000, p. 46).

Entretanto, o documento, no chamado terceiro passo das Normas para a elaboração de um plano de curso (Figura 02), já chamava a atenção para o que se deveria considerar a partir dos interesses e necessidades dos alunos, e no “quarto passo”, indica que as atividades da EF deveriam atendê-los individualmente e em grupos. Identificamos os rudimentos de mudanças nos aspectos citados, que corroboram com as perspectivas críticas da EF dos anos de 1980, as quais já se avizinhavam. Como se observa no Coletivo de Autores5 (2012, p. 55), obra fundamentalmente ancorada na teorização crítica dos anos de 1980,

Os movimentos renovadores da educação física, do qual faz parte o movimento dito humanista na pedagogia, se caracterizam pela presença de princípios filosóficos em torno do ser humano, sua identidade e valor, tendo como fundamento os limites e interesses do homem e surge como crítica a correntes oriundas da psicologia conhecidas como comportamentalistas. (...) Os princípios veiculados pela pedagogia humanista foram tratados por Vitor Marinho de Oliveira no livro intitulado Educação física humanista6, [publicada em sua primeira edição no ano de 1985].

Ainda no Coletivo de Autores (idem), é possível observar, como um exemplo que fundamenta nossa inferência, o tipo de planejamento esperado em uma aula fundamentada na teorização crítica respeitando mais as individualidades dos discentes, o qual deveria respeitar as seguintes etapas: (1) o ciclo de organização e identificação da realidade; (2) o ciclo de iniciação à sistematização do conhecimento; (3) o ciclo de ampliação à sistematização do conhecimento; e (4) o ciclo de aprofundamento da sistematização do conhecimento. Agreguese a reflexão que

É fundamental partir do entendimento de que nossos alunos são pessoas concretas, com níveis de aspiração, interesses e motivações diferenciados, o que faz com que cada um atribua um sentido pessoal ao jogo, à ginástica, à dança etc., ou seja, pelo sentido e objetivo pessoais, cada aluno pode se satisfazer com uma execução técnica de nível diferente (...) É claro que, se alguns alunos vierem a se interessar e desenvolver condições para tal, poderão treinar até atingir esses níveis [tecnicamente mais elevados], enquanto outros serão orientados pelo professor dentro das possibilidades individuais, sem negar conhecimentos mais amplos e profundos (COLETIVO DE AUTORES, 2012, p. 84).

O quinto passo da planificação sugerida pelo documento, por sua vez, aborda a questão da avaliação e traz outra significativa consideração, a qual parece revelar a importância sobre a autoavaliação e a preocupação com todo o processo de ensino e aprendizagem, indo assim, para além dos aspectos acríticos que envolvem a EF. Já eram visíveis também alguns indícios das ideias de que as avaliações precisariam considerar outros tipos de lógica (PERRENOUD, 1999). O documento parece direcionar a uma reflexão de que o processo avaliativo não pode ser reduzido a questões meramente técnicas, ainda que sejam enaltecidas as ideias de instrumentos que possam verificar o alcance de objetivos.

Neira e Nunes (2009) são enfáticos ao abordar as concepções de currículo desse período histórico no Brasil, sustentando que a preocupação dos professores estava direcionada para a organização racional do processo de ensino e para sua planificação. Esse momento ficou marcado, no âmbito da EF, “pela proliferação de obras e manuais que apresentavam, passo a passo, as aulas prontas, restando ao professor o papel de minimizar os problemas disciplinares ou estruturais e ‘colocar em prática’ o currículo ideal” (p. 76). Como destacamos anteriormente, não era esse o objetivo do documento mineiro de 1978 que tinha a perspectiva de servir como uma orientação aos professores.

Fonte: MINAS GERAIS. Governo do Estado. Secretaria de Estado da Educação. Assessoria de Educação Física e Desportos Escolares da Superintendência Educacional. A Educação Física no Ensino de Primeiro Grau. 1978.

Figura 03 – Esquema do Programa de Educação – Exemplo 

Em Esquema do Programa de Educação Física – Exemplo, (Figura 03) o documento apresenta os conteúdos/unidades a serem trabalhados nas aulas de EF, dispostos em níveis ao longo das oito séries do então primeiro grau. É possível, então, perceber a influência das ideias e conhecimentos da Aprendizagem Motora e do Desenvolvimento Motor na orientação e distribuição das unidades com relação à seriação e dentro das próprias séries. A base de todo o trabalho está na primeira unidade, disposta na primeira e na segunda série, cujo objetivo seria desenvolver nos estudantes as habilidades motoras e perceptivas básicas: movimentos locomotores, axiais e de manipulação; reconhecimento das partes do corpo; equilíbrio; percepções visuais, auditivas e táteis. Adquiridas estas habilidades, os estudantes estariam aptos a se envolverem em atividades mais complexas, como as atividades rítmicas, os jogos, a ginástica, os esportes e a natação.

O quadro também revela a marcante presença do esporte como conteúdo fundamental da EF, uma vez que modalidades deste conteúdo dominam o exemplo do programa apresentado pelo documento mineiro de 1978. Esta é uma característica da década de 1970, como apontam diversos estudos (BRACHT, ALMEIDA, 2003; NEIRA, NUNES, 2009; BRACHT, 1992), e o documento mineiro revela esta centralidade do esporte à época, trazendo o que Pacheco (2001) diz sobre o currículo enquanto proposta de uma dada identidade cultural,

marcado pelas relações de poder decorrentes das opções ideológicas e das posições hegemônicas sustentadas pelos diversos grupos de interesses. Onde tais interesses são mais visíveis é no nível da selecção do conhecimento escolar, que constitui a base nutritiva do currículo, pois as disciplinas científicas não representam apenas campos do saber definidos por pressupostos metodológicos. São espaços de poder instituídos, nos quais diferentes atores sociais buscam construir sua hegemonia (p. 03).

Nesse sentido, vale refletir sobre o papel que o professor de EF exercia naquela época, o qual pode ser destacado pela ideia do reprodutor de práticas corporais, em especial as esportivas, como se pode depreender da observação do documento (Figura 03) sobre o esquema do programa de EF. As concepções que abordavam outros aspectos da cultura corporal, como atividades rítmicas e jogos com bola eram minoritárias. Outros temas, como lutas e danças, eram inexistentes. O tecnicismo e o reprodutivismo, a preocupação com a eficiência e o desenvolvimento de habilidades e competências (valências físicas e esportivas), os aspectos motores de suporte às habilidades cognitivas dominavam o currículo. O documento, então, expressando suas tensões e conflitos, admite também a interpretação de Neira e Nunes (2009, p. 76) sobre a EF dos anos de 1970 no país:

O professor tornou-se mero executor de objetivos instrucionais, de estratégias de ensino e avaliação. Acentuou-se o formalismo didático por meio dos planos elaborados segundo normas prefixadas. O planejamento educacional propunha uma forma de organização que evitasse ao máximo qualquer interferência subjetiva que viesse a desestabilizar o processo. Com os objetivos preestabelecidos, bastava operacionalizar a ação didática de forma mecânica, a fim de evitar qualquer risco. Aqueles que pudessem ser sinalizados como perigosos ao êxito dessa maquinaria eram reprimidos ou excluídos do processo, fossem alunos ou, até mesmo, professores. A prática pedagógica foi concebida, simplesmente, como estratégia para alcançar os produtos previstos, traduzidos comumente em comportamentos desejáveis.

Com relação à seção “Objetivos gerais da Educação Física na escola de 1º. grau”, o documento indica que este componente curricular visava promover “a Educação Psicomotora; O desenvolvimento das qualidades físicas básicas; A socialização; A criatividade; A consolidação de hábitos higiênicos; A valorização da prática de atividades físicas”.

Quanto à educação psicomotora, atrelada a essa fase da história do currículo da EF escolar, nitidamente observada no texto, passou a ser ainda mais explorada na década subsequente, anos de 1980. Começavam a se destacar os aspectos psicológicos da educação e, naturalmente, a EF sofreu também esta influência, ou seja, centrava-se no desenvolvimento do aluno, dos aspectos cognitivos, afetivos e psicomotores (com uma clara influência da Taxonomia de Bloom) e em como a criança aprendia (NEIRA, NUNES, 2009).

A recente análise de Nóbrega, Mendes e Gleyse (2016) sobre os discursos presentes na Revista Brasileira de Educação Física e Esporte (RBCE), um dos poucos periódicos de relevante influência na área no início dos anos 1980, reforça nossa visão sobre o desenvolvimento dos estudos em Psicologia voltados para a área de EF:

No Brasil, [o discurso da psicomotricidade] se faz presente e reforça a influência dos estudos de Le Boulch para a educação física brasileira. No cenário brasileiro, por um lado essa influência foi importante para superar a lógica esportivizante, mas por outro lado também se pautou numa lógica psicologizante.

A esfera axiológica, aspecto amplamente presente nas práticas pedagógicas da EF, a qual visa agregar o desenvolvimento de valores por meio da socialização e do estímulo da criatividade, também pode ser observada na proposta curricular ao tratar dos objetivos gerais da disciplina. E vale ainda citar os objetivos quanto à consolidação dos hábitos higiênicos, uma permanência que impregna a EF brasileira desde o século XIX (SOARES, 2007; CUNHA JUNIOR, 2008).

Considerações finais

Após a análise, parece-nos fundamental considerar a presença de uma movimentação do processo histórico em direção a uma renovação da EF ao fim da década de 1970. Temos observado que a literatura pertinente ao tema do Movimento Renovador da EF destaca a década de 1980, a partir da obra de Medina (1983), como o início de tais reflexões sobre a ruptura com o chamado Paradigma da Aptidão Física. Entretanto, defendemos que o documento mineiro de 1978, produzido no auge do governo militar, traz indícios de uma tensão que procurava caminhos mais críticos para a EF nas escolas.

Conforme Machado e Bracht (2016), em análise de discursos de professores de EF formados na década de 1980, percebemos que existe certa confusão sobre o entendimento das origens do Movimento Renovador. Será ele marcado pela presença das teorias críticas ou pela ideia de ruptura com Paradigma da Aptidão Física? Para os autores,

A década de 1980 foi marcada, no campo da Educação Física Escolar brasileira, pelo surgimento de um conjunto de produções e debates que ficou conhecido, posteriormente, como Movimento Renovador da Educação Física (MREF) (CAPARROZ, 1997). Pode ser entendido como um movimento de caráter “inflexor”, dado ter representado um forte e inédito esforço de reordenação dos pressupostos orientadores da Educação Física, como, por exemplo, “colocar em xeque”, de maneira mais intensa e sistemática, os paradigmas da aptidão física e esportiva que sustentavam a prática pedagógica nos pátios das escolas (p. 850).

Argumentamos que o Movimento Renovador da EF também envolveu parte das teorizações curriculares que emergiram na década de 1970, na medida em que pressupomos que ele seja marcado fundamentalmente pela ideia de rompimento com a Aptidão Física. Para as décadas de 1980 e 1990, fica-nos o entendimento da construção de teorizações críticas mais sistematizadas para a EF que atingem a produção de livros, artigos, pesquisas, bem como a própria elaboração de propostas curriculares de estados e municípios brasileiros. De todo modo, ainda que o documento curricular da EF (MINAS GERAIS, 1978) esboçasse tímidas tentativas de avanço, tendo perdurado por quase três décadas como proposta de referência da área, ele apresentava elementos inequivocamente mais sólidos, como foi demonstrado, que sustentavam a perspectiva de uma EF escolar mineira ainda cerceada por um forte componente tecnicista e de habilidades motoras e esportivas, características da política de governo deste período (NEIRA, NUNES, 2009; BRACHT, 1992). A análise apresentada torna-o um objeto essencialmente marcado pelas teorias tradicionais de currículo, mas já atravessado por algumas reflexões críticas, por disputas e tensões.

As ideias, os sentidos, os códigos e as normas tecnicistas que influenciaram a EF brasileira, especialmente a partir dos anos 1960, aparecem no documento mineiro de 1978, mas a análise que fizemos de seu conteúdo também revela outras perspectivas, o que podemos chamar de indícios de tensão. Após sua apresentação, o documento (MINAS GERAIS, 1978) tem uma página introdutória - Seção Introdução - que aborda claramente alguns objetivos mais amplos sobre as funções do educador, com uma breve menção sobre a importância do contexto local sobre os interesses do alunado, bem como a identificação de aspectos interdisciplinares. Torna-se imperioso destacar que estes aspectos observados podem ser compreendidos como sérios indícios de avanços pensados para a EF mineira da época. Sustentamos, portanto, que o documento, para além de seguir estritamente as indicações do tecnicismo e do paradigma da aptidão física (COLETIVO DE AUTORES, 1992), revela a influência de ideias críticas e a ação intencional, em suas entrelinhas, nas frestas, de avançar em direção a uma proposta curricular de EF renovadora.

A composição heterogênea do grupo pode ajudar a explicar as tensões que revelamos no documento de 1978, ou seja, a presença de concepções mais tradicionais sobre a EF e também de ideias inovadoras para a época em questão. O texto final parece ter sido o resultado do consenso possível engendrado por aquele coletivo de pessoas responsável por sua elaboração.

3 www.ufmg.br/rededemuseus/cemef.htm/ E-mail: cemefufmg@gmail.com

4 Moreira e Silva (2011) e Neira e Nunes (2009) indicam que as teorizações pós-críticas apresentam, a partir da década de 1990, novas tensões para a discussão curricular. As categorias mais vistas, como poder, ideologia e hegemonia, passam a ser substituídas por cultura, identidades, discurso, entre outras. Contudo, elas não serão utilizadas neste trabalho por terem emergido vários anos após a publicação de nosso objeto de pesquisa.

5A primeira edição desta obra foi publicada em 1992 e marcou a área da EF apresentando a ideia da concepção Crítico-superadora, sustentada no Marxismo.

6Referência: OLIVEIRA, Vitor Marinho de. Educação Física Humanista. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1985.

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Recebido: 00 de Setembro de 2017; Aceito: 00 de Novembro de 2017

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